Resumo
O artigo parte do pressuposto que o discurso curricular oficial intenta hegemonizar uma determinada concepção de Ensino. A partir daí submete à análise cultural os documentos nacionais do Ensino Médio para a Educação Física publicados nos últimos 25 anos. Sem estabelecer comparações, continuidades e rupturas, observa que cada qual procura responder às questões apresentadas pelas condições de contorno, desconsiderando a produção científica disponível. Assim, conclui que os Parâmetros Curriculares atribuem ao componente o papel de formador de sujeitos ativos, as Orientações Curriculares fragilizam e confundem a concepção de Educação Física na área das Linguagens e a Base Nacional Comum Curricular submete a cultura corporal à lógica do mercado.
Políticas Públicas; Currículo; Educação Física
Abstract
The article begins by assuming that the official curricular discourse tends to hegemonize certain conceptions of teaching. From there on, it submits the national documents on Secondary Education for Physical Education published in the last 25 years for cultural analysis. Without establishing comparisons, continuities, and ruptures, he observes that each seeks to answer the questions presented by the boundary conditions, disregarding available scientific production. Thus, it concludes that the Curricular Parameters attribute to the component the role of training active subjects, the Curricular Guidelines weaken and confuse the conception of Physical Education in the area of Languages, and the National Common Curricular Base subjects body culture to the logic of the market.
Public Policies; Curriculum; Physical Education
Resumen
El artículo parte del supuesto que el discurso curricular oficial intenta hegemonizar una determinada concepción de la enseñanza. A partir de ahí, somete al análisis cultural los documentos nacionales de Educación Secundaria para la Educación Física publicados en los últimos 25 años. Sin establecer comparaciones, continuidades y rupturas, observa que cada uno busca responder a los interrogantes que presentan las condiciones de contorno, desconociendo la producción científica disponible. Así, se concluye que los Parámetros Curriculares atribuyen al componente el rol de formar sujetos activos, los Lineamientos Curriculares debilitan y confunden la concepción de la Educación Física en el área de Lenguajes y la Base Curricular Común Nacional sujeta la cultura corporal a la lógica del mercado.
Políticas Públicas; Plan de Estúdios; Educación Física
1 Introdução
É sabido que um discurso curricular oficial exerce grande influência na divulgação e fortalecimento de noções sobre o Ensino do componente ao qual se refere, muito embora isso não represente um processo determinante, tampouco definitivo. Em que pesem as singularidades e acepções específicas, um texto com tal propósito anuncia, por meio das concepções embutidas, o cidadão ideal para construir ou consolidar um determinado modelo de sociedade, bem como os meios para operar tal empreitada (Lopes, 2015).
Os significados que os discursos buscam fixar são atravessados por contingências e precariedades. As primeiras se explicam porque toda experiência é sempre contextualizada, histórica, sua compreensão não retrocede a um fundamento, a uma origem única e as segundas aludem à ideia de que qualquer posicionamento pode ser contestado por uma força contrária (Mendonça, 2015). Justamente por isso, um “discurso hegemônico não pode ser entendido como o único, último, pronto e acabado, pois os sentidos que ele produz são sempre parciais, sujeitos a desestabilizações e em constantes lutas por significação” (Destro, 2019, p. 74).
Lopes (2015, p. 139) mobiliza esse raciocínio para interpretar o discurso curricular oficial. Em geral, discursos criam e dão circulação a significados contingentes e precários ao currículo, o que abre espaço para infinitas traduções: “tenta-se normatizar o que, para se instituir, escapa à normatização. Tenta-se frear a tradução do que sempre será traduzido”. No mesmo instante em que documentos curriculares são publicados, as normatividades passam a ser disputadas e hegemonizadas, porém, nem os currículos, tampouco as normas, possuem alicerces epistemológicos sólidos, capazes de justificação fora da luta política que envolve as nossas próprias condições de existência.
Essas considerações autorizam a pensar qualquer documento curricular oficial como tentativa de hegemonizar determinados discursos, a fim de normatizar o Ensino, delimitar os contornos das teorias que lhes dão sustentação e fixar sentidos para um dado componente num determinado segmento da Educação Básica.
Partindo dessas premissas, o presente artigo objetiva interpelar os discursos da Educação Física que disputaram a hegemonia nos documentos curriculares publicados pelo Ministério da Educação nos últimos 25 anos. Sem qualquer intenção de anunciar a verdade definitiva ou a “melhor interpretação”, submete os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio – PCNEM (Brasil, 1999), as Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Ocem (Brasil, 2006) e a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (Brasil, 2018) à análise cultural. Nessa vertente investigativa, a preocupação recai no modo como um conjunto de forças opera para produzir e disseminar significados acerca das coisas do mundo, inferindo e avaliando não só as condições de emergência de um determinado discurso, como seus possíveis efeitos.
Para Wortmann (2011), a análise cultural está envolvida com o exame de artefatos e práticas culturais para neles buscar representações e discursos que produzem diferentes significados. Tal representação é tomada como uma prática de significação capaz de estruturar nosso modo de olhar, organizar, agrupar, classificar e produzir discursos.
Cherryholmes (1993) detalha as ações que, adotadas no todo ou em partes, especificam a análise cultural de políticas curriculares: 1) relacionar currículo e condicionantes históricos; 2) perguntar quais interesses são atendidos e quais são excluídos; 3) observar quem participa com autoridade do discurso curricular; 4) interpretar as aprendizagens previstas pelo texto curricular; 5) identificar ideologias que influenciaram os princípios organizadores do currículo e 6) atentar à ambiência que favoreceu a constituição, reconstituição e legitimação de tópicos curriculares.
Em suma, ciente das relações de poder envolvidas, compete ao analista cultural mostrar como se processaram as fabricações/invenções dos significados inerentes à política curricular em questão, bem como descrever o contexto que deu guarida aos seus jogos de linguagem.
A análise cultural dos documentos curriculares nacionais do Ensino Médio propiciou entremear posicionamentos, enunciações e saberes, sem esperar que o resultado ultrapassasse o simples devir. Devir constituído pela imersão na produção curricular a respeito do Ensino da Educação Física, para compreender a maneira como o discurso oficial significa o componente nessa etapa da escolarização obrigatória.
Antes de adentrar às análises, é importante mencionar que este estudo chama a atenção para as políticas curriculares da Educação Física no Ensino Médio. Em que pese toda a grita em torno das recentes reformas educacionais, é interessante conjecturar as razões de um certo desinteresse da comunidade científica sobre o assunto. Afinal, como bem identificou Sá (2019), não é segredo o abandono docente, a redução da carga horária e a péssima opinião que os estudantes nutrem sobre as aulas do componente nessa etapa da Educação Básica. Por vezes, julgam-nas desnecessárias ou lhes atribuem sentidos dispersos como relaxar, recrear-se, treinar para competições etc.
2 A Educação Física nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM)
A primeira edição do documento foi publicada pela extinta Secretaria de Educação Média e Tecnológica do Ministério da Educação, em 1999. Enquanto o Ensino Fundamental dedicou cada brochura a um componente curricular, o texto curricular do Ensino Médio preferiu a organização em áreas, cada qual reunida em volume específico: Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias e Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. No último figuram os textos que orientam o Ensino de Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna, Artes, Informática e Educação Física. Uma encadernação contendo as Bases Legais desse segmento completa a publicação. Nele, entre outras questões, se explicitou que “as atividades físicas e desportivas [eram tomadas] como domínio do corpo e como forma de expressão e comunicação”.
No ano seguinte, o Ministério da Educação tratou de publicar o documento simultaneamente nas versões impressa e digital, sendo este o formato mais conhecido e ainda disponível no portal eletrônico1 do órgão. O texto dedicado à Educação Física repete a estrutura das demais disciplinas. Em poucas páginas e sob o título “Conhecimentos da Educação Física” constam os argumentos que fundamentam a concepção que perpassa a proposta e, ao final, são relacionadas as “Competências e habilidades a serem desenvolvidas”.
Contrariando o objetivo dessa etapa que, segundo o anunciado no Artigo 35 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394 de 20 de dezembro de1996 (Brasil, 1996), seria “a consolidação e aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos”, os primeiros parágrafos dos PCNEM não deixam dúvida que no final do século passado o modelo esportivista hegemônico no Ensino Médio dava sinais de esgotamento:
Podemos constatar uma forte inclinação ao trabalho com os esportes e, principalmente, a mesma metodologia de Ensino – a execução de fundamentos, seguida de vivência de situações de jogo. Contudo, é possível constatar em algumas escolas um aprofundamento tático das modalidades, o que nos dá a impressão de que o sentido da Educação Física passa a ser o comportamento estratégico durante a prática desportiva. Essa especialização, no entanto, não se mostra eficaz pois, de certa forma, podemos dizer que só pode ‘jogar taticamente’ quem domina os fundamentos do jogo. Não conseguimos imaginar um sistema 4 x 2 no voleibol, se os alunos não internalizaram a recepção, o levantamento e a cortada. Tem-se então, a característica recreativa da maior parte das aulas (p. 65-66).
O discurso curricular responsabiliza o Ensino esportivo pelo afastamento dos estudantes das aulas, o que não significa desinteresse dos jovens pelas práticas corporais, afinal muitos acumulam experiências extraescolares com as brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas que lhes trazem satisfação, incremento das relações sociais, acesso a saberes variados, entre outras experiências positivas.
Na visão anunciada, a Educação Física deve alinhar-se aos objetivos do Ensino Médio, isto é, proporcionar aos estudantes o “aprofundamento da sistematização do conhecimento”, afinal, é nessa etapa que “o aluno começa a compreender que há propriedades comuns e a lidar com a regularidade científica” (p. 67). Apoiados nesse argumento, os PCNEM assumem os princípios do movimento europeu do fim do século que objetivava a promoção da saúde na escola através da melhoria da aptidão física do alunado. Com esse sentido, afirmam que
[...] uma Educação Física atenta aos problemas do presente não poderá deixar de eleger, como uma de suas orientações centrais, a da Educação para a saúde. Se pretende prestar serviços à Educação social dos alunos e contribuir para uma vida produtiva, criativa e bem-sucedida, a Educação Física encontra, na orientação pela Educação da saúde, um meio de concretização de suas pretensões (p. 68).
O currículo federal parte do pressuposto que a função da Educação Física é formar praticantes de atividades físicas, e não mais espectadores como, na interpretação oficial, vinha acontecendo. A defesa dessa concepção dá vazão ao discurso alarmista que vincula o sedentarismo juvenil à obesidade e aumento da incidência de doenças cardiovasculares. Tal discurso curricular estabelece como meta prioritária a formação de um certo tipo de sujeito, aquele que gerenciará sua rotina de exercícios físicos e hábitos alimentares com vistas a bem cumprir suas tarefas laborais sem afastar-se do posto de trabalho ou despender os recursos estatais (César; Duarte, 2009).
A representação acerca do papel que a escola pode exercer na promoção de um estilo de vida ativo passou a ser anunciada em meados da década de 1990. A chamada “pedagogia do fitness”2, procura impor a adoção de uma dieta equilibrada e a incorporação da atividade física regular como forma de prevenir as chamadas doenças hipocinéticas.
A justificativa reside nos efeitos do avanço tecnológico na modificação de hábitos, o que acaba por desencadear processos de estresse, ansiedade, frustração e depressão, prejudicando as relações interpessoais. Sem falar nos problemas respiratórios e musculares, distúrbios imunológicos, hipertensão arterial, arteriosclerose e cardiopatias. Na visão oficial, essas questões podem ser enfrentadas através de “programas escolares que valorizem o aprendizado e a prática de exercícios de elevação e manutenção da frequência cardíaca em limites submáximos, alongamento e flexibilidade, relaxamento e compensação” (p. 71).
Ademais, em termos didáticos, os PCNEM reconhecem a importância de alinhar os objetivos pretendidos ao perfil dos estudantes. Para tanto, amparam-se na flexibilidade permitida pela LDB para sugerir, entre outros, que os estudantes trabalhadores do Ensino noturno participem de programas de promoção de exercícios físicos com vistas à “reposição de energias, estímulos de compensação e redução de cargas resultantes do cotidiano profissional” (p. 71). Repudiando o senso comum, apoiam-se em resultados de pesquisas para afirmar que exercícios noturnos estimulam a secreção de endorfina, gerando efeitos positivos no organismo.
A narrativa oficial institui uma relação direta entre propostas como essa e a recuperação do prestígio da Educação Física. Aconselha que os resultados dos projetos realizados ganhem visibilidade em eventos como feira de ciências, na confecção de painéis, cartazes ou na criação de eventos exclusivos como semana da saúde, sábados ativos etc.
Ao longo das páginas, as recomendações metodológicas se misturam aos argumentos conceituais. Desde a importância do trabalho em grupo, até sugestões de como envolver os estudantes na busca de respostas às dúvidas sobre os assuntos abordados. Na maioria dos casos, o documento oficial busca apoio no construtivismo pedagógico como referencial das ações didáticas:
A proposição pelo professor de atividades de complexidade progressiva leva a uma necessidade de organização mental por parte do aluno. Constantes desafios aos alunos provocam desequilíbrios que precisam ser resolvidos e é nessa necessidade de voltar ao equilíbrio que ocorre a construção de pensamento (p. 79).
Com o mesmo sentido, os PCNEM explanam:
É a atividade que deve adequar-se ao aluno e não o aluno à atividade. Ou seja, o professor, ao se manter rígido em atividades desinteressantes aos alunos, termina por afastá-los da disciplina. Não podemos, no entanto, esquecer que a falta de interesse se origina, na maioria das vezes, no desconhecimento. Nesse sentido, o professor é responsável pela aproximação do educando a novos conhecimentos que contribuam com sua formação (p. 80-81).
No excerto acima são perceptíveis as influências do tecnicismo educacional, o qual responsabiliza o docente pela promoção de atividades que motivem a aprendizagem dos estudantes. Nessa toada, causa estranheza que em meio ao discurso da Educação para a saúde, sobressaia a intenção de que, concluída a escolarização obrigatória, o cidadão possua sólidos conhecimentos sobre a cultura corporal. Afinal, como bem demonstraram Neira e Gramorelli (2017), esses saberes são priorizados pelas propostas críticas ou pós-críticas “O aluno do Ensino Médio, após, ao menos, onze anos de escolarização, deve possuir sólidos conhecimentos sobre aquela que denominamos cultura corporal. Não é permitido ao cidadão do novo milênio uma proposta acrítica diante do mundo” (p. 73).
Borges e Neira (2023) sinalizaram que tal incongruência apenas enfraquece o viés crítico do conceito. Para completar, os PCNEM afirmam que o corpo é modo e meio de integração do indivíduo no mundo. É com o corpo que ele ouve, vê, fala, percebe e sente as coisas. Também dizem que as relações se estabelecem com os outros corpos por meio da comunicação e da linguagem corporal. “Os gestos, as posturas e as expressões faciais são criados, mantidos ou modificados em virtude de o homem ser um ser social e viver num determinado contexto cultural” (p. 75). A miscelânea de referenciais não para por aí. Nota-se, inclusive, a tentativa de travar um diálogo com a Semiótica para apresentar o corpo como construto cultural, proliferando as menções à ideia de que a leitura dos gestos consiste em acessar os seus verdadeiros significados. “Sentir as emoções, transmitir vontades, decidir sobre o que quer fazer e explorar as potencialidades com vigor são mensagens emitidas pelos alunos por meio dos movimentos corporais” (p. 75).
O ter e o poder corporal ainda predominam sobre o ser-corpo que pensa, age, sente e se comunica pelos seus gestos e expressões. O complexo organismo humano se relaciona com o mundo movendo-se. Quando o corpo se move, os sentidos captam informações. As terminações neurais enviam informações para os córtices sensoriais da visão, da audição, do paladar, do olfato e das sensações somáticas. Os sentidos possibilitam ler o mundo (p. 76).
A certa altura, o texto faz uma inflexão, abandona a Semiótica e passa a pautar-se na Antropologia Social, influenciando as noções de corpo, linguagem corporal e, por conseguinte, a função da Educação Física. “Em primeiro lugar, deve-se levar em conta a relação do corpo e meio social: é aqui que se inserem o beijo, o abraço, o jogo de futebol, a brincadeira de criança ou os códigos motores utilizados por determinada comunidade” (p. 78). Literalmente, os PCNEM projetam para o aluno do Ensino Médio “uma ampla compreensão e atuação das manifestações da cultura corporal” (p. 78). Assim, cabem propostas como “a elaboração de jogos, resgate de brincadeiras populares, narração de fatos e elaboração de coreografias etc.” (p. 78).
O flerte com as Ciências Humanas se explica pela tentativa de justificar a inserção da Educação Física na área das Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. É justo lembrar que o referencial disponível à época, conforme observou Bracht (1999), não possibilitava ir além de elucubrações teóricas. Prova disso é a absoluta desconexão entre elas e as competências e habilidades previstas, majoritariamente alinhadas à Educação para a saúde. Ilustrações não faltam. “Assumir uma postura ativa na prática de atividades físicas, e consciente da importância delas na vida do cidadão” (p. 87) foi classificada como competência de representação e comunicação, enquanto “compreender o funcionamento do organismo humano de forma a reconhecer e modificar as atividades corporais, valorizando como melhoria de suas aptidões físicas” (p. 87) é uma competência voltada à investigação e compreensão.
Considerando que o debate cultural se instalara no campo, não há como negar que os PCNEM de Educação Física constituem um retrocesso ao ressuscitar, mesmo que encobertas pelo discurso da Educação para a saúde, as velhas preocupações com a aptidão física. Em sua defesa, é possível dizer que tal apelo decorreu do esvaziamento que o componente enfrentava no Ensino Médio. Conforme o próprio documento, toda a crítica (mal elaborada e tendenciosa) despejada pelos setores acadêmicos sobre a prática pedagógica realizada nas escolas “não colocara nada no lugar”. Por outro lado, a farta disseminação de discursos sobre os benefícios da atividade física para a saúde, a popularização das academias de ginástica, o culto a uma determinada estética corporal e o fortalecimento do campo de atuação não formal da Educação Física, levaram muitos professores a cortejar as Ciências Biológicas. O prenúncio dessa digressão já despontava nos PCN do Ensino Fundamental, como se depreende da inserção do bloco de conteúdos “Conhecimentos sobre o corpo” naquele texto curricular.
3 A Educação Física nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (Ocem)
O documento publicado pela Secretaria de Educação Básica (SEB) em 2006 e ainda disponível no portal eletrônico3 do Ministério da Educação possui três volumes: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e suas Tecnologias. Apesar de pretender contribuir para o diálogo entre professor e escola a respeito da prática docente, não entregou o que prometeu. O texto recebeu pouca atenção, sendo acessado quase que exclusivamente pelos interessados no assunto e setores ligados às políticas públicas para o Ensino Médio (Lopes, 2008). No entendimento da autora, as Ocem consistem num acentuado diálogo com os documentos disciplinares dos PCNEM, repetindo, por exemplo, a configuração em áreas. Detentora de estrutura própria, a Educação Física foi alocada nas “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”.
Espanta não só a presença, como também, a extensão das críticas à forma esportiva/competitiva como método e princípio norteador das práticas pedagógicas. Os argumentos reproduzem os PCNEM, o que soa como tentativa inócua de marcar uma posição. Na introdução, as Ocem se autoproclamam produto do esforço “daqueles que compareceram aos seminários, dos que participaram da rede virtual e de eventos científicos e acadêmicos em todo o Brasil, e da contribuição dos leitores críticos” (p. 214).
Enquanto pontos de partida para pensar a Educação Física no Ensino Médio, o discurso oficial aloca as práticas corporais no processo educativo como “chaves de leitura do mundo”, ou seja, consideram-nas uma via para acessar a leitura do real, pois “as práticas corporais possuem valores nelas mesmas, sem a necessidade de serem ‘traduzidas’ para outras linguagens para obter o seu reconhecimento” (p. 218). Na mesma linha de raciocínio, revela a inspiração estruturalista que perpassa o conceito de práticas corporais:
Por meio do movimento expressado pelas práticas corporais, os jovens retratam o mundo em que vivem: seus valores culturais, sentimentos, preconceitos, etc. Também “escrevem” nesse mesmo mundo suas marcas culturais, construindo os lugares de moças e rapazes na dinâmica cultural. Por vezes, acabam eles próprios se tornando “modelos culturais”, nos quais uma certa “ideia de juventude” passa a ser experimentada, copiada e vivida também por outras gerações (p. 218).
O interessante é perceber que ao retomar o tema na seção destinada aos sujeitos do Ensino Médio, as Ocem contradizem o afirmado quando assumem que “as formas como cada um dos jovens enxergam a escola e suas possibilidades de exercícios de práticas corporais são várias: como forma de ascensão social; como espaço de encontro, local de expressão e troca de afetos; como lugar de tédio e de rotinas sem sentido, entre outros” (p. 220). Posicionamento reiterado mais adiante: “entendemos que um dos papéis da Educação Física é compreender e discutir junto a esses jovens os valores e significados que estão por trás dessas práticas corporais” (p. 223). Entretanto, resvala novamente ao enfatizar que:
[...] o desafio de primeira hora passa a ser a disciplina se transformar num componente curricular que privilegie a movimentação dos jovens no sentido oposto ao discurso da competição de mercado, aos modismos acerca do corpo e às práticas prontas e vendidas (p. 223).
O documento oscila entre uma perspectiva estruturalista da linguagem que fixa significados e concebe a experiência escolar como lócus para transmiti-los aos alunos, e uma perspectiva que arrisca uma aproximação com o pós-estruturalismo, dado que sinaliza que os significados atribuídos às práticas corporais se encontram em disputa e, nesse caso, precisam ser conhecidos e discutidos na escola. Os excertos abaixo explicitam a gangorra conceitual.
O que se espera é que os alunos do Ensino Médio tenham a oportunidade de vivenciarem o maior número de práticas corporais possíveis. Ao realizarem a construção e vivência coletiva dessas práticas, estabelecem relações individuais e sociais, tendo como pano de fundo o corpo em movimento. Assim, a ideia é de que esses jovens adquiram maior autonomia na vivência, criação, elaboração e organização dessas práticas corporais, assim como uma postura crítica quando esses estiverem no papel de espectadores das mesmas. Espera-se, portanto, que os saberes da Educação Física tratados no Ensino Médio possam preparar os jovens para uma participação política mais efetiva no que se refere à organização dos espaços e recursos públicos de prática de esporte, ginástica, dança, luta, jogos populares, entre outros (p. 224-225).
Dessa forma, tão importante quanto a decisão de se ensinar ou não um determinado esporte, dança, jogo, etc. é pensar que sentidos e significados são atribuídos a esse esporte, dança ou jogo pelos alunos nas aulas de Educação Física. Que significados culturais estão presentes em um jogo de futebol? Em um jogo de bocha? Em uma brincadeira de roda? Em uma dança de rua? O tratamento pedagógico dado a essas e a outras questões da cultura se reflete diretamente nas possibilidades de formação dos alunos e dos professores (p. 226).
Percebe-se, num primeiro momento, um certo caráter instrumental traduzido no papel que o componente desempenha na preparação dos jovens para organizar espaços e recursos, o que destoa do debate em torno dos sentidos e significados atribuídos às práticas corporais. A dificuldade de verter essa discussão para a sala de aula fica evidente quando lava as mãos e transfere a responsabilidade ao esperar que “as redes federal, estaduais, municipais ou cada escola ou conjunto de escolas possam formular outros documentos e avançar na perspectiva de definição de conjuntos de conteúdos organizados e sistematizados a partir de interesses mais localizados” (p. 226). Ora, hoje se sabe que a definição e sistematização prévia de conteúdos é uma das facetas do mesmo tecnicismo educacional que políticas curriculares dessa monta quiseram suplantar.
O discurso alardeado no texto oficial contribui para a confusão conceitual instalada na área ao denominar, mais de uma vez, as práticas corporais como conteúdos da Educação Física. Algo que, como se pode notar nos fragmentos acima, soa paradoxal. Se as brincadeiras, ginásticas, jogos, lutas, esportes e danças são tratados metodologicamente dessa maneira (p. 229), não sobra espaço algum para as escolas definirem, organizarem e sistematizarem os saberes do componente.
Divergindo de muitas outras propostas curriculares da Educação Física, as Ocem não arrolam objetivos almejados ou expectativas de aprendizagem. Tal como anunciado na introdução do volume “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, a intenção é simplesmente apresentar um conjunto de reflexões que alimente a prática pedagógica. Nesse sentido, o texto cumpre o seu propósito ao introduzir, pela primeira vez e mesmo que seja de maneira superficial e confusa, a comunidade da área na discussão em torno da significação das práticas corporais. O que não é pouco se for considerado o contexto e a escassez de estudos sobre o assunto. A bibliografia disponível ao final do documento, por exemplo, não contém nenhuma obra que contemple essa discussão. Simplesmente chove no molhado, abandonando o professor interessado à própria sorte ou, o que é pior, submetido, mais uma vez, à crítica pela crítica que se instalou na academia após nas décadas de 1980 e 1990.
4 A Educação Física na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC)
Em 14 de dezembro de 2018, o ministro da Educação homologou a BNCC4, versão que incluiu, finalmente, a etapa do Ensino Médio. A primeira parte do documento contém a introdução, competências gerais para a Educação Básica, marcos legais, fundamentos pedagógicos e o pacto interfederativo, reproduzindo o documento da Educação Infantil e Ensino Fundamental publicado no ano anterior. Às explicações disponíveis naquele momento foram acrescentadas as especificidades do Ensino Médio. A estrutura compreende as áreas do conhecimento, detalhando as competências e habilidades a serem desenvolvidas, além dos componentes Matemática e Língua Portuguesa e as respectivas habilidades. Até aí, nenhuma surpresa. Convém lembrar que a Lei Federal nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, reformou o Ensino Médio e anunciou a obrigatoriedade dessas duas disciplinas5 nos cinco itinerários: Linguagens, Ciências Humanas, Matemática, Ciências da Natureza e Formação Técnica e Profissional.
As competências gerais da BNCC se desdobram em competências específicas para cada área e estas, por sua vez, são fracionadas em habilidades. Conforme já se disse, apenas Língua Portuguesa e Matemática possuem habilidades específicas. Como os conhecimentos historicamente trabalhados nas aulas de Arte, Educação Física, Física, Química, Biologia, Sociologia, História, Geografia, Filosofia e Língua Inglesa foram exageradamente diluídos, a leitura demanda um certo esforço de abstração para identificar no emaranhado das habilidades das áreas aquelas que contemplem os conteúdos de uma certa disciplina.
O texto introdutório da área das “Linguagens e suas Tecnologias” reserva apenas cinco parágrafos para explicitar a concepção de Educação Física. Diga-se de passagem, que, além de insuficiente, é extremante confuso.
A área contribui para formar sujeitos capazes de usufruir, produzir e transformar a cultura corporal de movimento, tomando e sustentando decisões éticas, conscientes e reflexivas sobre o papel das práticas corporais em seu projeto de vida e na sociedade. A cultura corporal de movimento é entendida como o conjunto de práticas culturais em que os movimentos são os mediadores do conteúdo simbólico e significante de diferentes grupos sociais. Por isso, sua abordagem na Educação básica exige que as experiências corporais dos estudantes sejam integradas à reflexão sobre a cultura corporal de movimento (p. 475).
A primeira frase do parágrafo quer anunciar a área das Linguagens e não o componente. O problema reside no entendimento de cultura corporal de movimento presente na segunda frase. Ora, os movimentos não são mediadores de conteúdo algum. São os grupos sociais que lhes conferem significados. O que quer dizer amarrar o sapato se não houver alguém (quem amarra ou quem vê alguém amarrando) para interpretá-lo mobilizando o significado partilhado com outros sujeitos? A questão se agrava porque, na atualidade, há quem compreenda que a expressão “cultura corporal de movimento” reduz o conceito aos saberes que implicam movimentação, deixando de fora toda a produção discursiva que abarca as práticas corporais. Aliás, a noção de práticas corporais quando vinculada à ideia de “movimento” também sofre amputações (Borges; Neira, 2023). Por essa razão, a terminologia mais adequada e já analisada na literatura seria “cultura corporal”, da mesma forma que ao invés de movimento ou movimentação, se a Educação Física figura na área das Linguagens, melhor seria “gesto” ou “gestualidade”, estes sim, passíveis de leitura, significação e produção (Neira; Nunes, 2022). Logo, a Educação Física não estudaria movimentos como “amarrar o sapato”, mas sim, as práticas corporais que, por sua vez, são produtos da gestualidade, textos da cultura, traços das identidades culturais dos grupos sociais. A depender do contexto, os gestos podem ser lidos e realizados de diferentes maneiras.
A miscelânea prossegue: “Educação básica exige que as experiências corporais dos estudantes sejam integradas à reflexão sobre a cultura corporal de movimento” (Brasil, 2018, p. 475). Isso quer dizer que experiências corporais como amarrar o sapato, levar o copo à boca, dormir, tomar banho etc. devem ser estudadas nas aulas do componente. Vale a pena reiterar: a Educação Física não tematiza qualquer experiência motora, mas sim as práticas corporais, isto é, as brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas. Todas elas, na teorização cultural, são entendidas como jogos (Neira, 2010).
A BNCC do Ensino Médio promete, mas não cumpre: afirma, por exemplo, criar: “oportunidades para que os estudantes compreendam as inter-relações entre as representações e os saberes vinculados às práticas corporais, em diálogo constante com o patrimônio cultural e as diferentes esferas/campos de atividade humana”, assim como, promover uma “reflexão crítica sobre padrões de beleza, exercício, desempenho físico e saúde; das relações entre as mídias, o consumo e as práticas corporais; e da presença de preconceitos, estereótipos e marcas identitárias” (p. 475) e, finalmente:
Tratar de temas como o direito ao acesso às práticas corporais pela comunidade, a problematização da relação dessas manifestações com a saúde e o lazer ou a organização autônoma e autoral no envolvimento com a variedade de manifestações da cultura corporal de movimento permitirá aos estudantes a aquisição e/ou o aprimoramento de certas habilidades (p. 476).
O engodo é facilmente flagrado quando se confrontam os fragmentos citados com a única competência e suas três habilidades, onde, efetivamente, se visualizam saberes relativos às práticas corporais.
Competência específica 5: Compreender os múltiplos aspectos que envolvem a produção de sentidos nas práticas sociais da cultura corporal de movimento, reconhecendo-as e vivenciando-as como formas de expressão de valores e identidades, em uma perspectiva democrática e de respeito à diversidade. [...]
(EM13LGG501) Selecionar e utilizar movimentos corporais de forma consciente e intencional para interagir socialmente em práticas da cultura corporal, de modo a estabelecer relações construtivas, éticas e de respeito às diferenças.
(EM13LGG502) Analisar criticamente preconceitos, estereótipos e relações de poder subjacentes às práticas e discursos verbais e imagéticos na apreciação e produção das práticas da cultura corporal de movimento.
(EM13LGG503) Praticar, significar e valorizar a cultura corporal de movimento como forma de autoconhecimento, autocuidado e construção de laços sociais em seus projetos de vida (p. 487).
O discurso transparece uma certa fragmentação (selecionar e utilizar movimentos) e instrumentalização das práticas corporais, dado que serão utilizadas para estabelecer relações de uma determinada maneira. Perscrutando detidamente a narrativa oficial, não se constata a aventada reflexão crítica sobre padrões de beleza, exercício, desempenho físico e saúde; das relações entre as mídias, o consumo e as práticas corporais. Embora seja desejável a problematização dos preconceitos embutidos nos discursos sobre as práticas corporais, é importante frisar que o desenvolvimento dessa habilidade depende de conhecimentos de ordem histórica, política, filosófica e sociológica, ausentes no documento.
O texto oficial do Ensino Médio despreza a condição exercida pelos estudantes como sujeitos da cultura e insiste em fixar os significados alusivos à cultura corporal. Ela própria, por sua vez, um terreno de disputas. Sendo assim, é simplesmente impossível levar uma pessoa a “significar” qualquer coisa de forma prévia. A cultura corporal é um território em que convivem diversas significações alusivas às práticas corporais, podendo ser tomadas, inclusive, como forma de autoconhecimento, autocuidado e construção de laços sociais. Assim sendo, o professor poderá, no máximo, organizar situações didáticas em que os educandos acessem tais significados. Já a sua incorporação é outra história.
Neira e Nunes (2022) apoiam-se em Derrida (1999) para explicar que a ocorrência social das práticas corporais coloca em circulação os significados partilhados pelos seus praticantes, que podem ser diferentes daqueles cultivados por outros grupos. Qualquer sujeito que trave contato com esses significados, interpretará com base no seu próprio repertório, estabelecendo um processo de ressignificação. O resultado pode ser a adesão aos novos significados, como também, a sua modificação, dissimulação ou negação.
Destarte, a questão fulcral, é entender o lugar que a BNCC pretende ocupar no cenário educacional quando, no seu texto introdutório, apresenta as habilidades a serem desenvolvidas como aprendizagens essenciais. Ora, quem pode arvorar-se a autoridade de definir o que todas as pessoas devem aprender? Ainda, a supressão dos conhecimentos da Educação Física (e dos demais componentes), aliada à preocupação com saberes instrumentais propagada na Reforma do Ensino Médio, leva a crer que está em marcha um projeto de escola voltado à mera formação de mão de obra, flexível o suficiente para adaptar-se às funções que exijam competências de complexidade reduzida.
5 Considerações
Muito embora qualquer prática discursiva possa ser submetida à análise cultural, a tarefa se mostra bem mais fácil quando o objeto em questão foi elaborado recentemente. Sempre existe o risco de ser desleal nas críticas a discursos do passado, pois o olhar contemporâneo se nutre das referências atuais. Em que pesem muitos outros deslizes, essa incorreção não foi cometida no presente trabalho.
À época da produção dos PCNEM atuava na Educação Básica, numa escola pública, com as turmas do Ensino Médio. Posso afirmar que o momento histórico era radicalmente distinto dos tempos hodiernos. Era iminente o desaparecimento da Educação Física nessa etapa da escolarização devido às leituras enviesadas da LDB 9.394/1996 em franca circulação. A preocupação com o aluno trabalhador do Ensino noturno não é por acaso. Ancorava-se em razões políticas, quais sejam, a defesa da permanência da Educação Física nesse segmento. Por isso, tudo o que pudesse colocar um ponto final nas aulas livres ou no absenteísmo que assolava o componente seria bem-vindo e plenamente justificável. A proposta expressa no documento fora experimentada com sucesso em algumas escolas paulistas e desfrutava de certa simpatia entre o professorado, obviamente influenciado pelas conexões da atividade física regular com a conquista de um estilo de vida saudável, amplamente divulgadas nos meios de comunicação. Se hoje esse argumento parece ultrapassado, nos anos 1990 a receptividade era bastante positiva, sobretudo quando se recuperam os interesses político-econômicos que sustentavam inúmeros programas que difundiam os benefícios da vida ativa. Naquele contexto, o poder executivo orquestrava um conjunto de políticas de cunho neoliberal perceptíveis no discurso curricular dos PCNEM. Nesse sentido, a pedagogia das competências soava como música aos ouvidos de muita gente e a Educação sucumbira de vez aos ditames do mercado (Macedo, 2002).
As Ocem percorreram uma trajetória distinta, mesmo porque o momento era outro. O país era governado por uma frente popular e a publicação do documento foi precedida por debates e contribuições. O Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte engajou-se de maneira destacada nessa frente, em especial, o seu “GTT Escola”. Em se tratando de uma entidade reconhecidamente influenciada pelo discurso crítico, o resultado não poderia ser diferente. Os problemas do documento residem na dificuldade de se fazer entender pelos professores, haja vista o distanciamento entre o enunciado e a ação (Soares Júnior; Romeiro, 2020). Sendo um texto de apoio à prática pedagógica, desconsiderar o que acontecia nas escolas e, principalmente, quem eram os professores da época, constituíram falhas imperdoáveis. Dizer de modo imperativo que se deve fazer isso ou aquilo, sem exemplificar ou apontar o caminho, pode ser fatal quando se pretende estabelecer uma política curricular. Ao que parece, o texto oficial deixou passar despercebido o fato que os cursos de formação daquela época ignoravam a inserção da Educação Física na área das Linguagens, o que obviamente dificultava a compreensão e execução da proposta.
A maior parte dessas considerações não cabem quando se mira a BNCC do Ensino Médio. A publicação do documento mal completou cinco anos e sua implementação encontra-se em curso. Logo, a análise realizada deu-se em meio ao calor dos acontecimentos indiscutivelmente impactados pela implementação do chamado Novo Ensino Médio. Aos olhos dos especialistas, não pairam dúvidas acerca da intenção dessa política curricular. Enquanto a produção científica identifica uma forte inclinação das propostas estaduais e municipais para uma Educação a favor das diferenças como um princípio basilar a ser incorporado pelas políticas curriculares (Neira, 2020), a concepção que perpassa o currículo federal submete a Educação à lógica do sistema econômico (Corti, 2019).
A contradição não poderia ser mais gritante. No campo da Educação Física diversos estudos e experiências demonstram como traduzir na prática princípios ético-políticos em prol de uma sociedade menos desigual. Negligenciar esses conhecimentos poderá perpetuar a confusão epistemológica e metodológica que mantém perspectivas de Ensino anacrônicas, alinhadas a visões de mundo segregacionistas e excludentes.
As análises aqui contidas, em certo sentido, explicam a instabilidade da Educação Física no Ensino Médio. Sabe-se que qualquer documento curricular é uma síntese possível, nada mais que o resultado de disputas. Felizmente, a produção científica da área dispõe de conhecimentos elaborados por meio de experimentos realizados nas escolas. Alternativas existem e o cenário atual favorece o diálogo em torno do tema. É tempo de congregar forças, revisar e atualizar as propostas, e restabelecer o direito de todos os cidadãos e cidadãs a uma Educação Física democrática e democratizante.
Referências
-
BORGES, C. C. O.; NEIRA, M. G. Cultura corporal como acontecimento discursivo no campo da Educação Física. Revista Linhas,. Florianópolis, v. 24, n. 54, p. 311-325, 2023. https://doi.org/10.5965/1984723824542023311
» https://doi.org/10.5965/1984723824542023311 -
BRACHT, V. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cadernos Cedes, Campinas, v. 19, n. 48, p. 69-88, ago. 1999. https://doi.org/10.1590/S0101-32621999000100005
» https://doi.org/10.1590/S0101-32621999000100005 - BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996.
- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, DF: Ministério da Educação, 1999.
- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Orientações curriculares do ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2006.
- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular - Ensino Médio. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018.
- CESAR, M. R. A. DUARTE, A. Governo dos corpos e escola contemporânea: pedagogia do fitness. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 119-134, maio-ago./2009.
- CHERRYHOLMES, C. H. Um projeto social para o currículo: perspectivas pós-estruturalistas. In: SILVA, T. T. (orgs). Teoria educacional crítica em tempos pós-modernos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 143-172.
-
CORTI, A. P. Política e significantes vazios: uma análise da reforma do Ensino Médio de 2017. Educação em Revista, Belo Horizonte, v.35, e201060, 2019. https://doi.org/10.1590/0102-4698201060
» https://doi.org/10.1590/0102-4698201060 - DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1999.
- DESTRO, D. S. Disputas políticas pela Educação Física escolar na Base Nacional Curricular Comum. Tese (Doutorado) em Educação - Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
- LOPES, A. C. Políticas de integração curricular. Rio de Janeiro: Eduerj, 2008.
- LOPES, A. C. Normatividade e intervenção política: em defesa de um investimento radical. In: LOPES, A. C.; MENDONÇA, D. (orgs). A teoria do discurso de Ernesto Laclau: ensaios e entrevistas. São Paulo: Annablume, 2015. p. 117-148.
- MACEDO, E. Currículo e competência. In: LOPES, A. C.; MACEDO, E. Disciplinas e integração curricular. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 115-143.
- MENDONÇA, D. Pensando (com Laclau) os limites da democracia. In: LOPES, A. C.; MENDONÇA, D. (orgs.). A teoria do discurso de Ernesto Laclau: ensaios críticos e entrevistas. São Paulo: Annablume, 2015. p. 73-92.
-
NEIRA, M. G. Análises das representações dos professores sobre o currículo cultural da Educação Física. Interface, Botucatu, v. 14, n. 35, p. 783-795, dez. 2010. https://doi.org/10.1590/S1414-32832010005000026
» https://doi.org/10.1590/S1414-32832010005000026 -
NEIRA, M. G. Os conteúdos no currículo cultural da Educação Física e a valorização das diferenças: análises da prática pedagógica. e-Curriculum, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 827-846, abr. 2020. https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p827-846
» https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p827-846 -
NEIRA, M. G.; GRAMORELLI, L. C. Embates em torno do conceito de cultura corporal: gênese e transformações. Pensar a Prática, Goiânia, v. 20, n. 2, p. 321-332, abr.-jun. 2017. https://doi.org/10.5216/rpp.v20i2.38103
» https://doi.org/10.5216/rpp.v20i2.38103 - NEIRA, M. G.; NUNES, M. L. F. Currículo cultural, linguagem, códigos e representação. In: NEIRA, M. G.; NUNES, M. L. F. (orgs.). Epistemologia e didática do currículo cultural da Educação Física. São Paulo: FEUSP, 2022. p. 14-38.
- SÁ, K. R. Currículo do Ensino Médio Integrado do IFMG: a partitura, a polifonia e os solos da Educação Física. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 2019.
-
SOARES JÚNIOR, N. E.; ROMEIRO, A. C. V. L. As orientações curriculares para o Ensino Médio: uma análise da área da linguagem. Revista Espaço do Currículo, João Pessoa, v.13, n. Especial, p. 946-955, dez. 2020. https://doi.org/10.22478/ufpb.1983-1579.2020v13nEspecial.45466
» https://doi.org/10.22478/ufpb.1983-1579.2020v13nEspecial.45466 - WORTMANN, M. L. C. O currículo na literatura infanto-juvenil: uma incursão à Escola Hogwarts e ao mundo de Harry Potter. Currículo sem Fronteiras, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 162-178, jul./dez. 2011.
-
1
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf. Acesso em: 28 mai. 2024.
-
2
César e Duarte (2009) pautaram-se nas noções de biopolítica de Michel Foucault para identificar os dispositivos empregados pela escola para produzir sujeitos alinhados ao pensamento neoliberal.
-
3
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf. Acesso em: 29 mai. 2024.
-
4
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 27 mar. 2023.
-
5
Destaque-se que na seção específica do Ensino Médio, Matemática é simultaneamente área e disciplina.
-
Financiamento: O trabalho foi financiado pela Fapesp no âmbito do projeto nº 2022/06919-5 e pelo CNPq no âmbito do projeto nº 409886/2023-8.
-
Dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Disponibilidade de dados
Dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Ago 2024 -
Data do Fascículo
Jul 2024
Histórico
-
Recebido
26 Abr 2023 -
Aceito
24 Jun 2024