Open-access Notas introdutórias sobre a educação não escolar em pesquisas educacionais

Introductory notes on non-school education in educational research

RESUMO

O texto tem como objetivo analisar experiências em pesquisas educacionais que se inscrevem em critérios da prática educativa e no exercício de tradução de processos educativos de natureza não escolar produzidas por pesquisadores e membros do Grupo de pesquisa História da Educação na Amazônia, albergado na Linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará - UEPA. Organiza-se metodologicamente como um texto de natureza qualitativa consubstanciado por revisão bibliográfica e documental, teoricamente assentado numa concepção alargada de educação, vista como cultura, a partir do qual identificamos a educação não escolar na literatura pedagógica, na constituição de um campo e de produção do conhecimento epistemologicamente gestado no intercâmbio interdisciplinar que mobiliza diferentes espaços, sujeitos, temporalidades, engendrando possibilidades de constituição de conhecimentos necessários ao campo educacional.

Palavras-chave: Educação não Escolar; Pesquisa em Educação; Epistemologia

ABSTRACT

The text aims to analyze experiences in educational research that are inscribed in criteria of educational practice and in the exercise of translating educational processes of a non-school nature produced by researchers and members of the Research Group History of Education in the Amazon, housed in the Research Line Cultural Knowledge and Education in the Amazon of the Postgraduate Program in Education at the University of the State of Pará - UEPA. It is methodologically organized as a text of a qualitative nature substantiated by a bibliographic and documentary review, theoretically based on a broad conception of education, seen as culture, from which we identify non-school education in pedagogical literature, in the constitution of a field and production from the epistemologically generated knowledge in the interdisciplinary exchange that mobilizes different spaces, subjects, temporalities, engendering possibilities for the constitution of knowledge necessary for the educational field.

Keywords: Non-school Education; Research in Education; Epistemology

RESUMEN

El texto tiene como objetivo analizar experiencias en investigaciones educativas que se inscriben en criterios de la práctica educativa y en el ejercicio de traducción de procesos educativos de naturaleza no escolar producidos por investigadores y miembros del Grupo de Investigación en Historia de la Educación en Amazonia (Gueda). El trabajo ― que está albergado en la línea de investigación Saberes Culturales y Educación en la Amazonia del Programa de Posgrado en Educación de la Universidad del Estado de Pará (UEPA) ― se organiza metodológicamente como un texto de naturaleza cualitativa consubstanciado por revisión bibliográfica y documental. Teóricamente, está basado en una concepción ampliada de educación en cuanto cultura. A partir de eso, identificamos la educación no escolar en la literatura pedagógica, en la constitución de un campo y en la producción del conocimiento epistemológicamente gestado en el intercambio interdisciplinario que moviliza diferentes espacios, sujetos, temporalidades, engendrando posibilidades de constitución de conocimientos necesarios al campo educacional.

Palabras clave: Educación no Escolar; Investigación en Educación; Epistemología

Introdução

Neste texto, analisamos experiências em pesquisas educacionais que se inscrevem em critérios da prática educativa e no exercício de tradução de processos educativos de natureza não escolar. As experiências a serem focalizadas foram produzidas por pesquisadores e membros do Grupo de pesquisa História da Educação na Amazônia (GHEDA), albergado na linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA).1

Criado em 2010, o GHEDA é um grupo de pesquisa certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), constituído por duas linhas de pesquisa: Instituições Educativas, Intelectuais e Impressos; História dos Processos Educativos Não Escolares. A primeira desenvolve pesquisas sobre a história das instituições educativas, como escolas, asilos, leprosários e congregações religiosas, dentre outras, focalizando as trocas culturais nelas desenvolvidas, as práticas educativas e a cultura material. Investiga, além de processos educativos presentes em impressos ― como revistas, jornais, livros e cartilhas ― a trajetória de vida de intelectuais e suas contribuições à educação.

A linha de pesquisa História dos Processos Educativos Não Escolares, com a qual dialogamos neste texto, investiga processos educativos ocorridos no cotidiano social da Amazônia, com base em tradição oral, atenção, memória, experiência e religiosidade. Partimos da premissa de que formas diversas de ensinar e aprender, fora do espaço escolar ou em diálogo com ele, integram a história da Amazônia, sua gente, e sua diversidade cultural.

Nos processos educativos não escolares, investigados pela linha de pesquisa mencionada, temporalidades, espaços e práticas educativas são mediados por diferentes agentes, como pajé, entidades do panteão afro-religioso, plantas, beberagens e sacerdotes, o que alarga a percepção sobre quem ensina e aprende e sobre a própria educação para além do reduto escolar.

Neste texto, admitimos a educação escolar como uma entre as possibilidades de ensinar e aprender. Nossa análise se dá a partir de uma concepção alargada de educação, vista como cultura (BRANDÃO, 2002), e na interface teórica entre os campos da História Cultural, Estudos Pós-coloniais e Decolonialidade, que são introduzidas ao longo das seções.

O texto, de natureza qualitativa, está consubstanciado por revisão bibliográfica a partir da qual examinamos quatro trabalhos produzidos nos anos de 2008, 2012, 2016 e 2019, discutindo-os com outros referenciais sobre a temática da educação não escolar. No trato com as fontes levantadas para este texto, inspiramo-nos nas reflexões de Rodrigues e França (2010) sobre a pesquisa documental sócio-histórica, em uma abordagem qualitativa. Segundo as autoras, a pesquisa bibliográfica e documental são possibilidades de tradução de fenômenos sociais, com as quais pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento podem interagir com um elenco diverso de fontes em suas pesquisas. Tal diversidade implica reconhecer que as informações sobre um determinado objeto de estudo “[...] podem ser encontradas em livros, revistas, correspondências, diários, noticiários de rádio, televisão, filmes, internet, produções iconográficas, testemunhos orais entre outras” (RODRIGUES; FRANÇA, 2010, p. 56).

Considerando a diversidade de fontes e documentos que hoje dispomos e utilizamos em pesquisa qualitativa, faz-se necessária a leitura atenta ao tempo de sua produção, seu conteúdo, autoria e, sobretudo, sua intencionalidade. Daí, o tratamento subjetivo e articulado do pesquisador ante os objetivos que norteiam o seu estudo, já que a pesquisa qualitativa se interessa pelas interpretações que os sujeitos fazem a respeito de suas experiências historicamente construídas, seus modos de viver, seus artefatos, suas emoções, sua produção intelectual.

Organizado em quatro seções objetivas e complementares, apresentamos na primeira seção do presente texto uma breve reflexão sobre a educação não escolar na literatura pedagógica, tomando por base determinados marcos históricos no campo da educação não escolar. Na segunda seção, discorremos sobre a construção de uma educação em sentido amplo, vista como cultura (BRANDÃO, 2002); a seguir, passamos a descrever e relacionar as pesquisas de Mota Neto (2008), Abbate (2016), Albuquerque (2012) e Buecke (2019), tema da terceira seção. Na quarta seção, analisamos prováveis convergências e possibilidades entre a educação flagrada nas pesquisas apresentadas e os campos teóricos, como a História cultural, os Estudos pós-coloniais e a Decolonialidade, de modo a sinalizar a potencialidade desses campos na tradução do fenômeno da educação não escolar. Nas considerações finais, recuperamos pontos nodais construídos ao longo do texto sobre a fecundidade dos temas em educação não escolar e sinalizamos tendências e/ou desafios no século XXI. Com isso, espera-se contribuir com a construção de conhecimentos necessários para a pesquisa em educação.

Notas sobre a educação não escolar na literatura pedagógica

A educação não escolar tem sido apresentada na literatura pedagógica como um campo de práticas que se diferencia do modelo formal e institucionalizado de ensino ― o escolar ― ainda que, em alguns momentos, mantenha com ele uma relação de complementaridade. Abriga em sua dimensão formativa diferentes formas de tradução do fenômeno educativo, funcionando como espaço de práticas de educadores, como hospitais, museus, abrigos, organizações não governamentais (ONGs), bem como a manutenção da sabedoria originária ― a educação do cotidiano ― assumindo diferenciadas definições atreladas à intencionalidade e à organização da estrutura social do ensino.

A despeito das modalidades de educação e suas circunscrições, formuladas por intelectuais no campo da educação no século XX, destaca-se a obra de Philip Coombs, The World Educational Crisis, publicada em 1968 e editada em língua portuguesa no ano de 1976. Nela, descritores, como educação formal, educação não formal e educação informal assumiram, na América do Norte, Espanha e posteriormente no Brasil, uma diferenciação entre o modelo escolar e aqueles inscritos fora dele.2

A obra de Coombs e a eminente setorização da educação em educação formal, educação não formal e educação informal (TRILLA, 2008) marcam as décadas de 1960 e 1970, momento em que direcionavam críticas à escola, aos setores e aos organismos sociais, problematizando a sua finalidade formativa. Tais críticas trazem em suas formulações aspectos como a insuficiência da escola para atender a um universo de demandas e populações com necessidades específicas geradas por mudanças sociais e econômicas, diante de uma sociedade em transição. Enseja, desse modo, um reordenamento sobre a representação do que é educação não mais como sinônimo de escolarização.

A representação mencionada implica o reconhecimento da escola como um momento do processo formativo atrelado a outros processos formativos historicamente construídos fora do marco escolar. Esses mobilizam sujeitos, espaços e temporalidades diversas aos quais a escola deve se integrar dialogicamente, seja na operacionalização dos seus objetivos, seja na sua interligação a “[...] outros espaços educativos, em caráter complementar, integrativo ou paliativo” (SEVERO, 2015, p. 568).

O mundo do trabalho, os meios de comunicação, as agências religiosas e outras esferas sociais, políticas e econômicas foram, de certo modo, impactadas pela emergência dos saberes e práticas educativas, problematizando a hegemônica institucionalização do ensino, a educação formal, escolar. Assim, “[...] em sentido mais amplo, portanto, a crise a que nos referimos não é simplesmente uma crise da educação, mas sim uma crise que abrange a sociedade na sua totalidade e também na economia” (COOMBS, 1986, p. 26). No tocante aos estudos educacionais sob os descritores forjados por Coombs, no Brasil, destaca-se Maria da Glória Gohn e a obra Educação não-formal e cultura política, publicada em 1999, que se tornou referência nesse debate, principalmente atuando na tradução dos processos educativos desenvolvidos nos movimentos sociais.

Ao refletir sobre o processo dinâmico e inventivo das educações e saberes, temas caros à Pedagogia, acionamos José Carlos Libâneo em Pedagogia e Pedagogos, para quê? O autor situa a relação entre educação não formal e informal como unidades dialógicas entre si e a educação escolar. Segundo o autor:

[a] complexificação da sociedade e da diversificação das atividades educativas não poderia deixar de afetar a Pedagogia, tomada como teoria e prática da educação. Em várias esferas da sociedade surge a necessidade de disseminação e internalização de saberes e modos de ação (conhecimentos, conceitos, habilidades, hábitos, procedimentos, crenças, atitudes), levando a práticas pedagógicas. Mesmo em âmbito da vida privada, diversas práticas educativas levam inevitavelmente a atividade de cunho pedagógico na cidade, na família, nos pequenos grupos, nas relações de vizinhança (LIBÂNEO, 2010, p. 26-27).

Diferentes descritores podem ser encontrados referenciando o fenômeno educativo inscrito fora do marco escolar: educação popular, educação social, educação ao longo da vida, educação não formal, educação informal. Esses descritores ampliam o espectro de reflexão sobre a educação e as dimensões da vida cotidiana, implicando a percepção da sociedade como eminentemente pedagógica (BEILLEROT, 1985). Da mesma forma, temporalidades, sujeitos, espaços, política educacional, teoria e prática e produção do conhecimento são algumas unidades que orbitam a educação não escolar.

O interesse por refletir e discutir a partir das possibilidades de efetivação de processos educativos em diferentes tempos e espaços não é por acaso. As demandas sociais produzidas a partir do movimento econômico, político e social das sociedades modernas capitalistas inflacionaram as relações sociais tecidas em diferentes instâncias da vida cotidiana, implicando a produção, a mobilização e a circulação de saberes. Nessa apreensão das experiências educativas, Jacky Beillerot interpreta a sociedade como pedagógica, pois “[...] determinadas situações tornam-se pedagógicas sem serem exatamente institucionais [...], por outro lado, a própria institucionalização em todos os campos em que se opera, necessita de ensinamentos e aprendizagens diversas” (BEILLEIROT, 1985, p. 38).

Pela complexidade das diferentes formas de ensinar e aprender, com as quais a educação não escolar ― fenômeno da educabilidade humana ― opera, campos disciplinares, teórico-conceituais e metodológicos são também mobilizados na tradução de experiências formativas, seja em âmbito institucional ou fora dele, conformando um território plural povoado por microcampos ambíguos e, ao mesmo tempo, complementares.

Emerson Zoppei (2015), em sua pesquisa doutoral, enuncia que a educação não escolar no Brasil é marcada por um campo científico em disputa, o qual nas últimas décadas vem ganhando visibilidade no cenário educacional. Entretanto, a produção de conhecimento em torno desse campo ainda é discreta, ensejando de certo o avanço nas reflexões em torno do tema com vistas à produção de um conhecimento necessário à sua consolidação.

Se procurarmos por causas da incipiente produção de conhecimento a respeito da educação não escolar, encontraremos fatores ligados à economia e à política educacional brasileira na década de 1990, os quais inibiram o desenvolvimento da produção. Entre esses fatores, podemos destacar dois importantes: a) a abertura econômica ao capital internacional e à intervenção de organizações do terceiro setor, e b) a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) em 1996, a qual, embora voltada à regulamentação dos processos formativos da educação escolar, admite timidamente a educação não escolar como fenômeno da educabilidade humana.3 Por outro lado, em termos prospectivos, ao longo das décadas de 2000, eventos internacionais em Pedagogia Social, sediados em Instituições de Ensino Superior (IES) do eixo Sul/Sudeste operaram em torno do objetivo de construir ferramentas teóricas e metodológicas que subsidiassem as práticas pedagógicas dos educadores sociais.4

Vê-se nesse percurso descrito o desenrolar de perspectivas teóricas e conceituais que enunciam uma outra via sobre os processos educativos forjados dentro e fora do marco escolar. Isso reforça nosso pensamento de que a educação não escolar é um fenômeno histórico, social, plural que precede a escolarização, e, por isso mesmo, é fenômeno ontológico da experiência sociocultural humana.

Notas sobre a educação, para além do tempo-espaço escolar

Historicamente, a Educação existe como uma dimensão ontológica do ser humano. E essa afirmação se sustenta no fato de a Educação ser o fio condutor de um processo de humanização e singularidade dos sujeitos em suas múltiplas experiências socioculturais no espaço-tempo em que vivem. Ao admitirmos tal condição, os seres humanos passam a ser, por certo, agentes educadores que, de forma inventiva, (re)constroem as suas formas de saber e ensinar, seja na escola ou simplesmente no cotidiano (BRANDÃO, 2002; CHARLOT, 2002).

Segundo Charlot (2002), o “aprender” é um processo heterogêneo, representado por formas igualmente diversas que extravasam os limites da institucionalização do ensino, sendo a escola uma delas, mas não a única. Isso quer dizer que a educação é histórica, cultural, holística, com raízes fincadas na experiência humana.5

Para Brandão (2007, p. 73-74), a educação é uma prática social cuja finalidade consiste no desenvolvimento do que na pessoa humana pode ser aprendido entre os tipos de saberes existentes em “[...] uma cultura, para formação de tipos de sujeitos, de acordo com as necessidades e exigências de sua sociedade, em um momento da história de seu próprio desenvolvimento”. Tal posicionamento nos remete ao exercício sempre sensível de interpretação da educação como cultura, isto é, como uma rede de saberes historicamente tecida entre os sujeitos por meio da qual seus códigos sociais, costumes, valores morais, religiosos e representações são produzidos e partilhados entre os membros de uma determinada sociedade.

Também lemos em Freire (2002) que a educabilidade humana resulta da experiência social dos sujeitos históricos em suas relações mediatizadas pelo mundo sob um sentimento de incompletude que torna possível o processo cíclico e contínuo de aprendizagem ao longo da vida e em diferentes contextos. Ademais, tal concepção de educação confronta o modelo bancário de educar, no qual há um único detentor do saber (professor) e aquele que não sabe (aluno).

Terminantemente contra a educação bancária, o autor supramencionado se posiciona afirmando que mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Logo, “Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade” (FREIRE, 2002, p. 30). Nesse espectro de projeção dos sujeitos históricos como agentes educadores, incompletos e em constante aprendizagem, reside a nossa percepção sobre a potencialidade inventiva da educação não escolar como fenômeno educativo historicamente constituído.

Bertucci, Faria Filho e Oliveira (2010), em uma interpretação das obras do historiador inglês Edward Palmer Thompson, compreendem a educação em sentido alargado, isto é, para além da escolarização, assentada no “fazer-se” de homens e mulheres, em suas experiências socioculturais cotidianas, objetivando, desse modo, o redimensionamento do olhar sobre os processos formativos humanos.

Segundo os autores mencionados, “[...] os sujeitos se constituem, ou seja, formam-se, educam-se, nas mais diversas circunstâncias em que vivem, seja no mundo do trabalho, da família, da comunidade de pares, do lazer, entre muitos outros” (BERTUCCI; FARIA FILHO; OLIVEIRA, 2010, p. 11-12). Trata-se, portanto, da manutenção da experiência educativa que se faz na tecitura do cotidiano, na produção e circulação dos saberes culturais, compreendidos por Albuquerque e Sousa (2016, p. 240) como

[...] uma forma singular de inteligibilidade do real, fincada na cultura, com raízes na urdidura das relações com os outros, com a qual, determinados grupos reinventam criativamente o cotidiano, negociam, criam táticas de sobrevivência, transmitem seus saberes e perpetuam seus valores e tradições.

Nesses termos, a reflexão em torno dos saberes culturais e o fazer-se convergem ao que Brandão (2002) compreende como um avanço na tradução dos fenômenos educacionais, propondo uma passagem do cotidiano da escola para a educação do cotidiano. Segundo o autor, tal esforço implica

Em primeiro lugar, o abrir as portas da escola e sair a buscar compreender os mundos circunvizinhos, antagônicos, próximos e remotos onde estão, onde vivem e convivem com as culturas do cotidiano os próprios personagens da vida escolar. Significa, em seguida o trazer para o campo da educação todas as interligações possíveis com todos os outros eixos internos e exteriores das experiências sociais e simbólicas da pessoa, da sociedade e da cultura (BRANDÃO, 2002, p. 156-157).

Nessa direção, Fernanda Paulo (2020) infere que a educação enquanto um fenômeno social deve também implicar a mudança de percepção sobre as diferenças entre os modos de se educar, as quais extravasam a lógica da hierarquização e/ou subalternização de uma concepção de educação sobre a outra, de um conhecimento sobre o outro. Segundo a mesma autora:

Na escola temos uma educação formal. Porém, nesse mesmo espaço, há momentos de educação informal, quando aprendemos com os colegas ou ensinamos a eles, seja nos intervalos entre as aulas, seja no recreio... Esse é um tipo de educação informal e rebelde, porque transgride a formalidade e as normas do ambiente escolar (PAULO, 2020, p. 22).

A reflexão de Paulo (2020) indica a ocorrência de um movimento teórico, conceitual e prático que a educação faz em torno de si mesma, ao mesclar momentos educativos distintos e/ou complementares enquanto ciência e prática social. Ademais, na eminente ambiguidade que esse movimento incita, percebe-se o seu potencial formativo e, por isso mesmo, um saber necessário à dinâmica de formação de educadores e educandos ante as suas incompletudes. Nesse sentido, todo tipo de educação é também um ato político que deve implodir com a monocultura do saber e o desperdício de experiências (SANTOS, 2010).

Notas sobre experiências de pesquisas em educação não escolar

A educação não escolar, conforme enunciamos no início deste texto, tem sido tema presente na literatura pedagógica. Ante as formas de identificação e/ou setorização, importa compreendê-la como prática social que adentra os domínios institucionais e os espaços para além deles, uma vez que “[...] não nascemos com os saberes impressos em nós geneticamente, mas aprendemos ao longo da vida cotidiana o que precisamos para ser uma pessoa humana” (BRANDÃO, 2002, p. 26).

Nesses termos, importa destacar que o redescobrimento do ato educativo entre os extratos sociais também revela a sociedade como pedagógica, na medida em que as suas demandas impõem o uso cada vez maior de uma pluralidade de saberes que escapam do domínio escolar ensejando uma revisão do próprio conceito de educação. Severo (2015, p. 563) diz que isso ocorre porque

[...] as dinâmicas de desenvolvimento econômico e político da sociedade serviram de base para a construção de uma cultura de uso dos saberes que ampliou os horizontes dos fins e dos meios educacionais, inflacionando as práticas pedagógicas e transportando-as do espaço escolar para outros nichos institucionais extraescolares.

Importa destacar que, embora a expressão educação não escolar tome de início o escolar pela negativa para situar as suas práticas educativas (fora da escola e antes de sua institucionalização), o fenômeno educação é plural e holístico, fincado na cultura e, assim, conformando um saber da experiência. Isso porque “[...] existem saberes que não são da mesma natureza que os saberes constituídos, senão que têm outras qualidades, que representam outras maneiras de saber e que podemos reconhecer como ‘saberes experienciais’” (DOMINGO, 2013, p. 22).

Nesse sentido, tecemos uma leitura objetiva sobre algumas experiências de pesquisas em educação realizadas por pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA), na Linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia6, e por membros do Grupo de pesquisa História da Educação na Amazônia (GHEDA), propondo uma reflexão epistemológica sobre as contribuições possíveis ao campo da educação não escolar.

A pesquisa intitulada A Educação no Cotidiano do Terreiro Saberes e Práticas Culturais do Tambor de Mina na Amazônia, realizada em âmbito do mestrado por Mota Neto (2008), teve como objetivo compreender de que forma desenvolvem-se processos educativos de construção e mediação de saberes culturais nas práticas religiosas cotidianas de um terreiro do Tambor de Mina, na Amazônia.

Ancorado nos pressupostos teóricos da História Cultural, Estudos Culturais e Educação Popular, Mota Neto (2008) transitou no universo da pesquisa etnográfica mobilizando oralidades, memórias, saberes, práticas educativas, inscritas na experiência de homens e mulheres com seres encantados, cuja sabedoria se fez como fio condutor de um processo de tradução de modos outros de educar, problematizando assimetrias como homem/natureza; doxa/cientificismo; educação não escolar/educação escolar.

Na pedagogia do terreiro, a educação é mediada por agentes como o Pai e a Mãe de Santo e os seres encantados que atuam na mediação dos saberes educando médiuns e pessoas atendidas, revelando uma simbiose cultural entre religiosidade e educação que mescla as fronteiras entre os mundos físico e o espiritual, e entre esses e o fazer educativo.

Conectado às possibilidades de compreensão da educação não escolar ante a diversidade cultural amazônica, a exemplo de Mota Neto (2008), está o estudo realizado por Abbate (2016): O que não mata, engorda: cultura alimentar, mediadores culturais e educação na Amazônia Colonial, sobre a mestiçagem cultural presente nas práticas de alimentação na Amazônia colonial (1741-1757), vistas pelo autor como processos educativos cotidianos.

O referido autor parte da ideia de que as trocas culturais em torno da questão alimentar possuem caráter educativo, uma vez que informam o fluxo global de pessoas, aclimatação de espécies vegetais e animais, bem como permutas entre as cozinhas ameríndia, europeia e africana. Dessa forma, Abbate (2016) sinaliza, por meio de fontes impressas e manuscritas, processos educativos existentes na Amazônia colonial cuja mediação entre as cozinhas revelou o protagonismo ameríndio na figura da mulher índia como educadora.

Situada no enlace entre a Educação e a Nova História Cultural enquanto campos teóricos privilegiados nessa pesquisa histórica, Abbate (2016) propõe uma compreensão da história vista a partir das dinâmicas socioculturais dos sujeitos ordinários (CERTEAU, 2009) e suas formas inventivas de mesclas culturais, circulação de saberes e educação de natureza não escolar no cenário amazônico do século XVIII.7 Tal dimensão também permeia o trabalho de Albuquerque (2012), intitulado Beberagens indígenas e educação não escolar no Brasil colonial, o qual aborda as práticas de consumo de bebidas fermentadas (cauim) entre os índios tupinambás, traduzidas pela autora como eventos eminentemente educativos.

Com riqueza de fontes bibliográficas e documentais que remetem aos séculos XVI e XVII, Albuquerque (2012) analisou o fenômeno educacional presente nas beberagens, apoiando suas reflexões nos pressupostos da História Cultural da Educação, sinalizando tendências nas pesquisas históricas sobre o período colonial ― ainda pouco explorado entre os historiadores da educação ― e as formas outras de aprender e ensinar inscritos em critérios de inteligibilidade que se diferenciam do modelo hegemônico de educação.

A mesma percepção teórica e metodológica orientou as análises de Buecke (2019) sobre as crianças tupinambás, seus saberes e práticas educativas na Amazonia colonial. No trabalho intitulado Educação e Infância na Amazônia Seiscentista, Jane Elisa Otomar Buecke elege seu objeto de estudo centrado nos sentidos da infância, nas práticas educativas e nos saberes culturalmente produzidos na tessitura do cotidiano social das crianças tupinambás que viveram na Amazônia do século XVII.

Diante da empreitada colonial estabelecida na Amazônia do século XVII pelos europeus e a missão religiosa, a constituição de estratégias de dominação das populações originárias fez da criança tupinambá uma peça-chave no processo de invasão cultural, mas também as revelaram mediadoras de saberes entre os religiosos e os colonos.

Entre os múltiplos cenários em que ocorriam as práticas educativas na Amazônia seiscentista estavam a aldeia indígena, o aldeamento, a igreja e a escola de ofício. Mas também se faziam presentes eventos igualmente educativos, como os ritos de passagem entre os tupinambás, as celebrações religiosas cristãs, a catequese, em que a atenção, o silêncio e a imitação se constituíram elementos importantes na tecitura dos processos educativos mediados pela oralidade e pela memória. Em tudo isso eram forjadas subjetividades, competências e habilidades, como o saber ler, escrever, contar, cultuar.

Podemos afirmar, ainda, que a experiência sociocultural das crianças tupinambás analisada por Buecke (2019) revela o caráter educativo do cotidiano em uma controversa produção de saberes culturais na qual a criança nativa se fez mediadora, resistindo e/ou reinventando a lógica eurocêntrica em uma alquimia cultural.

Os processos formativos, inscritos nas pesquisas que até aqui apresentamos, sinalizam a riqueza e a diversidade de temas que perpassam o fenômeno educativo não escolar, inscrito em uma pedagogia emergente que revela o terreiro, a aldeia, a igreja, os rituais, as beberagens; todos como espaços de produção, mobilização e circulação de saberes necessários à manutenção das práticas culturais, portanto, espaços da educação.

O cotidiano, a oralidade e a memória são algumas das unidades de análise presentes nessas pesquisas que se entrelaçam aos fios da Nova História Cultural, marcada teoricamente pela contribuição de diferentes campos do conhecimento (BURKE, 2005). A despeito desse campo, temas como os discutidos por Mota Neto (2008), Abbate (2016), Albuquerque (2012) e Buecke (2019) constam na agenda de pesquisas da história da educação, sobretudo no exame dos saberes e das práticas educativas, sendo essas compreendidas como “[...] toda relação em que há transmissão de conhecimento de qualquer espécie, seja de caráter moral, religioso, técnico ou até mesmo escolar” (CUNHA; FONSECA, 2005, p. 1). As práticas educativas estão, assim, presentes nos diferentes espaços da vida cotidiana, não dissociadas da cultura dos grupos sociais.

Para Fonseca (2003, p. 56), “[...] a história cultural apresenta-se como um campo historiográfico, caracterizado por princípios de investigação herdados das propostas dos Annales e dotado de pressupostos teórico-metodológicos que lhe são próprios”. Assim, temos três gerações de historiadores da Nova História (1929-1989) que marcam profundamente o fazer historiográfico do século XX mobilizando novos objetos.8 Com isso, foram reveladas tendências, a exemplo dos estudos sobre o período colonial, ainda pouco explorado por pesquisadores da educação, mas também a fecundidade da Antropologia em pesquisas etnográficas.

A Nova História também traz à tona “[...] o indivíduo, como sujeito da História, recompondo histórias de vida, particularmente daqueles egressos das camadas populares” (PESAVENTO, 2014, p. 118). Trata-se, portanto, de um campo multidisciplinar que atua sobre diversos temas e objetos de estudo, entre os quais podemos inserir práticas educativas cotidianas, saberes culturais, outras pedagogias, como é o caso das pesquisas em educação não escolar.

Tradutoras de experiências educativas entre grupos sociais, sujeitos anônimos da nossa história, as pesquisas que analisamos neste texto, colocam em questão formas historicistas ao admitirem a tradução do fenômeno educativo a partir de uma história-problema ― ou, ainda, formas episódicas de narrar a história da educação ― e dão o direcionamento da crítica intencional ou não à circunscrição da educação ao domínio formal.

Importa destacar que as pesquisas em educação, mencionadas no presente texto, demarcam também a inserção da educação não escolar como tema de estudos na pós-graduação em educação. Desse modo, dá-se a importância do debate epistemológico sobre a ciência e a educação na produção do conhecimento, bem como os desafios dele decorrentes, sobretudo a superação da monocultura e a colonialidade do saber.

Notas epistemológicas sobre a pesquisas em educação

O modelo científico hegemônico, que se instaurou pelo mito da racionalidade moderna, criou linhas abissais de segregação do saber, que lhes outorgaram arbitrariamente o direito de decidir sobre o que é e o que não é válido como conhecimento. Tal mito, segundo Oliveira (2016, p. 88), “[...] consiste num discurso de como uma cultura se autodefine como superior e a outra como inferior, sendo o sujeito dessa outra cultura o culpado de sua imaturidade”, conferindo ao pensamento científico um exclusivismo sobre o que é ou não aceito como verdade.

A crítica ao monopólio do conhecimento, feita pelo paradigma emergente à racionalidade moderna e à colonialidade do saber, consiste em uma denúncia epistêmica política e social sobre o modo como diferentes povos, formas de conhecimento, culturas e sociedades foram eclipsados pelo imperialismo colonial e pela ciência positiva. Ancorada nos pressupostos de Boaventura de Sousa Santos, Oliveira (2016, p. 103-104) postula que o paradigma científico emergente é

[...] explicitado como aquele que se caracteriza por uma dimensão social e não apenas científica, cuja concepção é sistêmica, holística e constituída por uma pluralidade metodológica e de estilos e, sobretudo, busca superar a visão dicotômica presente na concepção moderna de ciência entre as ciências naturais e as ciências sociais, o conhecimento científico e o conhecimento comum, o subjetivo e o objetivo, o coletivo e o individual, entre outras.

Nesses termos, convém destacar que o paradigma científico emergente refuta formas abissais e dicotômicas de produção do conhecimento, propondo uma relação dialética entre os diversos saberes, sendo a ciência positiva um deles. Como tendência desse paradigma está a redescoberta de objetos e agentes do conhecimento: os homens e as mulheres, o cotidiano, as instituições, os intelectuais, o imaginário, as sabenças, as educações9, entre outros. Todos são temas igualmente abordados por campos teóricos (como a História Cultural) apresentados anteriormente, assim como a decolonialidade.

Nesse horizonte, o exclusivismo abissal provocado pela racionalidade moderna obliterou o diálogo entre a ciência e os demais saberes. Isso considerou inexistente a ciência concreta de povos originários, a sabedoria popular, as formas inventivas de educação não organizadas aos moldes do cânone científico, ainda que sobre esse ponto opere a contradição do (re) conhecimento sobre quem está sendo subalternizado. Tal percepção também se insere no debate levantado por intelectuais do Grupo Modernidade Colonialidade, constituído no final dos anos de 1990, no qual Maldonado-Torres10 propõe o enfrentamento de modelos cartesianos eurocentrados de produção do conhecimento a partir de um giro decolonial (BALESTRIN, 2013; MOTA NETO; LIMA, 2021).

Segundo Mota Neto e Lima (2021, p. 55), o giro decolonial, proposto por Maldonado-Torres, parte da reflexão teórica e conceitual de intelectuais latino-americanos que objetivam uma mudança de perspectiva e de atitude que “[...] se encontra nas práticas e formas de conhecimento de sujeitos colonizados e, também como um projeto de transformação sistemática e global das pressuposições e implicações da modernidade, assumido por uma variedade de sujeitos em diálogo”.

No pensamento dos autores abordados, a decolonialidade trouxe novas perspectivas epistemológicas sobre a reflexão em torno da ciência, implicando ações de resistências políticas e lutas que trazem outras epistemologias e outras pedagogias de libertação, de superação da colonialidade. Daí porque todo movimento de resistência política, econômica, social, cultural, seja também uma resistência epistemológica.

Enquanto possibilidades concretas de existência epistemológica, o colonialismo e a colonialidade se apresentam como conceitos caros à reflexão epistemológica sobre a experiência social das sociedades subalternizadas. Para Quijano (2009, p. 74):

Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado ao Colonialismo. Este último refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial. Mas nem sempre, nem necessariamente, implica relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo, enquanto a Colonialidade tem vindo a provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradoura que o colonialismo.

No bojo do debate em torno da violência epistêmica empreendida pela modernidade, a colonialidade, entre tempo e espaço, revela-se um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Mota Neto e Lima (2021, p. 28), retomando os lembretes-chave referidos por Maldonado-Torres, explicam que as pesquisas empreendidas no campo da educação devem considerar:

[...] primeiro, mantém-se a colonização e suas várias dimensões claras no horizonte de luta; segundo, serve como uma constante lembrança de que a lógica e os legados do colonialismo podem continuar existindo mesmo depois do fim da colonização formal e da conquista da independência econômica e política.

Em vista dessas questões, o enfrentamento das formas opressoras e antidialógicas que cerceiam a educação em suas múltiplas dimensões deve ser de imediato epistemológico, ético e político, objetivando a superação de linhas abissais entre mundos sociais e suas histórias, experiências, sujeitos e sua sabedoria, organização social e política. Isso implica:

a) Superar a colonialidade pedagógica e o eurocentrismo presentes nas universidades e nos processos tradicionais de produção do conhecimento; b) uma perspectiva participativa e um compromisso político-transformador em face das realidades sociais e educacionais investigadas; c) Pesquisar a educação em diálogo com as experiências vividas por sujeitos subalternizados, suas memórias, ancestralidades e sabedorias (MOTA NETO; LIMA, 2021, p. 58-59).11

A despeito das experiências de pesquisas sobre educação não escolar abordadas neste texto, percebemos a proximidade e a pertinência dos desafios na pesquisa educacional na Amazônia, sobretudo no âmbito da educação não escolar em suas conexões para além das setorizações e disputas na arena educacional.

Admitindo os princípios básicos da/na pesquisa em educação ― epistemológico e ético-político ― reconhecemos a fertilidade dos campos teóricos aqui discutidos como possibilidades outras de tradução epistemológica da educação. Essas possibilidades se apresentam em uma relação de alteridade, a exemplo da ecologia de saberes proposta por Boaventura Santos.

A ecologia de saberes prevê a justaposição entre as formas de conhecimentos produzidos pelos diferentes agentes do saber. Assenta-se em um paradigma emergente das ciências humanas, bem como na crítica ao monopólio da racionalidade moderna e nas linhas abissais dela decorrentes. Assim, ao discorrer sobre suas características, Santos (2010, p. 157) diz que a ecologia de saberes

[...] procura dar consciência epistemológica ao saber propositivo. Trata-se de uma ecologia porque assenta no conhecimento da pluralidade de saberes heterogêneos, da autonomia de cada um deles e da articulação sistêmica, dinâmica e horizontal entre eles. A ecologia de saberes assenta na independência complexa entre os diferentes saberes que constituem o sistema aberto do conhecimento em processo constante de criação e renovação. O conhecimento é interconhecimento, é reconhecimento, é autoconhecimento.

Nesses termos, a História Cultural, o Pós-colonialismo e a Decolonialidade, brevemente enunciados neste texto, somam-se como possibilidades teóricas às pesquisas em educação. Sobre a alteridade entre os campos de conhecimento, vislumbra-se no horizonte da pesquisa educacional a possibilidade de mudanças. Arroyo (2012, p. 17) diz que “Isto significa que a tarefa crítica que se avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas. Ela requer, de fato, um pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento, um pensamento pós-abissal”. Segundo o autor, é somente com uma perspectiva assim delineada que se pode vislumbrar uma justiça social global, e que, para isso, é preciso luta. Nesse sentido, advogamos que a pesquisa em educação deve ser uma ferramenta de mudança social com vistas à manutenção da educação enquanto um direito de todos e à emancipação dos sujeitos.

Considerações finais

Neste texto, nossa reflexão girou em torno de experiências em pesquisas que se inscrevem na tradução de processos educativos de natureza não escolar, tomando de início registros sobre a educação não escolar na literatura pedagógica, e adentrando o domínio conceitual de uma educação em sentido amplo, vista como cultura, na qual o escolar é parte integrante.

As experiências em pesquisas educacionais analisadas resultam de um esforço coletivo em refletir teoricamente sobre a educação, os critérios de inteligibilidade que orbitam as suas práticas educativas e o que representam em termos epistemológicos, éticos e políticos no século XXI. Daí a contribuição de pesquisadores do GHEDA ao campo da produção do conhecimento em educação não escolar quando abordam experiências socioculturais, sujeitos, espaços e temporalidades da educação por meio das pesquisas que vêm fomentando.

Sob o compromisso ético e político da pesquisa em educação não escolar, o enfrentamento da monocultura do saber e suas práticas antidialógicas deve acontecer prioritariamente a partir do debate epistemológico. Como possibilidade, encontramos, nos campos teóricos da História Cultural, do Pós-colonialismo e da Decolonialidade, terrenos férteis para a produção do conhecimento em educação não escolar, embora reconheçamos a existência de outros não menos importantes.

No tocante ao desenvolvimento do campo da educação não escolar, faz-se igualmente necessária a incursão sobre a produção do conhecimento de modo a estabelecer o estreitamento das fronteiras entre os saberes não escolares e a educação formal. Esse esforço deve também passar pela revisão dos dispositivos legais que regem a educação no Brasil, sobretudo a Base Nacional Comum Curricular e a formação de educadores. Mas essas são questões para reflexões futuras.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    O Grupo de pesquisa História da Educação na Amazônia (GHEDA) promove encontros, debates e seminários sobre a história da educação na Amazônia com vistas à construção de um banco de dados, a partir da Amazônia paraense; incentiva a produção do conhecimento e a formação de pesquisadores no campo da história da educação regional objetivando, desse modo, o fortalecimento do ensino e da pesquisa na região em âmbito de graduação (TCC), Iniciação Científica e dissertações de mestrado fomentadas a partir das discussões internas do Grupo. Uma descrição mais detalhada sobre o GHEDA pode ser conferida no diretório de grupos de pesquisa do CNPq. Disponível no endereço eletrônico dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9169603003608362.
  • 2
    Segundo Gohn (2020, p. 12), “[...] atribui-se a P. H. Coombs (1968) o reconhecimento e a popularização da concepção de outras formas e meios educacionais desenvolvidos fora da escola com objetivos educacionais. Inicialmente, ele não diferenciava a informal da não formal - usava-as simultaneamente. Posteriormente, Coombs, junto com Ahmed, ampliaram o campo educacional para três modalidades e eles as diferenciam em: formal, não formal e a informal (Coombs e Ahmed, 1974)”.
  • 3
    Cf. art. 1º da LDB. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394compilado.htm
  • 4
    Uma descrição mais precisa desses e outros aspectos atrelados a constituição do campo científico em educação não escolar podem ser encontrados no capítulo I da Tese de doutorado de Emerson Zoppei, intitulada A educação não escolar no Brasil. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-18082015-135957/pt-br.php
  • 5
    Ao pensarmos a educação como experiência humana, consideramos a relação humano/não humano como parte integrante do processo educativo, justamente por entendermos que nessa relação há processos formativos, a exemplo das experiências educativas entre homens e mulheres e o sagrado. Sobre o tema ver Albuquerque (2012), Brandão (1986; 2002) e Meslim (2014).
  • 6
    O Programa de Pós-Graduação em Educação da UEPA foi criado na vigência do V Plano Nacional de Pós-graduação (2003-2010) através do Parecer nº 163/2005 emitido pela CAPES, compondo-se a partir de duas linhas de pesquisa: Formação de professores e Saberes culturais e educação na Amazônia, sendo esta última lócus de investigação da pesquisa de Ana Célia do Nascimento Morais (MORAIS, 2017).
  • 7
    Tal perspectiva é assumida por Gruzinski (2014, p. 51) ao afirmar que a dependência dos europeus em relação à sabedoria nativa dos ameríndios na Amazônia colonial era sinônimo de sobrevivência e propõe que “[...] se deveria escrever uma história dos saberes sobre a Amazônia, que registraria sistematicamente o papel dos nativos”. O trabalho de Lévi-Strauss (2011) é uma referência importante nos estudos antropológicos sobre a sabedoria indígena, sobretudo o modo educativo como se apropriam e fazem circular sua sabedoria marcada pela tradução do cotidiano em suas relações socioculturais.
  • 8
    Na primeira Geração dos Annales (1929-1945), estão os fundadores da revista: Lucien Febvre e Marc Bloch, à frente de pesquisas históricas envolvendo cultura e economia, em uma perspectiva de longa duração. Na segunda geração (1945-1968), destaca-se Fernand Braudel e seu estudo demográfico intitulado O Mediterrâneo. Na terceira geração (1968-1989), estão Jaques Le Goff e Pierre Nora, ambos envolvidos em pesquisas no campo das mentalidades.
  • 9
    O termo educações inspira-se nas assertivas de Carlos Rodrigues Brandão constantes no livro O que é educação, no qual o autor aborda a educabilidade humana a partir de uma percepção ampliada de educação, propondo ser a instituição escolar uma entre as várias formas de educar os sujeitos (BRANDÃO, 2007).
  • 10
    Em América Latina e o giro decolonial, Luciana Ballestrin recupera a trajetória do Grupo Modernidade colonialidade em uma instigante análise sobre o campo teórico e epistemológico da Decolonialidade. (BALLESTRIN, 2013).
  • 11
    Os desafios apresentados pelos autores estão no centro dos debates sobre as pesquisas em perspectivas decoloniais. Adotamos tais desafios a priori pela pertinência e pela proximidade com as nossas reflexões sobre as pesquisas que se inscrevem no universo da educação não escolar na Amazônia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2022
  • Aceito
    12 Jul 2023
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