RESUMO
No Brasil, desde a primeira década do novo século, existe a preocupação em delinear o significado do cuidado como princípio do currículo e da política da educação infantil. A partir de referenciais da filosofia e de análises históricas e sociológicas, delineia-se o cuidado como relações e ações que têm o outro em vista e se tornam constitutivas do ser, implicando na constituição de cada um e de cada uma. Entre os anos 2021 e 2022, realizamos uma pesquisa de pós-doutorado que buscou aprofundar os significados do cuidado para fazer reflexões sobre o currículo da educação infantil. A ideia do projeto foi considerar o cuidado a partir do prisma dos povos tradicionais e dos movimentos sociais. Para isso, realizamos uma etnografia com uma comunidade de pesca do litoral norte do estado de Alagoas, Brasil. O estudo rebate noções de que os povos tradicionais oferecem um cuidado precário, como considerado pelo colonizador, sendo esse um cuidado mais comunitário, implicando maior liberdade das crianças para circularem pelos espaços da comunidade, e maior autonomia em relação a demandas da vida e para agir conforme curiosidades. Estão na base do cuidado relações de amistosidade sutil que se expressam no silêncio, na economia de palavras e na atenção aos gestos. Consideramos que os currículos na educação infantil precisam incorporar as diferentes formas e significados de cuidar para acolher bebês e crianças, e não subalternizar identidades sociais.
Palavras-chave: Educação Infantil; Currículo; Cuidado; Povos Tradicionais; Movimentos Sociais
ABSTRACT
In Brazil, since the first decade of this century, there has been a concern as to outlining the meaning of care as a principle of the curriculum and the early childhood education policy. Based on references from philosophy and historical and sociological analyses, care is outlined as relationships and actions that have the other in mind and become constitutive of being, implying the constitution of each person. Between 2021 and 2022, we carried out post-doctoral research that sought to deepen the meanings of care to reflect on the early childhood education curriculum. The idea of the project was to consider care from the perspective of traditional populations and social movements. For this, we carried out an ethnography with a fishing community on the north coast of the state of Alagoas, Brazil. The study refutes notions that traditional people offer precarious care, as considered by the colonizer. In fact, it is just the opposite. Traditional peoples develop community care, implying greater freedom for children to move around community, and greater autonomy in relation to the demands of life and to act according to their curiosities. Subtle friendly relationships that are expressed in silence, economy of words and attention to gestures are at the basis of care. We consider that early childhood education curricula need to incorporate the different forms and meanings of caring for babies and children, and not subordinate social identities.
Keywords: Early Childhood Education; Curriculum; Care; Traditional Peoples; Social movements
Introdução
Entre os anos 2021 e 2022, realizamos uma pesquisa1 de pós-doutorado que buscou aprofundar o significado do cuidado, a fim de construir reflexões sobre o currículo da educação infantil. Consideramos que seria possível e importante aprofundar o debate do currículo sob o prisma dos movimentos sociais e dos povos tradicionais2. Para isso, realizamos uma etnografia com uma comunidade de pesca do litoral norte do estado de Alagoas e nos inserimos em atividades da Rede de Mulheres Pescadoras da Costa dos Corais.
Inspiramo-nos na ideia de entrelugares, da escritora chicana Gloria Anzaldúa (2012), na qual, por meio de uma perspectiva intersticial - construída entre pessoas, coisas, relações, histórias, culturas -, novos olhares e novas formas de pensar se constituem.
As comunidades de pesca descendem diretamente da presença indígena no estado de Alagoas e têm um papel marcante no povoamento do litoral e na fundação da capital, Maceió (Pereira, 2018). Assim, a cultura, a forma de se alimentar, as tradições religiosas, a ancestralidade de alagoanos e alagoanas - como em muitas outras regiões do Brasil - conectam-se com as formas de vida das comunidades da pesca, embora a história oficial minimize essa participação e os currículos ignorem essa relação de identidade.
Como escreve Silva (2022), da política até o texto curricular, posicionamentos perante os conhecimentos, a educação e a vida de certos grupos são incluídos, enquanto os pertinentes a outros grupos, excluídos. Sobre esse aspecto, uma questão importante para o debate é que o currículo como prática cultural é espaço de significação e vincula-se ao processo de criação de identidades sociais. A produção de identidades sociais - “as formas pelas quais os diferentes grupos sociais se definem a si próprios e pelas quais eles são definidos por outros grupos” (Silva, 1999, p. 25) - compõem-se de um duplo processo, no qual, desde pequenas, as pessoas reconhecem semelhanças no interior de seu grupo de pertença e diferenças em relação a outros grupos; entretanto, a diferença, no contexto das relações de dominação, nunca é apenas diferença: ela é hierarquizada, valorizada e categorizada (Silva, 1999).
Historicamente, as formas de cuidar das populações locais foram rechaçadas, sendo valorizada a forma europeia (Silva; Lima; Siller, 2021). Essa forma de cuidar fundamentou-se em um conjunto de conhecimentos, com vistas a administrar os cuidados com base na ideia da normalidade (Sarmento; Pinto, 2004; Moysés; Collares, 2013). Para Maria Aparecida Afonso Moysés e Cecília Collares (2013), o processo de produção de saberes científicos sobre o cuidado e a educação das crianças obedeceu ao movimento da ciência moderna de se afastar da vida para sobre ela legislar, muitas vezes a destruindo violentamente. Sendo a pedagogia um dos conhecimentos que pautam as noções sobre como as crianças devem ser cuidadas e educadas, para Kohan (2003), esse campo do saber criou uma série de práticas e formas de comunicação que impõem a formação de um certo tipo de “eu”.
Consideramos que a exclusão dos conhecimentos, saberes e fazeres dos povos tradicionais realiza-se com a intenção de criar identidades sociais subalternizadas. Do ponto de vista da interculturalidade crítica, refletir sobre essa questão convoca os povos que historicamente sofreram com a subalternização para que atuem em projetos políticos, sociais, éticos e epistêmicos, a fim de refundar os dispositivos que fazem a manutenção da subalternização existentes em todos os campos da vida social (Walsh, 2008), entre eles, a educação e, na educação, a educação infantil.
Com base em Walsh (2008), conjecturamos que construir conhecimentos sobre o cuidado com os povos tradicionais, com o intuito de influenciar a construção de currículos para a educação infantil, faz parte de certa mudança epistemológica em relação aos saberes dos povos tradicionais, pela qual experiências e vivências de bebês, crianças e adultos nos espaços e tempos de creches e pré-escolas podem ser vivenciadas como legado de conhecimentos humanos sobre a vida, a natureza, a história, a tecnologia, a língua, as relações humanas e a arte. Nessa perspectiva, tais conhecimentos fazem parte do patrimônio de conhecimentos humanos, exigindo a refundação social e a descolonização, abrindo um caminho complexo de construção de outras possibilidades para a educação coletiva de bebês e crianças.
No presente artigo, apresentamos as primeiras elaborações que fomos capazes de realizar por meio de uma pequena etnografia, que cobre um período inicial de participação nas relações da comunidade. O artigo está estruturado da seguinte forma: inicialmente, apresentamos como a área da educação infantil vem tratando o cuidado como um princípio do currículo e algumas elaborações no sentido de pensar a dimensão cultural do cuidado; em seguida, descrevemos os caminhos pelos quais realizamos a etnografia sobre o cuidado nas comunidades de pesca e as noções que guiaram o trabalho no campo; e, por fim, apresentaremos a escrita da etnografia, seguida das considerações finais.
O cuidado como princípio do currículo da educação infantil
Os debates sobre o cuidado na educação infantil se iniciaram na década de 1980, com a criação do termo educare, na Inglaterra e nos Estados Unidos, elaboração que pretendia superar as dicotomias entre educação e cuidado. No Brasil, na década de noventa, foi proposto o binômio “cuidar e educar” para a política da educação infantil, a fim de superar a oposição histórica entre as práticas assistencialistas e escolarizadas (Cerizara, 1999).
No início dos anos 2000, as pesquisas e reflexões sobre o cuidado na educação infantil ganham corpo. Maria Lúcia Machado (2000) considera que o cuidado conferiu especificidade à prática pedagógica na educação infantil, e Fúlvia Rosemberg (2001) observa que o cuidado passou a designar novas funções e atitudes das docentes, como a proteção física da criança, o serviço complementar à família, maior atenção à individualidade etc.
Sônia Kramer (2009, p. 17), ao discutir uma proposta de currículo, entende o cuidar na educação infantil como um conjunto de ações e práticas dos adultos para com as crianças, que envolve: “[...] acolher a criança, encorajar suas descobertas, criação e imaginação; respeitar a brincadeira; ouvir as crianças em suas necessidades, desejos e inquietações; apoiar as crianças em seus desafios; interagir com elas, reconhecendo-se como fonte de informação, carinho e afeto”. Observa-se, assim, que o cuidado como princípio do currículo desdobra-se em uma forma especial e específica de trabalho pedagógico.
Tereza Montenegro (2001), percorrendo teorias do campo da saúde, da psicologia e da filosofia, postula o cuidado como uma prática ligada não apenas à emoção, mas também ao pensamento. Defende, fundamentando-se em Comte-Sponville (1995) e Snyders (1984), que o cuidado pode ser visto como generosidade, mas uma generosidade que envolve, além do afeto, a racionalidade.
Os trabalhos de Debora Sayão (2010) e Lea Tiriba (2005) também são importantes, pois verificaram empiricamente como as ações de cuidar eram desprestigiadas em creches e pré-escolas. Tal desprestígio se vincula à separação entre emoção e razão, uma vez que o cuidado é uma atividade ligada à emoção e exercida por mulheres. As autoras teorizam com aportes da filosofia e consideram que cuidar e receber cuidados fazem parte do processo de humanização (Sayão, 2010) e que, se o objeto das ações de cuidado são pessoas e envolve a satisfação de necessidades físicas, emocionais, cognitivas de outros, ele é sempre relacional, transformando quem cuida e quem é cuidado (Tiriba, 2005).
Daniela Guimarães (2011), com base em Foucault, pondera que o cuidado pode ser visto como uma forma menor de educação, no sentido de atentar para as miudezas do cotidiano na interação com bebês e crianças. Conclui que, na docência na educação infantil, é importante estabelecer uma condição na qual seja fomentado o prazer de estar consigo mesmo, pautado em uma ética no cuidado de si e no cuidado com o outro.
Desse debate, concluímos que o cuidado não é linear e unidirecional, partindo do adulto e afetando a criança, mas sim relacional, na medida em que todos os participantes envolvidos criam imagens, sensações, emoções e pensamentos sobre os acontecimentos dos encontros de cuidado, implicando a constituição de cada um. Assim, o cuidado influencia a constituição do ser.
Para esta pesquisa, conjecturamos que, antes da escola da infância, bebês e crianças são cuidados e cuidadas em suas comunidades, desenvolvendo sentimentos, emoções, pensamentos, sensações, musicalidade, movimento corporal, percepção estética; bem como construindo tradições alimentares, relações com as divindades, formas de produção e reprodução da vida, relações de gênero; e vivendo formas de sarar a dor, ofertar consolo, diminuir a tristeza e fomentar a alegria, imagens sobre gostos etc. Assim, nos encontros de cuidado que acontecem nas famílias e nas comunidades, bebês e crianças vão significando e criando sentidos sobre suas experiências, que implicam a construção de identidades como pertencentes daquela comunidade.
Nesse sentido, a escola da infância é o tempo e o espaço em que muitos bebês e crianças vão se deparar pela primeira vez, de forma mais contundente, com a diferença. A forma como elas darão sentido a essa diferença (como hierarquizada, como subordinada, como resistência, como uma das formas de ser e estar no mundo) é questão importante a se pensar se nos comprometermos com uma educação infantil que rompa com a produção de identidades subalternizadas.
As Diretrizes instituem acerca da vinculação das instituições de educação infantil à realidade dos povos tradicionais, bem como a suas culturas, tradições e identidades: valorizar os saberes e ofertar espaços e materiais que respeitem as características ambientais, sociais e culturais da comunidade (Brasil, 2009). Tais orientações são extremamente importantes, sendo importante ainda, observarmos que há um saber e uma forma de cuidar ligados as identidades de cada um e de cada uma, de suas famílias e comunidades que precisa ser conhecida, respeitada e assimilada.
Muitas pesquisadoras da área da educação infantil concordam que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) implica uma homogeneização das práticas (Abramowicz; Cruz; Moruzzi, 2016). Segundo Silva, Lima e Siller (2021), com a adoção de uma perspectiva funcional sobre as diferenças (Walsh, 2008), a BNCC reforça o ideário moderno/colonial em que as formas de cuidar e educar são instrumentais para continuar processos de subalternização (Silva; Lima; Siller, 2021).
Usando a expressão de Amorim e Dias (2012), a BNCC é um desvio da rota sobre como o currículo vem sendo pensado nas últimas décadas, criando dificuldades conceituais e práticas para a criação de currículos que acolham os saberes dos povos tradicionais. Nesse contexto, é fundamental a produção de conhecimentos de resistência a essas perspectivas, buscando, junto com as comunidades, o reconhecimento de seus saberes e modos de ser.
Questões referentes à etnografia na pesquisa na comunidade da pesca: a entrada no campo, decisões da pesquisa e a escrita etnográfica
Após solicitar consentimento para as lideranças da Colônia de Pescadores, comecei3 a participar das reuniões da Colônia em um munícipio localizado no litoral norte de Alagoas. Aproximei-me da direção e fui me envolvendo em algumas atividades. Em uma delas, conheci Regina4, uma liderança feminina da pesca. Por meio da minha relação com ela, foi possível iniciar a aproximação com duas comunidades, que chamaremos aqui de “vila” e “povoado”, ambas no litoral norte de Alagoas.
A pesquisa se deu majoritariamente com as mulheres. Sabe-se que, socialmente, é atribuído a elas o cuidado não apenas das crianças, mas dos idosos e das pessoas doentes, sendo a responsabilização das mulheres pelo cuidado uma característica de sociedades desiguais (Almeida, 2021).
Acessar as pessoas da comunidade, entre elas, as mulheres, foi um processo lento. No livro Jangada: uma pesquisa etnográfica, Câmara Cascudo apresenta uma etnografia de uma comunidade de pesca do Rio Grande do Norte. Nela, o autor descreve os pescadores como silenciosos: “é o único trabalhador que não pode conversar nem cantar enquanto dure sua tarefa” (Câmara Cascudo, 1964, p. 18). Esse aspecto da pesca influi na forma de os pescadores se comunicarem, sendo lacônicos, sem longas narrativas, comunicando elementos ricos e expressivos, mas sem intenção comovedora para continuar longas conversas (Câmara Cascudo, 1964).
Na pesca das mulheres, há elementos específicos, segundo nossas observações. Elas raramente pescam sós, pois a pesca feminina se caracteriza pelo uso de peças artesanais, o que nem sempre garante uma boa quantidade de pescado individualmente. Sendo assim, o grupo representa a possibilidade de aumentar a quantidade do produto. Além disso, a pesca em grupo é protetiva, uma vez que pescar sozinha cria uma situação de vulnerabilidade a violências. Assim, percebi solidariedade e confiança entre as parceiras, mas restrições às pessoas de fora da comunidade.
Nesse contexto, a construção de proximidade com as comunidades progrediu lentamente. Eu tinha dificuldades para lidar com as atitudes silenciosas e entendia que as minhas tentativas de aproximação estavam sendo evitadas. Quando percebi que as pessoas de fora da comunidade eram recebidas com certas restrições, preocupei-me em ter mais delicadeza na interação com as interlocutoras e os interlocutores.
Durante esse processo, Regina foi uma interlocutora importante, pois com ela eu conseguia refletir sobre várias questões da pesquisa. Ela me questionava sobre meus interesses e sempre mencionava a importância de conhecer a realidade do povo pescador, principalmente das mulheres.
No projeto, constava a observação participante e, como fonte para a produção das informações, registros fotográficos, entrevistas semiestruturadas e grupos focais. Continuei com a proposta da observação participante, mas os outros procedimentos foram abandonados, pois avaliamos que foram considerados invasivos.
Em vez de entrevistas semiestruturadas, como constava no projeto de pesquisa, optei por entrevistas do tipo aberto, pois elas poderiam criar um clima de mais proximidade e acolhimento. Essas entrevistas aconteceram sempre nas residências. Eu começava perguntando sobre a infância, e a partir daí a conversa se desenrolava.
Percebi que uma forma de me inserir seria participando de eventos da comunidade. Durante o período em que foi feita a pesquisa, Regina trabalhava na organização local das mulheres. Assim, participei da organização das pescadoras e acompanhei Regina em atividades da Rede de Mulheres Pescadoras da Costa dos Corais na vila, no povoado e em Maceió. Uma atividade foi organizada por mim e Regina: uma roda de conversa na qual buscamos levantar o cotidiano das mulheres. Por meio da roda de conversa, fui capaz de localizar ações de cuidado e principalmente os tempos-espaços que as crianças ocupam no cotidiano.
A partir de junho de 2022, fortes chuvas atingiram o nordeste brasileiro, e as condições para a pesca se tornaram ruins, afetando economicamente as famílias. Nesse momento, o imperativo foram as ações de solidariedade. Participei da campanha de coleta de donativos para a formação de cestas básicas e ajudei a distribuí-las. Atuar na campanha de doação de alimentos e roupas possibilitou conhecer mais a comunidade. Nas ações de captação e entrega de donativos, caminhávamos, conversamos com as pessoas e podíamos observar as relações, o dia a dia.
Construí a hipótese do cuidado como um aspecto constitutivo da vida da comunidade, possível de ser captado somente por meio da observação de vários aspectos e relações. Teoricamente, elaborei que o cuidado acontece entre seres humanos que compartilham significados de uma cultura, envolvendo assim uma dimensão cultural. Em decorrência dessa hipótese, o trabalho etnográfico deveria caminhar no sentido de conhecer a significação cultural do cuidado na comunidade da pesca.
Para captar essa significação cultural do cuidado, também observei brincadeiras. Trabalhei com a ideia de que a brincadeira é a criação de uma situação imaginária, na qual as crianças revelam suas formas de compreensão de mundo e principalmente das relações sociais (Marcolino; Mello, 2015). Fernandes (2016) indica que na brincadeira emergem elementos do contexto social em que as crianças vivem. Porém, sendo esse processo mediado pela imaginação e sendo as crianças mais livres para criar na brincadeira (Vigotski, 2018), elas são mais capazes de imprimir novas nuances às relações sociais (Marcolino; Santos, 2021), misturando traços da tradição com outros mais atuais que elas conhecem por meio de suas experiências e vivências em variados campos da vida social Dessa forma, presumimos que a brincadeira apresentaria tanto características da tradição do cuidado na comunidade quanto aspectos mais atuais, assimilados pelas crianças.
Por fim, gostaria de apresentar algumas ideias que nortearam a escrita da etnografia.
Desde os anos 1980, há intensa discussão e análise crítica sobre o fazer da etnografia. Recentemente, parte-se da ideia de que os conhecimentos sobre uma cultura se constroem com base nas referências das interlocutoras e dos interlocutores do campo e das pesquisadoras e pesquisadores (Nascimento, 2019).
Na teia de significados tecidos pelos seres humanos sobre a cultura e na qual eles também estão envolvidos (Geertz, 1978), a descrição de uma cultura “significa menos descrever as minúcias ou detalhes de um fato (essa é só a primeira etapa ou condição da sua realização) e mais situar essa descrição na teia simbólica em que esse fato se inscreve” (Marchi, 2018, p. 730). Além disso, para Rita de Cássia Marchi (2018), é preciso interpretar o significado que as ações, falas e atitudes das interlocutoras e dos interlocutores têm para eles próprios e para elas próprias, bem como tentar enunciar o que esse significado informa sobre a cultura.
Essas ideias influenciaram a escrita etnográfica e fizeram com que eu lidasse com a questão da fronteira entre os conhecimentos acadêmicos e os conhecimentos da comunidade como condição intelectual e formulei como estratégia a abertura para que os novos conhecimentos e emoções me afetassem para em seguida dialogar com eles.
Em todos os momentos em que estive no campo, realizei anotações, registros e levantamento de hipóteses. Desse material, organizei descrições em um quadro, com o intuito de estruturar o material do diário de campo. Os temas das descrições do quadro foram: “entrada no campo”, “as relações entre as mulheres”, “as relações entre as mulheres e as crianças”, “as relações entre as crianças”, “as relações entre as mulheres e os homens”; “as relações com a natureza”. Foi a partir desse quadro que a escrita etnográfica foi realizada.
Natureza, movimento e calmaria: pequena etnografia sobre o cuidado nas comunidades de pesca
Na vila dos pescadores e no povoado, cabe às mulheres a pesca artesanal e, seguindo o padrão dominante da divisão sexual do trabalho (Saffioti, 2013), recaem sobre elas as atividades domésticas e o cuidado com os filhos, os idosos e as pessoas doentes.
Também há uma divisão espacial marcada pela bipolaridade mar e terra/areia - nesta, inserem-se os ambientes de transição entre o mar e a terra (Rodin, 2021), como mangues e beiras de rio. No mar, os homens usam barcos e equipamentos mais sofisticados, e, na terra/areia, as mulheres pescam com instrumentos artesanais produzidos por elas.
Na transição entre mar e terra/areia, as pescadoras também trabalham com a pesca de arrasto, mas esse tipo necessita de rede, instrumento pesado que pertence aos homens. Assim, elas precisam que eles lhes emprestem a rede e as ajudem a jogá-la ao mar, para que depois elas possam fazer o arrasto.
De certa forma, no âmbito dos espaços públicos da vila e do povoado, raramente são vistos grupos de homens e mulheres juntos: onde as mulheres estão, não há homens. Relações entre homens e mulheres no mesmo lugar parecem ser reservadas aos espaços privados da casa, com a família.
Todas as vezes em que visitamos a palhoça, quando aconteciam as reuniões das mulheres, geralmente os homens saíam (se estivessem lá por não terem ido ao mar), e as mulheres permaneciam - e, junto delas, as crianças. Assim, mulheres e crianças parecem habitar os mesmos espaços. Apenas uma vez em que estive na palhoça, os homens ficaram, pois havia peixe, e algumas pessoas se interessaram pela compra.
Os meninos, quando atingem certa idade, comumente perto dos 10 anos, já se aventuram na pesca (como a da lagosta), e as meninas continuam na companhia das mães ou das outras cuidadoras da família. Elas iniciam a pesca do marisco, sendo que, no espaço da areia, por vezes, mulheres e meninas ficam com os pequenos peixes de menor valor pescados pelos homens, como me indica uma jovem pescadora: “Eu fui morar com a minha tia.... Aí a gente pescava, eu pescava com ela. A gente pegava o marisco e a gente ganhava peixes pequenos da pesca dos homens”.
Como Patrícia Rodin (2021), também constatamos que as pescadoras têm suas vidas cadenciadas pelo fenômeno da maré, e, assim, o cotidiano se movimenta em função desse evento da natureza. Na roda de conversa, as mulheres contaram sobre seu cotidiano. Costumam acordar de madrugada, às três horas da manhã, para fazer a marmita ou o lanche do marido. Nesse horário, relatam que iniciam as tarefas domésticas, como lavar a roupa, limpar a casa etc. Às quatro da manhã, se ainda existir peixe da pescaria do dia anterior, salgam-no e o estendem no varal.
Para aquelas que têm filhos e filhas em idade escolar, às seis da manhã, o ônibus passa para levar as crianças. Até os bebês vão de ônibus para a creche, acompanhados pelas mães. À uma da tarde, as crianças que estudam no período vespertino vão para a escola.
Como a pesca do marisco só pode acontecer na vazante, se a maré está baixa no horário em que as crianças não estão na escola, uma companheira pode cuidar da criança enquanto a mãe pesca. Esse acontecimento é mais relatado pelas pescadoras mais velhas. Em alguns casos, as crianças acompanham as mães, mas essas têm muita preocupação em levá-las para a praia, principalmente em relação às menores. Uma das pescadoras nos disse que representantes do Conselho Tutelar costumam realizar visitas à praia, orientando as mães de que as crianças não devem permanecer no momento de trabalho.
Às cinco horas da tarde, as crianças que estudam no período vespertino saem, e, às seis, aquelas que estudam de manhã já se preparam para dormir. A noite das mulheres é preenchida com atividades como assistir a telenovelas, ir à igreja ou tratar do pescado para secar no outro dia.
As mulheres relatam gostar da vida na pesca. Contudo, Zulmira diz que gostaria de ter mais tempo para descanso e lazer; Cláudia diz que gostaria de cozinhar coisas diferentes, como pão de queijo; e Aline, uma jovem, anuncia que gostaria de ser veterinária, e não pescadora.
Na fala dessas mulheres, percebemos que o cuidado preenche seus dias: cuidar da casa, cuidar do marido, cuidar de alguém doente. O cuidado com as crianças, no entanto, apenas surge na fala delas quando provocadas por perguntas feitas por mim. Foi a partir daí que levantei a hipótese de o cuidado com as crianças ser visto por elas como algo muito natural. Tal naturalidade parece despontar porque essas mulheres cuidam das crianças desde quando elas mesmas são crianças. Em mais de uma vez nas entrevistas abertas, ouvi relatos sobre cuidados com as crianças que poderiam ser das irmãs ou dos irmãos mais novos, ou na situação de trabalhadoras domésticas.
Pescadora: Eu já cuidava dos meus irmãos em casa. Eu não nasci aqui, eu sou pescadora porque casei com um pescador. Eu morava no interior. Um dia, na rua, eu tava andando... parou um carro, um homem e uma mulher, e me perguntaram se eu queria trabalhar na casa deles.
Pesquisadora: quantos anos você tinha?
Pescadora: 13.
Pesquisadora: 13?
Pescadora: É, eu fui. Eu cuidava da casa, eu cuidava das crianças...
Luisina Morano e Andrea Szulc (2023), que realizaram uma etnografia sobre crianças que cuidam de outras crianças em uma região rural da Argentina, analisam que meninas têm aprendizagens complexas nas relações de cuidado, na medida em que essas aprendizagens se traduzem em um saber sobre cuidar de outros, desenvolvendo habilidades de análise, observação, produção de diagnósticos, dentre outras. Entretanto, o cuidado não é harmonioso (Lara; Leavy, 2023), e o fato de ser atribuído às mulheres, desde pequenas, exige análises mais aprofundadas.
Carol Gilligan (1982) é considerada a teórica que introduz a ideia da ética do cuidado feminino. Ela apresenta um ponto de vista interessante, embora com aspectos discutíveis, no que diz respeito às bases epistemológicas da filosofia feita pelos homens. Segundo a autora, são importantes para o debate sobre moral e ética não apenas categorias abstratas (como justiça), mas também julgamentos fundados na experiência do cuidado e nos relacionamentos afetivos, utilizados por mulheres. Com isso, Gilligan (1982) propaga que há na sociedade dois tipos de éticas, uma masculina e outra feminina, sendo a última fundada no cuidado.
Para Neil Noddings (1986), a filosofia tradicional negligenciou o cuidado, pois, uma vez exercido por grupos sociais específicos, no caso, pelas mulheres, foi tratado como algo sem importância. Segundo Noddings (1986), é preciso substituir a ética masculina abstrata pela ética do cuidado, aprendida nas relações de afetividade próxima, que envolve a necessidade de oferecer e receber cuidado, sendo a maternidade o modelo pragmático da relação de cuidado.
Juliana Missigaia (2023) resume críticas em relação à ética do cuidado feminino. A questão problemática é atribuí-lo às mulheres e à maternidade, sem um debate sobre as questões históricas e sociais envolvidas. Muitas vezes o cuidado se constitui como sobrecarga à mulher, desde a infância, e se expressa de forma diferente conforme classe e etnia. No campo dos feminismos, as críticas se relacionam à atribuição de uma identidade fixa às mulheres, que as liga ao cuidado e à maternidade, sendo que nem todas se identificam com a maternidade.
Outra questão é que, embora o afeto possa ser central no cuidado, este exige tomadas de decisões e outras atitudes que requerem a cognição, como demonstram Morano e Szulc (2023), o que é feito de forma exímia pelas mulheres: administram tarefas, tomam decisões, cuidam de orçamento, fazem diagnósticos etc. Assim, pensar o cuidado como atividade apenas ligada ao afeto é colocá-lo dentro da divisão sexual das emoções (Heller, 1979), sem superá-la. Na divisão sexual das emoções, as mulheres são reconhecidas ao expressarem empatia, gentileza e sensibilidade, enquanto os homens, liderança e agressividade. Porém, Soares (2012) analisa que, quando homens expressam, no cuidado, emoções como empatia e gentileza, são apreciados e reconhecidos. Dessa forma, as emoções das mulheres são ora reconhecidas, ora tomadas como inferiores, mas raramente atingem o mesmo reconhecimento social das emoções dos homens.
Na vila e no povoado, as ações de cuidado ainda são majoritariamente exercidas pelas mulheres, desde pequenas. Todavia, observamos também um cuidado comunitário, marcado por traços de solidariedade. Esse tipo de cuidado parece estabelecer confiança para circular e se relacionar dentro da comunidade. No caso das crianças, manifesta-se na liberdade de se movimentarem e brincarem em vários espaços da vila e do povoado, porém com maiores restrições de circulação fora da comunidade, conjectura feita a partir da percepção de que se sai muito pouco da comunidade. Mesmo entre os adultos, sobretudo entre as mulheres, pouco se sai.
Uma jovem pescadora relata ter ido uma vez a Maceió; Rosa, pescadora já aposentada, conta que sua vida era entre “pescar com a mulherada” e ir vender o peixe na feira. Entre as conversas no grupo de pescadoras, sair para uma localidade mais distante não parecia ser agradável. Regina sempre buscava levar as mulheres para atividades fora da vila e do povoado, mas era algo que precisava ser muito trabalhado.
Na maioria das casas que ficam no caminho para o mar não há quintal. As portas das residências são voltadas diretamente para a rua, onde as crianças brincam. Vi meninos brincando de bola; meninas circulando, conversando, mostrando bonecas, correndo; meninas e meninos brincando de casinha. Vi pequeninos brincarem com restos de tijolos, pedras, madeiras ou o que encontravam pela rua. Assim, a rua abriga todo tipo de brincadeira, seja de movimento, seja de situação imaginária.
Nesse sentido, levantamos a hipótese da não existência de uma fronteira tão nítida entre casa e rua, e pensamos que esta última poderia ser como os quintais das casas. Depois, revisamos nosso pensamento, porque a ideia de “quintal” vem de uma noção de casa baseada no conceito de propriedade privada.
A rua é coletiva, constitui interligação entre dentro e fora, entre a minha casa e as outras casas. As crianças e as mulheres circulam umas pelas casas das outras, sem muita reserva: basta um chamado na porta, e logo vizinhas, crianças e mulheres estão dentro das casas umas das outras para conversar ou para pedir ajuda. Sentadas e sentados nas calçadas, adultas e adultos conversam, e as crianças brincam.
Essa liberdade de circular parece estar ligada ao conhecimento e ao domínio dos espaços (no sentido de conhecer e saber como agir neles). Supomos que um dos fatores que influem nessa liberdade de circular são as relações próximas entre as pessoas da comunidade, que fazem das outras e dos outros (adultas, adultos e crianças maiores) auxiliares no cuidado. Embora os responsáveis olhem as crianças e as orientem, todos e todas na comunidade também olham as crianças.
Uma avó conta que a neta leva recados aos vizinhos, vai ao mercado e faz pequenas compras. Ela diz que fica de olho, mas sabe que, se algo acontecer, alguém virá avisá-la. Uma pescadora mãe relata que seus meninos brincam na rua e andam pela vila. Ela faz recomendações e os orienta sobre locais inapropriados; assim, durante o período em que não estão na escola, eles brincam na rua e circulam na comunidade.
Nesse contexto, esse cuidado comunitário parece potencializar a autonomia das crianças em vários sentidos. Por autonomia, entendemos a possibilidade de as crianças tomarem e conduzirem iniciativas próprias para aquilo que lhes interessa, agindo de forma consciente em relação aos movimentos do corpo, à cognição e aos afetos. Segundo Mello (2014), na infância, a autonomia é intrínseca às relações que se dão com os adultos. Nesse sentido, autonomia não significa separação; significa, ao contrário, segurança em relação ao adulto, mesmo que distante dele. Entretanto, nesse tipo de cuidado comunitário, conforme as crianças crescem, parece haver menor exclusividade da relação da criança com uma adulta ou um adulto de referência e mais vínculos de confiança com vários outros adultos e/ou crianças.
Nessa acepção de autonomia que o olhar para comunidade da pesca nos traz, acontece de as crianças tomarem para elas responsabilidades sobre demandas da vida. Observamos, por exemplo, um menino, filho de uma pescadora, empenhado na plantação de tomates com a mãe. No diálogo com essa mãe, ela nos conta que o interesse por plantar os tomates foi do menino e que ela o ajudava. O pé de tomate foi plantado na rua, bem na frente da casa. Na areia, plantar não é fácil, pois é um tipo de solo com poucos nutrientes. O cuidado com o pé de tomate era diário, e o menino ardia de curiosidade de ver os frutos crescerem.
Percebe-se, dessa forma, que as crianças também se empenham em ajudar. Nas reuniões na palhoça, na hora do lanche, ajudavam a colocar os alimentos na mesa e inclusive organizavam uma sacola plástica com o lixo para que ele não fosse jogado no chão.
Assim, a infância na vila e no povoado não se caracteriza como as infâncias urbanas, regidas pela lógica da crescente domesticação e da institucionalização, que diminuem as possibilidades de as crianças usufruírem dos espaços públicos, em função da percepção de riscos para a infância. Tal lógica gera superproteção por parte de adultas e adultos (Sarmento, 2018 apudTrevisan et al., 2022), limitando a possibilidade de as crianças circularem pelos espaços fora do ambiente doméstico. Na vila e no povoado, esse problema parece ser reduzido, ao que tudo indica, por causa de uma vivência mais comunitária.
As brincadeiras das crianças também foram fontes importantes de interpretação do cuidado nas comunidades da pesca. Durante as reuniões das pescadoras, observamos crianças de idades diferentes, meninos e meninas, brincando juntos. Notamos uma dimensão de cuidado entre elas: as maiores cuidavam das menores. Observei meninas maiores fazendo trança em outras menores; as maiores ofereciam a mão para as crianças menores pularem do banco em uma das brincadeiras. No final da brincadeira, as crianças maiores ajudaram as menores a calçarem as sandálias.
Retomando a ideia de que, nas brincadeiras, podemos observar novas nuances das relações sociais, pois as crianças imprimem nas relações recriadas pela imaginação aquilo que vão conhecendo a partir de seus múltiplos vínculos com a realidade, constatamos, nas brincadeiras das crianças, os meninos brincando de casinha com as meninas e envolvidos nas relações de cuidado, como aparece neste trecho do diário de campo, de 20 de abril de 2022:
As crianças estão sentadas na palhoça ao lado do círculo com cadeiras no qual as mães estão sentadas debatendo. Clarice penteia o cabelo de Inês e faz tranças. Jorge parece irritado, as vezes choraminga. Rosa pega em sua mão, dá uma volta com ele. Ele sobe no banco, depois pula, ela o ajuda. Vamos brincar? Quer comer? Sentam-se e fazem de conta que comem.
Em pesquisa realizada em 2013 (Marcolino, 2013) em um Centro Municipal de Educação Infantil de uma cidade do centro-oeste paulista, observei a resistência de meninos brincarem de casinha: um menino chegou a me dizer, em tom reivindicatório, que preferia fazer lição! Interpretei a atitude do menino como uma resistência a essa brincadeira, pois apresenta relações de cuidado que se dão na família, sendo considerada uma brincadeira de meninas.
Quando observei meninos brincando de casinha, interpretei a situação como um indício de que eles participam das ações de cuidado, o que significa a ocorrência de transformações nas relações sociais de cuidado, mesmo que pequenas.
Outro exemplo está na brincadeira de Janaína e Pedro, registrada em meu diário de campo:
Janaína e Pedro brincam. Ela tem aproximadamente 5 anos e ele, 7 anos. Brincam com panelinhas de brinquedo. Janaína traz bonecos e os coloca sentados perto do muro. Os dois fazem a comida, conversam, riem. Sentam-se à mesa. Janaína traz os bonecos para perto da mesa de brinquedo. Fazem que comem.
Nesse registro, o menino não apenas se envolve na brincadeira que reproduz relações de cuidado, mas ele mesmo interpreta ações de cuidado, quais sejam, cozinhar para a família.
Caminhando para a conclusão do texto, ressalto um aspecto da comunidade da pesca que parece informar sobre o significado cultural do cuidado ali. Por viverem em ambiente natural, pescadoras e pescadores têm conhecimentos complexos da vida marítima e são exímios observadores da natureza (Oliveira, 2018). Esses conhecimentos são empíricos e adquiridos pela observação dos fenômenos físicos e biológicos (ventos, marés, reprodução dos cardumes de peixes). Para observar a natureza, que é fonte de vida porque é fonte do sustento, é preciso silêncio e concentração.
Um traço marcante nas observações é como as relações acontecem dentro de um silêncio. Nas reuniões na palhoça, enquanto as mulheres conversavam, no mesmo espaço, as crianças brincavam. Havia movimento do corpo, gestos das crianças brincando. Havia o som das falas das mulheres, mas tudo acontecia dentro de uma calmaria. As crianças não solicitavam as mães, e elas, em nenhum momento, esbravejaram ou chamaram a atenção delas.
Assim, fui apurando meu olhar para o fato de adultas e adultos não transmitirem às crianças longas instruções, mas breves orientações, e acompanharem as atividades que as crianças se voluntariavam a fazer, como o caso do menino que decidiu plantar tomates e o das crianças organizando o lanche. Há nisso tudo uma amistosidade que é sutil, por ser silenciosa, quase sem palavras e consequentemente mais gestual: das crianças com o corpo, e dos adultos com expressões faciais e principalmente com os olhares.
O menino curioso pelos frutos do pé de tomate, em uma conversa, disse que gostava mais da educação infantil que do ensino fundamental. Logo, formulei a hipótese de que seria devido ao fato de a primeira ser um espaço-tempo de brincadeiras. Entretanto, o menino continuou e disse que “naquela escola, tinha menos brigas, e as crianças eram mais amigas” (conforme registro no diário de campo de julho de 2022). Assim, a amistosidade estava no centro de sua avaliação sobre a educação infantil.
O cuidado que tem como base essa amistosamente sutil e que é oferecido de forma mais comunitária - embora as mulheres, desde pequenas, se responsabilizem pela maioria das ações de cuidado - possibilita maior liberdade de circulação e movimento para as crianças, além do estabelecimento de mais vínculos de confiança.
Acostumados a pensar o cuidado das crianças no seio da família (nuclear burguesa) com poucos adultos de referência (sendo a mãe a principal), encontramos na comunidade um cuidado comunitário que nos provoca a refletir sobre possibilidades de um cuidado mais comunitário também na educação infantil: um cuidado que forneça às crianças a possibilidade de vários vínculos que ofertem liberdade e autonomia.
É importante pensar que a identidade desses bebês e dessas crianças é forjada em suas comunidades. Ingressar em uma instituição em que não se tem liberdade para engatinhar, andar, correr e brincar; e em que não há contato com a natureza, exploração de espaços externos e públicos, relações com crianças de várias idades - experiências e vivências que fazem parte de suas vidas - sufoca as raízes das crianças, subalternizando suas identidades.
Dessa forma, a instituição de educação infantil estar vinculada à realidade dos povos tradicionais, bem como às suas culturas, tradições e identidades, não pode se reduzir à oferta de materiais e à organização dos espaços. Para além disso, deve ser, a partir do reconhecimento do saber e fazer sobre o cuidado, mais uma maneira de conduzir as relações, que incorpore as formas de cuidar da comunidade. Assim, respeita-se quem a criança é, sua identidade social, pois, como já dito, é disso também de que trata o cuidado como princípio do currículo.
Provocada a refletir sobre um currículo para as instituições que acolhem bebês e crianças da pesca, esse parece-nos se expressar como uma educação infantil que se faz com a comunidade, de forma amistosa, com fronteiras físicas entre os espaços dentro/fora (sala de referência/espaços externos, instituição/comunidade, instituição/rua) flexíveis e tênues. Outra questão é: nessa escola da infância, as relações de cuidado não são exclusivas entre adultos e crianças, na medida em que elas também se dão entre as crianças, reforçando os laços comunitários, de pertencimento, empatia e respeito entre os coetâneos.
Considerações finais
Como fabricar uma rede, este trabalho aponta para tantas tramas que ainda podem e precisam ser investigadas e pensadas, por exemplo: a possibilidade de aprofundar a questão da liberdade e da autonomia das crianças, a exploração dos espaços, as atitudes de risco para a infância por parte dos adultos, questões relativas ao cuidado feminino, o papel das crianças como cuidadoras, o currículo para bebês e crianças pertencentes aos povos tradicionais. Dessa forma, é possível notar que, ao olharmos para as comunidades tradicionais, seus saberes e sua vida, descortina-se uma complexidade de questões.
Do ponto de vista da metodologia, a descrição de como se deu a entrada no campo evidencia que muitas questões não puderam ser aprofundadas. Julgamos que o tempo foi bastante restrito para trazer mais elementos que pudessem evidenciar as interpretações e as falas das interlocutoras e dos interlocutores. Desse modo, esse primeiro momento, realizado por causa da pesquisa de pós-doutoramento, foi apenas um início, no qual levantamos hipóteses e iniciamos nosso conhecimento da comunidade.
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1
O artigo é uma análise inicial da pesquisa de pós-doutorado realizado pela primeira autora e orientado pela segunda.
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2
“Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (Brasil, 2007, art. 3º, inc. I).
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3
As seções 3 e 4 correspondem à pesquisa etnográfica realizada pela primeira autora sob orientação da segunda.
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4
Nome fictício.
Disponibilidade de dados
Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
21 Nov 2022 -
Aceito
09 Fev 2024