Open-access Governança da Saúde Pública: conflitos e desafios para uma gestão compartilhada na fronteira Brasil-Bolívia

Public Health Governance: conflicts and challenges of shared management on the Brazil-Bolivia border

Resumo

Este estudo de caso tem por objetivo apresentar a importância da gestão compartilhada da saúde pública para as zonas de fronteira. Especificamente, apresentaremos como ocorreu o enfrentamento inicial da covid-19 na fronteira Brasil-Bolívia, para demonstrar as fragilidades territoriais, tanto em relação à covid-19, quanto ao enfrentamento de outras doenças infectocontagiosas. De ordem metodológica, este artigo propõe uma nova leitura teórico-analítica para os estudos da governança da saúde pública, com base na sociologia dos problemas públicos, de base pragmatista. Através de uma investigação qualitativa (teórico-reflexiva), realizada mediante levantamento bibliográfico, documental e uma consulta junto a 14 especialistas, foram identificadas as controvérsias e os conflitos que definem o problema e a ação para tentar resolvê-lo. A covid-19 reacende a importância da gestão compartilhada binacional, tanto para combate da pandemia, quanto para o controle de outras endemias locais urgentes, como a dengue e o H1N1, na fronteira.

Palavras-chave: Governança; Ação Pública; Pragmatismo; Saúde Pública; Fronteira

Abstract

This case study aims to present the importance of shared public health management for border areas. Specifically, we will present how the initial confrontation of covid-19 took place on the Brazil-Bolivia border, to demonstrate the territorial weaknesses, both regarding covid-19 and in the face of other infectious diseases. Of methodological order, this article proposes a new theoretical-analytical reading for the study of public health governance, based on the pragmatist sociology of public problems. By an investigation (qualitative and theoretical-reflective), carried out with a bibliographic and documental survey and a consultation with 14 specialists, the controversies and the conflicts that define the problem and the action to try to solve it were identified. covid-19 rekindles the importance of shared binational management, both to fight the pandemic and to control other urgent local endemics, such as dengue and H1N1 on the border.

Keywords: Governance; Public Action; Pragmatism; Public Health; Border

Introdução

A emergência e a difusão da pandemia Covid-19 geraram uma crise em escala planetária entre os coletivos humanos, que desafiam a nossa sociedade, o setor público e a comunidade científica que precisam dar respostas urgentes à pandemia (previsão, estratégias de proteção e expectativas possíveis), devido a seu acelerado rastro de contágio.

Essa pandemia tem deixado claro que as situações problemáticas em torno da saúde pública são caracterizadas por diversos eventos imprevisíveis e urgentes, que demandam uma gestão de enfrentamento robusta e coletiva. Portanto, a noção de governança vem sendo empregada como estratégia capaz de articular diferentes atores diante de um objetivo comum. Contudo, segundo Carrapato, Correia e Garcia (2019), a implementação da governança e sua prática no Sistema Único de Saúde (SUS), ainda precisa ser fortalecida, afinal, a discussão e definição das estratégias de saúde pública ainda são muito centralizadas (no Estado) e pouco diálogo/inclusão é realizado com os atores que atuam no território, no defronte com o problema, responsáveis por organizar ações e serviços de saúde na localidade.

Esse entrave ficou mais nítido durante a gestão da pandemia covid-19. Se analisarmos a condução dos trabalhos realizados pelo governo federal brasileiro, veremos que a má gestão é permeada por irresponsabilidades e marcada por atos desprezíveis e desumanos, vide os mais de 500 mil brasileiros que vieram a óbito e a vacinação em massa permeada de negligências.

Essas evidências revelam que a gestão pública precisa ser rápida, trabalhar de forma colaborativa para buscar bem viveres coletivos, principalmente nas zonas de fronteira, onde foi realizado este estudo, que durante a pandemia enfrentaram dificuldades com o isolamento social e o fechamento das fronteiras, além de entraves no atendimento de estrangeiros e brasileiros (não residentes nas cidades de fronteira) no SUS.

Desse modo, este artigo objetiva apresentar a importância da gestão compartilhada da saúde pública para as zonas de fronteira. Especificamente, apresentaremos como ocorreu o enfrentamento inicial da covid-19 em Corumbá e Ladário (Mato Grosso do Sul, Brasil); Puerto Quijarro e Puerto Suárez (Departamento de Santa Cruz de La Sierra, Bolívia), para demonstrar as fragilidades territoriais, tanto em relação à covid-19 quanto ao enfrentamento de outras doenças infectocontagiosas nessa fronteira.

A motivação para realizar este trabalho surgiu decorrente da reascensão de inúmeros problemas latentes dessa fronteira, trazidos pela covid-19, como crises epidemiológicas (Dengue, H1N1, Zika vírus e da febre Chikungunya), o atendimento ao estrangeiro no SUS e os problemas respiratórios causados pelas queimadas que recorrentemente atingem o Pantanal (que compõe a região). Somente em 2020, a área queimada equivaleu a 15 vezes à cidade do Rio de Janeiro (Cabral, 2020). Fatos que demonstram a urgência social para o tratamento das questões referentes à saúde pública nessa região e que reavivam a importância da governança e da pesquisa científica, para compreendermos os entraves e os conflitos em torno dessa problemática.

Metodologia

Este estudo de caso foi realizado seguindo o percurso proposto por Godoi (2010), através de levantamento bibliográfico (em livros e artigos científicos) que permitiu aprofundar o conhecimento das principais palavras-chave desse trabalho; e pesquisa documental (matérias jornalísticas, leis e políticas públicas) que auxiliou na compreensão de como a saúde pública é tratada nessa fronteira. O recorte temporal das matérias jornalísticas (jornais locais) foi de janeiro a junho de 2020, ou seja, a fase inicial da disseminação do vírus.

A análise desses materiais ocorreu sob influência da sociologia contemporânea dos problemas públicos, de base pragmatista (Shields, 2003; Cefaï; Terzi, 2012; Lascoumes; Le Galès, 2012; Andion; Alperstedt; Graeff, 2020) que, fundamentado nos trabalhos do filósofo John Dewey (1927; 1938; 1939), explora a noção de investigação pública (public inquiry), método que busca captar a ação pública promovida pelas práticas coletivas dos atores no território diante dos problemas públicos que enfrentam.

Partindo dessa influência, operacionalizamos a pesquisa através da identificação da comunidade de investigação (community inquiry, descrito na próxima seção), neste caso, uma entrevista junto a 14 especialistas identificados na pesquisa bibliográfica (os pesquisadores locais que estudam o tema) ou documental (os médicos e enfermeiros que atuaram na linha de frente; os representantes da Prefeitura responsáveis pela gestão pública da covid; os indivíduos contaminados e outros identificados em matérias jornalísticas).

As entrevistas foram realizadas via Google Meet, entre 26 de agosto e 11 de setembro de 2020. Ao longo do texto, os entrevistados são referenciados com as siglas descritas no Quadro 1, visando manter o sigilo das fontes.

Quadro 1
Descrição dos participantes da pesquisa

Segundo Cefaï e Terzi (2012), um problema público não ocorre no vazio, ele possui precedentes. Assim, demonstraremos que as complicações atuais, ocasionadas pela covid-19 nesta fronteira, são antigas e reavivam muitos outras. Metodologicamente, os problemas públicos em torno da saúde pública foram tratados sob dois ângulos. Primeiro, identificando as políticas públicas e os acordos internacionais, afinal, como apontam Lascoumes e Le Galès (2012), é através desses dispositivos jurídicos que o Estado pretende transformar o problema público em problema político; segundo, identificando a comunidade de investigação, formada pelos indivíduos descritos no Quadro 1. Todos foram convidados a responder a seguinte pergunta: As cidades desta fronteira estão fazendo o melhor para evitar a proliferação da covid-19?

Resultados e discussão

Governança, ação pública e comunidade de investigação: democratizando a gestão pública

A gestão pública vive um período de profundas transformações. Os problemas públicos, distúrbios que atingem uma dada coletividade e exigem sua manifestação, como a covid-19, não cessam em se transformar, implicando, portanto, no desafio de se definir o interesse geral.

Para Enjolras (2008), o interesse geral não é uma noção absoluta, mas uma construção social que varia no tempo e espaço e afeta a todos, não apenas aos consumidores de dado bem ou serviço público. Um exemplo disso são os serviços da saúde, considerados de interesse geral, na medida em que sua disponibilidade ou indisponibilidade afeta os princípios fundamentais de um determinado grupo.

No caso do Brasil, isso é representado pelo artigo 196, da Constituição Federal de 1988: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (Brasil, 2022) Assim, diferentes organizações atuam para a definição do interesse geral.

Nas últimas décadas, as transformações socioeconômicas culminaram na reforma do Estado e de sua administração em diversos países. A arena política veio se diversificando, em razão da pressão na política realizada por diferentes grupos de interesse. Esses grupos argumentam que as práticas democráticas atuais não são mais capazes de lidar com os problemas públicos da sociedade. A gestão pública passou de um sistema centralizado, dominado pelas ações do Estado, para um sistema de gestão descentralizado, que comporta uma “poliarquia institucional” (Thoenig, 2006), rompendo as fronteiras entre o público e o privado; o local, o nacional e o supranacional, e redefinindo o território.

Segundo Thoenig (2006), a percepção do território é central para a compreensão das instituições políticas. Muito além dos limites geográficos, os territórios são lugares e arenas feitos e refeitos pelos indivíduos (territorialidade). Assim, as instituições políticas constituem territórios para a política pública e de representação. Ou seja, a noção de governança1, aqui adotada, tenta demonstrar como os atores públicos e privados formam redes de cooperação e embate a ação pública, para tratar a intervenção pública de forma mais aberta.

Neste estudo, a governança é compreendida a partir de Lascoumes e Le Galès (2012), ou seja, enquanto gestão compartilhada. Um instrumento de coordenação de variados atores (público, privado, organizações da sociedade civil, outros) que, por meio de regras e em diferentes níveis decisórios, buscam construir coletivamente objetivos, metas e resultados voltados ao bem-estar da sociedade.

O termo governança é bastante difuso e cheio de significados, mas, ainda hoje, “parece uma esperança compartilhada por todos” (Gaudin, 2002, p. 14). Trata-se de uma referência de ação, na qual o Estado se abre para diferentes atores que, com difusas ideias, argumentos e necessidades, buscam traçar, implantar e alcançar metas coletivas. É uma operacionalização da ação pública, que promove o avanço democrático de um lado (devido a participação na decisão pública); e a eficiência da gestão de outro (implantação da política pública). Por esse motivo, segundo Gaudin (2002) e Hermet (2005), a ação pública envolve atores públicos e privados e ocorre através da tríade: agências de regulação, políticas contratuais e fóruns de debate público.

Entretanto, o seu uso se banalizou (Hermet, 2005). A celebração da governança, por meio de acordos de cooperação e trabalho, por exemplo, transformou-se numa verdadeira guerra contra a operacionalização de políticas públicas nacional e dificuldades de redistribuição econômica. Outro argumento do autor refere-se a falsa sensação de participação, pois, muitas vezes, a necessidade de mudanças rápidas levou à elaboração de políticas e decisões centralizadas, com participação apenas do Estado, exceto por alguns especialistas, não promovendo a aprendizagem progressiva e a participação.

É nesse gargalo que dialogamos com as contribuições de Dewey (1939), segundo o qual a liberdade, a garantia de direitos e a participação são pilares fundamentais da democracia. Cabe, assim, valorizar as experiências e as práticas voluntárias dos atores, para compreender como ocorrem os arranjos da vida. Para Dewey (1927), o governo é a organização da vida pública, realizada por seus funcionários, indivíduos que, através de variados métodos e dispositivos, asseguram a regulamentação social, tais como juízes, legisladores, servidores e outros. O Estado não tem existência em si e depende destes executores. Ou seja, não existe um Estado sem governo, assim como não existe um Estado democrático sem a formação de um público que, através de sua opinião, participa da vida pública. A experimentação democrática, método deweyniano que permite compreender a democracia na prática e experiência dos atores, é baseada na premissa de que práticas distintas podem contribuir para a resolução dos problemas que afetam determinados atores.

Para entender uma prática, é necessário que as interações locais estabeleçam conexões contínuas com o debate global. Nessa relação, as práticas surgem e demonstram as experiências de enfrentamento e “governança dos problemas públicos vigentes, que geram condições, recursos e oportunidades para a mudança, mas também para a inércia e a estagnação, em termos de promoção de novos estilos de desenvolvimento” (Andion; Alperstedt; Graeff,, 2020, p. 4). As práticas demonstram a participação dos atores em variados grupos, e como eles coproduzem produtos, bens e serviços públicos.

Contudo, segundo Dewey (1927), nem toda pauta consegue formar um público, afinal há uma nuvem nebulosa sobre a democracia. Logo, a baixa, ou nenhuma participação dos indivíduos na vida pública compromete o fortalecimento do estado democrático. Em O Público e seus Problemas, Dewey (1927, p. 134) buscou “compreender como uma grande sociedade de indivíduos pode converter-se numa grande comunidade atuante na vida democrática”

Essa obra, de 1927, permanece atual para nós brasileiros, pois o público está em eclipse, motivado pelo avanço tecnológico, social, cultural e pela conformidade com a vida política. Esse eclipse é causado pela confluência desses elementos e o grande desafio é retirar o público desse estado, o que só acontecerá, segundo Dewey, quando o público descobrir a sua própria identidade.

Diante disso, são necessárias reconstruções, uma mudança na comunicação do Estado com a sociedade; além do papel da educação, que conscientiza e politiza o nosso povo a partir de sua própria experiência (Dewey, 1938). Nesse processo de eclipse, a ciência ganha destaque. A reconstrução requer a transferência, a temas morais e humanos, de um tipo de método pelo qual o entendimento da natureza humana torna-se imprescindível. A ciência tem o papel fundamental de produzir conhecimentos por meio da teoria e prática, além de discutir o lugar da democracia participativa na gestão pública. Estamos diante do que Dewey chamou de Comunidade de Investigação, a formação do conhecimento através da investigação científica.

Nessa abordagem, de início, o foco é identificar a situação problemática (qualificação de uma perturbação ou distúrbio como problemática) e sua publicização (inúmeras atividades que levam à constituição do público em torno do problema). Para Shields (2003), a situação problemática é um catalisador que permite a constituição da comunidade, gerando um motivo para realizar uma investigação. Os membros da comunidade trazem uma visão científica para a situação problemática, por meio da coleta, hipóteses e interpretação dos dados. Os resultados gerados até podem ser utilizados pelo Estado, entretanto, vale lembrar que assuntos governamentais, como a saúde, também são questões tecnicamente complicadas de serem conduzidos por especialista.

Por isso, Dewey (1927) alerta que uma comunidade exclusiva de especialistas, em que as massas não tenham uma chance de participar e informar seus dilemas, se tornará uma oligarquia administrada para o interesse de poucos. Assim, uma colaboração livre e voluntária é necessária para o sucesso da comunidade, que dependerá da cooperação de variados atores, não só de especialistas.

Nesse entendimento, os especialistas precisam compreender como uma dinâmica coletiva cria campos de experiência em que cenas são apresentadas, argumentadas e justificadas pelos atores, que tentam inscrever suas causas (Cefaï; Terzi, 2012). Cedo ou tarde, esse problema envolverá os órgãos públicos do Estado, como prefeituras ou o ministério público. Por isso, a análise da trajetória do problema público demanda (re)conhecer as políticas públicas e leis vigentes, visto que este problema vai se transformando ao longo do tempo e institucionalizando-se através da judicialização, momento em que o Estado terá que resolvê-lo.

Nessas novas relações entre Estado e sociedade civil, espaços para a participação social foram estabelecidos, como as Conferências Nacionais (Avritzer; Souza, 2013), que ampliaram e redefiniram tal participação. Novos atores foram surgindo e sendo reconhecidos; novas regras e compreensões passaram a orientar a ação do Estado. Vemos, então, que a visão de Dewey sobre participação dos indivíduos na política antecipa essa reconfiguração do Estado contemporâneo, cujas políticas não são mais elaboradas, implantadas e avaliadas apenas pelo Estado, mas em aberto com a sociedade civil.

Segundo Avritzer e Souza (2013), após um período de 20 anos, em um contexto político favorável aos movimentos sociais, a participação política experimentou um crescimento desde a redemocratização. Havia uma maior dinâmica deliberativa com o estado e condições necessárias para discussão, articulação e elaboração de políticas públicas. Contudo, desde o golpe de 2016, assistimos a uma inversão dessas condições e a assunção do atual mal-estar na democracia. Em meio a uma grande instabilidade e a polarização política nacional, diversas conferências, formas de organização, representação e participação foram desmanteladas. Isso ocasiona um grande retrocesso e problemas de efetividade na participação e operacionalização da democracia.

Nessa lógica, a atividade política, que define o bem comum e a coisa pública, não é só analisada pelo prisma das instituições, do legislador e tribunais superiores (top down, por exemplo, Administração central, Governo, Conselhos do Estado). Demonstraremos, a partir da próxima seção, que o fracasso das diversas políticas públicas indica que a organização do Estado e, principalmente, a construção dos problemas públicos precisam romper com a unicidade do Estado (imparcial e racional) e envolver a gestão compartilhada, na qual diversos grupos de atores poderão co-construir o bem comum. A definição do interesse geral precisa dialogar com a ação pública dos atores, que frequentemente dá visibilidade aos desafios públicos e demonstra esforços para resolvê-los (Lascoumes; Le Galès, 2012).

O Estado na fronteira, problemas epidemiológicos e a urgência da gestão compartilhada

Vivemos em um mundo onde as fronteiras dos Estados estão cada vez mais porosas (possibilitando o ir e vir), mesmo diante da atual “epidemia de muros” (Espírito Santo; Voks, 2021), em que os países se fecham para as ondas migratórias (principalmente os da Europa e Estados Unidos). Então, se outrora a função da fronteira era exclusivamente servir de barreira alfandegária (controlando a entrada e saída de bens, pessoas e ideias), hoje elas são espaços de vida com carne, osso e sangue de indivíduos, os cidadãos fronteiriços que ali vivem.

Essa porosidade, que gera mais permissividades do que barreiras, revela que as fronteiras são permeadas pelos compartilhamentos econômicos, sociais, políticos, culturais, ecológicos e, neste estudo em específico, da saúde. Isso convida a olhar como ocorre a política e a vida na fronteira.

De fato, vivemos um enfraquecimento do status político-tradicional da unicidade do Estado (discutido anteriormente), o que demanda uma dimensão sociopolítica (Thoenig, 2006) da gestão pública, na qual os problemas da relação Estado-sociedade poderiam ser resolvidos para além da miríade de estruturas do Estado para organizar a vida na fronteira (alfândegas, comitês e demais órgãos) e envolver os direitos dos cidadãos e a sua participação na gestão pública. Portanto, defendemos aqui a necessidade de dar luz ao movimento que pretende ver a fronteira como um lugar para se viver e morar (Espírito Santo; Voks, 2021). Para assim o ser, temos que escapar de visões idealizadas, fatalistas e/ou mistificadoras, que percebem a fronteira apenas como um espaço residual, perigoso, do tráfico e outros, para percebê-la como um lugar melhor que antes (Dewey, 1927), caminhar para horizontes possíveis e efeitos desejáveis para a população.

A gestão pública nas zonas de fronteira2 sofre ação direta dos laços históricos e culturais dos municípios limítrofes, além das dinâmicas sociais e comerciais atuais e demais interações das populações fronteiriças. Este espaço demanda a presença do Estado, para que o desenvolvimento e a integração ocorram, caso contrário, a carência de colaboração entre os países, a falta de diálogo, de celebração e operacionalização de acordos diplomáticos (conduzidos pelo governo federal) e paradiplomáticos (conduzidos pelos governos subnacionais ou regionais) podem impactar a vida da população que ali vive.

Para Espírito Santo, Costa e Benedetti (2017), a gestão compartilhada nas zonas de fronteira pode acontecer por meio de acordos de cooperação transfronteiriços, firmados em nível federal, entre dois ou mais países; ou através dos comitês de fronteira, um espaço de diálogo binacional, celebrado a nível federal e chefiado pelo respectivo cônsul de cada país. Todavia, segundo os autores, esses acordos destinam-se, principalmente, a grandes projetos, como acordos comerciais e de infraestruturas (construção de portos e rodovias). Já os comitês, tem tratado de pautas ligadas ao tráfico de droga e roubos de veículos; outrossim, apresentam uma descontinuidade de funcionamento, enfraquecendo a politização local. Ou seja, não há discussão de pautas mais substantivas que priorizem a vida na fronteira, como educação, saúde, meio ambiente e outros.

Com cerca de 160 mil habitantes, sendo 45 mil no lado boliviano, a fronteira Brasil-Bolívia apresenta um intenso fluxo transfronteiriço, que privilegia o intercâmbio sociocultural e econômico, mas também sustenta redes de ilegalidades (Costa; Costa; Cunha, 2018). Assim, a proximidade cria normas particulares que, frequentemente, refletem novas territorialidades.

Referente à saúde pública, há graves problemas epidemiológicos nesta fronteira, sobretudo relativos à dengue e ao H1N1, que, até fevereiro de 2020, somavam, no lado brasileiro, 1.500 casos e dois óbitos; e, no lado boliviano, 399 casos e dois óbitos. Até julho de 2021, já são 3 mil casos de dengue só no lado brasileiro, o que levou a Secretaria de Saúde de Corumbá a decretar estado de endemia. Há, também, inúmeras notificações do Zika vírus e da febre Chikungunya. Esses números podem ser bem maiores, devido à possibilidade de casos não confirmados, dos que morrem sem diagnóstico, dos que não procuraram ajuda médica ou dos casos assintomáticos (CORUMBÁ…, 2020).

Com tantos problemas epidemiológicos, o cenário se agravou com as queimadas que aconteceram em todo o ano de 2020 no Pantanal. Somente em fevereiro do ano citado, Corumbá registrou mais de 3 mil focos de incêndio, colocando a cidade na liderança do ranking nacional de focos de queimada. Para ter uma dimensão desse problema, em 2019 foram registrados 334% mais queimadas do que em 2018 (Cabral, 2020).

O problema vira um “jogo de vizinhos”, no qual prefeitos brasileiros e bolivianos colocam, em certos momentos/narrativas, a “culpa” um no outro, no que tange às queimadas, como se o fogo respeitasse o limite internacional. A população sofre com as consequências da fumaça, tendo-se registrado um aumento de 40% no número de atendimentos nos prontos-socorros da cidade devido aos problemas respiratórios ocasionados (Cabral, 2020).

Outra situação problemática refere-se ao atendimento do estrangeiro que busca serviço no SUS. “A busca de atendimento por populações de outros países é uma realidade nos serviços de saúde de municípios de fronteira, e exerce pressão crescente à proporção que os sistemas municipais de saúde se organizam” (Giovanella et al., 2007, p. S263).

Figura 1
Queimadas no Pantanal e fumaças no centro de Corumbá

A Lei de Migração (n. 13.445, de 24 de maio de 2017) (Brasil, 2017b), por exemplo, baliza o acesso a serviços públicos de saúde. Entretanto, há resistência, desentendimentos e até recusa no atendimento, o que acaba gerando conflitos e atos xenofóbicos, como mostra a notícia a seguir:

Nem mesmo com o endurecimento do fechamento da fronteira na Bolívia com Corumbá tem impedido que pacientes bolivianos sejam levados para o hospital da cidade, que pode ficar sobrecarregado em tempos de pandemia. O envio constante dos pacientes vindos da Bolívia tem ocupado cerca de 30% dos atendimentos feitos pelo hospital da cidade, e isso tem gerado muita preocupação para os moradores, que temem ficar sem atendimento médico em época de coronavírus. Um morador chegou a questionar a atitude através das redes sociais: “Até quando a Bolívia vai ver Corumbá como um depósito de pacientes? É preciso que as autoridades se posicionem e imponham um limite; nós brasileiros, que pagamos essa conta e teríamos, em tese, o direito a um atendimento digno, não recebemos da forma como deveria ser. Vamos ter, também, que arcar com o custo de atendimento dos estrangeiros?” (Melo, 2020).

Essa temática demanda discussão, sobretudo pelo fato de o atendimento do SUS não ocorrer somente ao estrangeiro, mas também aos brasileiros que vivem no país vizinho (logo, não é computado na estimativa da cidade). Segundo Giovanella et al. (2007), isso faz com que a demanda aumente significativamente, principalmente em Mato Grosso do Sul e em Rio Grande do Sul.

Mas também, há brasileiros que procuram serviços de saúde nos países vizinhos (Costa et al., 2018), algo que é pouco discutido pois, no imaginário, como nos ensina Sayad (2004), o problema sempre é o outro; a violência racista destilada aos imigrantes surge quando este é percebido como “parasita”, que invade o novo sistema (neste caso, o Brasil), passando a constituir um problema para ele (na saúde pública). Há muitas dificuldades de se assumir suas ações e se perceber como um “parasita”, que também invade o sistema em busca de um objetivo (nesse caso, atravessar a fronteira e buscar atendimento médico, farmácias, protéticos, entre outros).

Dengue, H1N1, Zika, Chikungunya, problemas respiratórios e, agora, covid-19 são doenças que têm sintomas parecidos: febre alta, coriza, tosse, dores pelo corpo e dificuldade de respirar (Brasil, 2020).

O primeiro caso de covid-19, em toda a fronteira, foi confirmado no dia 6 de abril de 2020, em Corumbá, em um turista brasileiro que visitava o Pantanal. Contudo, semanas antes, o clima já estava conflituoso na região. Falsas denúncias diziam que bolivianos na cidade estariam infectados pelo vírus, o que era desmentido após a realização dos testes. A resistência dos empresários brasileiros em diminuir a circulação de pessoas fez com que eles pressionassem o poder local a fechar a fronteira, pois o perigo de contaminação, aos seus olhos, viria do outro lado. Devido à falta de gestão nacional, foram os países latinos que fazem fronteira com o Brasil que acabaram fechando-as, com receio da contaminação aumentar em seus respectivos países, graças ao descontrole brasileiro.

É neste cenário que a covid-19 representa um catalisador dos problemas na fronteira. Ela aumenta a demanda na área da saúde, exigindo mais leitos e tratamentos, além de reacender a xenofobia, caso em que o desconhecimento sobre a transmissão, o controle e a intolerância são verbalizados pela população. Já o poder público, tanto do lado brasileiro quanto boliviano, prefere compreender essas questões como um problema que remete ao outro lado da fronteira. As operações tardam a começar, como no caso do combate ao fogo, impactando ainda mais a vida e os serviços de saúde da região.

Saúde pública na fronteira: ceder ao ceticismo ou abrir-se novamente ao diálogo?

Com tantos problemas epidemiológicos, a covid-19 surge como uma verdadeira faísca, incendiando ainda mais o cenário conturbado. A falta de diálogo entre as cidades é atestada nesta região (Ferreira; Mariani; Oliveira Neto, 2015; Espírito Santo; Voks, 2021). Os problemas da saúde pública levantados são tratados nas quatro questões a seguir.

Identificação das políticas públicas

As políticas públicas até são criadas, como o Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras (SIS-Fronteira), que surgiu em 2005, com o objetivo de promover a integração de ações e serviços de saúde, a organização e o fortalecimento dos sistemas locais de saúde nos municípios fronteiriços. É uma legitimação da Lei da Migração, de 14 de maio de 2017 (n. 13.445/2017), referente à responsabilidade do Estado em garantir os direitos sociais básicos aos cidadãos, independentemente de sua nacionalidade (Brasil, 2017b).

O SIS-Fronteira prevê, para a sua operacionalização, a criação de grupos de trabalho em ambos os lados da fronteira. Contudo, a carência na divulgação é apontada como a principal limitação do projeto, tal como descrevem Ferreira; Mariani; Oliveira Neto (2015, p. 78).

Sobre a compreensão do SIS-Fronteira e o papel de Corumbá no projeto, a resposta mais recorrente entre os entrevistados foi a de que os prestadores de serviços não têm conhecimento do que é o SIS-Fronteira. Entre as justificativas apresentadas, estão: falta de divulgação do projeto e a origem da maioria dos profissionais de saúde em exercício ser de outros municípios e, portanto, não deterem o entendimento do que é trabalhar em município de fronteira.

Até hoje, os especialistas consultados na área da saúde (C-1; C-2; C-3) apontaram que o projeto não saiu do papel; os grupos ainda não foram criados e muitos profissionais da saúde até mesmo desconhecem a proposta. Por isso, destacaram a necessidade de retomar e operacionalizar o SIS-Fronteira.

Paralelamente a este projeto está o Acordo Interinstitucional de Cooperação em Saúde na Fronteira Brasil-Bolívia (AICSF), formalizado pelos Ministérios da Saúde do Brasil e da Bolívia, em outubro de 2017, tendo por objetivo estimular o desenvolvimento de ações mutuamente benéficas na área de saúde.

O ACISF propõe-se a criar e implantar grupos de trabalho que podem atuar em variadas frentes, como o intercâmbio de experiências; as trocas de informação sobre programas e projetos; promover a participação comunitária e a organização de serviços de saúde; e, a que mais chamou atenção em tempos de covid-19, o “fortalecimento, na zona fronteiriça, da vigilância epidemiológica, sanitária, ambiental, medicina tradicional e outros temas considerados relevantes por ambos os países” (Brasil, 2017a); dentre outros.

Todavia, os estudos de Ferreira; Mariani; Oliveria Neto (2015) e Krüger et al. (2017) apontam que ambos os programas foram duvidosamente implantados, gerando um resultado incomprovado; como também relataram os especialistas C-2 e C-3, consultados nesta pesquisa.

É certo que idealizar projetos e acordos internacionais é desafiador, pois coexistem ordenamentos jurídicos distintos, afora a questão financeira, a disponibilidade de leitos, os recursos humanos para o atendimento, além do próprio desconhecimento da política pública e da dificuldade em perceber o “outro”.

Essas dificuldades, porém, não devem ser percebidas como empecilhos ou impossibilidades de gestão compartilhada. Ao contrário, devem ser o ponto de partida para a realização de fóruns e implantação dos próprios grupos de trabalho previsto, visando ampliar o conhecimento, a participação e a retomada de tais políticas; verificando a necessidade de atualizações; organizando os grupos de trabalho e de pesquisa em saúde pública na fronteira.

Nesse sentido, C-7, representante da Defensoria Pública, relatou que por se tratar de uma zona fronteiriça, o plano de contingenciamento de disseminação da covid deveria ser feito em parceria. Os impactos na economia seriam inevitáveis, como no restante do mundo, porém, a lei é clara ao priorizar a proteção da vida e a saúde, direito universal humano, e continuou:

No caso de Corumbá, por ser fronteira e receber estrangeiros diariamente, é vital o fechamento temporário, não só do outro lado fronteiriço, que aliás, foi feito, mas também do lado brasileiro. Deve haver prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, como estabelece a Constituição Federal; além de monitoramento e rastreamento dos casos suspeitos, incluindo medidas de biossegurança nos locais com maior demanda e barreiras sanitárias. Porém, não se viu uma atuação forte o bastante de contenção na linha fronteiriça, pois, a Prefeitura afirma não deter competência nos acordos firmados entre o governo federal e Bolívia (Consultado 7).

Segundo C-8, representante da prefeitura de Corumbá, foram adotadas todas as medidas restritivas possíveis, como a barreira sanitária e o isolamento de 7 dias das pessoas que chegavam ao município. Em contraposição, os relatos de C-2; C-3 e C-11 detalham que a prefeitura não conseguiu operacionalizar essa estratégia, pois boa parte das pessoas não eram contatadas por falta de profissionais e recursos tecnológicos para atender a demanda; e, por vezes, as barreiras estavam sem agentes para o atendimento.

Por isso, um maior número de atores de diferentes áreas deve participar da elaboração da política pública. Todavia, a intensidade organizativa da sociedade civil é muito baixa na fronteira (Krüger et al., 2017). Assim, a formação da consciência (auto)crítica na comunidade mostra-se necessária para que o grupo entenda, por exemplo, que pobreza é injustiça e perceba o mundo diante de si (Dewey, 1927). Surge, então, o papel da educação para a formação de uma cidadania participativa.

Ações educacionais, cultura e xenofobia

Não haverá integração e desenvolvimento se ambos os países não enfrentarem o distanciamento cultural existente. Ou, como argumentado por Dewey (1938), a única maneira do público descobrir a sua própria identidade é através de uma reconstrução educacional.

Uma educação cidadã possibilitaria aos sujeitos se reconhecerem como agentes transformadores de sua realidade, percebendo os problemas e mobilizando-se para tentar resolvê-los. Nesse sentido, relatou um professor:

Se determinados problemas afetam os dois países, como a covid-19 ou o H1n1,as soluções precisam ser pensadas coletivamente. Agora, o de que menos se precisa é de ideias frívolas, duvidosas ou que desrespeitem a vida humana. Um projeto intercultural para a valorização e respeito das diferentes culturas ajudaria na superação da xenofobia e, talvez, a fortalecer os laços para o enfretamento dos problemas de fronteira (Consultado 10).

Programas como o Projeto Escola Intercultural Bilíngue de Fronteira (PEIBF), criado em 2005, tem o intuito de promover o intercâmbio entre professores dos países do Mercosul (Brasil, 2009). Contudo, Krüger et al. (2017) reconheceram ter havido um avanço na educação nesta fronteira decorrente de programas nacionais, e não específico do PEIBF.

A cultura é um instrumento de participação (Dewey, 1927). Assim, professores da rede municipal de ensino (C-9; C-11) sinalizaram para a necessidade de se reformular os currículos escolares, tendo como objetivo abordar também as questões de fronteira numa perspectiva intercultural, buscando valorizar e respeitar as diferentes culturas, pois, atualmente, isso é pouco tratado. Essa ação poderia contribuir para uma ampliação da noção de cidadania e a formação de sujeitos críticos, autônomos e atuantes, prontos a enfrentar os problemas e desafios da cidade.

Então, mostra-se frutífero reforçar o PEIBF; projetos de extensão que priorizem o reconhecimento e respeito cultural; trabalhar mais a noção de cidadania e o papel dos indivíduos na vida política, tão necessários para a integração e o desenvolvimento da região.

A opinião dos especialistas técnicos

o verdadeiro caos da saúde pública destas cidades e a má gestão do Estado mostram que a covid-19 lança pistas sobre desafios, consequências e trabalhos futuros necessários.

Em geral, pesquisadores da saúde pública na fronteira, profissionais da área da saúde e organizações sociais que se dedicam a ajudar a população carente (ofertando alimentação e produtos de higiene) argumentam que, de início, houve empenho e esforço em criar medidas para conter o avanço da covid-19. Contudo, como o contágio no interior do Brasil não ocorreu no mesmo período dos grandes centros (por exemplo: São Paulo), começou um enfraquecimento nas medidas adotadas.

Médicos e enfermeiros relataram, principalmente, o fato de Corumbá não possuir um grande centro de análises clínicas municipal. O laboratório do município realiza análises de sangue, urina, fezes e hemogramas. “Exames mais complexos são coletados e transportados até a capital, atrasando uma leitura mais rápida e pronto atendimento” (C-4). Também sinalizaram a falta de capacitação, alertando que, por ser fronteira seca, “com ou sem pandemia deveria haver uma capacitação de biossegurança contínua. Essa temática é abordada na grade curricular de qualquer profissional de saúde, mas, muitos, nunca colocaram em prática” (C-5). Essa pandemia mostra a necessidade de capacitação e de haver um plano de biossegurança, tanto para endemias (Zika e Chicungunha) quanto para pandemias (covid-19).

Essa região apresenta um panorama interessante, pois, por um lado, exige intervenções rápidas e engenhosas, cuja atuação do Estado é fundamental. Por outro, oferece o dinamismo dos fronteiriços, várias organizações plurais (indivíduos, grupos, associações, entre outros) que compartilham de uma identidade coletiva e, em redes, buscam reverter determinado situação problemática nesta fronteira, como a erradicação da pobreza, da degradação ambiental e da fome, bem como a educação e a saúde pública (Espírito Santo; Voks, 2021). “A mobilização de recursos (humanos, financeiros ou doações de alimentos e produtos de higiene) ocorre de forma intensa e rápida, permitindo atender várias pessoas e grupos de famílias” (Consultado 12).

Frente aos dados apresentados, para repensar os serviços de vigilância epidemiológica em saúde nessa fronteira, um caminho inicial é compreender essa rede de cidades (suas territorialidades). Porém, não haverá integração se ambos os países não assumirem e enfrentarem o distanciamento cultural existente (inclusive a xenofobia), e se abrirem a novas possibilidades de gestão compartilhada; além de uma educação cidadã. Ou seja, mostra-se necessário intensificar a cooperação internacional, compartilhando a gestão e o financiamento destas políticas nas cidades de fronteira.

A adversidade principal refere-se à identificação e articulação de trabalhos dos diferentes atores desta fronteira (universidades, órgãos públicos, organizações sociais da saúde e outras iniciativas da sociedade civil), que ganham importância e responsabilidade em tempos de crise. Eles têm inúmeros desafios, que vão desde avaliar os meios de governança possíveis; reivindicar a operacionalização das políticas públicas existentes; e vindicar sua participação na arena política, até a distribuição de bens e serviços em redes de apoio.

Por uma governança da saúde pública

A governança no campo da saúde pública foi foco da pesquisa de Costa; Costa; Cunha (2018), que analisaram os desafios da prevenção e controle da dengue, a partir da Santa Casa de Misericórdia de Corumbá (principal unidade hospitalar pública da fronteira). Os pesquisadores concluíram que as dificuldades de se efetuar uma governança estão ligadas a insuficiência de recursos financeiros, dificuldade na mobilidade transfronteiriça, reduzida cooperação fronteiriça e a “cultura” dos bolivianos.

Essa “cultura” foi apontada pelos entrevistados como a grande responsável pelas dificuldades de enfrentamento da dengue. Porém, os autores afirmam que “os profissionais de saúde incorporam o discurso de que os bolivianos são associados ao atraso e à pobreza, por conseguinte, ao binômio sujeira/doença” (Costa; Costa; Cunha, 2018, p. 17). O que gera essa percepção do boliviano, criando a culpabilização do “outro”, eximindo as responsabilidades dos brasileiros. Assim, a população brasileira da fronteira Brasil-Bolívia percebe o “outro” como um parasita, no sentido de Sayad (2004), pronto a invadir o seu sistema. Ao final, Costa Costa; Cunha (2018) reforçam a necessidade de cooperação bilateral, para melhor atendimento à saúde na fronteira.

Durante a pesquisa, identificamos que o SUS não é o único procurado pelos pacientes bolivianos. Como destacou C-3, o quantitativo de bolivianos que procuram o sistema de saúde particular em Corumbá (clínicas médicas e obstetrícia; farmácias; dentistas; oftalmologistas; laboratórios de análises clínicas; outros) são numerosos, o que, inevitavelmente, acaba aquecendo a economia local.

Fora essas questões, temos os brasileiros que procuram o sistema de saúde na Bolívia. Segundo C-1, brasileiras procuram as farmácias em Puerto Quijarro e Puerto Suárez, em razão do preço baixo, da facilidade de adquirir alguns produtos e até mesmo para realizar aborto ou adquirir anabolizantes e suplementos ilegais no Brasil. Também há brasileiros que procuram o hospital público em Puerto Suarez. “Vale lembrar que antes da chegada dos médicos cubanos no Brasil (Programa Mais Médicos), eles já estavam presentes nas cidades bolivianas, o que levou vários brasileiros a procurar tratamento, consulta e até cirurgia naquele país” (C-3).

Vemos, então, que são vários os dilemas em torno da saúde na fronteira que merecem ser tratados e discutidos de forma mais ampla. O Estado não tem mais controle sobre a vida pública, e a oferta de serviço, em ambos os lados, ocorre de forma naturalizada. Esse enredo sinaliza o potencial de se idealizar uma governança na fronteira. A partir de fóruns de debate público (Hermet, 2005), por exemplo, a participação dos indivíduos na arena política poderia ser garantida. Nesses espaços, eles teriam chances de discutir a política, além de elaborar, avaliar e implementar as políticas públicas junto com o Estado, tal qual prevê a própria política do SUS (Carrapato; Correia; Garcia, 2019).

Considerações finais

Este estudo buscou apresentar a importância da gestão compartilhada da saúde pública para as zonas de fronteira, sobretudo a atenção especial às políticas públicas que são criadas e não cumpridas. Para tanto, apresentou um debate sobre governança, sob a ótica pragmatista, para dar luz a ação pública de múltiplos atores e não só as do Estado, afinal, esse é o foco principal da governança, permitir a interação de múltiplos atores que, juntos, têm a possibilidade de enfrentar situações problemáticas, aqui exemplificadas com os problemas epidemiológicos e outros serviços da saúde na fronteira Brasil-Bolívia.

Em momentos de crise, como o que vivemos, governança torna-se uma palavra mestra, muito empregada pelos poderes públicos, por pesquisadores, pela sociedade civil e pela mídia. O termo não é novo. Nessa lógica, o Estado faz parte, mas não está no centro das decisões, ficando esta a cargo da ação pública promovida por diversos atores, em diferentes níveis decisórios que, em ação conjunta, buscam a efetivação de direitos sociais, através das políticas públicas idealizadas e implantadas em cooperação. Então, qual a dificuldade em sua idealização?

O difícil, talvez, seja compreender a complexa realidade da fronteira. É preciso reconhecer o esforço brasileiro para integrar as zonas de fronteira a partir das leis e políticas públicas descritas. Todavia, as controvérsias e conflitos destacados mostram a necessidade de futuras investigações locais, para que surja uma governança, preenchendo esse vazio criado pelas grandes narrativas política, visando o enfrentamento coletivo dos problemas de saúde que atingem igualmente os dois países. Além disso, é preciso ir além dos limites internacionais e identificar os atores do outro lado da fronteira, lacuna dessa pesquisa, ação não realizada devido ao fechamento das fronteiras durante a realização do estudo.

O caminho pode ser longo e estar cheio de obstáculos e resistências, mas, se este artigo mostrou a urgência social para os cidadãos fronteiriços, então, a governança ainda desponta como a melhor opção de gestão pública da saúde, por conferir um espaço político transnacional, permitindo a participação de agências do governo, de pesquisa, institucionais e organizações da sociedade civil dos dois países.

Não podemos ceder ao ceticismo da impossibilidade de diálogo e parceria transnacional. Novas estratégias precisam ser idealizadas, o que demanda reconhecer às possibilidades possíveis, além de uma articulação política que priorize a vida. Muito mais do que um estatuto jurídico, a governança vem mostrar a necessidade de se estabelecer um projeto de longo prazo com ética, força política e gestão compartilhada. Todavia, a resposta não é dada a priori. Carece de boa vontade para ser idealizada e implantada, uma vez que as tentativas anteriores, exemplificadas pelos acordos e políticas públicas, ainda não decolaram.

O desenho de fronteira sempre foi entendido a partir do Estado, mas, diante das inúmeras situações problemáticas, como a covid-19, somos convidados a pensar a política na fronteira a partir de uma gestão compartilhada. Mesmo que “as condições locais sob as quais nossas instituições se formaram são bem indicadas por nosso sistema, aparentemente tão desprovido de sistema, de educação pública” (Dewey, 1927, p. 112).

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  • 1
    Por questões de foco e de síntese, não faremos um aprofundamento dos diferentes paradigmas e teorias da governança, o que fugiria ao objetivo desse estudo. Entendemos, contudo, que o debate é amplo e polissêmico. Para adentrar em profundidade na temática governança, propomos: Governance in turbulent times, de Ansell, Trondal e Orgard (2017).
  • 2
    A zona fronteiriça é composta por um aglomerado de cidades situadas na faixa de fronteira, de dois ou mais países, que concentra habitantes, moradias, lazer, educação, sociabilidades diversas, atividades econômicas etc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Revisado
    07 Jul 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
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