Open-access Desafios na tessitura da Rede Socioinstitucional de acolhimento e cuidado às mulheres vítimas de violência

Resumo

Este artigo analisa como a rede socioinstitucional para atendimento às mulheres vítimas de violência, prevista nos planos dos três níveis de governo, materializa-se em um município do estado de Mato Grosso do Sul. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada junto aos serviços, atores e atrizes dessa rede utilizando-se do método etnográfico. Para a análise, foi aplicado o referencial teórico de redes sociais. A partir da identificação dos fluxos, das trocas e dos valores que circulam nessa rede, foi possível compreender como esses aspectos impactam a qualidade e o modo como a assistência é prestada às mulheres. Foram identificadas ausências e desarticulações entre os serviços, bem como necessidade de implementação de uma gestão participativa nos vários níveis de cuidado, visando atender as reais expectativas das mulheres. Conclui-se que o referencial de Redes Sociais contribui para estruturação, planejamento e avaliação das Políticas Públicas pela equidade de gênero.

Palavras-chave: Redes Sociais; Rede Socioinstitucional; Violência contra as Mulheres; Gênero; Políticas Públicas

Abstract

This article analyzes how the socio-institutional network for assisting women victims of violence, provided for in the plans of the three levels of government, materializes in a municipality in the state of Mato Grosso do Sul. This is qualitative research carried out along with services, actors, and actresses of this network using the ethnographic method. For the analysis, the theoretical framework of social networks was applied. From the identification of flows, exchanges, and values that circulate in this network, understanding how these aspects impact the quality and the way support assistance is provided to women was possible. Absences and disarticulations between services were identified, as well as the need to implement participatory management at various levels to meet the real expectations of women. In conclusion, the Social Networks framework contributes to the structuring, planning, and evaluation of Public Policies for gender equity.

Keywords: Social Networks; Socio-Institutional Network; Violence against Women; Gender; Public Policies

Introdução

As lutas dos movimentos de mulheres e/ou feministas questionam e criticam a realidade de desigualdade, na qual as mulheres sempre estiveram, e as violências que sofrem em função das relações assimétricas e hierárquicas existentes entre homens e mulheres. Além disso, também defendem que as concepções acerca dos sexos estão inscritas no modo como são estabelecidas as relações, situando-as na esfera social e rejeitando totalmente a ideia da determinação biológica, que sempre serviu como justificativa para inúmeras formas de subordinação feminina (Bandeira, 2014; Scott, 2000).

A partir das reivindicações dos movimentos sociais para o enfrentamento dessa desigualdade, no Brasil, em 2003, foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e foram efetivados o I e II Planos Nacionais de Políticas Públicas para as Mulheres (PNPM) e o PNPM 2013-2015 (Brasil, 2004, 2007, 2013), que atenderam aos preceitos da Constituição Federal Brasileira de 1988 e incorporaram direitos e garantias do seu texto original, inclusive aqueles assumidos em acordos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, representando um grande avanço para as lutas pela equidade de gênero no país.

Este artigo objetiva abordar como a rede socioinstitucional (Martins; Fontes, 2008) prevista nos planos federais com o papel de direcionar as ações nos estados e municípios materializou-se no nível local. A discussão apresenta parte de uma pesquisa de doutorado em Saúde Coletiva, intitulada “Análise das redes sociotécnicas e socioinstitucionais das políticas públicas de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica: dimensões simbólicas, atores e discursos” (Dutra, 2017), realizada entre 2016 e 2017, CEP Unifesp Nº 758.321, de 20/08/2014, que analisou os planos de governo dos níveis federal, estadual e municipal para organizar a rede de atendimento às mulheres. Esse recorte de análise trata de um município do interior do estado do Mato Grosso do Sul .

Metodologia

A estratégia metodológica desta investigação fundamenta-se no debate sobre a rede social como elemento que estrutura o modelo de análise, compreendendo que, seja por motivação solidária, cidadã ou instrumental, a organização em redes sociais é uma estratégia de ação que permeia a sociedade contemporânea.

Uma rede social é definida como a trama de relações que envolvem sujeitos, sejam estes pessoas, instituições ou movimentos sociais. Seu número, suas características, frequência e tipo de contatos estabelecidos, os fluxos que movimentam a rede, o objetivo que os determina e o fato de essas ligações serem simétricas ou assimétricas, são os principais aspectos estudados para compreensão das redes como dispositivos sociais de trocas e interações entre sujeitos e grupos (Marteleto, 2001; Silva; Fialho; Saragoça, 2013; Wasserman; Faust, 1994).

Martins e Fontes (2008) propõem uma tipologia para as redes sociais: rede sociotécnica - constituída por atores e atrizes de sistemas organizacionais altamente regulamentados, públicos ou privados, cujo papel é planejar as ações que devem impactar a base dos sistemas e oferecer respostas às demandas sociais complexas em termos de intersetorialidade e interdisciplinaridade. Rede socioinstitucional - está na fronteira dos sistemas governamental e não governamental. Sua dinâmica possibilita a existência de uma plataforma de governança nos níveis locais, municipais e distritais. É um espaço de ressonância dos interesses de atores e atrizes nas políticas públicas, com baixo nível de formalização burocrática, que possibilita a identificação de conflitos e necessidades e orienta a direção das políticas na esfera pública. São os vínculos estabelecidos entre esses sujeitos que articulam elementos como ação e estrutura (constituintes de um movimento dinâmico, ininterrupto e ambivalente de trocas materiais e simbólicas, em circulação na vida social), resultando, a cada momento, na criação de novos lugares (estruturas) e identificações (ações). Rede sócio-humana - plano em que os indivíduos se articulam em um planejamento pré-político por meio das relações de parentesco, amizade e camaradagem. Nele, as pessoas socializam-se e adquirem um lugar no interior do grupo, desenvolvendo uma noção de pertencimento. Essa rede é estruturante da vida social e sem ela não existe a categoria abstrata denominada indivíduo. Além disso, ela não se conecta diretamente com os outros dois níveis, a conexão só ocorre quando são implantados serviços que venham ao encontro das necessidades de uma dada comunidade (Martins; Fontes, 2008).

Neste estudo, analisamos a rede socioinstitucional, que se propõe a atender as mulheres em situação de violência. Sendo assim, o termo “rede” refere-se aos vários serviços dos diferentes setores das políticas públicas que atendem essas mulheres. Com essa delimitação, foi possível a realização deste estudo a partir do método etnográfico. Houve, durante um ano, participações em:

  • Cinco reuniões do Conselho Municipal de Direitos da Mulher (CMDM);

  • Quatro reuniões da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres do município, composta por representantes de várias categorias profissionais de: serviços de saúde, Secretaria Municipal de Saúde, Hospital Universitário (HU), Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), Secretaria de Assistência Social, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública dos Direitos da Mulher (CMDM), Polícia Militar, Polícia Civil, Instituto Médico Legal (IML), Coordenadoria Especial de Políticas para as Mulheres e Centro de Referência Especializado para mulheres em situação de violência;

  • Reuniões semanais do Grupo de Mulheres do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que agrega mulheres da região que recebem algum tipo de assistência nesse serviço;

  • Três reuniões do Fórum Regional de Violência Obstétrica, que conta com representantes das mulheres e de serviços hospitalares dos municípios da região.

Todas as observações dessas participações estão registradas em caderno de campo. Também foram realizadas dez entrevistas semiestruturadas com profissionais da rede e analisados os Planos e as conexões previstas entre os elementos da rede, bem como as diretrizes estabelecidas - intersetorialidade, transversalidade e interseccionalidade -, que permitiram identificar como as estratégias planejadas refletem-se nas práticas.

Essa análise permitiu visualizar a dinâmica da rede, possibilitando compreender a complexidade das interações, os processos utilizados para elaboração e organização dos espaços, as relações, suas trocas e os fluxos dos serviços que constituem o atendimento às mulheres. É possível conhecer como as mulheres são concebidas a partir de alguns pontos da rede de atendimento. As falas apresentadas são ditas em circunstâncias muito diferentes, às vezes é a voz de uma mulher, às vezes de um(a) profissional do serviço, e às vezes é de um(a) profissional que fala de um outro ponto da rede. Analisando essas vozes, identificamos quais concepções permeiam a rede e, para fins didáticos, dividimo-las em duas dimensões “Mulheres e os desafios no acesso ao cuidado” e “A visão da rede a partir das e dos profissionais que nela trabalham”. As duas dimensões colocam em análise os desafios e os limites da rede socioinstitucional. As perspectivas de usuárias, trabalhadoras(es) e gestoras(es) se entrelaçam e evidenciam as insuficiências concretas na busca por acolher e cuidar das mulheres vítimas de violência.

As diferentes vozes serão trazidas abaixo entre aspas. Entretanto, ressaltamos, em alguns casos, a impossibilidade de identificar as(os) participantes da pesquisa, por respeito ao anonimato e pelo compromisso ético.

Mulheres e os desafios no acesso ao cuidado

Para compreender como está constituída a rede socioinstitucional para além dos dados objetivos - estruturas e ações desempenhadas -, trazemos aqui uma perspectiva que enfatiza a complexidade das interações, os processos de elaboração e organização dos espaços, as relações, trocas e os fluxos dos serviços que realizam o atendimento às mulheres quando são vítimas de violência. É necessário considerar que a composição de uma rede, no caso da rede socioinstitucional, vai além da sistematização dos serviços e instituições que estão descritas nos Planos de Políticas para as Mulheres, pois há uma complexidade de conexões e de redes de relações que também a compõe.

Nas falas abaixo, identificamos profissionais comprometidas(os) com as mulheres. Estas(es) percebem a necessidade de melhoria da qualidade do atendimento prestado e manifestam um sentimento de insegurança em relação ao real apoio que os serviços oferecem. Profissionais e usuárias dos serviços fazem referência a negligências na execução das Políticas Públicas que geram desconfiança e medo nas mulheres:

ela ficou esperando o dia todo pelo médico que faria o exame de corpo de delito, após sofrer uma violência sexual na rua. Desistiu de fazer a denúncia porque tinha fome e queria tomar banho para tirar toda aquela sujeira. A rede não levou em consideração essas necessidades da mulher. (Amiga da vítima em reunião do CMDM)

Após ter ficado no hospital esperando pelo médico legista foi orientada a ir à delegacia, onde foi muito questionada pelos policiais que buscavam uma justificativa para o ataque. (Amiga da vítima em reunião do CMDM)

Percorrer os serviços da rede de enfrentamento às violências contra as mulheres, participando de reuniões e observando e entrevistando alguns atores e atrizes, trouxe à luz a existência de diferentes olhares sobre as mulheres, a depender da localização do ator ou atriz na rede.

Várias(os) profissionais demonstram falta de confiança no modo como as mulheres serão atendidas nos serviços, denotando um comprometimento com estas e com as diretrizes estabelecidas no PNPM, como verifica-se nas falas a seguir: “A mulher é que tem que se adequar à rede, os serviços não têm protocolo e não são organizados em função das necessidades das usuárias” (Assistente social da rede); “A mulher não sai da relação porque não tem pra onde ir. Ela não tem apoio real da rede” (Profissional da rede).

São falas contundentes quanto à atuação das(dos) profissionais, que estão em desacordo com os Planos elaborados em todos os níveis. O serviço existe, mas não está organizado para atender as mulheres de modo que estas sintam-se seguras quanto à assistência que lhes será prestada e tampouco quanto ao que lhes possa acontecer ao acessar esses serviços.

A mulher que estava exposta na rua após uma violência sexual passa a ficar, também, exposta no hospital de referência para o atendimento às vítimas desse tipo de violência. Nesse caso, o espaço hospitalar e a postura das(os) profissionais, tanto do corpo técnico do hospital quanto do IML, responsáveis pela coleta de vestígios para investigação, exercem um papel bastante comum, frequentemente reproduzido socialmente, que resulta na exposição e no controle do corpo feminino. Nesse espaço, as mulheres são submetidas às regras e às normas do conhecimento biomédico e da legislação penal, sendo constrangidas a permanecerem como foram encontradas após a violência sexual pelo tempo que o sistema considerar necessário, em detrimento dos impactos da violência sobre a mulher e de sua dignidade. Esses fatores são descritos por Baragatti et al. (2019) como barreiras institucionais e socioculturais que as constrangem ao buscar ajuda.

A compreensão sobre a postura dos serviços de saúde em relação a essa população é ampliada por Villela e Lago (2007), quando afirmam que o atendimento às mulheres que sofrem violência sexual constitui um paradoxo para o setor de saúde na medida em que confronta práticas antigas com significações morais, éticas e religiosas, como a violação do corpo feminino e a prática do aborto (Villela; Lago, 2007).

O mesmo tratamento é encontrado nas delegacias. As mulheres são submetidas a longos períodos de espera e novamente há a exposição do seu corpo com as marcas da violência ocorrida. Nessa instituição, há ainda um outro ato de violência: os policiais (homens, na maioria), ao realizarem o atendimento, posicionam-se buscando uma justificativa para a violência infligida à mulher - fatos relatados por profissionais e mulheres participantes no Cras -, como se a violência fosse decorrente de algum comportamento inadequado ao qual o agressor só fez reagir. A responsabilização é manifestada verbalmente ou por atitudes dirigidas às mulheres em vários serviços, sendo estas colocadas em nova situação de intimidação, suspeita e humilhação. Trata-se então de outra violência, nesse caso praticada por agentes públicos na execução de suas atividades, caracterizada como violência institucional (Taquette, 2007).

Na análise das falas das atrizes e atores que compõem a rede, identificamos um segundo problema, a ausência de serviços essenciais, cuja falta impossibilita ou prejudica a saída da situação de violência. É comum mulheres optarem permanecer ou retornar para a relação abusiva por não terem estrutura financeira, material e/ou emocional para afastar-se do agressor. Profissionais relatam constrangimento por não ter o que oferecer às mulheres, ou mesmo em afirmar ou informar que existe uma rede de serviços, pois têm conhecimento das fragilidades desta. Os “buracos” da rede são identificados a partir das falas abaixo: “Só conversa as mulheres não querem, e eu não tenho mais nada para oferecer para ela. A mulher não sai da relação porque não tem pra onde ir, elas vêm uma vez e muitas vezes não voltam” (Profissional da rede); “As mulheres retiram a denúncia porque voltaram, ou pelo lado econômico, ou porque pensam mais nos filhos, há uma incidência muito grande dessa situação” (Coordenadora de serviço).

Os relatos evidenciam a ausência de estratégias para execução de políticas que apoiem a inserção das mulheres no mercado de trabalho e o acesso à educação e moradia para si e seus(suas) filhos(as). A partir das falas apresentadas, é compreensível a insegurança e a descrença das mulheres e da(os) profissionais em relação aos serviços, não há suporte para questões básicas da vida e elas incorrem no risco de sofrerem outras violências.

Nos relatos de profissionais, verificam-se contradições nos serviços. As deliberações da gestão, alterando ou propondo rotinas de atendimento às mulheres, não levam em consideração a experiência das(os) profissionais, o perfil das mulheres, as condições em que buscam os serviços, nem tampouco os Planos da política para as mulheres. É o que identificamos nas falas a seguir: “A rotina da mulher não permite que ela venha ao centro de manhã, não faz sentido abrir o Centro de Atendimento só pela manhã” (Profissional da rede); “Mesmo o atendimento da enfermagem, que parece humanizado, só atende de segunda a sexta-feira. A mulher muitas vezes desiste de fazer a queixa simplesmente para não ficar o dia todo sem tomar banho depois da violência sexual” (Profissional em reunião da rede).

Nesses fragmentos, observamos problemas vivenciados na rede socioinstitucional que pertencem à dimensão organizacional do cuidado (Cecílio, 2011). Embora esse autor tenha como foco a área de saúde, todo o planejamento preconizado para a assistência às mulheres pressupõe um trabalho articulado em rede (PNPM, 2013), e este deve também considerar as diferentes dimensões do cuidado. Na esfera federal, o cuidado é colocado como objetivo e meio para alcançar as metas do PNPM, que deveriam ocorrer no interior dos serviços que compõem a rede socioinstitucional. É nessa estrutura da rede que se encontra uma dimensão técnica e social do trabalho que pressupõe o trabalho em equipe, as atividades de coordenação e comunicação e uma função gerencial (Cecílio, 2011).

Desse modo, parece ser essencial que esses serviços estejam estruturados para que haja uma organização do cuidado a ser ofertado e que a gestão ocupe um lugar central na organização dos processos de trabalho, articulando profissionais e usuárias na definição conjunta de dispositivos para o alcance dos objetivos, em uma perspectiva comprometida com as necessidades destas últimas. Esses dispositivos vão desde a organização da agenda e construção de protocolos até o planejamento dos fluxos ou reuniões de equipe, dentre outros (Cecílio, 2011).

A gestão do cuidado, a partir de um processo cooperativo entre todas(os) diretamente envolvidos, poderia favorecer a superação das diferentes lógicas que caracterizam e determinam o modo de atuação em função da pluralidade das áreas envolvidas na rede socioinstitucional. Dentre outros desafios, estão presentes as assimetrias de poder que impedem o diálogo pela definição do melhor caminho a seguir na organização do atendimento.

Outra área considerada fundamental pelas(os) profissionais e também pelas mulheres é a Justiça. A atuação dessa área parece ser determinante para a mulher sentir-se apoiada e respaldada após a separação, seguir seu caminho e lidar com aspectos concretos de sua vida, como a partilha dos bens, a pensão para as crianças e a distância que deseja manter do agressor. Nesse sentido, observa-se que há uma valorização do atendimento oferecido pela Defensoria Pública, que é a porta de entrada para o sistema judiciário.

Participando desses espaços coletivos junto a essas mulheres e também às(aos) profissionais da rede, observamos que as mulheres, ao conseguirem acesso à defensoria, afastam-se do atendimento ofertado pelos demais serviços. Essa atitude é compreendida pelas(os) profissionais como uma desvalorização de seus saberes e atuações no enfrentamento às violências. Eles afirmam que são as deficiências presentes na rede a razão da desvalorização dos demais serviços. Outra análise avalia que, ao se separar do agressor, a mulher, sem um suporte que a auxilie a compreender as implicações da relação violenta, termina por se expor a outra relação com as mesmas características, fato este recorrente. Nesse sentido, embora haja valorização do judiciário no processo de rompimento com a violência, profissionais e mulheres apontam um despreparo desse setor para atuar numa perspectiva de gênero, reproduzindo os padrões de dominação que vitimizam as mulheres, como verificamos abaixo: “O juiz na hora da audiência ficou falando com meu ex-marido como se eu não estivesse ali, não dirigiu a palavra a mim e o tratou como se não fosse uma pessoa violenta, que me agrediu” (Mulher no grupo de mulheres do Cras); “o juiz não lê o processo, ele não sabia nada sobre o meu caso” (Mulher participante do grupo de mulheres); “a mulher às vezes desiste porque há muita demora na defensoria, o homem acaba tendo privilégios... mora na casa, não paga pensão, mas talvez não dependa só da defensora” (Profissional da rede).

Ao considerarmos a história, os valores e as práticas do poder judiciário brasileiro, verificamos que, até bem recentemente, este absolvia homens que assassinavam mulheres com base na tese de legítima defesa da honra, tese esta considerada inconstitucional em março de 2021. Já o crime de estupro somente era punido mediante a imposição de conduta recatada à mulher que foi vítima da violência (Campos, 2012). A promulgação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) passa a exigir dos profissionais do direito um posicionamento de enfrentamento à violência contra as mulheres. Assim, em um universo jurídico dominado pelo imaginário patriarcal, as(os) profissionais da área são compelidas(os) a reconhecer a existência de relações de poder desiguais entre homens e mulheres.

Outro aspecto da violência de gênero na região do município pesquisado é a violência contra as mulheres indígenas. Relatos de profissionais e de mulheres lideranças indígenas denunciam, frequentemente, a incapacidade da rede em oferecer às mulheres indígenas atendimento que tenha ressonância com sua cosmologia. Os relatos sobre as violências contra as mulheres indígenas têm características tão violentas que parecem tornar impotentes os atores e atrizes da rede, como identificamos a seguir: “Violência contra mulher indígena... um caso sem solução...” (Coordenadora de serviço); “elas não vêm para o atendimento e quando os profissionais dos serviços vão à aldeia, o cacique começa a fazer perguntas e implicar” (Profissional da rede); “Nas aldeias as mulheres andam armadas com facas, tesouras e canivetes para se defenderem dos ataques. Às vezes, elas aparecem mortas na beira da estrada como se tivessem sido atropeladas, mas na verdade sofreram violência sexual ou foram mortas antes” (Mulher liderança indígena em reunião do CMDM); “Houve um assassinato de mulher nas aldeias, a mulher foi enterrada como indigente” (Mulher indígena na reunião da rede).

Entidades nacionais e internacionais manifestam, num contexto de defesa de territórios e de uma realidade de exclusão social, que as mulheres indígenas das aldeias da região têm sido alvo de violências perversas, problemática que atinge a maioria das comunidades indígenas no Brasil (CIDH, 2017; ONU, 2017; Zimmerman; Viana, 2014). Essa realidade precisa ser compreendida no âmbito dos direitos humanos e em perspectiva de gênero, historicamente situados na interface com a questão da etnicidade (Sacchi, 2014), como aponta o PNPM quando estabelece como diretriz a necessidade de se considerar a interseccionalidade nas ações para as mulheres. Entretanto, é um desafio analítico essa reflexão na cosmovisão das mulheres indígenas, sendo necessário um olhar para as múltiplas configurações de gênero, enfatizando as diferenças entre as mulheres em seus coletivos étnicos, mas também as formulações sobre “homens” e “mulheres”, considerando o contexto histórico, sociocultural, político e a complexa relação entre o mundo da aldeia/local e o exterior/global. Na interconexão entre essas realidades, tem sido assinalada pelas mulheres indígenas a violação de seus direitos por parte do Estado, quando este se exime de suas responsabilidades, não garantindo a demarcação de terras, conforme previsto na Constituição de 1988, e demais condições para uma vida digna nas aldeias (Martins, 2021; Sacchi, 2014).

Estudos consideram ser a partir das experiências comunitárias das mulheres indígenas em suas organizações étnico-políticas que deva ocorrer o debate sobre a violência, para a aplicação da Lei 11.340/2006 ou de outro sistema de direitos nessas sociedades, sendo fundamental o direito de as mulheres indígenas decidirem (Castilho, 2008; CIDH, 2017). Nas reuniões da rede socioinstitucional do município pesquisado, não houve discussão aprofundada sobre a violência contra as mulheres das aldeias, mas, no período desta investigação, ela foi realizada.

Os Cras têm um papel fundamental no sentido de acolher e dar respostas às questões aqui apontadas. Entretanto, segundo as(os) profissionais, ainda não é possível esperar uma intervenção qualificada diante da violência doméstica, como observamos a seguir: “há um despreparo das equipes para realizar trabalhos com grupos de mulheres com enfoque em gênero” (Profissional da rede); “a equipe do Cras não está preparada para atender a violência contra as mulheres” (Profissional da rede).

Os Cras objetivam oferecer e articular, intersetorialmente, um conjunto de ações que podem ampliar e qualificar o atendimento às mulheres (Brasil, 2011). Porém, ao acompanhar o trabalho grupal com mulheres no Cras, observamos que a equipe desse serviço ainda não havia assimilado as discussões sobre equidade de gênero e o PNPM.

Uma mulher descreveu assim sua vida, num bairro próximo ao Cras: “fui casada e o meu marido me amarrava, agredia e ameaçava, até que resolvi fugir. Só consegui me livrar dele porque fugi e ele se suicidou. Um dia ele tirou minha filha da escola e disse que filha dele não tinha que estudar. Foi aí que percebi onde eu estava e que precisava sair daquilo” (Mulher no Grupo de Mulheres do Cras).

Uma profissional do Cras explica que o não atendimento e acompanhamento dos casos de violência doméstica se deve à sobrecarga de trabalho no acompanhamento de programas governamentais, que demandam trabalho burocrático e têm alto número de famílias na região. Aqui, destacamos a fragilidade do serviço em virtude do baixo investimento no Suas e demais políticas sociais, aspecto sinalizado na maior parte das atividades coletivas, como reuniões do CMDM, do Fórum Regional de Violência Obstétrica e reunião da Rede de Serviços.

Nas reuniões do Grupo de Mulheres, identificamos participantes com boa receptividade aos debates propostos, evolução na compreensão das questões de gênero e na capacidade de autoanálise, observando aspectos antes não questionados, como vemos abaixo: “As mulheres em reunião do Cras reconhecem seu lado machista, o quanto elas mesmas criticam outras mulheres, enquanto os homens que cometem os mesmos atos não são criticados” (Nota de Campo - Grupo de Mulheres); “Surpresa das mulheres ao descobrirem que o trabalho que realizam em casa deve ser contabilizado na economia da família. Muitas se sentem constrangidas quando o marido diz que ele mandava porque ele trazia dinheiro para casa” (Nota de Campo - Grupo de Mulheres)

É possível compreender alguns desses posicionamentos das mulheres quando identificamos entre as(os) próprias(os) profissionais estereótipos sobre as mulheres e suas necessidades. Expressões que minimizam as queixas e violências sofridas são frequentes e naturalizam a vivência das mulheres: “É aquele quadro... a mulher tá grávida, o marido bebe... e agride a mulher”. (Profissional da rede); “Querem que os serviços deem um susto no homem, fazendo-o refletir para que mude de atitude” (Coordenadora de serviço); “Há uma mensagem subliminar nas falas das(dos) profissionais, como se insinuassem que ‘as mulheres são assim mesmo’, ‘não querem se separar’, ‘ela não consegue resolver a situação’, ‘não querem apoio psicológico para se fortalecerem’” (Coordenadora de serviço).

Os prejuízos dessas posturas estereotipadas vão desde a marginalização da mulher até o desrespeito à sua dignidade. Esses estereótipos desvalorizam as mulheres ou desqualificam a vontade de transformar sua realidade, legitimando a violência. Essa postura está presente na rede que atende as mulheres, sendo observada com mais evidência e frequência no setor de segurança. Trata-se de atos violentos que reduzem a probabilidade de punição dos agressores (Cook; Cusak, 2010).

A visão da rede a partir das e dos profissionais que nela trabalham

A complexidade das relações que se estabelecem na rede socioinstitucional pode ser observada também a partir dos relatos sobre seu funcionamento, a qualidade dos serviços prestados e a articulação entre os níveis estadual e municipal. No município estudado, a atuação da Coordenadoria da Mulher, durante vários anos, recebeu respaldo da administração municipal, que, por sua vez, contava com o apoio do órgão estadual que realizava a articulação dessa política pública, atuação decisiva para o fortalecimento das políticas voltadas para as mulheres. Um dos grandes avanços na época foi a construção e estruturação da Casa Abrigo para mulheres em risco de morte e a contratação de profissionais. Com a ausência do convênio estadual, o trabalho se desestruturou, uma vez que o município declarou não ter possibilidade de manter os serviços com funcionamento adequado somente com recursos próprios. As(os) profissionais relatam o funcionamento dos serviços: “Está muito difícil trabalhar, falta estrutura, o Estado não mantém mais a equipe na Casa Abrigo e a casa está em um estado precário, não é possível manter uma mulher lá” (Profissional da rede); “O Centro de Referência tem que trabalhar horário integral, mas os profissionais tiveram horário reduzido para não receberem aumento salarial” (Profissional da rede).

Observamos a precarização dos serviços que deveriam efetivar a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres: além da ausência de estrutura física, há também a ausência de uma equipe efetiva, gerando alta rotatividade profissional. Consequentemente, há falta de formação adequada e dificuldade de diálogo no interior da equipe e entre a equipe e as mulheres, fragilizando a vinculação com os demais serviços da rede. As trocas frequentes de profissionais enfraquecem os laços da rede, impedindo que se garantam a estrutura e a segurança necessárias para o desenvolvimento do trabalho (Granovetter, 1973).

Outro entrave para a estruturação da rede é a dificuldade de efetivação da transversalidade, um dos principais eixos orientadores do PNPM. A transversalidade recebe pouca ou nenhuma ênfase nos planos estadual e municipal e, quando mencionada, não apresenta estratégias para seu desenvolvimento local, provocando descontinuidade nas ações de enfrentamento à violência.

A partir desses dados, é possível afirmar que a efetividade da rede está relacionada com a existência de uma posição orientadora/coordenadora nos serviços. A ausência de direcionamento local e estadual provoca a descontinuidade na assistência, impossibilitando a construção de elos entre profissionais importantes e centrais na organização e no fortalecimento da rede. Observamos isso nas falas seguintes:

A equipe técnica espera que a coordenação do Centro ou da Secretaria de Assistência Social faça o vínculo com os serviços da capital, não se sente autorizada a fazer contato. (Profissional da rede)

não tem contato com a nova equipe da Secretaria Estadual de Assistência Social. Tudo está muito solto. Não conhecem quem está hoje na coordenação estadual. Não conhece o trabalho que é realizado na nova coordenadoria estadual. (Coordenadora de serviço)

Quando a mulher chega é feito o acolhimento, e só, não temos mais nada pra oferecer, não temos psicólogo no momento, quando tem disseram que só pode realizar 3 atendimentos e encaminhar pra saúde mental, aí ela não consegue atendimento lá e também não retorna. Não há outros recursos a oferecer. (Profissional da rede)

Também são apontadas a ausência de articulação ascendente na rede e a necessidade de integrar outros serviços: “na secretaria de assistência social falta capacitação dos profissionais que atendem violência” (Profissional da rede); “A gestão está fragmentada entre a política básica e especializada” (Profissional da rede); “A política da mulher não é prioridade nem na Secretaria de Assistência Social” (Profissional da rede).

Cecílio (2011), analisando a gestão do cuidado em saúde, reflete a respeito da “dimensão sistêmica da gestão do cuidado”, que pode ser aplicada nesse caso. Para a existência dessa dimensão, é necessária a construção de conexões formais, regulares e regulamentadas entre os serviços. Na organização do cuidado oferecido às mulheres, também cabe pensar a necessidade e a responsabilidade de estabelecer conexões entre os serviços, de modo a compor e fortalecer as redes preconizadas nos planos, na perspectiva de que as mulheres estabeleçam relações de confiança na busca por suporte e cuidado nas várias dimensões assistenciais previstas.

O compartilhamento e o planejamento conjunto das etapas do processo de trabalho, quais sejam, o cuidado e o atendimento às mulheres, podem determinar a qualidade da assistência prestada. Essas são práticas que constituem o processo de gestão e organização dos serviços.

Há uma participação ativa da Secretaria Municipal de Saúde nas reuniões da rede, entretanto, a percepção dos demais atores e atrizes é de que o setor saúde não está, efetivamente, envolvido na atenção às mulheres que sofrem violência, uma vez que os serviços não se organizam para atendê-las de forma adequada, revitalizando-as, como observamos a seguir: “A mulher deveria receber todos os atendimentos no HU, sem ter que ficar andando de serviço em serviço” (Profissional da rede); “A saúde não encaminha, só quando era a outra profissional do núcleo de saúde que tratava da violência, havia encaminhamento pela saúde” (Participante da Reunião do Fórum Regional de Violência Obstétrica).

Identificamos que os serviços funcionam de acordo com o empenho e interesse pessoal das(dos) profissionais e, aparentemente, não são seguidas padronizações ou protocolos de atendimento. Há dificuldades das(dos) profissionais médicas(os) e das recepções em identificar mulheres que podem estar sofrendo violência, sendo somente essas as únicas categorias da área da saúde citadas como responsáveis por essa função (Dutra; Villela, 2013). A preocupação está voltada para a execução de procedimentos burocráticos, e, nos consultórios, seria a sensibilidade profissional que permitiria a identificação dos sinais da violência, conforme os seguintes relatos: “Enfermeira acredita que o melhor seria se as(os) médicas(os) observassem com maior atenção, mas no caso dessa unidade são todos do sexo masculino e não têm sensibilidade para essa questão, se restringem ao atendimento básico” (Profissional da rede); “acredita que observar a violência depende do perfil de cada profissional, espera-se que haja um olhar para essa questão, isto não ocorre na maioria das vezes” (Profissional da rede).

O atendimento no Sistema Judiciário é sobrevalorizado. A partir dele, as mulheres definem questões importantes para sair da relação violenta. Entretanto, a morosidade processual faz a mulher permanecer sem autonomia nesse período, ficando desalojada e sem recursos financeiros, enquanto o agressor permanece na casa sem preocupação com o sustento das(os) filhas(os).

Alguns pontos da rede relatam distanciamento, tanto da Defensoria quanto do Juizado em relação às mulheres e aos serviços. Em determinados relatos, as mulheres afirmam se sentirem ignoradas pelo juiz e que a defensora não esteve presente na audiência. Como observamos a seguir: “O juiz não lê os processos, mulheres relatam que o juiz nem sabia o que tinha acontecido com ela. O que você fala pra mulher diante disso?” (Coordenadora de serviço); “Defensoria está distante das mulheres e dos serviços, nem sempre foi assim” (Profissional da rede).

Na segurança pública, foram apontadas várias falhas que geram desconfiança tanto das(os) profissionais da rede quanto das mulheres que precisam acessar esses serviços. O principal mecanismo da segurança pública para atuar junto às mulheres é a Deam. Contudo, verificamos que sua atuação não ocorre conforme o que é previsto pela Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. As queixas chegam de todos os pontos da rede e mulheres relatam uma atuação revitimizadora e reprodutora de valores patriarcais, como observado a seguir: “tentam realizar um atendimento especializado, mas sabem que às vezes não conseguem atender adequadamente” (Delegada na reunião da rede); “A própria Deam também não oferece um atendimento qualificado à mulher, os profissionais não conseguem separar suas crenças pessoais da sua atuação profissional” (Profissional da rede); “A mulher sofre outra violência quando busca a delegacia para buscar ajuda. Parecem considerar a mulher culpada pela violência sofrida” (Coordenadora de Serviço).

Segundo informações da rede, as inúmeras queixas de violência institucional referentes à Deam já levaram, inclusive, à formalização de denúncia junto ao Estado. Os relatos a seguir descrevem como se dá a atuação desse ponto da rede: “A principal crítica à Deam é a falta de tato no trato com as mulheres” (Profissional da rede); “Mulher foi chamada de burra, por escrivão, após esperar por horas na recepção” (Profissional da rede).

Apesar das queixas, nenhuma medida foi tomada para promover mudanças na qualidade do atendimento das delegacias. Na visão das(dos) profissionais da rede, essa é uma situação muito complexa, requerendo atuação em vários níveis, como demonstram as falas a seguir:

O delegado regional disse que a prioridade é acompanhar os roubos e assassinatos, não acompanhar a violência doméstica. Quando ocorre um assassinato a cobrança recai sobre outro serviço, que não é da área de segurança nem da justiça. (Coordenadora de Serviço)

A polícia é muito mais treinada e capacitada pra atender violências de todos os tipos, mas lidando muito mais com o ladrão, o agressor, não com as vítimas, eles não sabem lidar com a violência doméstica, que é totalmente diferente de um assalto, um homicídio, pois envolve pessoas que têm um vínculo entre si, a segurança não dá conta de lidar com essa complexidade. É preciso que haja mais capacitações para discutir essa complexidade. (Profissional da rede)

O delegado regional informa que a Deam se encontra com melhores instalações e com número adequado de escrivães, tendo alcançado recordes de procedimentos. Durante a pesquisa, verificamos que a Delegacia da Mulher está bem estruturada, entretanto, as queixas da rede parecem demandar ações qualificadoras do atendimento prestado à mulher, sem a produção de novas violências. Somado a isso, o alto quantitativo de procedimentos na delegacia deveria estar na agenda de discussão, uma vez que esse “recorde” só demonstra a urgência do problema a ser enfrentado.

Os PNPM e o Plano Estadual são contundentes ao afirmarem que um dos principais objetivos em relação à área de Segurança Pública é a oferta de capacitação profissional às Deam no intuito de torná-las mais humanizadas. O registro dessa meta específica nos Planos pressupõe o conhecimento da existência das práticas descritas (Lins, 2018).

Durante o período pesquisado, os setores de Educação e Cultura não estiveram presentes nas reuniões da rede, não sendo mencionadas ações desenvolvidas nessas áreas, ainda que previstas nos Planos de todos os níveis.

Considerações finais

Este artigo buscou analisar os desafios da rede socioinstitucional para acolhimento e cuidado às mulheres que sofrem violência, com destaque para a sua materialização em um município de Mato Grosso do Sul.

As relações entre os serviços, a complexidade social e os fluxos da rede ficam evidenciados e são determinantes na execução dos planos governamentais. Entretanto, as redes no território são atravessadas pelos valores, saberes, sentimentos, poderes e conhecimentos dos atores e atrizes que determinam o modo como a assistência é prestada às mulheres. Merece destaque a presença de valores contrários aos preconizados nos Planos, os quais fazem com que o atendimento às mulheres não respeite seus direitos e dignidade. As áreas da Educação e Cultura estão ausentes do debate, ainda que constem nos Planos governamentais como essenciais para a construção de uma cultura não misógina.

Outro aspecto destacado foi a necessidade de fortalecimento das conexões da rede e das(os) gestoras(es) em determinados serviços ou níveis da rede, visando promover fluidez nas trocas entre profissionais da assistência. Compreendemos ser necessário estabelecer funções de gerenciamento em pontos estratégicos da rede para organizar e sistematizar o trabalho nas diferentes dimensões do cuidado oferecido às mulheres.

Foram também identificadas ausências e desarticulações entre os serviços, fragilidade no investimento e na execução das políticas públicas, bem como necessidade de implementação de uma gestão participativa, com a presença das mulheres em sua pluralidade, nos vários níveis de cuidado, visando atender às reais expectativas das mulheres. A pactuação nas três instâncias governamentais, embora fundamental nas políticas públicas, não é suficiente para o acesso e qualificação da assistência prestada às mulheres nos vários pontos da rede.

Este trabalho identificou que, embora haja um grande avanço na proposição dos planos de políticas para as mulheres, a escassez de profissionais qualificados, os diferentes valores e saberes presentes na rede e o baixo investimento material evidenciam uma contradição entre a política preconizada por um Estado democrático e a materialização do acolhimento e cuidado às vítimas de violências. Desse modo, parece claro que estão em disputa diferentes projetos societários e o lugar a ser ocupado pelas mulheres nestes.

Verificamos, ainda, o potencial do referencial teórico de redes sociais para pensar formulação, planejamento, implementação e avaliação de Políticas Públicas, possibilitando identificar as relações entre os diferentes níveis da rede e das conexões entre atrizes e atores no território, revelando caminhos para a articulação da rede socioinstitucional.

Agradecimentos

Apoio e agradecimentos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de doutoramento e também pelo recurso PROAP/CAPES/UFGD para tradução do texto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2023
  • Revisado
    25 Maio 2023
  • Aceito
    13 Jun 2023
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