RESUMO
Este artigo é fundamentado em pesquisa realizada com crianças indígenas e seus professores a respeito dos sentidos por eles atribuídos à educação escolar e como esta se articula à luta dos povos indígenas pelo reconhecimento de suas culturas e direitos. Utilizam-se como aporte teórico discussões decoloniais em associação com contribuições provindas de estudos sobre educação escolar indígena. Além da etapa dedicada à realização de estudos bibliográficos e documentais, foi realizada pesquisa empírica na Escola Itaty/SC, com emprego de estratégias do método etnográfico, como observação participante, registros fotográficos, conversas informais, entrevistas, desenhos e narrativas orais produzidas sobre estes pelas crianças, com ênfase nestes dois últimos recursos. Os resultados deixam entrever que as experiências educativas destacadas pelas crianças e professores, mesmo quando vinculadas ao contexto escolar, se expandem para além da escola, mobilizando diferentes atores sociais e borrando fronteiras culturais, etárias e identitárias, ao ponto de gestar situações de ensino-aprendizagem agenciadoras de modos plurais e, por vezes insurgentes, de ser criança, adulto, professor, estudante, guarani, ativista, cidadão etc. Conclui-se que conhecer a perspectiva e os anseios dos atores diretamente implicados na educação escolar indígena acerca deste tema é um caminho que pode levar não apenas à compreensão do papel que a escola exerce na perpetuação ou enfrentamento das inúmeras opressões/violências sob as quais vivem as populações indígenas, mas à potencialização da construção da luta política que elas podem empreender em diferentes campos (educação, moradia, território, saúde etc.).
Palavras-chave: Educação Escolar Indígena; Sujeitos Escolares Indígenas; Guarani; Currículo; Infância
ABSTRACT
This article is based on research with indigenous children and their teachers about the meanings they attribute to school education and how it is linked to the struggle of indigenous peoples for the recognition of their cultures and rights. Decolonial discussions are used as a theoretical contribution, in association with contributions from studies on indigenous school education. In addition to the stage dedicated to carrying out bibliographical studies and analysis of documentary sources, empirical research was carried out at Escola Itaty/SC, using strategies of the ethnographic method, such as participant observation, interviews, photographic records and drawings produced by children, with emphasis on the last two. The results show that the educational experiences highlighted by children and teachers, even when linked to the school context, expand beyond the school, mobilizing different social actors and blurring cultural, age and identity boundaries, to the point of creating teaching-learning situations agents of plural and sometimes insurgent ways of being a child, adult, teacher, student, Guarani, activist, citizen etc. It is concluded that knowing the perspective and aspirations of the actors directly involved in indigenous school education on this topic is a path that can lead not only to raising awareness in society about the role of the school in perpetuating or facing the countless oppressions and violence under which indigenous populations live, but to the potentialization of the resources made available to these populations in their struggles.
Keywords: Indigenous School Education; Indigenous School Agents; Guarani; Curriculum; Childhood
Introdução
A escola tem sido cada vez mais significada pela população indígena brasileira como um recurso na busca por afirmação étnico-cultural e/ou novas formas de identificação. Com o fortalecimento dos movimentos indígenas, ocorrido ao longo das últimas décadas, o acesso aos conhecimentos do mundo não indígena oportunizado pelas instituições escolares passa a ser defendido por estes movimentos como capaz de ampliar o poder de luta indígena por seus direitos (Bergamaschi; Medeiros, 2010; Bergamaschi; Antunes; Medeiros, 2020; Silva, 2023a; 2023b).
Atentas a esse cenário e impulsionadas pelo intento de prosseguir em nossa trajetória de trabalhos com os indígenas, interessa-nos, aqui, refletir sobre como os Guarani1 da Tekoa Itaty/SC - grupo junto ao qual desenvolvemos o estudo que será apresentado - têm se posicionado em relação à presença da escola em seu território. O que têm a dizer sobre a educação escolar sonhada e alcançada em sua comunidade alguns dos agentes centrais dessa conquista, ou seja, as crianças e seus professores Guarani? Essa é a questão principal que norteia nossas reflexões, a partir dos achados obtidos em pesquisa de cunho etnográfico realizada durante os anos de 2016 e 2017, na Escola Indígena Catarinense Itaty (Escola Indígena de Ensino Fundamental Itaty, do povo Guarani, localizada na Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça, Santa Catarina, Brasil)2.
Em concordância com Clifford Geertz (1989, p. 15), entendemos que o caráter etnográfico de uma pesquisa é dado pela prática da “descrição densa” da realidade estudada e dos que nela se inserem, tomando por base a imersão do/a pesquisador/a nessa realidade, conjugada à própria interpretação do que é ouvido, dialogado e observado.3 Como parte do desenho metodológico deste estudo, foram realizados levantamento e análise de documentos (como o projeto político pedagógico da Escola Itaty e as normativas/políticas curriculares relacionadas à Educação Escolar Indígena, entre outros), registros fotográficos, além de entrevistas individuais e em grupo, no contexto das quais ocorreu o convite para a produção, pelas crianças e seus professores, de mapas, desenhos e narrativas orais sobre estes. A ênfase da análise apresentada no presente artigo recairá sobre os dados obtidos a partir desses dois últimos recursos metodológicos, empregados na etapa da pesquisa realizada no dia 06 de julho de 2017, momento em que a Escola Itaty se organizava para o fechamento do segundo bimestre letivo daquele ano. A etapa em questão4, que será descrita com maior detalhamento na seção intitulada “Tekoa Itaty e sua escola”, contou com a participação de aproximadamente dez professores (entre eles uma mulher) e quinze crianças e jovens guarani de idades variadas (em sua maioria meninas), os quais registraram, em desenhos, os lugares de aprendizagem que mais gostavam, considerando que as atividades escolares podem acontecer em toda a Terra Indígena (TI).
Além da questão central já apontada, buscamos discutir, ao longo do texto e com base nos dados obtidos, sobre como a luta por educação tem se articulado ou pode se articular à luta por outros direitos (luta por moradia e território, saúde, segurança etc.) necessários à sobrevivência material e à (re)existência cultural e identitária dos povos indígenas. Entendemos que esta discussão pode contribuir tanto para que possamos melhor compreender e valorizar as diferentes formas pelas quais a educação escolar indígena se apresenta no Brasil contemporâneo, quanto fornecer subsídios que auxiliem os profissionais da educação que atuam, nesses e em outros contextos, a refletir sobre as marcas do passado que ainda se fazem sentir nos processos educativos do presente e o vislumbre de futuros possíveis e desejados.
O artigo divide-se em três seções, além da Introdução. Nesta, informamos os objetivos e o desenho da pesquisa, bem como a questão principal que norteia as reflexões aqui produzidas. Na seção seguinte são apresentados os aportes teóricos e um apanhado geral da literatura científica sobre o tema. A essa se seguem a apresentação e discussão dos resultados da pesquisa (o que foi dialogado, escutado e observado junto aos Guarani), os quais foram cotejados com a literatura revisada. Por fim, tecemos considerações finais.
Educação escolar indígena, currículo e pedagogias próprias5
De modo geral, as populações indígenas brasileiras - amparadas pela legislação que reconhece a necessidade de a escola em comunidades indígenas ser diferenciada, específica, intercultural e bilíngue - têm direcionado sua luta à conquista do respeito pelas suas formas culturais de aprendizagem. Como atestam diversos estudos (Silva, 2016; Rodriques Marqui; Boldrin Beltrami, 2017; Souza; Bruno, 2017; Zanin; Silva; Cristofoli, 2018), espera-se que o espaço escolar possa respeitar e acolher (ou pelo menos não impedir) os modos próprios de aprendizagem indígena que são vivenciados plenamente no contexto e no cotidiano do grupo social, viabilizando a emergência de processos habitualmente não pensados em escolas convencionais urbanas.
O que não quer dizer, como alerta a antropóloga Antonella Tassinari (2012), que a instituição escolar deva reproduzir formas nativas de educação, sobrepondo aprendizagens e conhecimentos que fazem parte do corpo de saberes nativos. Trata-se, isto sim, de fomentar a possibilidade de a escola assumir o papel de intermediadora cultural, apresentando-se física e simbolicamente como “espaço de fronteira”6 entre pessoas e saberes (ancestrais e não indígenas - ou juruá - entre outros tantos). Uma fronteira que pode ser enriquecedora ao permitir o encontro, contraste e intercâmbio de diferentes formas de pensar, ser, viver e aprender.
Não obstante, a autora também aponta a complexidade e os desafios que acompanham essa possibilidade, pois a escola indígena como espaço de fronteira também pode contribuir para, de uma maneira não esperada pelos sujeitos escolares e pelas comunidades em contato, borrar ou apagar fronteiras que alguns (indígenas e não indígenas) gostariam de nunca ver transpostas. O que não deixa de produzir certos impasses, pois a sobrevivência das populações indígenas depende do êxito da escola na tarefa de tornar-se esse lugar onde as novas gerações possam não apenas valorizar as tradições de seu povo, mas construir novos conhecimentos a partir do contato com outros saberes. Certamente, o papel social que as escolas logram desempenhar na atualidade importa muito para qualquer contexto que faça parte de um mundo cada vez mais globalizado e diaspórico como o nosso, mas para as populações indígenas, não seria exagero dizer, essa importância vem sendo sublinhada porque a instituição escolar pode viabilizar ou destruir relações que condicionam seus modos de vida e sua própria existência como parte da humanidade (Tassinari, 2012). Como bem resume, em outro de seus trabalhos:
A escola também “borra” fronteiras quando estimula o fluxo de jovens estudantes para as cidades vizinhas, em busca de maior escolarização, e ali forma enfermeiros, técnicos agrícolas, professores, que não raro retornam às aldeias com o discurso de “valorização da cultura”. A escola também permite o fluxo de conhecimentos, como mencionado acima, numa direção radicalmente oposta àquela do trabalho antropológico. São os índios que perguntam, são os índios que aprendem técnicas e ouvem histórias, para interpretá-las e utilizá-las de formas variadas. Trata-se, indiscutivelmente, de um espaço de fluxo e troca de saber, mesmo quando ensina às crianças, de forma muito fechada e limitada, que são “índias”, que seu modo de vida corresponde a uma “cultura” e a uma “tradição” que precisa ser preservada, o que vai contra sua curiosidade por conhecer outros modos de vida e outras culturas (Tassinari, 2001, p. 65).
Traçado o quadro geral da discussão, é importante lembrarmos que as concepções e práticas pedagógicas valorizadas por cada escola específica, a forma como nela são organizados e utilizados os tempos e espaços, entre outros aspectos do currículo7 escolar, interferem diretamente no caráter que será assumido, ao fim e ao cabo, pela proposta educativa encampada por cada instituição escolar. Outro fator que faz parte dessa equação e deve ser considerado com cuidado são as visões que a comunidade escolar e seu entorno têm sobre a(s) infância(s), o lugar da educação escolar na vida das crianças e a forma como se pensa que estas devam ser educadas. Nesse sentido, autores como Tassinari (2007) e Cohn (2013; 2021) defendem a necessidade de se olhar para as infâncias indígenas sem perder de vista o fato de que elas podem, em alguma medida, até dialogar com a concepção moderna de infância “construída para um certo Ocidente”8 (Cohn, 2021, p. 36), mas não estabelecem com elas uma relação de equivalência.
Ainda sobre as infâncias indígenas, Tassinari (2007, p.13) pondera que não seria possível “definir um modo indígena de conceber a infância, pois encontramos em populações indígenas variadas formas de tratar esse período da vida”. Argumentando na mesma direção, Clarice Cohn (2013) ressalta que se faz necessário atentar às particularidades de cada grupo indígena, pois generalizações indevidas a respeito de concepções de infância podem levar os pesquisadores a realizar falsas interpretações, ou mesmo enfrentar dificuldades metodológicas. Essa autora também ressalta que se deve considerar as dinâmicas de transformação cultural:
Assim, a experiência da infância (e seu valor), é diversa para cada sociedade indígena. Por isso não podemos confundir suas concepções de infância com as nossas. Nem umas com as outras. Por isso, a cada vez que nos dedicarmos a estudar com e sobre as crianças indígenas, temos que nos debruçar primeiro sobre como as crianças, e a infância, são pensadas nestes lugares. Não podemos pressupor uma criança e uma infância universais, mas talvez não possamos também pressupor uma noção de infância, particular, mas sempre válida (Cohn, 2013, p. 227).
Avançando na revisão da literatura científica, identificamos estudos que abordam as conexões entre educação escolar e populações indígenas, com foco na discussão sobre ensino fundamental e/ou infância(s), a exemplo de Santos e Silva (2021), Santino, Ciriaco e Prado (2021). Entretanto, ainda são relativamente escassos os trabalhos realizados junto a/com crianças e professores inseridos em escolas indígenas, especialmente contemplando a etapa do ensino fundamental.
Vale pontuarmos que diversas outras pesquisas sobre educação escolar indígena realizadas nos últimos anos e que remetem ao contexto da escola básica ou ensino superior, mas não contemplam a discussão sobre infâncias e crianças ou ensino fundamental e educação infantil, foram também examinadas ao nos dedicarmos a buscar responder à questão de pesquisa que norteou este estudo. Além dos trabalhos de Tassinari (2001) e Tassinari e Cohn (2012), recorremos a várias produções de Maria Aparecida Bergamaschi (2005), a começar por sua tese de doutoramento, baseada em pesquisa conduzida em aldeias Guarani do Rio Grande do Sul. Esta autora constata, entre outras coisas, que os grupos indígenas com quem dialogou significavam todos os espaços da comunidade como lugares de aprendizagem (a mata, a Opy - casa de rezas -, a roça, o rio). Porém, esses mesmos grupos, e não somente esses (como atesta a literatura revisada), consideram a escola como um elemento que não pertence ao modo de vida tradicional, ou seja, à sua cultura. Percepção esta corroborada por Tassinari (2012) em estudos também desenvolvidos com indígenas do Sul do Brasil: “a escola indígena mantém-se sempre como algo estrangeiro, não nativo, ainda que muitas vezes quase irreconhecível como ‘instituição escolar’” (Tassinari, 2012, p. 287).
Dessa constatação nasce a pergunta: Que lugar social e simbólico seria atribuído, então, à escola pelos Guarani? Como poderia esse espaço, demandado pelas comunidades, acolher múltiplas linguagens e permitir fluidez e filtro no trânsito de saberes e de pessoas? Pois, ao que parece, são funções ambíguas e complementares que a instituição escolar tem sido chamada a cumprir.
Diante das ambiguidades e aparentes contradições que cercam a significação atribuída à escola pelos Guarani, Bergamaschi (2005; 2007) postula que essa instituição representa para eles um símbolo de interface cultural, a qual insere-se nas aldeias permitindo ressignificações e apropriações diversas que podem resultar em benefícios para as comunidades, e, ao mesmo tempo, um elemento estrangeiro, como apontado por Tassinari (2012). Estrangeiro porque, “mesmo funcionando em suas aldeias”, vem de fora, “é de ‘branco’” (Bergamaschi, 2007, p. 205) e, portanto, causa estranhamento ao diferir do “modo de ser Guarani”. Essa autora ainda aponta que os Mbyá Guarani não desejavam a presença de escolas dentro das aldeias, tendo sido historicamente desfavoráveis ao processo que viabilizou isso num primeiro momento. Hoje, porém, algumas aldeias buscam-na como uma forma de disporem de mais um instrumento para compreender o “mundo dos brancos” e lutar por seus direitos, acessando, por meio dessa instituição, conhecimentos necessários para uma interação mais simétrica, ou menos desigual, com a sociedade não-indígena. Nas palavras de Bergamaschi (2005, p. 222), esse processo assinala que os Guarani “transformam-se para manterem-se Guarani”.
Tekoa Itaty/SC e sua escola
Como apontado anteriormente, a relação dos Guarani com a educação escolar foi marcada, inicialmente, por certa desconfiança em relação às repercussões possíveis de serem geradas pela presença da escola nas aldeias. O que seria das crianças e jovens quando expostos a conhecimentos externos, dos jurua (não indígenas)? Essa exposição poderia desembocar na fragilização de sua cultura e no impedimento de continuidade de seu modo de vida? Em função de inquietações como essas, as escolas demoraram para serem aceitas, especialmente pelos mais velhos (Bergamaschi, 2005).
Relembrando esse passado não tão distante, um dos professores Guarani da Escola Itaty - Karai - esclareceu o que motivou a construção das escolas Guarani em Santa Catarina:
Em 2001 teve uma grande assembleia dos Guarani9, que foi um encontro dos grandes professores, mais velhos e caciques dos cinco estados, para decidirem se realmente queriam escola ou não, quais seriam os impactos da escola dentro da aldeia. Os mais velhos solicitaram que aceitariam escola somente se fosse do jeito que os Guarani queriam que funcionasse a escola. E que dentro da escola os Guarani dessem aula. Eles estavam muito certos quando disseram que quando viesse a escola, algumas partes da tradição os mais jovens já iriam esquecendo. A escola seria importante para manter a língua, os valores da tradição, da família e da coletividade. (Conversa com o professor Karai, caderno de registro de campo, 23 janeiro de 2017).
Para os anciãos, professores e caciques que participaram do encontro, o mais importante era que as crianças e jovens permanecessem na aldeia, não queriam escola fora da aldeia. Karai conta que, a partir desse encontro, começou a luta para a construção de escolas nas aldeias - a edificação atual da Escola Itaty foi uma conquista efetivada em 2002 - e acesso à formação de professores, a qual foi viabilizada, em 2004, pelo Protocolo Guarani/MEC10.
A Escola Itaty oferece Ensino Fundamental (anos iniciais e finais) e Educação de Jovens e Adultos - Supletivo (EJA), do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Segundo Gonçalves (2015), todos os professores são Guarani, com exceção da diretora (não indígena). Este autor, que é professor na escola, destaca a afinidade existente entre o que é ensinado na escola e o que se vive na comunidade, de tal forma que as atividades do cotidiano da tekoa11, na qual as crianças aprendem por meio da educação Guarani, também são consideradas atividades escolares. Mas nem sempre foi assim. Num primeiro momento, após a inauguração da Escola Itaty, os Guarani não conseguiam atuar plenamente como sujeitos de sua própria educação, pois não indígenas assumiram as funções de direção, coordenação e ensino. Havia intérpretes guarani que trabalhavam em sala de aula junto aos professores, mas poucos eram os professores indígenas e a forma de educar diferenciou-se muito daquela vivenciada na chamada “escola verdadeira”12, que existia antes, no alto do morro, onde ensinavam somente professores guarani.
Nosso percurso de pesquisa junto aos Guarani de Morro dos Cavalos nos levou a interagir com alguns desses professores, incluindo Kerexu13, cuja narrativa conta que a partir da inauguração da edificação da nova escola, uma forma de educação diferente da até então conhecida chegou à aldeia, controlando suas rotinas, regrando e limitando seus deslocamentos pelo território, mudando as casas de lugar e ditando novas formas de aprendizado. Em sua monografia de graduação (Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica/UFSC) sobre o currículo diferenciado das escolas indígenas guarani da Grande Florianópolis, a professora indígena Eunice Antunes (2015) problematiza esse processo de árduas trajetórias que as comunidades escolares têm percorrido para conseguir elaborar/aprovar seus Projetos Político-pedagógicos (PPP) e conquistar espaço para praticar, dentro da instituição escolar, o modo Guarani de ensinar.
Diante das dificuldades encontradas para ter o PPP reconhecido junto à Secretaria do Estado de Educação de Santa Catarina (SED/SC), a comunidade escolar passou a aprimorar o estudo da legislação voltada à educação indígena e, a cada ano, reunia-se para discutir a proposta de ensino e realizar novas tentativas para aprovar o documento. Enquanto não obtinham a aprovação do PPP, conseguiram elaborar e implementar um calendário escolar “com tempos diferenciados das demais escolas da região” (Antunes, 2015, p.18). Somente em 2012, nos últimos meses do ano, a comunidade, com o apoio de um professor não indígena que havia assumido a direção da escola, conseguiu que a SED/SC considerasse o documento entregue como um PPP válido, uma vez que a resistência da SED/SC em aboná-lo se deveu, supostamente, mais pela forma e estrutura do que pelo conteúdo, como coloca Antunes (2015).
Podemos levantar reflexões acerca dos desafios que, não raramente, se interpõem no caminho trilhado por comunidades indígenas para efetivarem sua conquista pelo direito à educação. Além da Escola Itaty, outras escolas indígenas de que temos notícia acabaram enfrentando desafios que dificultaram sobremaneira seu funcionamento e existência como parte do sistema de ensino nacional. Entre esses desafios, um dos mais frequentes é o estranhamento, rejeição e até mesmo desconstrução de suas propostas curriculares por parte de secretarias de educação e outras instâncias do poder público estatal que supervisionam seu trabalho e a quem devem prestar contas para aprovação de suas ações e projetos, sob pena de haver descontinuação do recebimento de financiamento público.
Sustentando perspectiva semelhante à nossa, mas detendo-se na análise dos sentidos e efeitos subjacentes à exigência de projetos político-pedagógicos às escolas, Guerola e Lucena (2021, p. 432- 433) assim avaliam:
A exigência de textos onde estejam propostas as atividades escolares em gêneros textuais específicos como “projetos pedagógicos” ou “regimentos” não é inócua. [...] os discursos possíveis dentro dessas formas estarão antes à serviço das finalidades da esfera governamental (e do Estado, em última análise) do que a serviço das finalidades da esfera educacional das próprias comunidades [...]. Embora nem sempre conhecedores/as das especificidades epistemológicas e culturais das populações indígenas com que trabalham, os/as técnicos/as e gestores/as de gerências e secretarias de educação são bem conhecedores/as dos procedimentos de controle do discurso articulados em instâncias superiores (como as câmaras e conselhos aqui citados), necessários para limitar a ação dos indígenas dentro de suas escolas [...]. Assim, o que pode parecer um simples gênero, ou um simples texto, acaba se constituindo, no âmbito da educação escolar indígena, particularmente em Santa Catarina, como uma frente de batalha ligada ao letramento e às regras e exigências complexas e pesadas que polícias discursivas buscam impor para conjurar os poderes e perigos dos discursos em relação à educação escolar que os/as indígenas desejam.
Tais autores alertam, porém, que ao identificarem a existência de “uma batalha” em torno do gênero discursivo PPP envolvendo as comunidades escolares indígenas e os técnicos e gestores das secretarias de educação, não estão compreendendo que, “uma vez vencida tal batalha, os/as professores/as e lideranças indígenas terão realmente reconhecidos seus direitos educacionais constitucionais” (Guerola; Lucena, 2021, p. 433). A seu ver, gêneros textuais como o PPP podem ser “instrumentalizados enquanto procedimentos do controle do discurso que buscam obstaculizar recursivamente a efetivação de certos direitos mais do que estabelecer rigor quanto à adequação a padrões textuais referentes a temas, estruturas e estilos verbais específicos” (Guerola; Lucena, 2021, p. 433).
A própria Escola Itaty, conforme argumentado em publicação anterior (Zanin; Castells, 2020), conseguiu ter seu PPP reconhecido pela SED/SC após algumas tentativas frustradas, mas isso não impediu a ocorrência de outros desafios, como ingerências durante a construção do prédio novo da escola (como a escolha do local e alterações do projeto durante a obra), provocadas por diferentes atores. O financiamento e o desenvolvimento do projeto por instâncias governamentais, apesar de ser um direito da comunidade, fez com que esta tivesse pouco controle sobre o resultado da obra. A opção do estado, por exemplo, pelo local para a construção da escola junto à rodovia BR-101 (cujo fluxo de veículos pesados é intenso) implicou em repercussões negativas, pois quando a nova escola começou a funcionar atraiu para perto de si as moradias das famílias, desarticulando a organização anterior, em que famílias extensas viviam em várias tekoa. Resulta, assim, que um projeto de escola cuja execução poderia ter contribuído, do início ao fim (do planejamento e construção da edificação até o seu pleno funcionamento, passando pela elaboração e aprovação do PPP e dos calendários com tempos diferenciados das demais escolas etc.), para assinalar a identidade própria daquela comunidade, foi afetado por disputas de interesse e ingerências que colocaram à prova a agência dos Guarani da T.I. Morro dos Cavalos/SC na consecução da missão de tornarem verdadeiramente sua a nova escola.
Mas é preciso frisar que diversas situações de interação entre as comunidades indígenas e o poder público estatal podem servir como oportunidades de diálogo e construção coletiva de currículos fortalecidos em sua interculturalidade, especialmente se houver sensibilidade política, preparo técnico e disposição em colaborar por parte dos órgãos responsáveis pela gestão das políticas educacionais e sociais para estas populações. Afinal, como afirma Garcia Canclini (2007, p. 17), “a interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando grupos entram em relações e trocas [...]”, sem olvidar que “diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos”.
A partir do referencial teórico que postula a escola como espaço de fronteira (Bergamaschi, 2005; Tassinari, 2001; Benites, 2015), podemos compreender que a fronteira “rodovia-aldeia” não simboliza simplesmente um divisor estanque entre mundos cujas diferenças, ao se chocarem, necessariamente produzirão conflitos. Talvez seja mais prolífico associarmos a fronteira, nesse caso, a uma espécie de filtro, que deixa passar certas coisas e outras não, possibilitando encontros entre elementos constitutivos dos dois mundos, com base na negociação constante do que entra e do que sai de cada um, do que é considerado intercambiável. Por esse prisma, a escola Itaty pode também ser vista como uma “embaixada” que, sem deixar de confirmar que cada mundo/país tem sua identidade própria e resguarda interesses que podem se contrapor aos de outros agentes, possibilita trocas, acordos ou, usando um termo muito caro às escolas indígenas latino-americanas, a prática da interculturalidade. Além deste sentido, os Guarani com quem dialogamos mencionaram outro: que a escola indígena é uma “embaixada do governo” nas aldeias por ser mantida pelo governo e pela presença de não indígenas na gestão, que nem sempre estão preparados para as especificidades deste tipo de escola, reforçando a impressão de que o “fiel da balança” entre o mundo dos Guarani e o mundo dos juruá em sua histórica disputa cultural, territorial e epistêmica, estaria pendendo desfavoravelmente para o lado dos Guarani. Nessa toada, algumas narrativas às quais tivemos acesso se reportam à escola como um território de livre acesso aos não indígenas dentro das aldeias, sendo constantemente controlado e inspecionado, em outras palavras, um flanco.
Avançando na discussão sobre a relação entre currículo e educação escolar indígena, cabe problematizarmos se e como, em nosso país, o poder público tem buscado investir na construção de políticas curriculares cujos princípios de fato contemplem as especificidades desta modalidade educativa. Apoiando-nos em estudos como os de Gonçalves, Machado e Correia (2020), Filipe, Silva e Costa (2021) e Militão (2022), podemos afirmar que há um longo caminho a percorrer nesse sentido. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo, projetada para ser o documento nacional que normatiza e faculta a concretização dos direitos educativos dos mais diversos segmentos que integram a população brasileira, em consonância com o Plano Nacional de Educação - PNE 2014-2024 (Brasil, 2014; Brasil, 2018), não contempla a educação escolar indígena (nem outras modalidades de ensino, como a Educação de Jovens e Adultos, a educação quilombola, a educação do campo etc.) considerando suas especificidades como poderia. Conforme sintetiza Militão (2022), em concordância com Gonçalves, Machado e Correia (2020, p. 338), a BNCC existente se apresenta como “uma forma de currículo prescrito”, ou seja, sua ênfase recai no “planejamento para”, que visa prescrever o que a escola deve fazer, e não no “planejamento com”, fomentador da participação e do protagonismo das populações indígenas (profissionais da educação, estudantes e suas famílias, entre outros sujeitos) na construção de um currículo e de uma escola que condizem com suas necessidades e anseios.
Ao ponderar sobre questões similares a esta, Miguel Arroyo (2015) conclui que a educação escolar indígena - assim como a quilombola, do campo, entre outras - “não se efetivará enquanto não se avançar na construção de currículos que traduzam as concepções, os conhecimentos, as culturas e valores de que são produtores e sujeitos os movimentos sociais” (p. 48); fazendo-se imprescindível não barrar esse processo com práticas assimilacionistas e/ou etnocêntricas que enxergam na diferença uma deficiência a ser apagada ou um erro a ser corrigido. Nessa mesma chave de leitura, urge problematizarmos as concepções e análises redutoras ou simplificadas acerca da diversidade cultural, as quais, não raramente, têm sido sustentadas por documentos oficiais (Arroyo, 2015, p. 58).
Tendo como tema central o meio ambiente e como subtemas tekoa, terra, ar, água e fogo, fauna e flora, o PPP da Escola Itaty contempla aspectos centrais da cultura Guarani - em sua forma de viver e educar - e elementos presentes tanto nas narrativas orais por eles compartilhadas, quanto em suas experiências cotidianas. Ou seja, desde a sua concepção, busca a valorização de saberes e vivências culturais diversos, incluindo os construídos pelos povos indígenas enquanto grupo subalternizado/excluído, os quais historicamente têm sido desafiados a lidar com os efeitos deletérios da colonialidade/modernidade (Quijano, 2005)14. Nesse sentido, o fato de terem elaborado um PPP diferenciado e sustentado a busca de sua aprovação, mesmo diante de sucessivas recusas por parte da SED/SC, poderia ser lido como um ato de “desobediência epistêmica”, aqui entendida como um passo fundamental na direção da “descolonização do saber”15. E, como esclarece Santos (2018),
Sem desobediência não há contraposição à colonialidade. Não havendo contraposição à colonialidade, não há contraposição às múltiplas relações desiguais e discriminatórias derivadas da dicotomia central do paradigma moderno europeu - humano x não humano: quem é sujeito do conhecimento x quem é dele objeto; quem merece ser escutado x quem deve ser silenciado; quem merece viver x corpos, vidas que não importam (Santos, 2018, p. 7).
Esses apontamentos nos dão uma noção mais precisa da complexidade inerente ao processo de construção de currículos, por parte das escolas indígenas, que sejam, ao mesmo tempo coerentes com as políticas educacionais e suas normativas, e capazes de problematizar as concepções de conhecimento ocidental eurocêntrico, as quais desvalorizam aquilo que não as espelham.
Kerexu, ao discorrer sobre o PPP que ajudou a elaborar, destaca que ele, assim como prevê a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1998), é uma proposta pedagógica que faculta a consideração e valorização de “processos próprios de aprendizagem” dos Guarani que a compuseram e que a experimentarão, como realidade, no decurso de seu calendário escolar diferenciado, nas linhas e entrelinhas da matriz curricular prevista para ser cumprida, assim como nos imprevistos do dia a dia que também se fazem presentes em qualquer escola.
Ela informa também que, nas discussões da comunidade, foram elencados “eixos” que deveriam compor o PPP para “que fosse compatível com as demandas do povo Guarani Mbyá” (Antunes, 2015, p.18), no sentido de contribuir para “indianizar”16 não somente a escola, mas a sociedade como um todo. Entre os eixos citados, destacamos três, dos quais reproduzimos excertos que se relacionam mais diretamente com a discussão proposta para esse artigo.
1º Oralidade Guarani: (...) supõe concomitantemente a corporeidade, a força vital que se invoca, a ancestralidade, o contexto de abordagem, e principalmente porque transforma o conhecimento no próprio sujeito, pois é ele quem fala [...].
2º Predestinação: Dentro da concepção Guarani, a criança é manifestação de outra dimensão astral. Não é totalmente deste mundo, e deve ser entendida como um espírito livre a ser “humanizado” naturalmente [...].
4º Política local: na escola indígena pulsam as manifestações e as tensões políticas vividas pela comunidade. Ao contrário do que parece, essas manifestações são profundamente positivas, pois enriquecem e amadurecem o processo de gestão da comunidade, e igualmente, da gestão da escola. Mas isso implica também em considerar que existem oscilações no ritmo da comunidade escolar, pois a escola torna-se o centro onde são discutidos os aspectos imanentes ao poder local. Isso se reflete na adesão dos alunos às atividades escolares e na sua interação com o espaço escolar (Antunes, 2015, p.18-19, grifos nossos).
Chamamos atenção, em especial, para o eixo 4 (sobre manifestações políticas), cuja importância e articulação com os demais (eixo 2 - visão sobre as crianças; e eixo 1 - processo de construção de conhecimentos e aprendizados) será discutida com base na análise de exemplos pinçados das narrativas orais e desenhos produzidos pelos estudantes e professores da Escola Itaty.
Assim, em nossas incursões etnográficas na Tekoa Itaty/SC, escutamos dos professores que alguns dos ambientes de aprendizagem que são parte da escola se estendem a outros lugares da aldeia, como as roças, as matas, os rios e morros e as cidades do entorno. As observações que fizemos, muitas das quais acompanhadas de registros fotográficos, também possibilitaram-nos perceber que as atividades educativas extrapolam os espaços restritos pela arquitetura escolar, fazendo com que diversos ambientes não estipulados inicialmente como escolares de fato o sejam. Isso ficou evidenciado quando os alunos e professores foram na mata coletar material para a construção da Opy Mirĩ, ou quando se deslocaram até o Centro Multicultural Tataendy Rupa para fazerem o plantio das roças (kokue) na época da primavera - Ara Pyau.
Nesses dois exemplos, assim como em outras tantas atividades cotidianas da escola que incluíam a circulação pelo território para coletar materiais, conhecer trilhas na mata e/ou aprender sobre características e recursos do ambiente17, a centralidade assumida pela oralidade e pela corporalidade (eixo 1 da proposta da comunidade para compor o PPP) enquanto recursos favorecedores das relações de ensino e aprendizagem, foi demonstrada. Ademais, os lugares de aprendizagem oportunizados pela Escola Itaty às crianças, e no contexto dos quais essa oralidade pode servir de instrumento à construção de conhecimentos, não se restringem à TI Morro dos Cavalos. Sendo a criança compreendida como “espírito livre a ser humanizado naturalmente” (eixo 3), a elas são dadas oportunidades abertas e flexíveis de participação em ambientes e interações, as quais poderiam ser vetadas a crianças não indígenas em função das concepções de infância que se tornaram hegemônicas nas sociedades modernas ocidentais, especialmente em contextos urbanos.
Dessa forma, aldeias vizinhas ou distantes, até mesmo em outros países ou próximas às fronteiras nacionais, são lugares que precisam ser periodicamente visitados por todos, incluindo as crianças. Lá busca-se sementes para plantar e compartilham-se vivências com parentes. Contudo, esse aprendizado também não se restringe ao sistema Guarani, ao nhandereko. O aprendizado é intercultural, o que implica em estar disponível para o convívio e o aprendizado com o outro. E são muitas as oportunidades para aprender com e sobre os jurua: deslocando-se de ônibus; vendendo artesanato no centro da cidade; cantando com o coral no centro ou em eventos; participando de feiras e eventos realizados em centros urbanos ou em instituições como universidades, escolas, empresas públicas, organizações não governamentais (ONGs), em manifestações pela efetivação de seus direitos etc.
Observamos alguns desses eventos, outros nos foram relatados pelos entrevistados ou, ainda, acompanhados pelas publicações da comunidade escolar no Facebook e no blog Conexão Itaty (2016). O ex-diretor18 da escola relatou muitos passeios escolares organizados com instituições parceiras, como o Sítio Çaracura, o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, o Museu do Mar e a Ilha do Campeche. Relatou também que o trânsito pelo morro acontece, sempre respeitando os espaços privados, por descampados, lugares onde captam água e para buscarem materiais, como quando um professor de artes foi com os estudantes buscar argila no Rio Massiambu.
Então, como coloca Oliveira (2012), em sua pesquisa realizada na aldeia guarani de M’Biguaçu, a educação acontece em muitos lugares e situações, dentro da escola (sala de aula, pátios de recreação, Opy Mirĩ), em outros ambientes da aldeia (Opy, roças, trilhas, mata, rios), em outras aldeias (para visitar parentes ou participar de eventos), e também em ambientes não indígenas (centros urbanos, universidades, escolas e outras instituições onde se realizam apresentações do coral, palestras, eventos e venda de artesanato, entre outros). Percebemos com esta pesquisa que todas essas possibilidades educativas também estão presentes na aldeia Itaty.
Durante uma das visitas à escola para observação e realização de entrevistas, participamos das atividades de encerramento do bimestre com a proposta de trabalhos produzidos pelas crianças. A estagiária de artes, Suélen Avelleda19, juntamente com o professor Karai, entregou os materiais de desenho e pediu que as crianças desenhassem “o que mais gostam da escola”, destacando que elas poderiam extrapolar a referência àquele espaço físico edificado e incluir, nos desenhos, qualquer elemento/lugar/situação que fizesse sentido para elas relacionar com a escola. Todos sentamo-nos em roda com as crianças para conversarmos sobre os desenhos. O desenho mais recorrente foi a Opy (casa de rezas), ou Opy Mirĩ, o petyngua (cachimbo) e o mbaraká (chocalho ritual), enfatizando a relevância do aprendizado cultural realizado em momentos de conexão espiritual e cosmológica:
As crianças destacaram, nos relatos e desenhos, que a aprendizagem escolar por elas experimentada se dá de forma fluída, contínua e rizomática por vários lugares da aldeia (não se restringindo à edificação escolar) e em diferentes tempos (aulas, passeatas, conversas ao redor do fogo etc.), envolvendo interações com diferentes membros de toda a comunidade (humana e não humana) que compartilha a tekoá. O que vai ao encontro do constatado por Bergamaschi (2005) e Oliveira (2012) em suas pesquisas.
Ao observar as práticas escolares realizadas na Tekoa Itaty, torna-se evidente o vínculo de sua forma de educar com o conhecimento que é transmitido, de geração em geração, sobre o território em que vivem. Todavia, para que consigam alcançar seus objetivos, os Guarani precisam garantir seu direito de ir e vir, assim como de permanecer nesses lugares ancestrais. A TI Morro dos Cavalos ainda aguarda que se efetive o processo de desintrusão dos não indígenas para finalizar a homologação do território. Durante a pesquisa, foram observados diversos momentos de manifestações reivindicando a homologação. Em tais situações, as atividades da escola deslocavam-se para a rodovia, ou tornavam-se momentos de concentração no espaço da escola, onde as crianças, juntamente com os adultos, cantavam e dançavam, fortalecendo o espírito e a luta (como explicitado no eixo 2 do PPP da Escola Itaty, o respeito às crianças e à sua autonomia se fez presente).
Pudemos observar que, em situações como essa, as crianças podiam interpretar tanto facetas de suas vidas enquanto Guarani quanto aspectos do chamado mundo juruá. No processo de subjetivação política proporcionado pela participação em ações desse tipo, adultos e crianças, sujeitos escolares (professores, gestores e alunos) e demais membros da comunidade, se fazem atores sociais, no sentido de que “elaboram demandas e constroem espaços e tempos de sociabilidade e de exercício de uma solidariedade” (Gouvêa; Carvalho; Silva, 2021, p. 4).
O processo de confeccionar cartazes e depois empunhá-los, as interações para definir funções e atividades etc. são todas atividades que ensejam aprendizados, podendo ter como lócus a escola e depois se espraiar pela tekoa ou vice-versa. Assim é que também efetivam seu direito a uma educação diferenciada e intercultural na qual as questões políticas integram seus movimentos de aprendizagem, de acordo com o que está previsto no PPP da escola e para além dele.
Manifestações na escola e na rodovia pela homologação da TI são parte do aprendizado.
Fonte: Facebook de Conexão Itaty (2018).
Considerações finais
O histórico da educação escolar praticada junto aos povos indígenas remete a situações coloniais, de assimilação cultural e imposição da visão de mundo eurocentrada. Após séculos de tentativas de implementação deste projeto, somos capazes de perceber, hoje, a resistência e resiliência das culturas indígenas em manterem seus modos próprios de viver, de interagir com o ambiente e de educar suas crianças. O estudo aqui apresentado revela, entre outras questões, a tenaz capacidade dos Guarani da Tekoa Itaty de reinventar uma escola que tinha inicialmente a missão de apagar suas ancestralidades, convertendo-a em ferramenta de luta por seus direitos.
A desobediência epistêmica tem sido praticada na Tekoa Itaty por meio da construção e busca de reconhecimento de uma proposta curricular diferenciada para sua escola, assim como do estabelecimento, na vida escolar e comunitária, de um lugar de relevância para as crianças, vistas como sujeitos ativos, cuja participação em diferentes atividades e esferas da vida social é dimensionada como fundamental para as próprias crianças e para os que as cercam.
Sobre o processo de construção de pedagogias próprias aos Guarani da Tekoa Itaty, cabe apontar que ele foi referido, nas narrativas dos professores, como algo necessário para a produção de formas de educar mais democráticas, além de importante para o fortalecimento e valorização das epistemes, saberes e fazeres indígenas.
Concluímos que, no campo da educação escolar, esse processo, quando atrelado à “indianização” da escola (Bergamaschi; Silva, 2007), ou seja, à apropriação crítica e criativa desta instituição pelas populações indígenas, que a tornam sua, pode funcionar como uma estratégia poderosa de combate às “políticas de uniformização curricular” pautadas por uma racionalidade colonial eurocêntrica e “orientadas para os valores do mercado’’ (ANPEd; ABdC, 2018, p. 4-5). Mais amplamente, pode também contribuir para o questionamento do projeto colonial/moderno (Quijano, 2005) e a desconstrução de seu legado, que segue naturalizando diferenças para convertê-las em desigualdades. Isso tende a favorecer desfechos positivos em outros campos de luta caros às populações indígenas, para além da educação.
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APOIO/FINANCIAMENTO
A pesquisa não contou com financiamento.
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DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Dados de pesquisa estão disponíveis no repositório institucional da UFSC, onde se encontra disponível a tese que serviu de base para o artigo: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/198254
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3
O presente artigo foi revisado por Roselaine de Lima Cordeiro. Após ter sido diagramado, foi submetido para validação das autoras antes da publicação.
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1
De acordo com Colman (2015, p. 3-4), “no Brasil, a população guarani está dividida em três grupos sociolinguístico-culturais: Ñandeva, Kaiowá e Mbyá; vivem em centenas de aldeias espalhadas por mais de 100 municípios brasileiros, localizados em sete estados das regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul”. No Brasil, há, hoje também, Guaranis que vivem em “terras retomadas” ou territórios designados pelos não indígenas como “acampamentos” situados na margem de rodovias. Além dos Guarani brasileiros, há os que vivem em outros países da América do Sul, como Argentina, Bolívia e Paraguai.
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2
Durante participação na Oficina da Ação Saberes Indígenas na Escola realizada em 06/06/2017, foi obtida a informação de que eram onze os professores Guarani que atuavam, naquele ano, na Escola Itaty, no Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos, em três turnos. Atualmente estão matriculados na escola 96 estudantes guarani. Na Terra Indígena na qual está localizada esta escola (Morro dos Cavalos/Palhoça - litoral catarinense), vivem aproximadamente 600 pessoas (MP/SC, 2022).
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3
A pesquisa relatada foi construída com base em escolhas e ações que levaram em conta critérios éticos relacionados à pesquisa com seres humanos propostos pela Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2016), como a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem, entre outros. Para além disso, ao definir o desenho metodológico do estudo e ao ponderar acerca de suas possíveis repercussões para a comunidade Guarani da T.I. Morro dos Cavalos, buscamos não perder de vista o compromisso com a promoção e proteção dos direitos das populações indígenas.
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Os dados produzidos e algumas discussões que compõem esse artigo derivam de uma pesquisa mais ampla que deu origem à tese de doutorado intitulada “Intervenções arquitetônicas junto a povos indígenas: processo de projeto, apropriação e uso de ambientes escolares”, de autoria de Nauíra Zanardo Zanin (2018), desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal de Santa Catarina. Nesta pesquisa mais ampla, foram realizadas, além da etapa à qual nos referimos aqui, outras, que incluíram entrevistas com professores indígenas, orientadores pedagógicos indígenas, diretores não indígenas, estudante indígena (pós-graduada), merendeiras indígenas, gerente de educação não indígena, arquiteta assistente técnica da Secretaria de Estado da Educação (SED/SC), profissionais/pesquisadores com experiência em espaço escolar indígena, arquitetos e estudantes de arquitetura que atuaram em aldeias.
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O termo pedagogias próprias se aproxima da expressão “pedagogias nativas”, utilizada por Tassinari (2015, p. 142-143) em referência ao conjunto de “processos próprios de aprendizagem e de busca do domínio de repertórios, técnicas e habilidades e as estratégias específicas para transmiti-los ou para possibilitar e estimular a iniciativa dos aprendizes”. Esta autora pondera que o uso do termo “pedagogia” é fecundo nas pesquisas que tematizam os processos de ensino e aprendizagem dos quais participam as crianças indígenas, especialmente se consideradas as possíveis articulações existentes entre os processos de aprendizagem e as concepções próprias de infância e de desenvolvimento infantil presentes na realidade vivida por essas crianças (Tassinari, 2015).
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O uso do termo fronteira, tanto por Tassinari (2001) quanto por outros/as autores/as citados/as ao longo do presente artigo, como Macedo (2006), referida na sequência da argumentação, inspira-se nas discussões pós-coloniais com as quais tais autores/as dialogam, como as produzidas por Homi Bhabha, Stuart Hall e Néstor García Canclini, que empregam a noção considerando a ‘fronteira’ como “um espaço de contato e intercâmbio entre populações, como espaço transitável, transponível, como situação criativa na qual conhecimentos e tradições são repensados, às vezes reforçados, às vezes rechaçados, e na qual emergem e se constroem as diferenças étnicas” (Tassinari, 2001, p. 68).
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Entendemos o currículo como “um espaço-tempo de fronteira no qual interagem diferentes tradições culturais e encontram-se mesclados discursos diversos - da ciência, da nação, do mercado, os ‘saberes comuns’, as religiosidades etc.) e em que se pode viver de múltiplas formas”, ou seja, um “entre-lugar cultural em que se expressam princípios do Iluminismo e do mercado, mas também alternativas [a serem construídas] que o tornam político [...]” (Macedo, 2006, p. 288 e 372). Essa autora, com quem concordamos, propõe que, em lugar de pensarmos as culturas presentes no espaço-tempo do currículo como objetos estáticos de uma disputa em que há “lados” que requerem nossa adesão, deveríamos apostar na possibilidade de negociação e de criação, nesse “entre-lugar” (Bhabha, 1988 apud Macedo, 2006, p. 289), de formas de tradução das diferenças, as quais não precisam ser lidas necessariamente como oposições inconciliáveis.
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Estudos historiográficos como o conduzido por Philippe Ariès (1981) apontam que, até o emergir da Modernidade, os termos infância e criança podiam ser empregados em referência aos anos iniciais do ciclo vital e aos “pequenos adultos” que os vivenciavam, mas sem qualquer distinção especial nem a conotação que vieram a adquirir ao longo dos últimos séculos.
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Encontro de Educação Escolar Guarani das regiões Sul e Sudeste (do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo) realizado de 27 a 31/08/2001, na localidade de Morro das Pedras, em Florianópolis -SC (Brighenti; Nötzold, 2010).
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O protocolo foi firmado entre as Secretarias de Educação dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo e Rio de Janeiro, a FUNAI e o Ministério da Educação e Cultura, para oferecer formação para o magistério bilíngue, específico para os Guarani, de 2004 a 2008, por meio do Programa de Formação para a Educação Escolar Guarani na Região Sul e Sudeste do Brasil Kuaa Mbo’e - Conhecer e Ensinar.
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Tekoá: lugar para viver segundo o nhanderekó (sistema, modo de vida Mbyá Guarani).
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Uma escola conduzida pelos Guarani, em uma casa de madeira, com piso de chão batido, considerada como “escola verdadeira”, segundo a professora Kerexu, em entrevista para essa pesquisa, realizada no dia 02 de junho de 2017.
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Diário de Campo, conversa com professora Kerexu, em 02 de junho de 2017.
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Segundo Aníbal Quijano (2009, p. 72-73), a colonialidade surge a partir do colonialismo, remetendo também a uma estrutura de dominação/exploração/opressão, mas com o diferencial de sempre basear-se em um poder racista/etnicista, ao passo que o colonialismo “nem sempre, nem necessariamente implica relações racistas de poder”. A modernidade, por sua vez, é definida pelo autor como “o novo universo de relações intersubjetivas de dominação sob hegemonia eurocentrada, configurado a partir da fusão das experiencias do colonialismo e da colonialidade com as necessidades do capitalismo” (Quijano, 2009, p. 74).
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Para Walter Mignolo (2017, p. 6), em quem nos apoiamos para definir esses conceitos, “O pensamento descolonial e as opções descoloniais (isto é, pensar descolonialmente) são nada menos que um inexorável esforço analítico para entender, com o intuito de superar, a lógica da colonialidade por trás da retórica da modernidade [...]”. Cabe não perdermos de vista, ao empreender esse esforço, que no cerne da colonialidade do saber reside o governamento de si e dos outros “em nome de verdades produzidas pelo saber expert [..]. E é na pretensão da neutralidade, objetividade e universalidade do pensamento científico que se assenta a suposta superioridade epistêmica que inferioriza as outras formas de produzir conhecimento e compreender o mundo” (Tonial; Maheirie; Garcia Júnior, 2017, p. 19).
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Bergamaschi e Silva (2007, p. 129) definem a “indianização da escola” como o processo de “colocar a escola a serviço dos interesses e necessidades dos povos indígenas, enquanto partes de seus projetos de presente e futuro, o que têm feito a diferença positiva são as iniciativas pensadas, coordenadas e avaliadas pelos próprios índios, através de seus diferentes movimentos, em especial o de professores indígenas”.
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Essas caminhadas pelo território oportunizam aos Guarani transmitir às novas gerações os conhecimentos acumulados sobre os antigos caminhos que continuam sendo necessários, por conduzi-los para onde estão os frutos, os cipós, as árvores, as plantas medicinais, os animais - por conduzi-los pela história de ocupação dos morros dessa terra indígena. “É no lugar das aldeias antigas, das roças antigas, que encontram aquilo que necessitam para educar as crianças e jovens. Mas também é no percurso, no deslocamento pela mata, quando muitas memórias surgem, onde conhecimento e sabedoria são compartilhados”, ou mesmo criados (Zanin; Castells, 2020, p. 455). Discorrendo sobre o tema, o professor Werá Tupã, em conversa no CFH/UFSC, no dia 11 de maio de 2017, utilizou o termo nhembo’e ka’aguy re ao se referir às idas à mata como um aprendizado; nhembo’e kokue py, expressa as roças como lugares de aprendizado; e nhembo’e tekoa py, que se refere à possibilidade de aprendizado na aldeia como um todo.
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Entrevista realizada na SED/SC, em 31/03/2017.
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Suélen Avelleda não é indígena. À época, ela cursava licenciatura em Artes Visuais na Uniasselvi e colaborou no planejamento e na realização do grupo focal com os professores. Estivemos juntas nas trilhas e também na elaboração dos desenhos pelas crianças e professores.
Disponibilidade de dados
Dados de pesquisa estão disponíveis no repositório institucional da UFSC, onde se encontra disponível a tese que serviu de base para o artigo: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/198254
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
20 Nov 2022 -
Aceito
09 Fev 2024