Resumo
Neste ensaio teórico acerca dos desmontes da política nacional de saúde mental entre os anos de 2016 e 2022, objetivamos discutir sobre a formação em saúde mental pelas residências multiprofissionais neste contexto de contrarreforma psiquiátrica. Abordamos as alterações na Política Nacional de Saúde Mental, a análise sobre os Programas de Residência Multiprofissional em Saúde desde seus proponentes, os impasses na formação em Saúde Mental e a defesa do paradigma psicossocial na formação em saúde mental. Problematizamos que esse período significou um grave retrocesso da Política Nacional de Saúde Mental, impactando na continuidade e no fortalecimento das estratégias de formação em saúde mental em diálogo com a luta antimanicomial, produzindo tensionamentos com a atenção psicossocial, norteadora da formação no Sistema Único de Saúde. Analisamos que a política e a formação em saúde mental envolvem interesses corporativistas e mercadológicos em constante disputa com o paradigma psicossocial, inserindo-se em um processo dialético na luta por hegemonia. Concluímos que olhar sobre este ponto de vista possibilita compreender o papel estratégico da formação em saúde mental na efetivação da Reforma Psiquiátrica brasileira, tendo como norte a desinstitucionalização na perspectiva da desconstrução de como a sociedade lida com a loucura e a diversidade.
Palavras-chave:
Reforma Psiquiátrica; Formação de Recursos Humanos; Política de Saúde Mental; Sistema Único de Saúde
Abstract
In this theoretical essay on the about the dismantling of the national mental health policy between 2016 and 2022, we aim to discuss training in mental health with multidisciplinary residencies in this context of psychiatric counter-reform. We address the changes in the National Mental Health Policy, the analysis of the Multiprofessional Residency Programs in Health since their proponents, the impasses in Mental Health training, and the defense of the psychosocial paradigm in mental health training. We problematize that this period meant a serious setback of the National Mental Health Policy, impacting the continuity and strengthening of mental health training strategies in dialogue with the anti-asylum struggle, producing tensions with psychosocial care, which guides training in the Brazilian National Health System. We analyze that politics and training in mental health involve corporatist and market interests in constant dispute with the psychosocial paradigm, inserting themselves in a dialectical process in the struggle for hegemony. We conclude that looking at it from this point of view makes it possible to understand the strategic role of training in mental health in the implementation of the Brazilian Psychiatric Reform, with deinstitutionalization as its guideline in the perspective of deconstruction of how society deals with madness and diversity.
Keywords:
Psychiatric Reform; Human Resources Training; Mental Health Policy; Brazilian National Health System
Introdução
A Política Nacional de Saúde Mental é fruto da luta antimanicomial, desenvolvida a partir de mobilizações sociais em defesa do cuidado em liberdade, inserindo-se em um escopo de problematizações sobre como a sociedade lida com a diversidade dos modos de existências. Estas mobilizações culminaram na Lei n. 10.2016, de 6 abril de 2001, a qual redireciona o modelo de cuidado em saúde mental para serviços comunitários, a partir da defesa do território como espaço de produção do cuidado (Brasil, 2001BRASIL. Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília, DF: Presidência da República, 2001. Disponível em: <Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm >. Acesso em: 7 maio 2023.
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).
A Política Nacional de Saúde Mental vivencia, historicamente, processos de disputa de interesses mercadológicos do complexo médico-industrial (Amarante; Nunes, 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.07082018.
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), os quais se sustentam no Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador, em contradição à integralidade amparada no Paradigma Psicossocial (Costa-Rosa, 2017). É neste cenário que a formação em saúde mental se encontra inserida, marcada pela coexistência de projetos contraditórios em termos teórico-técnicos e ético-políticos (Feuerwerker, 2009FEUERWERKER, L. No olho do furacão: contribuição ao debate sobre a residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 13, n. 28, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100020.
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; Passarinho, 2022PASSARINHO, J. G. N. Retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental: consequências para o Paradigma Psicossocial. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 20, n. 49, 2022. DOI: 10.12957/rep.2022.63451.
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). Estes modelos de atenção às pessoas com demandas em saúde mental, álcool e outras drogas encontram sustentação entre paradigmas distintos: o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador e o Paradigma Psicossocial.
O Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador compreende “o transtorno mental como objeto e meio disciplinar de intervenção, produzindo relações intrainstitucionais hierarquizadas em sentido verticalizado” (Costa-Rosa, 2017, p. 72). As práticas pautadas nele produzem o afastamento dos sujeitos do convívio comunitário (Passarinho, 2022PASSARINHO, J. G. N. Retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental: consequências para o Paradigma Psicossocial. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 20, n. 49, 2022. DOI: 10.12957/rep.2022.63451.
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). O Paradigma Psicossocial, por sua vez, considera o sofrimento psíquico em sua multidimensionalidade, desenvolvendo práticas coletivas e interprofissionais (Ceccim, 2018CECCIM, R. B. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 22, n. 2, p. 1739-1749, 2018. DOI:10.1590/1807-57622018.0477.
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), direcionando a produção do cuidado a partir da escuta, diálogo e vínculo com os sujeitos e familiares, em espaços inseridos no território e na vida cotidiana (Amarante; Nunes, 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.07082018.
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).
No Brasil, o jogo de forças produzido pelos paradigmas causa rupturas na condução da Política Nacional de Saúde Mental e estratégias de formação em saúde mental, uma vez que demarcam defesas políticas opostas (Cruz et al., 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da Política Nacional de Saúde Mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, p. 3, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00285.
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). Esse processo coloca em cena o desenvolvimento concomitante de projetos antagônicos na produção do cuidado às pessoas em sofrimento psíquico e/ou que fazem uso problemático de álcool e outras drogas (Passarinho, 2022PASSARINHO, J. G. N. Retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental: consequências para o Paradigma Psicossocial. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 20, n. 49, 2022. DOI: 10.12957/rep.2022.63451.
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).
Em 21 anos da Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, muitos avanços foram produzidos, entre eles a instituição da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011 (Brasil, 2011BRASIL. Portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html >. Acesso em: 7 maio 2023.
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), a qual apresenta como norte o Paradigma Psicossocial (PPS), defendendo o cuidado em liberdade para as pessoas com transtornos mentais e/ou que fazem uso problemático de álcool e outras drogas (Amarante; Nunes 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.07082018.
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; Onocko-Campos, 2019ONOCKO-CAMPOS, R. T. Saúde mental no Brasil: avanços, retrocessos e desafios. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 11, 2019. DOI: 10.1590/0102-311X00156119.
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). Destaca-se que este processo de mudança só foi possível por meio de concomitante processo formativo em saúde mental, pautado nos princípios do SUS e na defesa da saúde mental coletiva (Radke; Ceccim, 2018RADKE, M. B.; CECCIM, R. B. Educação em saúde mental: ação da reforma psiquiátrica no Brasil. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 4, n. 2, 2018. DOI: 10.18310/2446-4813.2018v4n2p19-36.
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; Ceccim, 2018CECCIM, R. B. Residência em Saúde Mental: Interface da Luta Antimanicomial. In: PAULON, S. M.; OLIVEIRA, C. O.; FAGUNDES, S. M. S (Org.). 25 Anos da Lei da Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/179261/001068911.pdf?sequence=1 Acesso em: 7 maio 2023.
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).
A Reforma Psiquiátrica brasileira marca a ruptura com o modelo manicomial presente no Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador, o qual produziu, ao longo da história, processos de exclusão, discriminação, contenção e controle dos sujeitos com sofrimento psíquico (Passarinho, 2022PASSARINHO, J. G. N. Retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental: consequências para o Paradigma Psicossocial. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 20, n. 49, 2022. DOI: 10.12957/rep.2022.63451.
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). Este modelo retrógrado e cientificamente contestado permeou os retrocessos vivenciados pela Política Nacional de Saúde Mental no país, no período de 2016 a 2022, (Vasconcelos, 2016VASCONCELOS, E. M. Reforma psiquiátrica, tempos sombrios e resistência: diálogos com o marxismo e o Serviço Social. Campinas: Editora Papel Social, 2016.; Passos, 2017PASSOS, R. Luta antimanicomial no cenário contemporâneo: desafios atuais frente a reação conservadora. Sociedade em debate, Pelotas, v. 23, n. 2, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://revistas.ucpel.edu.br/rsd/article/view/1678/1043 >. Acesso em: 7 maio 2023.
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; Delgado, 2019DELGADO, P. G. G. Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, 2019. DOI:10.1590/1981-7746-sol00212.
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; Cruz et al, 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da Política Nacional de Saúde Mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, p. 3, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00285.
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; Silva et al, 2021SILVA, T. A. et al. (Re)visitando a reforma psiquiátrica brasileira: perspectivas num cenário de retrocessos. Avances en Enfermería, Bogotá, v. 38, n. 3, 2021. DOI: 10.15446/av.enferm.v38n3.82440.
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; Passarinho, 2022PASSARINHO, J. G. N. Retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental: consequências para o Paradigma Psicossocial. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 20, n. 49, 2022. DOI: 10.12957/rep.2022.63451.
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) contexto no qual ocorreu avanço do projeto ultraliberal e o desmonte do SUS.
Tal realidade conecta-se com a formação em saúde mental pelos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde Mental (PRMSM), impactando diretamente no processo formativo, uma vez que a educação em saúde mental é parte do processo de efetivação da atenção psicossocial nos serviços do SUS, em diálogo com as políticas públicas vigentes (Ceccim, 2018CECCIM, R. B. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 22, n. 2, p. 1739-1749, 2018. DOI:10.1590/1807-57622018.0477.
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). Destaca-se que a criação dos PRMSM se constituiu como estratégica na reorientação da formação em saúde mental, uma vez que o processo de mudança do fazer associa-se com mudanças nos processos educativos (Radke; Ceccim, 2018RADKE, M. B.; CECCIM, R. B. Educação em saúde mental: ação da reforma psiquiátrica no Brasil. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 4, n. 2, 2018. DOI: 10.18310/2446-4813.2018v4n2p19-36.
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), fortalecendo o campo da saúde mental brasileira sob a perspectiva dos princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira e do Paradigma Psicossocial.
No entanto, o cenário político brasileiro no período de 2016 a 2022, marcado pela intensificação das disputas políticas, golpe de Estado e avanço do neoliberalismo nas políticas sociais, produziu tensionamentos e rupturas com o Paradigma Psicossocial norteador da formação no SUS. Desse modo, questionamos sobre como pensar a formação em saúde mental a partir dos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde Mental, que têm como norte a Reforma Psiquiátrica brasileira e o Paradigma Psicossocial no contexto de contrarreforma. Neste sentido, objetivamos discutir sobre a formação em saúde mental pelas residências multiprofissionais em contexto de contrarreforma psiquiátrica.
Neste ensaio teórico (Meneghetti, 2011MENEGHETTI, F. K. O que é um Ensaio-teórico? RAC, Curitiba, v. 15, n. 2, p. 320–332, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/rac/a/4mNCY5D6rmRDPWXtrQQMyGN/?format=pdf⟨=pt > Acesso em: 7 maio 2023.
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) sobre os desmontes da Política Nacional de Saúde Mental entre 2016 e 2022, abordamos um exercício reflexivo temporal sobre os interesses em disputa no campo da saúde mental, os quais impactaram em retrocessos da Política Nacional de Saúde Mental e na formação pelos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde Mental.
Abordamos um constructo teórico acerca das interfaces da política e educação em saúde mental no contexto de contrarreforma psiquiátrica, destacando os interesses em disputa da classe médica e do corporativismo, que permeiam as residências multiprofissionais desde sua concepção (Feuerwerker, 2009FEUERWERKER, L. No olho do furacão: contribuição ao debate sobre a residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 13, n. 28, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100020.
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), e que nos últimos anos tem assumido os espaços de condução nacional destes programas de residências (Brasil, 2021BRASIL. Portaria Interministerial nº 7, de 16 de setembro de 2021. Dispõe sobre a estrutura, a organização e o funcionamento da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde - CNRMS de que trata o art. 14 da Lei nº 11.129, de 30 de junho de 2005, e institui o Programa Nacional de Bolsas para Residências Multiprofissionais e em Área Profissional da Saúde. Brasília, DF: Ministério da Educação , 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-7-de-16-de-setembro-de-2021-345462405 >. Acesso em: 7 maio 2023.
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).
A partir da análise destes desmontes, problematizamos a realidade a partir da perspectiva histórica que permeia as discursividades e a invenção cultural propostas pelas residências multiprofissionais desde seus proponentes (Ceccim, 2009CECCIM, R. B. “Ligar gente, lançar sentido: onda branda da guerra”, a propósito da invenção da residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 3, n. 29, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100022.
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), através da análise dos diversos vetores e correlações de forças que permeiam o debate sobre a formação em saúde mental no SUS.
Análise das alterações na Política Nacional de Saúde Mental no período de 2016 a 2022
No período entre 2016 e 2022, diversos estudos publicados por pesquisadores do campo da saúde mental (Vasconcelos, 2016VASCONCELOS, E. M. Reforma psiquiátrica, tempos sombrios e resistência: diálogos com o marxismo e o Serviço Social. Campinas: Editora Papel Social, 2016.; Passos, 2017PASSOS, R. Luta antimanicomial no cenário contemporâneo: desafios atuais frente a reação conservadora. Sociedade em debate, Pelotas, v. 23, n. 2, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://revistas.ucpel.edu.br/rsd/article/view/1678/1043 >. Acesso em: 7 maio 2023.
https://revistas.ucpel.edu.br/rsd/articl...
; Amarante; Nunes, 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.07082018.
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
; Radke; Ceccim, 2018RADKE, M. B.; CECCIM, R. B. Educação em saúde mental: ação da reforma psiquiátrica no Brasil. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 4, n. 2, 2018. DOI: 10.18310/2446-4813.2018v4n2p19-36.
https://doi.org/10.18310/2446-4813.2018v...
; Delgado, 2019DELGADO, P. G. G. Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, 2019. DOI:10.1590/1981-7746-sol00212.
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; Nunes et al., 2019NUNES, M. O. et al. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 12, 2019. DOI:10.1590/1413-812320182412.25252019.
https://doi.org/10.1590/1413-81232018241...
; Onocko-Campos, 2019ONOCKO-CAMPOS, R. T. Saúde mental no Brasil: avanços, retrocessos e desafios. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 11, 2019. DOI: 10.1590/0102-311X00156119.
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; Cruz et al., 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da Política Nacional de Saúde Mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, p. 3, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00285.
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; Silva, 2021SILVA, T. A. et al. (Re)visitando a reforma psiquiátrica brasileira: perspectivas num cenário de retrocessos. Avances en Enfermería, Bogotá, v. 38, n. 3, 2021. DOI: 10.15446/av.enferm.v38n3.82440.
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; Passarinho, 2022PASSARINHO, J. G. N. Retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental: consequências para o Paradigma Psicossocial. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 20, n. 49, 2022. DOI: 10.12957/rep.2022.63451.
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) evidenciaram o desmonte da Política Nacional de Saúde Mental do Brasil. Tais estudos produzem reflexões teóricas acerca das contradições presentes em portarias e resoluções publicadas pelo Ministério da Saúde, reiterando que as mudanças constituem um processo de contrarreforma psiquiátrica.
Pesquisas publicadas recentemente apontam que a “outra” Política Nacional de Saúde Mental é contrária à Constituição Federal de 1988, às Leis 8.080, de 19 de setembro de 1990, 8.142, de 28 de dezembro de 1990, e 10.216/2001, além do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos promulgado no Brasil pelo Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992 (Cruz et al., 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da Política Nacional de Saúde Mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, p. 3, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00285.
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, p. 3). O retrocesso presente nesta orientação federal foi denunciado por várias entidades e associações, assim como pela comunidade científica do campo da saúde mental.
Dentre as normativas que compõem o quadro da ‘outra’ Política Nacional de Saúde Mental, destaca-se a Portaria nº 1.482, de 25 de outubro de 2016, do Ministério da Saúde (Brasil, 2016BRASIL. Portaria n. 1.482, de 25 de outubro de 2016. Inclui na tabela de tipos de estabelecimentos de saúde do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde: CNES o tipo 83: polo de prevenção de doenças e agravos de promoção da saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2016/prt1482_25_10_2016.html >. Acesso em: 7 maio 2023.
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), a qual financia as Comunidades Terapêuticas com recurso público que, ao ser utilizado nestes dispositivos, promove o desfinanciamento dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial. Problematizamos que as Comunidades Terapêuticas se constituem como espaços manicomiais, à medida que estão distanciados da cidade e do convívio, reforçando os processos de exclusão social das pessoas em sofrimento psíquico e/ou que fazem uso problemático de álcool e outras drogas. Concomitante ao distanciamento social, as Comunidades Terapêuticas baseiam suas práticas a partir da orientação religiosa, com tratamento moral e conservador, o qual tem como foco a abstinência, sendo contraditória a política de redução de danos (Ramôa et al., 2019RAMÔA, M.; TEIXEIRA, M. B.; BELMONTE, P. As comunidades terapêuticas no cenário das políticas públicas: o retorno das práticas institucionalizantes. Platô: Drogas e política, São Paulo, v. 3, n. 3, 2019. Disponível em: Disponível em: https://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2016/11/Plato.pdf . Acesso em: 7 maio 2023.
https://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2...
).
Em 2017, a Resolução nº 32 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) aprovou o incentivo financeiro para internações psiquiátricas, inserindo os Hospitais Psiquiátricos (leia-se: manicômios) na RAPS. Tal resolução afronta diretamente o Paradigma Psicossocial, ao inserir práticas segregadoras e asilares na rede de saúde mental, produzindo contradições e rupturas ético-políticas (Passos, 2017PASSOS, R. Luta antimanicomial no cenário contemporâneo: desafios atuais frente a reação conservadora. Sociedade em debate, Pelotas, v. 23, n. 2, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://revistas.ucpel.edu.br/rsd/article/view/1678/1043 >. Acesso em: 7 maio 2023.
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). O retorno dos manicômios revela a incoerência da coexistência de modelos contraditórios no campo da saúde mental a partir da correlação de interesses mercadológicos, corporativismo médico, medicalização da vida e o aparato médico industrial da era dos diagnósticos (Amarante; Nunes 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.07082018.
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), em disputa com o campo da atenção psicossocial, cuidado em liberdade e pautado nos princípios da cidadania das pessoas com sofrimento psíquico e/ou necessidades decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas.
O agravamento deste retrocesso na Política Nacional de Saúde Mental ganha espaço na Portaria n. 3.588, de 21 de dezembro de 2017 (Brasil, 2017), que ‘refaz’ outra Rede de Atenção em Saúde Mental, inserindo o Centro de Atenção Psicossocial para pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas (CAPS Ad IV) na RAPS. Destacamos que este serviço apresenta rupturas significativas com a atenção psicossocial, uma vez que se distancia da produção do cuidado no território, o qual deve se dar para além do espaço geográfico, considerando os espaços de produção de vida e convívio social das pessoas em sofrimento psíquico e/ou que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas.
Ainda nesta ruptura com o modelo da atenção psicossocial até então vigente, no início de 2019 é publicada a Nota Técnica nº 11/2019 (Brasil, 2019BRASIL. Nota Técnica n. 11/2019: Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2019. Disponível em: <Disponível em: https://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf >. Acesso em: 7 maio 2023.
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), reunindo as portarias e resoluções anteriores em compilado que desconsidera a cientificidade das práticas psicossociais pautadas na cidadania e participação social dos usuários da RAPS. A “outra” Política Nacional de Saúde Mental mostra-se contrária ao Paradigma Psicossocial, construído nos espaços de controle social, como as Conferências Nacionais em Saúde Mental, tendo em vista que reforça o modelo excludente dos manicômios e comunidades terapêuticas, atendendo aos interesses da indústria da loucura (Foucault,1977FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.), ao fortalecer as práticas médico-centradas e a indústria farmacêutica e o corporativismo das entidades de especialistas. Além disso, a NT 11/2019 incentiva publicamente o uso do eletrochoque como tratamento, retornando às práticas historicamente utilizadas nos manicômios como meio de tortura às pessoas com transtornos mentais.
Analisamos que o compilado de desmontes da Política Nacional de Saúde Mental apresentados na NT 11/2019 agravou-se cada vez mais, por exemplo com o desfinanciamento dos serviços da RAPS, em 2021, que impactou na estagnação da implantação e manutenção dos CAPS no país, uma vez que o Sistema de Apoio à Implementação de Políticas em Saúde (SAIPS) encontrava-se fechado para novas propostas de habilitação de serviços e o custeio mensal dos serviços já existentes até o final de 2022, sem reajuste há mais de dez anos.
Problematizamos que esta realidade revela o caminho de retrocesso da política pública em saúde mental no país e a descontinuidade do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira, uma vez que se intensifica o sucateamento dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial pela falta de financiamento público. Destacamos que este processo se acentua por meio da estagnação da abertura de mais serviços comunitários e retorno do financiamento dos manicômios e comunidades terapêuticas, provocando rupturas com o pacto societário de uma “sociedade sem manicômios”.
Soma-se a este contexto de desmonte a retirada do financiamento do programa de desinstitucionalização em 2022, a partir da Portaria n. 596, 22 de março de 2022 (Brasil, 2022BRASIL. Portaria GM/MS nº 596, de 22 de março de 2022. Revoga a Seção XII do Capítulo III do Título VIII, art. 1049 até art. 1062, da Portaria de Consolidação GM/MS nº 6, de 28 de setembro de 2017, e a Seção II do Capítulo III, art. 64 até art. 74, e os anexos XXXVI, XXXVII, XXXVIII, XXXIX, XL, XLI e XLII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 28 de setembro de 2017. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2022. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2022/prt0596_23_03_2022.html >. Acesso em: 7 maio 2023.
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). O desfinanciamento deste programa impacta diretamente no curso da Reforma Psiquiátrica brasileira, uma vez que paralisa o processo de desospitalização e das ações em saúde pautadas na desconstrução de como a sociedade lida com a loucura e a diversidade, à medida que as pessoas continuam internadas em manicômios, distantes do convívio social, fator que impacta suas reinserções sociais.
Discutimos que a suspensão do programa de desinstitucionalização na Rede de Atenção Psicossocial atende aos interesses do complexo industrial médico-farmacêutico, que considera a doença mental como mercadoria, à medida que esta é institucionalizada em hospitais psiquiátricos, produzindo a medicalização da vida e a cronificação do sofrimento psíquico. Ressaltamos que este processo se sustenta na discursividade psiquiátrica conservadora acerca do sofrimento psíquico, com aparato social em constante disputa por hegemonia.
Destacamos, ainda neste cerne, a fragilização na condução de algumas iniciativas de formação em saúde mental que, até 2016, vinham em curso no país (Radke; Ceccim, 2018RADKE, M. B.; CECCIM, R. B. Educação em saúde mental: ação da reforma psiquiátrica no Brasil. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 4, n. 2, 2018. DOI: 10.18310/2446-4813.2018v4n2p19-36.
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), as quais configuravam-se enquanto estratégias no fortalecimento da Política Nacional de Saúde Mental. Os Programas de Residência Multiprofissional em Saúde Mental fazem parte destas iniciativas de formação (Feuerwerker, 2009FEUERWERKER, L. No olho do furacão: contribuição ao debate sobre a residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 13, n. 28, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100020.
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; Da Ros, 2009DA ROS, M.A. Sobre “o olho do furacão”. Interface, Botucatu, v. 13, n. 28, p. 213-237, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100021.
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), tendo como norte a integralidade do cuidado, defesa da pluralidade da vida e cidadania das pessoas que apresentam demandas em saúde mental, álcool e outras drogas, em um processo de invenção cultural e social. (Ceccim, 2009CECCIM, R. B. “Ligar gente, lançar sentido: onda branda da guerra”, a propósito da invenção da residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 3, n. 29, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100022.
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)
Programas de Residência Multiprofissional desde seus proponentes
A formação em saúde direcionada pelos princípios do SUS tem como marco a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (SGTES), em 2005, no âmbito do Ministério da Saúde, a qual desenvolveu uma série de iniciativas na reorientação da formação no SUS, como o Programa de Reorientação da Formação em Saúde (Pró-Saúde), Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), Programas de Residência Multiprofissional em Saúde (PRMS), entre outros (Brasil, 2006BRASIL. Residência multiprofissional em saúde: experiências, avanços e desafios. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/residencia_multiprofissional.pdf >. Acesso em: 7 maio 2023.
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).
A Lei 11.129/2005 institui os Programas de Residência Multiprofissional em Saúde, de modo a somar esforços no processo formativo pautado na reorientação das práticas em saúde, em consonância com as políticas públicas em saúde (Brasil, 2006BRASIL. Residência multiprofissional em saúde: experiências, avanços e desafios. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/residencia_multiprofissional.pdf >. Acesso em: 7 maio 2023.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
). Reiteramos que desde seus proponentes, as residências multiprofissionais em saúde têm vivenciado processos de disputas com a perspectiva corporativista das residências médicas, uma vez que esta modalidade de formação é contra-hegemônica ao propor outra visão sobre o processo saúde-doença-cuidado pautada na integralidade (Dallegrave; Kruse, 2009DALLEGRAVE. D.; KRUSE, M. H. L. No olho do furacão, na ilha da fantasia: a invenção da residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 13, n. 29, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100018.
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; Feuerwerker, 2009FEUERWERKER, L. No olho do furacão: contribuição ao debate sobre a residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 13, n. 28, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100020.
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), na medida que desenvolve processos interdisciplinares e em equipe, em um processo de inventividades e apostas na produção do cuidado em saúde no SUS.
Nesta perspectiva, a disputa das Residências Multiprofissionais como modalidade de formação encontra-se no “olho do furação” desde sua concepção (Feuerwerker, 2009FEUERWERKER, L. No olho do furacão: contribuição ao debate sobre a residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 13, n. 28, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100020.
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; Dallegrave; Kruse, 2009DALLEGRAVE. D.; KRUSE, M. H. L. No olho do furacão, na ilha da fantasia: a invenção da residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 13, n. 29, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100018.
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; Da Ros, 2009DA ROS, M.A. Sobre “o olho do furacão”. Interface, Botucatu, v. 13, n. 28, p. 213-237, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100021.
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), à medida que motiva manifestações provenientes da categoria médica em oposição a esta formação, a qual tenciona o saber-poder-médico hegemônico por meio da educação interprofissional (Ceccim, 2009CECCIM, R. B. “Ligar gente, lançar sentido: onda branda da guerra”, a propósito da invenção da residência multiprofissional em saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 3, n. 29, 2009. DOI: 10.1590/S1414-32832009000100022.
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).
Discutimos, neste sentido, que a invenção dos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde (PRMS) se dá por meio de disputas de interesses corporativistas e discursividades do saber-poder médico, produzindo processos instituintes a partir da experiência do trabalho em equipe, em constante processo de problematização, à medida que questiona o saber-poder médico, pautando-se com os princípios do SUS. Desse modo, as residências multiprofissionais instigam mudanças sobre a concepção do processo saúde-doença, produzindo outros pontos de vista sobre o fazer saúde.
Neste cerne, a Comissão Nacional de Residências Multiprofissionais em Saúde (CNRMS), criada a partir da Lei 11.129/2005, constituía-se como potente espaço de construção compartilhada, na condução dos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde (PRMS), configurando-se a partir da participação democrática e popular (Brasil, 2006BRASIL. Residência multiprofissional em saúde: experiências, avanços e desafios. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/residencia_multiprofissional.pdf >. Acesso em: 7 maio 2023.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
). O envolvimento de coordenadores, tutores, preceptores e residentes multiprofissionais possibilitava o processo de avaliação e habilitação dos PRMS, visando atender às necessidades epidemiológicas e sociais da população brasileira.
A CNRMS, em sua configuração inicial, pautava-se nas áreas prioritárias da formação em saúde em diálogo com a reorientação das políticas públicas, como a saúde mental - apontada como estratégica na Resolução n.º2, de 13 de abril de 2012 da CNRMS (Brasil, 2012BRASIL. Resolução da Comissão Nacional de Residências Multiprofissionais em Saúde nº 2, de 13 de abril de 2012. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15448-resol-cnrms-n2-13abril-2012&Itemid=30192 >. Acesso em: 7 maio 2023.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
). Nesta configuração, o papel da Câmara Técnica 4 (CT 4) constituiu-se fundamental para se incentivar a formação em saúde mental em processo concomitante à condução da Rede de Atenção Psicossocial. Esta pautava a formação em saúde mental através dos PRMSM na tessitura da atenção psicossocial pelo cuidado em liberdade e no território.
No entanto, analisamos que, no período de 2017 a 2022, a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde passou por descontinuidades e retrocessos em seu funcionamento, impactando na condução nacional dos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde. A CNRMS encontrava-se inativa desde junho de 2019, com base no Decreto Presidencial nº 9.759, de 11 de abril de 2019, o qual retirou a participação dos colegiados nos debates do SUS (Brasil, 2019BRASIL. Nota Técnica n. 11/2019: Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2019. Disponível em: <Disponível em: https://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf >. Acesso em: 7 maio 2023.
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). Após mobilização social dos atores envolvidos com os PRMSM, foi reativada somente em setembro de 2021 por meio da Portaria Interministerial n.º7, de 16 de setembro de 2021 (Brasil, 2021BRASIL. Portaria Interministerial nº 7, de 16 de setembro de 2021. Dispõe sobre a estrutura, a organização e o funcionamento da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde - CNRMS de que trata o art. 14 da Lei nº 11.129, de 30 de junho de 2005, e institui o Programa Nacional de Bolsas para Residências Multiprofissionais e em Área Profissional da Saúde. Brasília, DF: Ministério da Educação , 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-7-de-16-de-setembro-de-2021-345462405 >. Acesso em: 7 maio 2023.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
). No entanto, nesta portaria, a CNRMS retira o controle social na condução e construção compartilhada dos PRMS no país, representados pelos coordenadores, tutores, preceptores e residentes multiprofissionais e insere representantes da classe médica, que, desde a proposição dos PRMS, mostram-se contrários a esta modalidade de formação para as demais profissões da saúde.
Problematizamos que esta ‘nova’ estruturação proposta para a CNRMS se mostra contrária aos preceitos democráticos do SUS, uma vez que, ao ter representantes médicos na condução das residências multiprofissionais, fortalece as discursividades do saber-poder médico na formação em saúde, pautando a formação uniprofissional com foco na doença, em detrimento da integralidade. A representatividade em massa de médicos na CNRMS descaracteriza de maneira abrupta a formação interprofissional em saúde mental, à medida que se estimula a formação hospitalar, reafirmando o modelo biomédico que há tempos busca-se superar na práxis em saúde.
Discutimos, neste sentido, os efeitos da representação médica na CNRMS, com forte incentivo à formação hospitalar (manicomial) em detrimento da atenção básica e ações de saúde comunitárias e territoriais. Os efeitos da subjetivação que a visão de saúde-doença-tratamento que esta categoria apresenta, por ser historicamente pautada na doença, no corporativismo e na exclusão do convívio social com o modelo manicomial (Amarante; Nunes 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.07082018.
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), impactam diretamente na formação em saúde mental para a RAPS, já que esta constitui-se em um processo de invenção social do trabalho em equipe e interdisciplinar, significando, portanto, retrocessos na condução dos processos formativos.
No cerne destes desmontes, a Portaria n. 7/2021 retira as representações de atores sociais, bem como as historicamente envolvidas com a formação em saúde no SUS, como as associações e sociedades científicas, e propõe a descentralização das comissões de debate sobre as residências multiprofissionais (Brasil, 2021BRASIL. Portaria Interministerial nº 7, de 16 de setembro de 2021. Dispõe sobre a estrutura, a organização e o funcionamento da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde - CNRMS de que trata o art. 14 da Lei nº 11.129, de 30 de junho de 2005, e institui o Programa Nacional de Bolsas para Residências Multiprofissionais e em Área Profissional da Saúde. Brasília, DF: Ministério da Educação , 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-7-de-16-de-setembro-de-2021-345462405 >. Acesso em: 7 maio 2023.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
). Nesta configuração, é extinta a CT 4 da Saúde Mental da CNRMS, responsável pela orientação a nível nacional da formação em saúde mental pelos PRMSM. Com a retirada da CT 4 na CNRMS, a área da Saúde Mental foi incorporada na Câmara Técnica da Atenção Especializada, fragilizando o debate acerca da produção do cuidado em saúde mental em liberdade.
Destacamos a importância histórica da CT 4 e sua correlação com as demais cinco Câmaras Técnicas, à medida que contribuiu no debate da interprofissionalidade e a intersetorialidade na reorientação das práticas em saúde, incentivando outros pontos de vista sobre o trabalho em saúde mental que considera os saberes da equipe multiprofissional, na construção de novos saberes em processos instituintes. Analisamos que a inserção da Câmara Técnica de Saúde Mental na atenção especializada, quando conduzida prioritariamente por médicos, produz impactos na formação em saúde mental pautada na atenção psicossocial, à medida que a atenção especializada produz debates distanciados dos conceitos de território e espaços de produção de vida dos usuários do SUS.
Neste cenário, verificamos mais uma vez a correlação de forças entre o modelo biomédico nos espaços de formação em saúde e a aposta do modelo psicossocial e da clínica ampliada, estes últimos alinhados com a reforma sanitária e com a reforma psiquiátrica brasileira. Analisamos a formação pelos PRMSM se insere nesta conjuntura, produzindo apostas, disputas, capturas e inventividades na tessitura da clínica psicossocial, uma vez que esta formação aposta na invenção de outros modos de cuidado a partir da formação interdisciplinar em saúde mental.
Impasses na formação pelos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde Mental
Compreendemos que a formação em Saúde Mental no Brasil constitui um campo permeado por interesses corporativistas, que encontram sustentação no Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM), o qual tem encontrado terreno fértil no campo da formação em saúde mental nos últimos anos, mesmo com contestações científicas de violações de direitos humanos (Amarante; Nunes, 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.07082018.
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; Passarinho, 2022PASSARINHO, J. G. N. Retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental: consequências para o Paradigma Psicossocial. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 20, n. 49, 2022. DOI: 10.12957/rep.2022.63451.
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).
Problematizamos que este modelo retrógrado tem produzido o desmonte da Política Nacional de Saúde Mental antimanicomial, a qual tem como sustentação o Paradigma Psicossocial (PPS), constituído a partir da compreensão dos processos de sofrimento psíquico associados aos contextos de vida dos usuários do SUS. O Paradigma Psicossocial tem sido tensionado à medida que existem capturas na Política Nacional de Saúde Mental e na condução das estratégias de formação em saúde mental a nível nacional, as quais desconsideram os avanços produzidos pela Reforma Psiquiátrica brasileira, pautada na ciência e garantia da cidadania das pessoas com sofrimento psíquico e/ou que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas.
Analisamos que as disputas de projetos nas políticas públicas, permeados por estes paradigmas, produzem impasses diretos na formação em Saúde Mental no Brasil, uma vez que este processo produz descontinuidades e rupturas, impactando na produção do cuidado na RAPS, de modo a produzir perspectivas ideológicas distintas no que se refere à compreensão do sofrimento psíquico e perspectiva formativa, no saber e oferta de cuidado.
No que se refere à compreensão do sofrimento psíquico, o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador apresenta uma explicação única sobre a doença, com origem apenas biológica/orgânica, e deve ser “silenciada” pela medicalização (Costa-Rosa, 2017). Nesta visão ideológica, defende-se um processo de medicalização da experiência humana, que é transformada e compartimentalizada em diagnósticos (Amarante; Nunes 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.07082018.
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). No Paradigma Psicossocial, considera-se o sujeito inserido em um contexto social, histórico, econômico e cultural, no qual se insere em relações coletivas. Nesta perspectiva, a compreensão do adoecimento é vista como produto coletivo e não apenas individual, na perspectiva da clínica ampliada (Onocko-Campos, 2019ONOCKO-CAMPOS, R. T. Saúde mental no Brasil: avanços, retrocessos e desafios. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 11, 2019. DOI: 10.1590/0102-311X00156119.
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).
Em relação à perspectiva formativa, no Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador, a formação se constitui de modo fragmentado e uniprofissional, com forte componente corporativista da categoria médica (Passarinho, 2022PASSARINHO, J. G. N. Retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental: consequências para o Paradigma Psicossocial. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 20, n. 49, 2022. DOI: 10.12957/rep.2022.63451.
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). Como modo de reafirmação do biopoder (Foucault, 1977FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.), esta formação foca no hospital como único lugar de formação, desconsiderando o território de vida dos sujeitos. No Paradigma Psicossocial defende-se a formação psicossocial na perspectiva multiprofissional/interprofissional. Esta se dá em rede e com foco para a Atenção Básica como lugar estratégico de formação, uma vez que se encontra inserida nos contextos de vida cotidiana dos sujeitos (Yasui et al., 2018YASUI, S.; LUZIO, C.A.; AMARANTE, P. Atenção psicossocial e atenção básica: a vida como ela é no território. Polis e Psique, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 173-190, 2018. DOI: 10.22456/2238-152X.80426.
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). Problematizamos que esta perspectiva formativa encontra-se alinhada com os princípios da Reforma Sanitária brasileira e da luta antimanicomial, à medida que compreende o cuidado em saúde mental na perspectiva de produção de vida, sendo tecida a partir dos diferentes saberes que envolvem o campo da saúde mental.
Em relação ao saber e oferta de cuidado, o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador centra-se no saber/poder médico com a medicalização como única oferta terapêutica (Costa-Rosa, 2018), de modo que a atenção à saúde tem como norte “o modelo asilar, hospitalar e excludente, considerando o transtorno ou doença mental como objeto e a prescrição de meios disciplinares de intervenção” (Passarinho, 2022PASSARINHO, J. G. N. Retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental: consequências para o Paradigma Psicossocial. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 20, n. 49, 2022. DOI: 10.12957/rep.2022.63451.
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, p. 74). Em defesa alinhada com a reforma psiquiátrica, o Paradigma Psicossocial apresenta como norte o modelo territorial, comunitário e inclusivo, considerando o sujeito para além do adoecimento, de modo que a doença é tida apenas como um dos aspectos que envolvem a multidimensionalidade de sua vida. O cuidado se produz, portanto, nos espaços de vida dos usuários, potencializando seus modos de produção de vida e existência (Yasui et al., 2018YASUI, S.; LUZIO, C.A.; AMARANTE, P. Atenção psicossocial e atenção básica: a vida como ela é no território. Polis e Psique, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 173-190, 2018. DOI: 10.22456/2238-152X.80426.
https://doi.org/10.22456/2238-152X.80426...
). A atenção à saúde é compartilhada por diversos saberes e núcleos profissionais, ampliando as ofertas de cuidado para além da medicação, envolvendo escuta, vínculo, acolhimento e compreensão dos processos de adoecimento, com práticas de cuidado singularizadas.
As concepções teórico-práticas propostas por estes paradigmas impactam na condução da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) e na formação em saúde mental, as quais são descritas no Quadro 1.
Analisamos que os retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental, nos quais os interesses da psiquiatria conservadora ganharam visibilidade e força no período de 2016 a 2022, apontam retornos ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador, que é cientificamente retrógrado, não apresentando sustentação científica no campo das políticas públicas do SUS. Defendemos que o Paradigma Psicossocial deve ser reafirmado e retomado como norteador da formação em saúde mental no SUS, de modo que estes processos formativos produzam cuidado em saúde mental em diálogo com a luta antimanicomial e os princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira. Reiteramos que a formação em saúde deve se dar na perspectiva interprofissional, tendo em vista a multidimensionalidade dos processos de sofrimento psíquico e adoecimento mental dos usuários do SUS, considerando o sujeito em sua autonomia, inserido em um meio familiar, social, econômico e cultural.
Defesa da formação em Saúde Mental pautada no Paradigma Psicossocial
Problematizamos, neste sentido, que a defesa da formação em saúde mental pelos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde Mental constitui-se como processo educativo que visualiza o sujeito com suas multidimensionalidades e potencialidades, de modo que esta formação deve se dar de maneira compartilhada com diversos saberes e profissões, em uma perspectiva interprofissional e interdisciplinar (Ceccim, 2018CECCIM, R. B. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 22, n. 2, p. 1739-1749, 2018. DOI:10.1590/1807-57622018.0477.
https://doi.org/10.1590/1807-57622018.04...
). Somamos a esta premissa a relevância do processo formativo nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial e, para além destes, em trabalho intersetorial, envolvendo a educação, cultura, esporte, trabalho, lazer e participação social.
Compreendemos que esta formação em saúde deve apresentar, como norte, a desconstrução do modo como a sociedade lida com o que diverge da “normalidade”, garantindo o direito à liberdade e à cidade às pessoas que apresentam sofrimento psíquico e/ou que apresentem necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
Defendemos a formação em saúde mental pelos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde pautada no modelo de atenção psicossocial, que tem como perspectiva a formação interprofissional na produção das práticas de cuidado em saúde mental a partir da compreensão biopsicossocial do processo saúde-doença, a qual tem como premissa o cuidado em liberdade e no território, pautado no sujeito, em sua família e as relações que estes estabelecem no meio social. Esta formação produz práticas para além do olhar sobre a doença, pautadas na produção de vida e potencialidades dos modos de existência dos usuários do SUS.
Nesta perspectiva, compreendemos que o cuidado em saúde mental se constitui a partir da dimensão formativa e da dimensão técnica assistencial, imersas em um contexto de disputas acerca de visões teórico-técnicas, culturais e éticas em processo dialético. A partir desta compreensão do cuidado em saúde mental, verifica-se que a disputa por hegemonia pode estagnar, retroceder ou favorecer a tessitura da atenção psicossocial. Acreditamos que a mudança dessa realidade deve ter como agentes de transformação os usuários, trabalhadores, residentes e gestores do SUS. O protagonismo destes atores produz defesa ético-política da saúde mental, que dialoga com os princípios da luta antimanicomial em contínuo processo, convidando a sociedade a conviver com a diversidade sem produzir exclusão social.
Considerações finais
No âmbito da Política Nacional de Saúde Mental, pautamos a efetivação das legislações produzidas a partir do movimento histórico da luta antimanicomial e a revogação das portarias contraditórias a esse movimento. Apontamos que estas normativas foram tecidas por meio de debates, propostas e relatórios das quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental que aconteceram em 1987, 1992, 2001 e 2010. Problematizamos que estas conferências se configuram como espaços pulsantes do movimento da luta antimanicomial, produzindo visibilidade às necessidades dos usuários, familiares, trabalhadores e gestores do SUS, em contínuos processos de defesa do cuidado em liberdade no território. Abordamos a necessidade de realização da V Conferência Nacional de Saúde Mental com urgência, uma vez que esta aconteceria em 2022, tendo sido adiada para 2023 por falta de apoio e financiamento do Ministério da Saúde.
No âmbito dos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde Mental, apontamos a necessidade de reconfiguração da composição da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde, inserindo atores envolvidos historicamente nas residências, como preceptores, tutores, coordenadores e residentes em defesa da práxis em saúde mental. O movimento histórico da luta antimanicomial tem nos mostrado o papel dos trabalhadores da saúde mental na construção e defesa da atenção psicossocial, de modo que formação dos residentes em saúde mental pelos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde é estratégica na continuidade e fortalecimento da luta antimanicomial e da atenção psicossocial.
Defendemos que, apesar da formação em saúde mental estar permeada pelas relações de forças antagônicas, esta não pode perder de vista seu processo instituinte de mudanças na práxis em saúde mental, uma vez que esta luta por hegemonia se constitui como um processo dialético. Olhar sobre este outro ponto de vista contribui para se pensar em estratégias de resistência frente ao que se coloca na conjuntura política, e esta resistência tem como um dos caminhos a defesa ético-política da atenção psicossocial na formação em saúde mental no SUS, em busca da efetivação dos princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira, tendo como norte a desinstitucionalização na perspectiva da desconstrução de como a sociedade lida com a loucura e a diversidade.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
15 Jul 2023 -
Revisado
15 Jul 2023 -
Aceito
17 Jul 2023