Open-access “Um banquete literário”: um mosaico sobre literatura infantil, cultura afro-brasileira e africana, currículo e formação docente

“A literary banquet”: a mosaic about children's literature, Afro-Brazilian and African culture, curriculum and teacher training

RESUMO

De natureza ensaística, este texto tem como objetivo analisar discursos produzidos por meio de depoimentos, imagens e reflexões de participantes de um projeto realizado entre os anos de 2020 e 2022, em uma escola municipal de Serra-ES. O projeto envolveu formações sobre mediação literária e educação das relações étnico-raciais com docentes e crianças dos anos iniciais do ensino fundamental. Tomando a metáfora de um mosaico, o texto explora os impactos do conjunto de formações realizadas envolvendo uma relação muitas vezes tensa e dicotômica: criança X adulto/a. Ligadas a essa relação, outras peças do mosaico são reunidas, a saber: literatura infantil, cultura afro-brasileira e africana, currículo e formação docente. A metodologia para análise dos discursos parte de Grada Kilomba (2019) e refere-se a uma proposta de interpretação “centrada em sujeitos”, enfatizando a natureza das experiências subjetivas. Ao nos propormos juntar as peças, o desenho que se forma acena para alguns importantes resultados, dentre eles: ao serem instigadas/os acerca de temáticas antes não recorrentes em suas trajetórias, crianças e professoras/es refletem sobre o quanto a formação no campo da educação das relações étnico-raciais, história e cultura afro-brasileira e africana em diálogo com a literatura infantil produzem transformações não apenas em suas subjetividades, mas também no currículo, reconhecido como uma prática discursiva produtora de sentidos.

Palavras-chave: Literatura Infantil; Currículo; Formação; Cultura Afro-Brasileira e Africana

ABSTRACT

Of an essayistic nature, this text aims to analyze the discourses produced through testimonials, images and reflections of participants in a project carried out between the years 2020 and 2022, in a municipal school located in the municipality of Serra, state of Espírito Santo, Brazil. The project involved training sessions on literary mediation and education regarding ethnic-racial relations, targeting teachers and children in the early years of elementary school. Employing the metaphor of a mosaic, the text explores the repercussions of the comprehensive training sessions undertaken, which involved an often tense and dichotomous relationship: child vs. adult. Considering this relationship, other pieces of the mosaic are gathered, namely: children's literature, Afro-Brazilian and African culture, curriculum and teacher training. The methodology for analyzing these discourses is based on Grada Kilomba (2019) and advocates for a "subject-centered" interpretation, emphasizing the nature of subjective experiences. As the pieces of the mosaic are gradually assembled, the resultant design sheds light on several significant outcomes. Notably, when prompted to engage with themes previously absent from their experiences, both children and teachers reflect upon the profound impact of their training in the realm of children's education, ethnic-racial relations, Afro-Brazilian and African history and culture, in conjunction with children's literature. These reflections culminate in transformative shifts not only in their individual subjectivities but also in the curriculum, recognized as a discursive practice that yields meaning.

Keywords: Children's Literature; Curriculum; Training; Afro-Brazilian and African Culture

A mesa do banquete está posta

Este artigo se constitui de um mosaico de ideias e ações decorrentes do projeto de pesquisa aplicada intitulado “LitERÊtura: formação em literatura infantil e juvenil com temática da cultura africana e afro-brasileira1” realizado entre os anos de 2020 e 2022 em uma escola municipal de ensino fundamental de Serra-ES, cuja proposta foi desenvolver, com docentes e crianças, formações sobre mediação literária e educação das relações étnico-raciais. Tratou-se de um projeto de natureza extensionista vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo e à Secretaria Municipal de Educação da Serra-ES (SEDU/Serra).

O objetivo deste texto é apresentar e discutir, de modo ensaístico, alguns dos resultados do projeto, registrados por meio de imagens, depoimentos e reflexões teórico-metodológicas. Essa proposta está inspirada em Jorge Larossa (2003, p. 105), quando questiona a pouca valorização de modos outros de escrita acadêmica, como é o caso do ensaio, excluído “[...] pelo menos das formas de saber e de pensar que dominam no mundo acadêmico”. Essa exclusão se deve, para ele, pela imposição de determinados modos de escrita em que não cabe uma maior “liberdade temática e formal” de análise (Larossa, 2003, p. 106). A aposta que fazemos é no sentido de explorar a potencialidade que um texto de cunho ensaístico oferece por justamente possibilitar com que o conteúdo e forma encontrem-se de modos menos rígidos e pré-estabelecidos.

Como as imagens, depoimentos e reflexões compõem discursos, metodologicamente tomamos a proposta de Grada Kilomba (2019) para a interpretação do discurso “centrada em sujeitos”. Fundamentada, por sua vez, nos estudos de Paul Mecheril, Kilomba (2019, p. 81) defende que a centralidade nos sujeitos possibilita analisar “[...] as experiências, autopercepções e negociações de identidade descritas pelo sujeito e pela perspectiva do sujeito”. Tal metodologia dialoga com a nossa proposta de discutir, também a partir de nossas impressões e interpretações, todo o conjunto de peças que compõem esse mosaico. A noção de mosaico é compreendida por nós como uma metáfora bastante apropriada quando pensamos no tema deste texto pois, por sua natureza, cada peça separada não constitui sentido por si só, mas, ao se unir às outras, compõe-se uma obra. Tal entendimento dessa produção de texto como mosaico reflete a apropriação e experiência formativa que conflui nos aspectos culturais africanos de totalidade e interdependência, assim como defende Eduardo Oliveira (2003, p. 116): “Tudo é importante na medida em que tudo está interligado com o todo. O conjunto é importante e não o particular. [...] a parte é importante justamente e na medida em que ela é integrante do todo”.

No caso aqui pensado, constitui uma obra estético-educativa por agregar reflexões sobre/com crianças, literatura infantil, formação docente, cultura afro-brasileira e africana, tudo isso atravessado pelo currículo e sua força social. Para tanto, inicialmente exploraremos algumas questões epistemológicas e conceituais. Começamos por “criança”. Davis Moreira Alvim e Izabel Rizzi Mação (2018, p. 79) recuperam que a palavra criança “[...] advém do latim creare, ou seja, do mesmo radical de que decorrem as palavras ‘criação’ e ‘criatividade’. Trata-se de uma composição do verbo ‘criar’ com o sufixo ‘ança’, lembrando a ação que resulta do criar”.

Outra definição que será importante no decorrer deste ensaio é “literatura infantil”. Em sentido radical, poderíamos defini-la como sendo a arte da palavra produzida por crianças. No entanto, tal nível de radicalidade aqui não será encarado pois essa provocação seria difícil de ser levada a cabo já que a literatura infantil pensada no presente artigo parte de pessoas adultas. De modo geral, literatura infantil será definida a partir de Ligia Cademartori (2010):

A literatura infantil se caracteriza pela forma de endereçamento dos textos ao leitor. A idade deles, em suas diferentes faixas etárias, é levada em conta. Os elementos que compõem uma obra do gênero devem estar de acordo com a competência de leitura que o leitor previsto já alcançou. Assim, o autor escolhe uma forma de comunicação que prevê a faixa etária do possível leitor atendendo seus interesses e respeitando suas potencialidades. A estrutura e o estilo das linguagens verbais e visuais procuram adequar-se às experiências da criança. Os temas são selecionados de modo a corresponder às expectativas dos pequenos, ao mesmo tempo em que o foco narrativo deve permitir a superação delas. [...]

Produção de adulto para criança, nela se manifestam as ideias dos mais velhos sobre o que as crianças devem ser e pensar. Com frequência, no livro infantil se desenha nosso sonho de infância, ou, noutro extremo, predomina o intuito de formação, ganha forma a concepção racional e ideológica do que o adulto pensa deva fazer parte dos conceitos a serem adquiridos na infância (Cademartori, 2010, p. 11-12).

E já que um novo termo “adulto” apareceu, seria a deixa para o definirmos. Mas, ao invés disso, propomos definir uma palavra dela derivada e que se aproxima mais da nossa intencionalidade: “adultério”. Para Alexsandro Rodrigues et al. (2017, p. 12), adultério significa “[...] o reino dos adultos que traíram a própria crianceria em busca das promessas de poder, completude e conforto no invivível ser sempre ‘igual’ -, os corpos tornam-se estátuas atônitas, parecendo formas eternas e imutáveis”.

Em busca de nos reencontrarmos com nossa própria crianceria (termo que não definiremos por ora) para então chegarmos também ao tema da formação docente, insistiremos em aproximar a tríade que vem se desenhando nos primeiros parágrafos deste ensaio: criança, literatura infantil e adultério. Na condição de pessoas adultas, por não possuirmos mais (não ao menos como antes) tão nítidos os conhecimentos da criança que fomos, precisamos, por vezes, relembrar ou reinventar como é ser criança. Pensando sobre o encontro do verbo ‘criar’ com o sufixo ‘ança’, Alvim e Mação (2018, p. 79) provocam: “Porém, o que os dicionários de etimologia não explicam é como, exatamente, a criança cria. [...] a criança cria querendo”. Enquanto às energias adultas pertencem forças reativas e relacionadas à conservação, adaptação e utilidade (Alvim; Mação, 2018), às crianças pertencem forças ativas: “[...] inconscientes, superiores, espontâneas, agressivas, conquistadoras, transformadoras e criativas (Alvim; Mação, 2018, p. 79), as quais dificilmente a adultez (ou o “adultério”) sabe operar.

Por isso chegamos a um ponto crítico em nossa reflexão: como seguir adiante neste texto se estamos partindo da adultez para pensar criança e, mais ainda, da literatura endereçada à criança? É aí que acionamos fundamentos não mais ocidentais por entendermos que eles nos manteriam sob uma lógica dicotômica (ou ser criança ou ser adulta/o). Buscamos no pensamento de Sobonfu Somé (2009) e do seu povo, Dagara, a saída. E é por meio dos espíritos que ela nos acena o caminho:

Existem muitos espíritos diferentes, na África. Cada um deles tem um papel específico, ou uma característica específica, que pode nos ajudar. O espírito da terra, por exemplo, é responsável por nossa identidade, nosso conforto, nossa alimentação, e assim por diante. Existe ainda o espírito da natureza, o espírito do rio, o espírito da montanha, o espírito dos animais, da água e dos ancestrais. Espírito está em toda parte (Somé, 2009, p. 27).

A grande preocupação da autora é o risco de nos afastarmos dos espíritos. Por isso ela alerta: “Precisamos tentar não educar nossas crianças longe do espírito, para que elas não tenham de despertar tanto esforço para se reconectar, quando crescerem. Quando já sabem que têm um espírito, todo o resto é compreendido. Essa compreensão torna a vida mais fácil para elas” (Somé, 2009, p. 34). Inspiradas nesse alerta buscamos, por sua vez, no princípio de “erê”, o fundamento para justificar de onde partimos epistemológica e metodologicamente neste texto. E dessa vez não ousaremos definir erê para além de o “espírito de alegria” característico de cada criança e que, cremos, habitar cada pessoa adulta também. Ou, ainda, podemos associar erê à crianceria. Avançar mais sobre qualquer outra definição é inviável para nós pois, como diz a música: “Pra entender o erê tem que tá moleque” (Da Gama; Garrido; Vilhena, 1996).

A escolha dessa abordagem não ocidental se dá, também, de modo proposital pois parte de uma posição epistemológica que assumimos neste texto: explorar fundamentos da cultura afro-brasileira e africana, outra peça do nosso mosaico. Considerando as mudanças curriculares ocorridas pela alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em especial a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira na educação2, é imprescindível relembrarmos que os motivos que levaram a essa mudança é um conjunto de lutas empreendidas pelo Movimento Social Negro em prol do reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, de reparações que visem ressarcir simbólica e historicamente:

[...] os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. Visa também a que tais medidas se concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda sorte de discriminações (Brasil, 2004, p. 3).

Essas palavras, registradas nas “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana3” (Brasil, 2004), reiteram o que Nilma Lino Gomes (2017, p. 68) reconhece como disputa: “Os saberes expressos nesses documentos ainda não são devidamente considerados enquanto tais pelo campo do conhecimento e pela teoria educacional. Trata-se de uma disputa [que encontra espaço], principalmente, no campo dos currículos”. Sendo, portanto, um campo de disputa no currículo, fomentar produções acadêmicas nesse sentido é, também, disputar narrativas curriculares, afinal, como nos lembra Tomaz Tadeu da Silva (2017, p. 15): “O currículo é sempre resultado de uma seleção”. E sendo uma seleção ela é produzida com base na disputa e na correlação de forças. Por isso, entendemos que aliados a qualquer proposta de análise de práticas pedagógicas e currículos estão as lutas sociais. Como refletem Cleriston Izidro dos Anjos, Solange Estanislau dos Santos e Fernando Ilídio Ferreira (2017):

As lutas pela educação consistem em ações, movimentos e mobilizações sociais, enquanto formas de ação coletiva que buscam conquistar ou reconquistar um espaço social, no reconhecimento de que as estruturas sociais condicionam a ação humana, mas não a determinam completamente. É neste sentido que a sociedade constrói o seu futuro, tanto por via de mecanismos estruturais como através das suas próprias lutas sociais (Anjos; Santos; Ferreira, 2017, p. 158).

Incluídas nessas lutas está a formação docente, outra peça do nosso mosaico. Para que pudéssemos chegar a ela, foi preciso recuperar que pessoas adultas podem - quando querem ou sabem que podem querer - acionar o princípio erê em seu modo de pensar o mundo. Por isso o nome deste artigo: trata-se de uma frase proferida pela professora Maria4 ao se deparar com o acervo literário adquirido para a sua escola por meio do projeto de pesquisa aplicada. Ao dizer “É um banquete! É um banquete literário5”, Maria, uma professora branca, acionou a euforia de criança diante de uma deliciosa guloseima que, nesse caso, era o livro literário e que também pode ser considerado uma guloseima para uma criança que o vê.

FIGURAS 1 e 2
Livros adquiridos para o acervo da escola

Aquele era, de fato, um banquete. Nunca antes na história das nossas existências (de todas as pessoas participantes do projeto) tínhamos nos deparado com mais de 200 livros de “literatura infantil com temática da cultura africana e afro-brasileira6”. Assim, é possível que nossas papilas gustativas/sensitivas possam ter sido acionadas diante da explosão de cores e sabores com que aquelas obras, tão vívidas e carregadas de “nós” representaram aos nossos olhos. Os "nós", nesse caso, têm um sentido duplo: o pronominal, referindo-se à nossa identidade negra (das autoras deste texto); e o substantivo "nós", representando os emaranhados de enredos prontos para serem desatados através da leitura.

Não é comum às bibliotecas escolares acervos dessa natureza e, por isso, tudo o que desse grupo de livros procedeu e decorreu (desde o curso de formação às ações desenvolvidas em sala de aula) afetou todas as infâncias envolvidas, seja das crianças estudantes da escola, seja das pessoas adultas, na condição de docentes, pesquisadoras, equipe pedagógica e de coordenação, mães, pais e familiares de um modo geral. Como as dimensões deste texto impedem um maior detalhamento dos cheiros e sabores proporcionados pelo acervo a todas as pessoas envolvidas, nos concentraremos nas crianças, professoras e professores participantes da pesquisa.

Não é comum às bibliotecas escolares acervos dessa natureza e, por isso, tudo o que desse grupo de livros procedeu e decorreu (desde o curso de formação às ações desenvolvidas em sala de aula) afetou todas as infâncias envolvidas, seja das crianças estudantes da escola, seja das pessoas adultas, na condição de docentes, pesquisadoras, equipe pedagógica e de coordenação, mães, pais e familiares de um modo geral. Como as dimensões deste texto impedem um maior detalhamento dos cheiros e sabores proporcionados pelo acervo a todas as pessoas envolvidas, nos concentraremos nas crianças, professoras e professores participantes da pesquisa.

Pensar qualquer definição de formação docente (a quarta peça do mosaico) nesse contexto passa, necessariamente, pela dimensão da diversidade. E nesse sentido Nilma Lino Gomes e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2011) refletem o quanto o percurso histórico da formação docente no Brasil por muito tempo se dedicou a pensar os processos entre formação inicial e continuada ou técnicas e métodos de ensino, mas que, cada vez mais, definir formação docente implica pensar os contextos socioculturais envolvidos na atuação profissional de professoras e professores:

Verifica-se um empenho entre alguns autores que se dedicam ao estudo da formação de professores/as para superar a visão estática, conteudista, limitada ao domínio de métodos e técnicas de ensino ainda presente na formulação de cursos e de outras atividades de mesma natureza. Há, também, um movimento de reconhecer que todas as fases da formação de professores e professoras possuem importância e sentido, desmistificando a supervalorização da formação inicial. Essas posturas ajudam a esclarecer que os/as professores/as, ao se inserirem no processo de formação inicial, já trazem consigo valores, conhecimentos e competências acerca do universo profissional e social em que irão atuar, embora muitas vezes a partir de preconceitos e estereótipos (Gomes; Silva, 2011, p. 13).

Por isso, para nós formação docente é definida a partir “[...] da identidade do professor e da professora, enquanto agentes pedagógicos e políticos, com direitos e deveres não só de executar políticas educacionais, mas de participar com sua concepção e avaliação” (Gomes; Silva, 2011, p. 14). Dessa forma, já acrescentamos mais um conceito ou mais uma última e tão importante peça para a composição do nosso mosaico que será montado nas seções seguintes: currículo. Se considerarmos que a formação de professoras e professores envolve, necessariamente, suas formações pessoais e relação com o mundo, o currículo que as/os atravessa também representa uma atribuição de sentidos, como bem destaca Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo (2011):

[...] o currículo é, ele mesmo, uma prática discursiva. Isso significa que ele é uma prática de poder, mas também uma prática de significação, de atribuição de sentidos. Ele constrói a realidade, nos governa, constrange nosso comportamento, projeta nossa identidade, tudo isso produzindo sentidos. Trata-se, portanto, de um discurso produzido na interseção entre diferentes discursos sociais e culturais que, ao mesmo tempo, reitera sentidos postos por tais discursos e os recria. [...] Qualquer manifestação do currículo, qualquer episódio curricular, é a mesma coisa: a produção de sentidos (Lopes; Macedo, 2011, p. 41-42).

Concordando com as autoras, o que pudemos experenciar no âmbito do projeto aqui elencado foi o quanto o currículo reflete-se em produção de sentidos. Por isso, munidas das peças necessárias, nas seções seguintes montaremos o mosaico que se propõe, também, a ser mais uma produção de sentidos. Na primeira parte apresentaremos aspectos do curso de formação realizado com o corpo docente da escola, por meio de depoimentos e discussões teóricas sobre literatura infantil, mediação literária e cultura afro-brasileira e africana. Na sequência, exploraremos algumas questões apontadas por crianças e professoras/es sobre identidade negra e literatura infantil.

“Eu achei que estava no lugar certo na hora certa”

Para contextualizar a frase que intitula esta seção, primeiramente descreveremos, ainda que de modo sucinto, os processos formativos realizados no projeto de pesquisa aplicada, tema deste artigo. Dividido em três etapas ao longo de 18 meses (entre novembro de 2020 a abril de 2022), é preciso destacar o quanto a pandemia de COVID-19 foi um dificultador para todo o projeto, em especial pelas dificuldades tecnológicas que envolveram os encontros e reuniões virtuais e a falta de contato humano, um aspecto que compunha a própria natureza do projeto (que inicialmente previa oficinas de instrumentos de percussão, corporeidade e dança afro, mas que não puderam ocorrer). Mesmo assim, foi possível constituir uma série de ações propositivas e, posteriormente, interventivas no âmbito da formação docente e práticas pedagógicas.

A primeira etapa consistiu no planejamento e realização de um curso de formação com o corpo docente (do turno vespertino, que aloca as turmas de 1º ao 5º ano) da escola participante do projeto. Também foram abertas vagas para docentes de outras instituições do município da Serra, com o aval da SEDU/Serra. O curso (realizado no 1º semestre de 2021) foi composto de 10 encontros síncronos de 3 horas cada, com atividades assíncronas relacionadas, e abordou conteúdos sobre: Diretrizes Curriculares de ERER; trajetória de personagens negras na literatura infantil; produções mais recentes, que tendem à valorização da cultura africana e afro-brasileira; possibilidades de mediação literária. Além disso, ao final foi composto um painel elaborado pelas/os cursistas sobre propostas de trabalho com obras adquiridas para o acervo da escola. Integrantes do grupo de pesquisa responsável pela coordenação do projeto conduziram os encontros formativos, além de orientarem e corrigirem7 as atividades assíncronas.

No segundo semestre/2021 ocorreu a próxima etapa do projeto. Chamados de “projetos de intervenção” as ações foram realizadas por professoras e professores de turmas do 1º ao 4º ano8, com supervisão da equipe de coordenação do projeto, visando explorar, na prática, as potencialidades de mediação literária de obras com temática da cultura africana e afro-brasileira. Nessa etapa, juntamente com o corpo docente, as crianças foram as grandes protagonistas pois, em contato com o novo acervo que acabara de ser incorporado à biblioteca de sua escola, foram estimuladas - tanto pelas professoras e professor regente, quanto pelas disciplinas de área (ministradas pelas/os professoras/es de Artes e Educação Física) - a explorar novos sentidos da leitura literária pois, em sua maioria, se deparavam pela primeira vez com obras que protagonizavam também personagens negras, tal como elas. E nesse contexto cabe ressaltar que o município da Serra, além de ser o maior em termos populacionais do Espírito Santo, é composto de maioria negra (63%)9 e a escola em questão, localizada em um bairro de periferia, também é composta de crianças e adolescentes predominantemente pretas e pardas, alcançando o total de 80,5% de matrículas, conforme dados de 202110 fornecidos pela Gerência de Estatística e Informação da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo (Espírito Santo, 2021).

A última etapa envolveu a escrita de um livro (Araujo; Penha, 2022 ) contendo os caminhos teórico-metodológicos do projeto e uma produção audiovisual (LitERÊtura, 2022) para registrar as ações realizadas. Além disso, Ione Reis, artista plástica e integrante do grupo que coordenou o projeto, produziu um painel na quadra da escola (Figura 3) que contou com a participação de crianças (Figura 4):

FIGURA 3
Muro da quadra da escola

FIGURA 4
Uma estudante do 4º ano pintando o muro com tinta guache

A frase que abre esta seção foi dita pelo professor Marcos, que atuou na disciplina de Artes com crianças do 1º ao 4º ano do ensino fundamental da escola. Ele se referia aos impactos do curso de formação e, posteriormente, ao seu contato com o acervo adquirido para a escola. Um aspecto por ele exemplificado foi a “beleza e a plasticidade” dos livros, ressaltando que “na minha época a gente não tinha isso. Eu não tive isso”. As palavras de Marcos, um homem negro, ator e brincante da cultura popular (tal como se define), e que foram proferidas enquanto segurava em suas mãos o livro “Ynari, a menina das cinco tranças”, de Ondjaki (2010), reiteram experiências sensoriais e estéticas que acionam sentidos também políticos ao rememorar que em sua infância (“na minha época”) a referência humana negra não se fazia presente nas artes visuais e literárias. Essa experiência com o objeto livro é assim analisada por Debus (2006, p. 34):

O contato do leitor com o objetivo livro pela feição material, considerado aqui a primeira cerimônia de apropriação da leitura, leva-nos a refletir sobre as manifestações sensoriais advindas do relacionamento palpável entre o leitor e o livro. Poderíamos dizer que o leitor aproxima-se do livro estimulado pelos cinco sentidos.

É possível inferir que para Marcos o contato com esse tipo de obra literária, ainda que tardio, ofereceu-lhe “[...] um aroma múltiplo de passado e futuro em relação ao livro presente” (Debus, 2006, p. 34). Esse encontro reforça o que Gomes e Silva (2011) analisam sobre a formação de docentes reflexivas/os, que passam a reconhecer como os atravessamentos de suas trajetórias de vida também compõem sentidos para a atuação profissional.

Entre as perspectivas que se têm aberto para o estudo da formação de professores/as, vêm encontrando interesse crescente aquelas que focalizam as histórias de vida, o desenvolvimento profissional, a formação de professores reflexivos e de novas mentalidades. Questões, até pouco tempo, não levadas seriamente em conta, mas que as pesquisas e os debates de caráter pedagógico relativos à construção das identidades, valores, ética, religião, relações de gênero, de raça, de trabalho têm mostrado serem relevantes dimensões na atuação profissional dos/as professores/as (Gomes; Silva, 2011, p. 14).

Isso reitera o quanto não apenas o currículo não é neutro, como já afirmado por Michael Apple (1999)11 e todas outras referências do campo, como o fato de que as nossas práticas pedagógicas também não o são, pois partem, invariavelmente, de uma confluência de interações “[...] entre as dimensões da vida pessoal e profissional” (Gomes; Silva, 2011, p. 19). Mas como fazer para que essa confluência não penda apenas para um lado, em especial para uma tendência de sobreposição de valores pessoais (muitos deles fundamentados em posições preconceituosas e discriminatórias de encarar o mundo)? No caso aqui em questão, que se relaciona ao trabalho com a literatura infantil permeado por elementos da educação das relações étnico-raciais, cultura afro-brasileira e africana, é imprescindível a compreensão da importância sociopolítica de uma formação docente que investigue tais elementos. E, nesse sentido, as Diretrizes Curriculares de ERER acenam para essa relevância:

A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática (Brasil, 2004, p. 8).

Portanto, não se trata de um jogo sem regras. É preciso encarar a diversidade étnico-racial-cultural em seu sentido político, ou seja, a diversidade “[...] é mais do que uma questão colocada à sociedade, à escola e ao currículo para ser tratada sem preconceitos” (Gomes; Silva, 2011, p. 21), pois se a reduzirmos a uma mera questão, há chances de nos limitarmos a uma tendência celebrativa e esvaziada das diferenças que nos compõem. É preciso ir além e encarar a diversidade como “[...] componente dos processos de socialização, de conhecimento e de educação. [...] Reconhecê-la é assumir uma nova relação com os processos de construção do conhecimento, dos valores e das identidades. É assumir uma nova postura profissional” (Gomes; Silva, 2011, p. 21-22).

Foi isso aconteceu com a professora Alda, uma mulher branca, quando se refere à sua mudança a partir do curso de formação e do contato com novos livros:

Depois da formação com vocês, eu passei a observar a importância que é a gente trabalhar com as crianças dentro desse contexto explicando pra eles, fazendo eles se entenderem, eles se aceitarem como eles são, de eles construírem a identidade deles desde pequenos. Então, isso foi muito importante pra mim porque eu não tinha vivido isso ainda. A única coisa que eu fazia era no Dia da Consciência Negra, a gente fazia aquelas bonequinhas e contar aquela da menina bonita do laço de fita (Depoimento da professora Alda. Destaques nossos).

De todo o conteúdo proferido pela professora Alda, destacamos o quanto tudo o que ocorreu durante o projeto foi relevante para ela, pois não “tinha vivido isso ainda”. Concordamos com a necessidade de saber o que pensam professoras e professores que “[...] se educam e constroem as suas identidades [docentes] para além dos processos educativos formais”, já que “[...] o processo de formação depende dos caminhos educativos, mas não se deixa controlar pela pedagogia, correndo o risco de tornar-se asfixiado” (Gomes; Silva, 2011, p. 22). Em certa medida, o que o projeto proporcionou a ela foi uma possibilidade aumentada de respiro, de superação de uma asfixia que confinava seu trabalho na “história única” que, no caso, se referia literalmente a uma única obra. Essa obra12 possivelmente era trabalhada anualmente em uma mesma época: no mês de novembro, durante as “celebrações” do Dia Nacional da Consciência Negra. As aspas, nesse caso, denotam ironia devido à recorrência de experiências realizadas nesse período, as quais mais reforçam práticas equivocadas do que promovem a consciência negra.

Outro aspecto de realce sobre as falas de Marcos e Alda são seus discursos sendo proferidos a partir de suas próprias experiências subjetivas demonstrando que a centralidade nos sujeitos não reduz à análise do fenômeno por si só (Kilomba, 2019). Ao contrário, ao humanizarem suas práticas pedagógicas e abrirem-se, com franqueza, à reflexão sobre como foram suas trajetórias até ali, ambos assumem uma postura considerada por bell hooks13 (2017, p. 211) como libertadora: “[...] imaginar-me como uma professora progressista que está disposta a assumir tanto seus sucessos quanto seus fracassos em sala de aula”. E especialmente para Marcos, a rememoração de sua trajetória como homem negro possibilitou não apenas refletir sobre o contexto atual de representatividade negra percebida nos livros, mas também a criação de uma “gestalt” sobre a realidade do racismo em sua vida, “[...] possibilitando a reconstrução da experiência negra14 dentro do racismo” (Kilomba, 2019, p. 85, destaque da autora). O mesmo pode ser percebido em vozes de crianças participantes do projeto, como demonstra a fala de Alessa, na seção seguinte.

Quando a gente fala: “Vou pegar essa cor de pele”, não existe cor de pele!

Ao ser perguntada sobre o que achava do projeto realizado em sua escola, Alessa, uma menina negra, estudante do 3º ano, destacou o quanto havia aprendido sobre a cor da pele das pessoas:

Quando a gente fala “Vou pegar essa cor de pele”, aí, não existe cor de pele. Tem que explicar pra pessoa: marrom é a mesma cor que essa garota tem aqui [mostrando a capa do livro “Makeba vai à escola”, de Ana Fátima (2019 )](Depoimento de Alessa, estudante do 3º ano).

Sua posição reflete a compreensão também assumida pelas professoras e professores envolvidas/os com o projeto: se antes a noção de “cor de pele” representava, nas palavras de Maria Aparecida Silva Bento (2002, p. 25), o branco “como modelo universal de humanidade”, a posição de Alessa acena para uma ruptura do projeto de branquidade instituído ao alertar: “Tem que explicar pra pessoa”. Tal movimento, ainda que aparentemente inicial, revela-se de grande potência se pensarmos sobretudo nos efeitos das discriminações concretas e simbólicas atuando na “[...] natureza dos processos de desenvolvimento, interferindo na formação de sua identidade” (Bento, 2012, p. 101). A autora destaca como crianças pequenas já percebem diferenças raciais podendo, a depender dos estímulos, hierarquizá-las, pois “[...] são particularmente atentas ao que é socialmente valorizado ou desvalorizado, percebendo rapidamente o fenótipo que mais agrada e aquele que não é bem aceito” (Bento, 2012, p. 101). Em Kilomba (2019, p. 145-149) isso é interpretado como “[...] um mecanismo de negação massivo, no qual a negritude é apenas admitida na consciência em sua forma negativa”. E, assim como na pesquisa da autora em que uma entrevistada explica o quanto isso lhe soava perturbador, também soa para Alessa ao indignar-se com a tentativa de apagamento de sua identidade por meio da noção genérica de “lápis cor de pele”.

Por isso concordamos com Gomes (2019) ao alertar sobre a necessidade de se destacar o currículo na relação entre infância e questão racial:

Compreender a criança negra como sujeito de conhecimento e de direitos e colocar a relação entre infância e questão racial como um dos eixos centrais de um currículo emancipatório implica reconhecer a diversidade racial na sua dimensão afirmativa, como parte da existência humana ( Gomes, 2019 , p. 1022-1023).

Unem-se à Alessa outras crianças, como Kauã, um menino do 2º ano, branco e de olhos azuis que, ao comentar sobre o livro “Cada um com seu jeito, cada jeito é de um”, de Lucimar Rosa Dias (2012), diz: “Mas eu gostei muito também. Da carinha, do olho e da boca. Foi muito especial, fizeram com muito detalhe”.

Em ambas as falas, unidas às das professoras e dos professores participantes do projeto, é possível reconhecer que a noção de beleza potencializada a partir de práticas de mediação da leitura de obras com valorização de personagens negras acionou sentidos múltiplos também nas crianças brancas, convergindo com o que Gomes (2019) discute sobre o processo de construção da identidade como um processo contínuo e mutável que “[...] pode ser modificado, tanto para as crianças brancas quanto para as negras, levando-as a outros estágios de interação humana, que possibilitem, no futuro, mais dignidade e respeito nas relações raciais” (Gomes, 2019, p. 1030).

Isso também dialoga com a assertiva de Eliane Cavalleiro (2006, p. 92) sobre a formação da identidade de crianças negras e brancas, indicando que, para o primeiro grupo, o racismo produz como consequência um sentimento de inferioridade, enquanto para o segundo produz um sentimento de superioridade.

Propostas de mediação da leitura com obras que contextualizam outros modelos de humanidade contribuem para enfrentar a ideia do corpo branco como universal e promover, no interior da formação das subjetividades de todas as crianças, representações mais múltiplas de si e do mundo à sua volta.

E nesse sentido reflexões sobre autopertencimento étnico-racial compuseram uma grande potência nas ações realizadas. Vanessa, uma mulher branca, coordenadora pedagógica da escola, assim refletiu sobre a repercussão do projeto em âmbito curricular e do pertencimento identitário das crianças:

Que entende a sua raiz, entende a sua nacionalidade, entende o que é ser uma princesa ou um príncipe, não dos contos de fadas somente brancos [...]. Eles estão começando a se ver como seres principalmente nas histórias (Depoimento de Vanessa, Pedagoga).

A noção de príncipes e princesas negras foi amplamente debatida no projeto por dois sentidos: devido ao corpo docente da escola ter tido, antes do projeto, acesso a formações escassas sobre literatura infantil e a maioria delas concentradas em clássicos infantis de base europeia; quanto por parte das crianças, que tiveram a oportunidade de conhecer uma das autoras do livro “Princesas negras”, de Ariane Celestino Meireles e Edileuza Penha de Souza (2019). Em depoimento, assim refletiu Ariane:

Eu senti que falar do livro “Princesas negras” para as crianças [...], falar de ser preta e de gostar de ser preta - que é o que livro traz - foi muito emocionante, foi incrível porque eram muitas crianças. O momento que eu mais achei lindo foi quando eu pedi pra que subissem ao palco as meninas ou os meninos que se achassem princesas ou príncipes. E o palco lotou! Quando eu vi aquilo, então: Uau! Deu certo! Se acham, se consideram, se percebem pessoas muito importantes! Porque ser princesa não é bem essa coisa tão pegajosa e chata que tem no mundo comercial, de ser aquela princesinha, bonitinha, querida e protegida. Não! É falar de gente protagonista de sua vida. Essas crianças perceberam e subiram. Eu achei isso incrível! (Depoimento de Ariane, autora).

O que mais sobressai das palavras de Ariane em diálogo com o projeto é realmente a compreensão de que príncipes e princesas negras possuem trajetórias que envolvem experiências de liberdade frente aos modelos literários impostos de passividade de um lado para as princesas e de patriarcado forçado para os príncipes. Afinal:

FIGURA 5
Página interna do livro "Princesas negras"

As palavras registradas no livro “Princesas negras”, aliada ao depoimento de Ariane reiteram, no campo discursivo, o que Kilomba (2019) denomina como “tornar-se sujeito”: quando internamente, aquela/e que outrora foi classificada/o como “Outra/o”, liberta-se das amarras coloniais e passa a existir na dimensão de um “Eu”. Sendo assim: “Somos eu, somos sujeitos, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade da nossa própria realidade. [...] tornamo-nos sujeito” (Kilomba, 2019, p. 238). Isso tensiona não apenas a mudança da subjetividade do sujeito, mas especialmente suas práticas. E considerando que o contexto aqui investigado se relaciona com as trajetórias de pessoas ligadas à educação, sejam elas crianças ou adultas, o ato de tornar-se sujeito também aciona transformações de natureza educacional.

Um final com gosto de recomeço

A construção do mosaico a que se propôs este ensaio vai chegando ao fim. Mas ao se observar a obra que foi construída, percebe-se que se trata de uma produção inacabada pois o desenho que ela forma inclui texturas, cores e traços, mas que faltam outras tantas. Aqui as peças usadas (criança, literatura infantil, adultério [adultez], cultura afro-brasileira e africana, currículo e formação docente) podem e devem se unir a outras para compor novos desafios ao entendimento de uma educação que se quer democrática e includente em suas práticas pedagógicas. Ousamos listar três dessas outras peças: a branquitude a ser combatida, o capacitismo a ser denunciado e o especismo a ser problematizado sob pena de, em um futuro próximo, não conseguirmos nem ao menos pensar em um mosaico produzido coletivamente. Com isso queremos dizer que de nada bastará termos acervos de livros físicos se não compreendermos a importância dos conhecimentos orais, transmitidos de geração em geração; de nada adiantará promovermos a valorização da cultura afro-brasileira e africana sob uma lógica comercial-livresca aos moldes da branquitude; pouco significará oferecermos às crianças modelos não brancos, mas nos reduzirmos a existências únicas, com o ser humano acima de todos os demais seres. Nessa lógica, o currículo, a formação docente e o modo como pensamos a educação das crianças são partes imprescindíveis.

Por isso, talvez, as palavras de Ailton Krenak (2020) façam tanto sentido nessas reflexões finais:

Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. José Mujica disse que transformamos as pessoas em consumidores, e não em cidadãos. E nossas crianças, desde a tenra idade, são ensinadas a serem clientes. Não tem gente mais adulada do que um consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando. Então para que ser cidadão? Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma com diferentes cosmovisões (Krenak, 2020, p. 12-13).

E ousamos ir além e incluir, ao lado da cosmovisão, a cosmopercepção, provocação feita por Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2021):

A razão pela qual o corpo tem tanta presença no Ocidente é que o mundo é percebido principalmente pela visão. A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo, cor da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribuídos ao “ver”. O olhar é um convite para diferenciar. Diferentes abordagens para compreender a realidade, então, sugerem diferenças epistemológicas entre as sociedades. […] O termo “cosmovisão”, que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, capta o privilégio ocidental do visual [...]. O termo “cosmopercepção” é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais […] que podem privilegiar sentidos que não sejam [apenas] o visual ou, até mesmo, uma combinação de sentidos(Oyěwùmí, 2021, p. 28-29).

Mais do que “ensaiar” um mosaico, mais do que refletir sobre as vozes de crianças e docentes, mais ainda do que pensarmos em peças que faltam para a obra, estão cosmopercepções que envolvem o nosso desejo final: só tem sentido qualquer proposta curricular, didático-pedagógica e/ou estético-literária se estiver em franco diálogo com um projeto novo de mundo e, por isso, o pensamento para além do ocidente necessita ocupar, com urgência, os modos como sonhamos e construímos a educação, especialmente aquela endereçada às crianças.

Referências

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  • LITERÊTURA: um banquete literário. Direção: ARAUJO, Débora Cristina; MEIRELES, Ariane Celestino; TRANCOSO, Joelma dos Santos Rocha; SOARES, Lucilene Aparecida. Vitória: LitERÊtura, 2022. 1 curta-documentário (22:43min). https://www.youtube.com/watch?v=Lm5paT_zTbI
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    » https://doi.org/10.12957/riae.2017.29521
  • FINANCIAMENTO
    Não houve.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
    Edital “Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisas aplicadas e Artigos científicos” - Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades - CEERT.
  • COMO CITAR ESTE ARTIGO
    ARAUJO, Débora Cristina de; TRANCOSO, Joelma dos Santos Rocha. “Um banquete literário”: um mosaico sobre literatura infantil, cultura afro-brasileira e africana, currículo e formação docente. Educar em Revista, v. 40, e88508, 2024. https://doi.org/10.1590/1984-0411.88508.
  • 1
    Trata-se de um dos 15 projetos nacionais selecionados e financiados pelo “Edital Equidade Racial na Educação Básica: pesquisa aplicada e artigos científicos”, realizado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), cujo objetivo foi identificar e apoiar pesquisas que apontem soluções para os desafios da equidade racial na educação básica (Equidade Racial..., 2020).
  • 2
    Embora a redação da Lei 10.639/2003 não cite a educação infantil e o ensino superior, neste texto tenderemos a generalizar tanto para a educação básica quanto para o ensino superior por entendermos que, passados 21 anos dessa Lei, todos os níveis e modalidades de ensino são corresponsáveis pela sua implementação pois isso se relaciona diretamente com a sociedade brasileira e sua dívida histórica para com a população negra. Além disso, concordando com Mauro Cezar Coelho e Wilma de Nazaré Baía Coelho (2021, p. 5), essa Lei conforma “[...] um aparato legal que reorienta o currículo e a abordagem da História do Brasil no âmbito da Educação Brasileira”.
  • 3
    Doravante a chamaremos de “Diretrizes Curriculares de ERER”.
  • 4
    5 Nome não fictício. Nenhum dos nomes serão ficcionados pois são públicos e já foram registrados na obra “LitERÊtura: Reflexões teórico-metodológicas sobre literatura infantil com temática da cultura africana e afro-brasileira” organizada por Débora Araujo e Jakslaine Penha (2022).
  • 5
    Tal frase e as demais que aqui serão mencionadas estão no curta-documentário “LitERÊtura: um banquete literário”, dirigido por Débora Araujo, Ariane Meireles, Joelma Trancoso e Lucilene Soares (2022).
  • 6
    Conceito cunhado por Eliane Debus (2017) para se referir à produção literária de valorização da cultura africana e afro-brasileira cujo foco não seja necessariamente o pertencimento étnico-racial do autor ou autora e sim o que a obra tematiza. Essa proposta coaduna com os livros que compõem o acervo que aqui serão tratados e que buscam valorizar a identidade negra, não sendo impreterivelmente escritos apenas por pessoas negras.
  • 7
    Dois subgrupos foram compostos: docentes do curso, responsáveis por ministrar conteúdos, e tutoras, responsáveis por orientar e corrigir as atividades assíncronas.
  • 8
    Ainda que o turno vespertino da escola atenda turmas de 1º ao 5º ano, a adesão à segunda etapa do projeto foi de docentes das turmas dos primeiros quatro anos.
  • 9
    Ver mais em Hileia Araujo de Castro (2016).
  • 10
    De acordo com essa fonte, os dados do censo 2021 da escola em questão, do total de 941 matrículas apresentam o seguinte número de estudantes por raça/cor: 14 amarelos/as, 93 brancos/as, 0 indígenas, 720 pardos/as, 37 pretos/as e 77 não se declararam.
  • 11
    Assim reflete o autor: “[...] o currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos, que de modo aparece nos textos e nas salas de aula de uma nação. Ele é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo. É produto de tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo” (Apple, 1999, p. 59).
  • 12
    A obra citada pela professora Alda é “Menina bonita do laço de fita”, de Ana Maria Machado.
  • 13
    bell hooks, grafado em letras minúsculas, não configura erro, mas sim o desejo da autora de ter seu nome registrado desta forma.
  • 14
    Grada Kilomba faz uso do itálico em diversos termos de seu texto, defendendo que na língua portuguesa o significado de várias terminologias revela “[...] uma profunda falta de reflexão e teorização da história coloniais e patriarcais” (Kilomba, 2019, p. 14). E “negro/a” é, uma delas pois é uma palavra que está “[...] invariavelmente ancorado na terminologia colonial e, por isso, intimamente ligado a uma história de violência e desumanização” (Kilomba, 2019, p. 17).

Disponibilidade de dados

Edital “Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisas aplicadas e Artigos científicos” - Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades - CEERT.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2022
  • Aceito
    10 Abr 2024
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