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A regulação do trabalho em saúde em tempos complexos e instáveis

Resumo

No Brasil, a saúde é considerada direito de todos e dever do Estado. A regulação do trabalho em saúde é atividade essencial para garantir a segurança, qualidade e eficácia dos serviços de saúde prestados, que exigem profissionais com competências, habilidades e atitudes condizentes. O trabalho em saúde deve ainda ser exercido com condições de trabalho dignas aos profissionais de saúde e aos pacientes. Este ensaio apresenta uma análise crítica e atual das principais características do modelo de regulação do trabalho em saúde no Brasil. O texto descreve, inicialmente, de que forma está estruturada a regulação do exercício profissional na área da saúde, abordando temas como a autonomia regulatória dos Conselhos Profissionais, a regulação de novas profissões de saúde e a judicialização dos conflitos regulatórios. Finalmente, são analisadas as características da regulação da formação de nível superior na área da saúde e o papel protagonista do Ministério da Educação nesse campo regulatório. As reflexões aqui apresentadas objetivam apontar possíveis caminhos para o aperfeiçoamento do modelo de regulação do trabalho em saúde no Brasil, tendo como norte a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a plena efetivação do direito à saúde no Brasil.

Palavras-chave:
Força do Trabalho em Saúde; Regulação em Saúde; Direito à Saúde; Regulação de Profissões de Saúde; Judicialização da Saúde

Abstract

In Brazil, health is considered a right of all and a duty of the State, and health workforce regulation is essential to ensure the safety, quality and effectiveness of the health services provided, which require professionals with skills, abilities and attitudes consistent with the service in question, as well as to guarantee dignified working conditions for health professionals and patients. This essay is a critical and up-to-date analysis of the main characteristics of Brazil’s health workforce regulation model. We first describe how the health workforce regulation is structured, addressing topics such as the regulatory autonomy of Professional Councils, the regulation of new healthcare professions and the judicialization of conflicts in the field. We then analyze the regulation of health higher education and the leading role of the Ministry of Education in this regulatory field. The present reflections point out possible ways to improve Brazil’s health workforce regulation model, having the consolidation of the Brazilian National Health System (SUS) and the full implementation of the right to health as guides.

Keywords:
Health Workforce; Health Regulation; Health Professions Regulation; Health Law; Health Judicialization

Contexto introdutório

No Brasil, conforme previsto pelo art. 196 da Constituição Brasileira de 1988 (CF), a saúde é considerada direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 14 fev. 2023.
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).

Entre os deveres do Estado para a plena efetivação do direito à saúde, a regulação do trabalho em saúde é atividade essencial para garantir a segurança, qualidade e eficácia dos serviços de saúde prestados, na medida em que devem ser prestados por profissionais com competências, habilidades e atitudes condizentes com a natureza do serviço prestado. Além disso, para que seja adequado, o trabalho em saúde deve ser exercido com condições laborais dignas aos profissionais de saúde e aos pacientes.

A regulação do trabalho em saúde no Brasil deve ser formulada prioritariamente com o objetivo de viabilizar o Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela CF para organizar as ações e os serviços públicos de saúde no Brasil. O SUS está definido no art. 198 da CF e representa a principal garantia do direito à saúde no país, sendo responsável pelo atendimento integral dos aproximadamente 215 milhões de habitantes do Brasil (IBGE, 2023IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Projeção da população brasileira e das Unidades da Federação. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: <Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html >. Acesso em: 14 fev. 2023.
https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/p...
), abarcando serviços de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde. Além de orientar-se para a consolidação do SUS, a regulação do trabalho em saúde no país também deve garantir qualidade e segurança para os serviços privados de saúde, autorizados pelo art. 199 da CF e que representam, apenas no setor de saúde suplementar, um mercado de aproximadamente 50 milhões de brasileiros (ANS, 2023ANS - AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. Beneficiários de planos privados de saúde, por cobertura assistencial (Brasil 2013-2023). Brasília, DF, 2023. Disponível em: <Disponível em: https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais >. Acesso em: 14 fev. 2023
https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/d...
).

Assim, tanto a execução direta de ações e serviços públicos de saúde pelo SUS como a execução de serviços privados pressupõem a existência e o trabalho de profissionais de saúde no âmbito de variadas instituições públicas e privadas da área. A regulação do trabalho em saúde no Brasil tem objetivos constitucionais muito claros, que podem ser sintetizados no dever do Estado de garantir o direito à saúde da população, por meio da prestação direta de serviços públicos de saúde pelo SUS ou, ainda, por meio de uma adequada regulação desses serviços prestados por agentes privados.

Para melhor compreensão da regulação do trabalho em saúde e sua complexidade no contexto dos Estados Democráticos de Direito modernos, três grandes campos regulatórios emergem do conjunto normativo e institucional desenhado no país: (1) regulação da formação dos profissionais que irão atuar na área da saúde (ensino técnico, graduação e pós-graduação (especialização, residências, mestrado e doutorado); (2) regulação do exercício profissional (registro, ética, escopo de prática, competências legais); e (3) regulação das relações de trabalho na área da saúde (jornada e condições de trabalho, salários, carreiras).

Cada um desses campos apresenta uma lógica e modelagem regulatória própria, configurando um modelo de regulação complexo, fragmentado, institucionalmente disperso e com sérios problemas de funcionalidade, comprometendo a eficácia da atividade regulatória estatal (Aith et al., 2018AITH, F. M. A. et al. Regulação do exercício de profissões de saúde: fragmentação e complexidade do modelo regulatório brasileiro e desafios para seu aperfeiçoamento. Revista de Direito Sanitário , São Paulo, v. 19, n. 2, p. 198-218, 2018. DOI: 10.11606/issn.2316-9044.v19i2p198-218
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). Com base nesse cenário, este ensaio apresenta uma análise crítica e atual das principais características do modelo de regulação do trabalho em saúde no Brasil, em especial no que se refere à do exercício profissional e da formação de profissionais de saúde. As reflexões aqui apresentadas objetivam apontar possíveis caminhos para o aperfeiçoamento do modelo regulatório do trabalho em saúde no Brasil, tendo como norte a plena efetivação do direito à saúde no Brasil.

Reflexões sobre as características do modelo de regulação do trabalho em saúde no Brasil à luz do dever estatal de garantir o direito à saúde

O modelo de regulação do trabalho em saúde no Brasil apresenta características próprias que devem ser conhecidas para uma análise mais aprofundada de seus múltiplos contextos e influências.

A primeira característica marcante do modelo nacional é a presença de uma multiplicidade de instituições estatais reguladoras com competências constitucionais e legais para regular um ou mais aspectos do trabalho em saúde. Apenas em âmbito federal podemos identificar mais de uma dezena de instituições jurídicas com competências regulatórias sobre o trabalho em saúde, sendo relevante destacar algumas delas.

No campo da regulação do trabalho em saúde voltado para adequá-lo aos princípios e às diretrizes do SUS, a União tem preponderância na elaboração de normas gerais e para a definição de políticas nacionais na área da saúde, tendo papel estratégico na regulação do trabalho em saúde no Brasil (CF, art. 24, inciso XII, § 1º) (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 14 fev. 2023.
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). No âmbito do Poder Executivo Federal, destacam-se as competências regulatórias do Ministério da Saúde, responsável pela definição e execução de políticas públicas de saúde nacionais, bem como pelo acompanhamento e supervisão das capacidades nacionais no que se refere ao trabalho em saúde.

Assim, compete ao Ministério da Saúde estabelecer um conjunto regulatório relevante no que se refere: aos tipos de serviços de saúde prestados no SUS; aos protocolos e às diretrizes clínicas e terapêuticas observados pelos profissionais de saúde; aos escopos de práticas dos diferentes profissionais no âmbito das políticas nacionais de saúde; aos padrões de qualidade e segurança dos serviços de saúde públicos e privados prestados em território nacional; à necessária harmonização ou convergência regulatória entre as diferentes instituições regulatórias nacionais, tanto em âmbito federal quanto interfederativo; à criação de carreiras nacionais de saúde; entre outras competências estratégicas (Brasil, 2023BRASIL. Decreto nº 11.358, de 1 de janeiro de 2023. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Saúde e remaneja cargos em comissão e funções de confiança. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11358.htm >. Acesso em: 14 fev. 2023
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).

Ainda no âmbito federal, destaca-se as competências: do Ministério da Educação, responsável pela regulação do ensino superior, da pós-graduação em saúde e das residências profissionais na área; do Ministério do Trabalho, responsável por supervisionar as relações e condições de trabalho, além da edição da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) e; do Ministério do Planejamento, que tem competências relacionadas ao regime de trabalho dos servidores públicos federais, à criação e desenvolvimento de carreiras federais na área da saúde (por exemplo, a tão debatida ideia de uma carreira federal de médicos do SUS) (Brasil, 2023BRASIL. Decreto nº 11.358, de 1 de janeiro de 2023. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Saúde e remaneja cargos em comissão e funções de confiança. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11358.htm >. Acesso em: 14 fev. 2023
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).

Outro necessário destaque deve ser dado às competências regulatórias dos 13 Conselhos Profissionais atualmente existentes na área, responsáveis por regular as 14 profissões de saúde reconhecidas pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde n. 287/1998 (Brasil, 1998BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 287, de 08 de outubro de 1998. Brasília, DF, 1998. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1998/res0287_08_10_1998.html >. Acesso em: 14 fev. 2023.
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). Os Conselhos Profissionais de saúde gozam de amplo poder discricionário na regulação das respectivas profissões, especialmente em relação à ética e ao exercício profissional, sendo responsáveis pela definição dos escopos de prática de cada profissão de saúde, muitas vezes contrariando entendimento do Ministério da Saúde ou de outras instituições regulatórias.

Finalmente, para completar o quadro de fragmentação institucional regulatória, vale mencionar o modelo federalista do SUS e suas consequências para a regulação das relações de trabalho no âmbito do sistema de saúde nacional. Conforme o art. 22, inciso II, da CF, União, Estados, Distrito Federal e Municípios têm competência comum para executar ações e serviços públicos de saúde, sendo responsáveis pelos seus respectivos sistemas (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 14 fev. 2023.
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). Assim, em cada ente federativo as relações de trabalho dos profissionais de saúde serão reguladas por normas específicas, gerando uma diversidade enorme de regimes de trabalho e vínculos.

A segunda característica marcante do atual modelo brasileiro de regulação do trabalho em saúde é o complexo conjunto de normas jurídicas justapostas. São leis, decretos, resoluções, portarias, instruções normativas, dentre outros tipos de normas, a regular o trabalho em saúde no âmbito nacional, estadual e municipal. Cada ente federativo tem competência para regular o trabalho em saúde no que se refere a diversos temas, tais como o tipo de trabalho a ser exercido para a execução das respectivas políticas de saúde, o regime de trabalho a ser observado, a remuneração do trabalho em saúde, os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas específicos (quando houver), dentre outros, gerando um cipoal normativo de difícil compreensão.

A terceira característica é a ausência de uma instituição reguladora nacional capaz de harmonizar a regulação entre as diferentes instituições desse campo, provocando dissonâncias, contradições e até conflitos regulatórios relevantes no sistema normativo que orienta toda a atividade reguladora do Estado. Tal realidade é fonte que gera ineficiência, erros e disputas políticas corporativas. Não há, portanto, uma instituição administrativa federal responsável por harmonizar a regulação nacional do trabalho em saúde, apta a dirimir conflitos regulatórios que surgem entre as diversas instituições existentes.

Assim, os conflitos normativos entre as diferentes instituições com poder regulatório (por exemplo, entre dois Conselhos Profissionais ou entre um Conselho Profissional e o Ministério da Saúde) vêm sendo sistematicamente levados ao Poder Judiciário, por meio da judicialização desnecessária de conflitos regulatórios que seriam melhor resolvidos por meio de mediação administrativa no âmbito da própria União. Estudo realizado em 2018 mostra que o Brasil é um dos únicos países onde o Ministério da Saúde detém pouca ou quase nenhuma competência para harmonização regulatória e mediação de conflitos entre as diversas instituições com competência regulatória no campo da do trabalho em saúde (Aith, 2019AITH, F. M. A. Regulação de profissões de saúde na perspectiva do direito comparado: as diferentes estratégias regulatórias de Argentina, Paraguai, Uruguai, Canadá e Austrália. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 19, n. 3, p. 91-98. DOI: 10.11606/issn.2316-9044.v19i3p91-98
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).

Regulação do exercício das profissões de saúde de nível superior no Brasil: autonomia corporativa e interesse público nos estados democráticos do século XXI

A regulação do exercício das profissões regulamentadas de nível superior na área da saúde é fruto de uma construção histórica que remonta às corporações de ofício, sendo relevante destacar, ainda que brevemente, um pouco dessa evolução histórica e a forma como esse modelo foi apropriado pelo Brasil. Esse resgate histórico permite uma melhor compreensão do atual modelo que vigora no país e dos atuais embates envolvendo os interesses corporativos, de um lado, e o interesse público e social, de outro.

As corporações de ofícios, com origem mais remota na Roma antiga, mas extintas a partir da época das invasões bárbaras, ressurgiram na Idade Média (século XII) para regulamentar o processo produtivo artesanal nas cidades que contavam com mais de 10 mil habitantes. Eram associações de produtores (guildas) ou de mercadores (hansas), marcadas pela hierarquia (estrutura piramidal: mestres, oficiais e aprendizes) e pela centralização, nelas, do controle da técnica de produção. A lógica, que resiste até os dias de hoje, é a de que uma pessoa só poderia trabalhar em um determinado ofício (por exemplo, pedreiros, alfaiates, carpinteiros, padeiros, entalhadores de pedras), em uma determinada região, se fosse membro de uma corporação, sob pena de ser expulsa da região.

Um dos eixos do ressurgimento das corporações foi a ideia de proteção social, em um período (séculos XII a XIV) marcado ainda pelas guerras privadas e pela incipiente aceleração do comércio (Le Goff, 1990LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990.) e, portanto, pela necessidade de garantias de segurança e previsibilidade, para o exercício de determinadas funções reconhecidas como de relevância social. Com essas associações corporativas, o mercado de trabalho ficava protegido pela reserva e pelo controle da técnica a um determinado grupo, e o membro da corporação recebia, além do trabalho e seu aprendizado, alimentos, moradia e amparo em caso de incapacidade por idade ou doença. As corporações estabeleciam, ainda, as regras para o ingresso na profissão (Feliciano, 2013FELICIANO, G. G. Curso crítico de direito do trabalho: teoria geral do direito. São Paulo: Saraiva, 2013.).

Em Portugal, no século XIV, o apoio dos mestres de ofício foi decisivo para o governo do rei D. João I, então em grave crise, resultando no fortalecimento do poder das corporações e na criação de uma assembleia corporativa municipal de caráter deliberativo - concorrendo, portanto, com as câmaras municipais, ou inseridas nelas. O mesmo sistema foi adotado em outras cidades de Portugal e das colônias. No Brasil, essas assembleias não chegaram a existir oficialmente, mas a literatura registra instituições similares desde pelo menos 1641, “com a eleição de doze mestres na Câmara municipal de Salvador”, além de um pedido do Ouvidor do Rio de Janeiro à Corte em Lisboa de autorização para a eleição de dois mestres para a Câmara dessa cidade (Martins, 2007MARTINS, S. P. Direito do trabalho. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2007.).

No mundo, a ascensão do corporativismo como sistema político (especialmente na Espanha, Itália e Portugal) resgatou a força política das profissões. Os organismos corporativistas foram tratados como elementos estruturantes do poder político tanto quanto os representantes eleitos pelo povo. Por exemplo, a Constituição portuguesa de 1933 (no período salazarista) criou a Câmara Corporativa como órgão representativo de natureza consultiva da República. No Brasil, a Constituição de 1934 previa a figura do deputado federal profissional (40 dos 254 deputados eram indicados pelas organizações profissionais).

A ideia corporativa foi transplantada para o Brasil com nuances, especialmente em vista da adoção do trabalho escravo e da excessiva restrição do mercado interno até o início do século XIX - a que se acresce a peculiaridade do patrimonialismo vigente no sistema econômico nacional (Faoro, 2008FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008.). Começou a declinar com a chegada da família real ao Brasil e a consequente ascensão econômica e política do liberalismo mercantil.

O corporativismo foi abraçado pelo Brasil a partir de 1930, influindo decisivamente na estrutura da legislação trabalhista (por exemplo, na constituição dos sindicatos de forma dependente de autorização do Estado, segundo financiamento tributário e atrelada a uma tabela de profissões instituída pelo Poder Executivo). A Consolidação das Leis do Trabalho foi estruturada por temas (registro, férias, salários, duração do trabalho etc.), mas também visando a profissionais de categorias econômicas específicas: bancários, empregados em telefonia, ferroviários, capatazias nos portos, trabalho em minas de subsolo, jornalistas, serviços de estiva, professores etc. Várias dessas disposições se encontram ainda em vigor, mas o que se viu a partir de meados do século XX no Brasil foi a proliferação de leis específicas de cada profissão - e, ao cabo, a constituição dos conselhos profissionais como entes paraestatais para regular suas atividades com certa autonomia.

Porém, o que evidentemente distingue as leis que regulam profissões específicas, de um lado, da regulamentação profissional da CLT, de outro, é que esta tem como princípio a proteção do trabalhador, partindo do pressuposto da relação conflituosa entre o capital e o trabalho (com fonte histórica nas revoluções industriais); aquelas, por outro lado, são leis mais protetivas da profissão como um todo (com fonte histórica mais antiga, certamente em parte nas corporações medievais).

Autonomia regulatória dos conselhos de profissões de saúde de nível superior para a regulação do exercício profissional no Brasil

O Brasil reconhece hoje 14 profissões de saúde que exigem formação em curso superior universitário, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde n. 287/98 (Brasil, 1998BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 287, de 08 de outubro de 1998. Brasília, DF, 1998. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1998/res0287_08_10_1998.html >. Acesso em: 14 fev. 2023.
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). São elas: assistentes sociais; biólogos; biomédicos; profissionais de educação física; enfermeiros; farmacêuticos; fisioterapeutas; fonoaudiólogos; médicos; médicos veterinários; nutricionistas; odontólogos; psicólogos; e terapeutas ocupacionais.

A partir da década de 1950, as 14 profissões mencionadas pela Resolução CNS n. 287/1998 passaram a contar com legislação federal regulatória própria (Tabela 1).

Tabela 1
Legislação de criação das profissões de saúde de nível superior no Brasil

Com relativa independência e competências atribuídas pelas respectivas leis, cada profissão, por meio de seu respectivo Conselho Federal (e Conselhos Regionais), emite resoluções sobre temas variados ligados ao exercício da profissão, tais como registro profissional, códigos deontológicos, definição do escopo de prática, definição das especialidades da profissão, concessão de título de especialista, entre outros.

O poder regulatório dos Conselhos Profissionais é reconhecido pelas suas leis de criação com respaldo de importantes decisões dos tribunais superiores brasileiros. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), acerca de litígio individual em que o autor pleiteava direito de ser reconhecido como especialista a despeito de regras estabelecidas pelo Conselho profissional, estabeleceu de forma bastante clara o papel desses Conselhos na sociedade moderna:

[…] o Poder Judiciário deve ser cauteloso ao interferir nos requisitos eleitos pelos órgãos de classe e afins para selecionar e autorizar o exercício de especialidades profissionais, especialmente na área da Saúde Pública.

Com efeito, os conselhos profissionais e os órgãos de classe de natureza técnico-científica, como a agravada, são autênticos herdeiros das antigas guildas e corporações de ofício, que exerciam uma função protetiva aos interesses de seus integrantes, seja interna, mediante a realização de uma espécie de reserva de mercado, seja externa, coibindo a atuação de fornecedores ou empregadores. A função externa terminou por ser açambarcada pelos sindicatos, que a manifestam por intermédio de greves e outros mecanismos de autotutela.

Historicamente, porém, a função interna transformou-se de um meio de defesa da profissão contra a entrada de novos agentes em um instrumento de defesa da própria Sociedade.

A limitação do exercício profissional a pessoas habilitadas não é mais possível de ser confundida com uma mesquinha reserva ou contenção de mercado, desde que, por óbvio, efetivada nas balizas legais. Trata-se, na atualidade, de uma delegação pública aos conselhos para que selecionem seus membros e exijam-lhes probidade e perícia no desempenho de seu ofício, conforme o princípio da razoabilidade. De saliente meio de proteção de classe, o poder disciplinar dos conselhos tornou-se necessário mister de execução sócio-deontológica […] (Brasil, 2006bBRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MS 9596 DF 2004/0036903-9. Relator: Min. José Delgado, 8 mar. 2006b. Disponível em: <Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/7166437/mandado-de-seguranca-ms-9596-df-2004-0036903-9 >. Acesso em: 14 fev. 2023.
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).

O Supremo Tribunal Federal (STF) também já se debruçou várias vezes sobre o tema, como no Mandado de Segurança no 22.643, no qual decidiu que os Conselhos de Fiscalização Profissional têm natureza jurídica de autarquias e ficou consignado que: (1) essas entidades foram criadas por lei, tendo personalidade jurídica de direito público com autonomia administrativa e financeira; (2) exercem a atividade de fiscalização de exercício profissional que, como decorre do disposto nos arts. 5o, inciso XIII, e 21, inciso XXIV, é atividade tipicamente pública; e (3) têm o dever de prestar contas ao Tribunal de Contas da União (Brasil, 1998BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS 22.643. Relator: Min. Moreira Alves. Brasília, DF: STF, 4 dez. 1998. ).

Sobre a natureza de interesse público dos Conselhos Profissionais, vale também destacar o seguinte trecho de decisão do STF, relatada pela Ministro Luiz Fux:

Considerando o caráter jurídico de autarquia dos conselhos de fiscalização profissional, que são criados por lei e possuem personalidade jurídica de direito público, exercendo atividade tipicamente pública, qual seja, fiscalização do exercício profissional […]., há de se concluir pela obrigatoriedade da aplicação a eles da regra prevista no artigo 37, II, da CF/88, quando da contratação de servidores (Brasil, 2012BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 539.224. Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, DF: STF , 18 jun. 2012. ).

Outra decisão do STJ que vale ser mencionada é a que confirmou a legalidade da Câmara de Regulação do Trabalho em Saúde (CRTS). Na ação, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) tentava declaração judicial da ilegalidade da Portaria MS n. 2.429/03, que criava a CRTS com a função de auxiliar o Ministério em questões referentes à regulação de profissões em saúde. A tese apresentada pelo conselho estava fundada na hipótese de que teria o Ministério da Saúde se excedido em suas competências e que tal atividade regulatória é privativa dos conselhos.

A medida foi denegada no tribunal, que reconheceu a competência do Ministério para criar a CRTS e afirmou que tal regulação visa organizar o SUS, função típica do ministério que não se confunde com a função eminentemente fiscalizatória dos conselhos profissionais. A importância de tal ação está em envolver uma disputa de competências entre um conselho profissional e o Ministério da Saúde, dois agentes centrais no âmbito da regulação do trabalho em saúde. Essa ação também explicitou a relação conflituosa entre os interesses corporativos dos conselhos profissionais e o interesse público que pode estar presente em políticas públicas ou na regulação de outras instituições com igual competência reguladora. Por vezes, o conflito se dá entre dois conselhos profissionais que regulam profissões diferentes, que não aceitam que o outro defina este ou aquele escopo de prática como sua área de atuação, por exemplo, médicos × enfermeiros; farmacêuticos × médicos etc.

Complexidades e incertezas para a regulação de novas profissões de saúde de nível superior no Brasil

Outra fonte de amplos debates nos tempos atuais quanto à regulação do trabalho em saúde é a criação de novas profissões de saúde regulamentadas por lei. A partir de 1988, a regulamentação jurídica de uma nova profissão pode dar-se por sua inclusão na CBO ou, ainda, de forma normativamente mais sólida e protetora de direitos, por meio de aprovação de lei ordinária no Congresso Nacional.

Dentro dessa lógica, a Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados editou importantes recomendações para a elaboração de projetos de lei destinados a regulamentar exercícios de novas profissões ao aplicar um rol de requisitos a esse fim (Brasil, 2001BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público. Verbete n. 01, de 26 de setembro de 2001. Brasília, DF, 2001. ).

A primeira recomendação alerta que, em razão da liberdade para o exercício de ofícios ou profissões estabelecidas pela Constituição Federal em seu art. 5º, inciso XIII, a elaboração de projetos de lei para regulamentar o exercício profissional deverá atender, cumulativamente, os seguintes requisitos: (1) imprescindibilidade de que a atividade profissional a ser regulamentada - se exercida por pessoa desprovida da formação e das qualificações adequadas - possa oferecer risco à saúde, ao bem-estar, à segurança ou aos interesses patrimoniais da população; (2) a real necessidade de conhecimentos técnico-científicos para o desenvolvimento da atividade profissional, os quais tornem indispensáveis à regulamentação; e (3) exigência de ser a atividade exercida exclusivamente por profissionais de nível superior, formados em curso reconhecido pelo Ministério da Educação. Além dessas recomendações, também foi ressaltada a necessidade de que, com vistas a resguardar o interesse público, o projeto de regulamentação de nova profissão de ensino superior não proponha a criação de reserva de mercado para um segmento de determinada profissão em detrimento de outras com formação idêntica ou equivalente.

Atualmente, considerando-se as leis vigentes e as decisões do STF sobre a matéria, destacam-se os seguintes parâmetros normativos para criação de uma nova profissão de nível superior: necessidade de grau elevado de conhecimento técnico ou científico para o desempenho da profissão; existência de risco potencial ou de dano efetivo à sociedade como ocorrências que podem resultar do exercício profissional; garantia de fiscalização do exercício profissional; e regulamentação de acordo com a Constituição e o interesse público.1 1 Disponível em: <http://www.confef.org.br/extra/conteudo/default.asp?id=16>. Acesso em: 2 nov. 2015.

O atual itinerário que pode ser seguido para a regulamentação de uma nova profissão de nível superior no Brasil mostra-se complexo e incerto. Complexo porque esse itinerário envolve a participação colaborativa e articulada de múltiplos atores e instituições governamentais, incluindo o Congresso Nacional e a Presidência da República. Incerto porque ainda se encontra em um ambiente de intensa desarmonia legislativa, em especial no que se refere ao papel do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde na tramitação desses projetos. Além disso, ainda há uma intensa controvérsia sobre a iniciativa desses projetos de lei, especialmente quando criam estruturas de fiscalização associadas (por exemplo, Conselhos Profissionais). Nesses casos, o Poder Executivo entende ser iniciativa privativa da Presidência da República, limitando propostas que possam surgir no parlamento ou junto à sociedade civil.

A regulação de novas profissões de saúde no Brasil é um tema candente há décadas e que se anuncia como um campo minado de conflitos para o futuro. Nas últimas duas décadas, tramitaram ou ainda tramitam pelo Congresso Nacional projetos de lei para a criação de várias novas profissões de ensino superior em saúde, dentre as quais vale destacar as seguintes, seja pela importância para o sistema de saúde brasileiro, seja pelo grau de conflitos e judicialização que apresentam: acupunturista; arteterapeuta; biotecnologista; gerontólogo; gestor de serviços de saúde; massoterapeuta; naturólogo; osteopata; podólogo; psicomotricista; quiropraxista; sanitarista; tecnólogos do eixo da saúde; e terapeuta naturista/naturalista.

Nesse cenário dinâmico e de múltiplos interesses, em que as instituições estatais responsáveis são diversificadas e com camadas interpostas de poder e competências, tornou-se comum verificar a ocorrência do fenômeno da judicialização para a solução de conflitos regulatórios no campo da saúde, seja entre profissões já estabelecidas, seja no que se refere às lutas por reconhecimento de novas profissões de saúde.

Judicialização da regulação do trabalho em saúde no Brasil

Em um ambiente regulatório com múltiplos centros decisórios e uma ampla atividade a ser regulada, é de se esperar que existam conflitos. Cada uma das 14 profissões de nível superior regulamentadas tem uma lei que a regulamenta em termos gerais e fornece competências para que seu respectivo conselho profissional proceda com a regulamentação infralegal. Além disso, a administração pública direta ainda apresenta competências para regulamentar tais profissões, especificamente no âmbito dos Ministérios da Saúde e da Educação.

Dessa forma, surgem conflitos de competência que acabam sendo resolvidos apenas judicialmente, chegando inclusive ao STJ e ao STF. Assim, é importante o entendimento acerca da posição dos tribunais, especialmente desses que são uniformizadores de jurisprudência e que emitem decisões que acabam por influenciar o pensamento jurídico de todo o país.

Em extensa pesquisa realizada sobre a judicialização dos conflitos regulatórios do trabalho em saúde no Brasil, foram encontradas no âmbito dos Tribunais superiores um total de 52 ações, sendo que 23 estão localizadas no STJ e 29 no STF (Bastos et al., 2020BASTOS, A. et al. Judicialização dos conflitos de regulação de profissões de saúde no Brasil. In: AITH, F. et al. (Org.). Regulação de profissões de saúde no Brasil e em perspectiva comparada. São Paulo: Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário, 2020.). A partir de uma análise inicial das decisões e acórdãos selecionados na pesquisa, os autores constataram que a judicialização da regulação de profissões de saúde decorre principalmente de dois fatores: (1) a ampla autonomia regulatória conferida a cada Conselho de Classe, o que tem acarretado uma transposição de competências; e (2) a fragmentação normativa em um enorme conjunto de Leis, Decretos, Portarias e Resoluções.

Entre os processos judiciais coletados na referida pesquisa, o Conselho Federal de Medicina (CFM) apresenta-se como o maior requerente, tendo proposto quase metade (47%) das ações impetradas por conselhos profissionais federais contra outros conselhos ou instituições para dirimir conflitos regulatórios junto ao Poder Judiciário. O CFF aparece como o maior requerido, figurando como polo passivo em 23% das ações propostas contra conselhos profissionais federais para solução de conflitos regulatórios. Não por acaso, 17,39% das demandas propostas pelo CFM têm como requerido o CFF, sendo que a Resolução CFF n. 585/2013 aparece como uma das principais causas de conflito entre esses dois Conselhos.

Vale destacar, ainda, que a judicialização, embora tenha se tornado bastante presente no cenário da regulação do trabalho em saúde no Brasil, não se afigura como uma forma adequada para a solução desse tipo de conflitos. Os dados apresentados por Bastos et al. (2020BASTOS, A. et al. Judicialização dos conflitos de regulação de profissões de saúde no Brasil. In: AITH, F. et al. (Org.). Regulação de profissões de saúde no Brasil e em perspectiva comparada. São Paulo: Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário, 2020.) ilustram bem a inadequação dessa via para a solução dos conflitos regulatórios no campo do trabalho em saúde, revelando que: 89% dos processos analisados apresentavam pedidos de antecipação de tutela e que, na maioria dos casos, houve indeferimento dos pedidos de liminar (com grande insegurança jurídica para todos); 63,33% dos processos analisados foram julgadas improcedentes ou extintas; 17,81% dos processos analisados não foram sentenciados após mais de cinco anos de sua propositura; 80% dos processos sentenciados foram objeto de apelação para os Tribunais Regionais; 12,33% dos processos analisados foram objeto de recurso especial para o STJ; e 5,48% dos processos analisados foram objeto de recurso extraordinário para o STF.

O Ministério da Saúde deu um passo importante para tentar alterar esse cenário de judicialização dos conflitos regulatórios entre os Conselhos Profissionais por meio da criação da CRTS em 2004, entidade colegiada e de caráter consultivo (Brasil, 2006aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 174, de 27 de janeiro de 2006. Reestrutura a Câmara de Regulação do Trabalho em Saúde. Brasília, DF, 2006a. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0174_27_01_2006.html >. Acesso em: 25 ago. 2015.
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). A CRTS foi criada no âmbito da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde do Ministério da Saúde (SGTES-MS) com três atribuições principais: (1) debater ações de regulação profissional para as profissões e ocupações da área de saúde; (2) sugerir mecanismos de regulação profissional da área de saúde; e (3) sugerir iniciativas legislativas visando regular o exercício de novas profissões e ocupações na área de saúde.

Sua composição reúne representantes do Ministério da Saúde, do Ministério do Trabalho e Emprego, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass); do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems); da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); dos 13 Conselhos Profissionais da Área da Saúde; de entidades científicas de profissões da área de saúde; e das entidades nacionais dos trabalhadores da área de saúde.

Importante lembrar que a Portaria que criou a CRTS foi judicializada no STJ, em Mandado de Segurança impetrado pelo Conselho Federal de Farmácia em face do Ministro de Estado da Saúde (Brasil, 2006aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 174, de 27 de janeiro de 2006. Reestrutura a Câmara de Regulação do Trabalho em Saúde. Brasília, DF, 2006a. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0174_27_01_2006.html >. Acesso em: 25 ago. 2015.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
). A despeito de a ação ter sido julgada improcedente pelo tribunal, parece até paradoxal que um órgão criado para solucionar extrajudicialmente os conflitos regulatórios seja ele mesmo a causa de um conflito que foi judicializado. No entanto, o que essa ação judicial nos revela é que, na realidade do modelo regulatório brasileiro, a judicialização tornou-se uma prática comum e rasteira para a solução de quaisquer conflitos regulatórios no campo da regulação do trabalho em saúde.

Assim, a norma que criou a CRTS ainda está vigente, não tendo sido objeto de revogação específica e tendo sua legalidade reconhecida pelo STJ. No entanto, a Câmara não tem atuado nos últimos anos em razão das turbulências políticas vividas pelo país, em especial após 2016 e de uma opção explícita do Governo Federal entre 2018 e 2022 de não valorizar colegiados participativos no âmbito da administração pública federal. Resgatar esse importante espaço de diálogo interinstitucional mostra-se um caminho necessário para o aperfeiçoamento da regulação do trabalho em saúde no Brasil.

A regulação da formação de ensino superior em saúde

No que se refere à regulação da formação de ensino superior para as profissões de saúde que exigem esse nível de escolaridade, vale destacar que o modelo regulatório brasileiro aponta para uma preponderância da União na definição das Diretrizes Curriculares, bem como na supervisão e avaliação dessas instituições, por meio do Ministério da Educação (Brasil, 2023BRASIL. Decreto nº 11.358, de 1 de janeiro de 2023. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Saúde e remaneja cargos em comissão e funções de confiança. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11358.htm >. Acesso em: 14 fev. 2023
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Assim como ocorre com a regulação do exercício profissional das profissões de saúde, a regulação da formação em saúde também é fragmentada federativamente. A diferença é que, nesse campo regulatório, a União concentra maiores poderes e competências em uma única instituição, que é o Ministério da Educação. Ambas as competências se encontram, majoritariamente, sob a competência do setor de educação, enfraquecendo a capacidade do Estado brasileiro de planejar adequadamente a formação de profissionais para o sistema de saúde brasileiro.

Supreendentemente, o Ministério da Saúde tem apenas uma participação acessória e lateral nos processos decisórios estratégicos sobre ao menos três dos principais aspectos que emergem desse campo regulatório: a autorização para funcionamento de novas instituições de ensino superior; a autorização para a abertura de novos cursos, seja de profissões já consolidadas, seja para novas profissões de saúde; e a definição das Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em saúde. As definições regulatórias ocorrem no âmbito do Conselho Nacional de Educação (Brasil, 1995BRASIL. Lei nº 9.131, de 24 de novembro de 1995. Altera dispositivos da Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, e dá outras providências. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 1995. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9131.htm >. Acesso em: 14 fev. 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
) e no âmbito da Comissão Nacional de Residências Médicas (Brasil, 2011BRASIL. Decreto nº 7.562, de 15 de setembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Residência Médica e o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de instituições que ofertam residência médica e de programas de residência médica. Brasília, DF: Presidência da República, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7562.htm >. Acesso em: 14 fev. 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Em ambos os casos, o poder decisório do Ministério da Saúde é frágil (para não dizer nulo), sem força suficiente para que as pautas mais relevantes de interesse da saúde pública brasileira sejam consideradas pelo Ministério da Educação no exercício dessas competências.

No que se refere à fragmentação federativa da regulação da formação em saúde no Brasil, o ordenamento jurídico divide o sistema de ensino nacional em três esferas: Federal, Estadual e Distrito Federal, e Municipal. A legislação prevê tratamentos específicos para cada sistema de ensino, dependendo da sua esfera de atuação. Assim, a regulação, supervisão e avaliação das Instituições de Ensino Superior (IES) e dos cursos superiores serão determinados de acordo com essa divisão federativa.

A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino. Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função. Cada um dos sistemas federativos de ensino tem uma regulação específica, sendo articuladas por alguns mecanismos estipulados pela legislação aplicável.

A Secretaria de Educação Superior exerce a atividade de supervisão das IES e dos cursos de graduação (art. 21 do Decreto n. 11.342/2023). Dentro da estrutura do Ministério da Educação merecem destaque, além da Secretaria de Educação Superior, a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) (art. 25, do Decreto n. 11.342/2023) e a Diretoria de Política Regulatória (art. 28, do Decreto n. 11.342/2023).

Nesse cenário regulatório, compete ao Ministério da Educação, dentro de suas estruturas, definir a regulação sobre temas estratégicos, tais como: as Diretrizes Curriculares Nacionais; o sistema de avaliação das instituições de ensino superior e dos cursos de profissões de saúde; a normas referentes à abertura, acompanhamento e avaliação dos cursos de pós-graduação (incluindo as residências médicas) e; as especialidades reconhecidas para o exercício de cada profissão (incluindo formação especializada), que hoje estão fortemente delegadas pelo Ministério da Educação aos Conselhos Profissionais.

Diante das necessidades de saúde da população brasileira, e considerando que é o Ministério da Saúde o órgão federal tecnicamente competente para a definição dos conteúdos da regulação dos temas estratégicos da formação em saúde no Brasil, é fundamental um redesenho institucional para que o Ministério tenha maior poder de participação e deliberação no processo dessa regulação. É preciso formar profissionais de saúde capazes de atender às demandas dos sistemas público e privado de saúde do Brasil, e a regulação estatal da formação dos profissionais de saúde deve priorizar a atuação no SUS, a fim de responder às principais demandas de saúde da população brasileira com eficácia e qualidade.

Considerações finais

A regulação estatal sobre as profissões de saúde é fundamental para que o exercício profissional esteja adequado às necessidades de saúde da população. Regular adequadamente a formação, o exercício profissional e as relações de trabalho dos profissionais de saúde é um imperativo para que se possa induzir a sociedade como um todo - setor saúde, setor educacional, profissionais liberais da área da saúde - para o atendimento adequado do sistema de saúde brasileiro. Uma boa regulação também é fundamental para se coibir condutas inadequadas ou que contrariem o interesse público no âmbito da sociedade.

Para que seja eficaz, é preciso integrar a regulação das profissões de saúde com as Políticas de Saúde. A adequação da formação e do exercício profissional no campo da saúde aos princípios e objetivos do SUS e do Estado Democrático de Direito brasileiro é o único caminho possível para que o direito à saúde, expressamente protegido pela CF, seja de fato realizado.

A autonomia dos Conselhos Profissionais é fonte de qualificação e controle do exercício profissional, mas também pode ser fonte de conflitos, reservas de mercado e interesses corporativos. Para que se possa ajustar o modelo de regulação do trabalho em saúde ao interesse público é fundamental o aperfeiçoamento das instâncias colegiadas participativas que atuam no processo regulatório, tais como a CRTS e a Mesa de Negociação Permanente do SUS, a fim de que se tornem mais democráticos e participativos, e para que suas deliberações tenham maior influência nas decisões regulatórias tomadas pelas autoridades competentes do Ministério da Saúde, dos Conselhos Profissionais e do Ministério da Educação.

A busca por soluções extrajudiciais para os conflitos regulatórios entre as diversas profissões de saúde é, igualmente, um caminho necessário a ser percorrido, seja reforçando as competências dos órgãos colegiados citados e já existentes, seja criando outros espaços de negociação e deliberação administrativa desses conflitos. É preciso encontrar caminhos mais inteligentes para equilibrar os interesses corporativos com o interesse público definido nas Políticas, sem necessitar recorrer ao Poder Judiciário quando o conflito se instala. A supremacia do interesse público sobre o individual ou corporativo deve sempre prevalecer como regra hermenêutica básica de solução desses conflitos, seja para garantir um serviços profissional eficaz, seguro e de qualidade, seja para assegurar a adequada execução das políticas públicas de saúde.

Ainda assim, tendo em vista a inafastabilidade do Poder Judiciário para a solução de conflitos no âmbito do Estado Democrático de Direito brasileiro, e tendo em vista que o atual modelo enseja uma judicialização rotineira dos conflitos regulatórios entre as profissões de saúde, também mostra-se recomendável a aproximação do Poder Executivo com o Poder Judiciário, para que entabulem discussões técnicas sobre os tipos de conflitos de regulação de profissões judicializadas e as melhores formas de solução articulada entre os poderes.

Finalmente, a emergência da saúde digital e da inteligência artificial, com sua inevitável incorporação ao trabalho em saúde no século XXI, irá demandar do Estado brasileiro uma capacidade regulatória ágil e eficaz, capaz de atualizar-se rapidamente aos avanços das novas tecnologias em saúde e suas consequências para o trabalho na área. Nesse sentido, destacam-se como temas regulatórios urgentes a adequada regulação do teletrabalho em saúde, a proteção dos dados pessoais no âmbito dos grandes bancos de dados de saúde atualmente existentes e a adequada regulação da formação e do exercício profissional para o uso e aplicação das novas tecnologias de saúde que utilizam de inteligência artificial.

Como se vê, a regulação do trabalho em saúde em tempos complexos e instáveis como os que vivemos exige reflexão crítica aprofundada do atual modelo de regulação no país, criatividade para a criar soluções inovadoras eficazes e coragem para implantar inovações capazes de equilibrar os interesses corporativos e econômicos com o interesse público inscrito na CF, na legislação brasileira e nas políticas públicas do SUS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2023
  • Aceito
    10 Maio 2023
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