PANORAMA INTERNACIONAL
MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS
Ainda existe lugar para o uso de dopamina no choque séptico?
No choque séptico, a complexa interação entre hipovolemia, vasodilatação, disfunção miocárdica e microcirculatória resulta em distribuição irregular do fluxo sangüíneo, dano tecidual e disfunção orgânica progressiva. Nesta situação, a expansão volêmica não é suficiente para adequar a função cardiovascular e o transporte de oxigênio à demanda tecidual, sendo necessária a utilização de drogas vasoativas. Contudo, o agente mais efetivo para restabelecer a perfusão tecidual e melhorar a sobrevida permanece indeterminado1-3.
Recentemente, Sakr et al. conduziram um estudo de coorte, multicêntrico, prospectivo, observacional em 198 unidades de terapia intensiva da comunidade européia1. Os pacientes admitidos de 1 a 15 de maio de 2002 foram acompanhados até a alta hospitalar ou por 60 dias. De 3.147 pacientes, 1.058 (33,6%) apresentavam choque, dos quais 462 (14,7%) choque séptico. A mortalidade na UTI no choque de qualquer etiologia foi 38,3% e no choque séptico de 47,4%. A dopamina foi utilizada em 375 (35,4%) pacientes, nos quais a mortalidade na UTI e no hospital foi superior aos que não receberam dopamina (42,9% versus 35,7%, p=0,02 e 49,9% versus 41,7%, p=0,01; respectivamente). Houve uma redução de 30 dias na sobrevida no grupo da dopamina (log rank=4,6, p=0,032). Além do uso de dopamina, a idade, câncer, admissão clínica, elevado SOFA escore e o elevado balanço hídrico foram fatores de risco independentes de mortalidade na UTI nos pacientes com choque. Este estudo observacional sugere um aumento da mortalidade em pacientes com choque, incluindo a população séptica, associado ao uso de dopamina.
Comentário
No presente estudo, Sakr et al. identificaram a administração de dopamina como fator de risco independente de morte em pacientes com choque de qualquer etiologia. Embora não determinada a razão para este achado, diversos fatores podem ter contribuído. A dopamina é uma catecolamina com efeito dopaminérgico, b1-adrenérgico e a1-adrenérgico dose-dependente. Porém, sua farmacocinética em pacientes graves é muito variável e, até mesmo em doses baixas, a atividade b e a podem ser significativas. Apesar da dopamina parecer efetiva em restaurar a pressão arterial em pacientes com choque, esta realidade não é tão clara no choque séptico. Nesta população, a noradrenalina, além de se mostrar mais eficaz em manter a pressão de perfusão tecidual, diurese, oferta e consumo de oxigênio quando comparada à dopamina, tem sido associada a um melhor prognóstico, especialmente quando utilizada precocemente4. Por outro lado, a utilização da dopamina para otimizar o fluxo renal em pacientes graves, além de não mostrar efeitos benéficos sobre o clearance ou necessidade de diálise, tem efeito natriurético que pode contribuir para a manutenção de hipovolemia na população séptica, na qual a utilização de noradrenalina também se mostrou superior em manter a pressão de perfusão renal2.
Considerando o efeito inotrópico da dopamina, a superioridade da dobutamina é inconteste. A dopamina aumenta de 4% a 44% o índice cardíaco, de 5% a 91% o trabalho sistólico do ventrículo esquerdo e apenas 5% a 10% do ventrículo direito, sugerindo que grande parte da melhora da performance miocárdica se dê às custas do aumento da freqüência cardíaca, fenômeno potencialmente deletério em pacientes graves1.
O benefício da dopamina sobre a perfusão esplâncnica também é controverso. Embora bem documentado o aumento do fluxo sangüíneo esplâncnico com o uso de dopamina, este efeito não é acompanhado por aumento do consumo de oxigênio regional ou melhora do pHi3. Especula-se que a dopamina redistribua o fluxo sangüíneo dentro da parede intestinal, reduzindo a oferta de oxigênio para a mucosa e propiciando um déficit perfusional na camada metabolicamente mais ativa. Tal evento pode contribuir para a disfunção da barreira mucosa envolvida na gênese e perpetuação da resposta inflamatória sistêmica e progressão da disfunção de orgânica1.
Dessa forma, os efeitos hemodinâmicos potencialmente deletérios da dopamina e sua associação com mortalidade, demonstrada neste estudo, sugerem que a utilização desta droga como primeira escolha no manejo hemodinâmico de pacientes com choque séptico deva ser reconsiderada em prol de agentes mais eficazes como a noradrenalina e a dobutamina.
Alejandra del Pilar Gallardo Garrido
Ruy Jorge Cruz Junior
Referências
1. Sakr Y, Reinhart K, Vincent JL, Sprung CL, Moreno R, Ranieri VM, et al. Does dopamine administration in shock influence outcome? Results of the Sepsis Occurrence in Acutely Ill Patients (SOAP) Study. Crit Care Med. 2006; 34(3):589-97.
2. Power DA, Duggan J, Brady HR. Renal-dose (low-dose) dopamine for the treatment of sepsis-related and other forms of acute renal failure: ineffective and probably dangerous. Clin Exp Pharmacol Physiol Suppl. 1999;26:S23-8.
3. Marik PE, Mohedin M. The contrasting effects of dopamine and norepinephrine on systemic and splanchnic oxygen utilization in hyperdynamic sepsis. JAMA. 1994;272(17):1354-7.
4. Martin C, Viviand X, Leone M, Thirion X. Effect of norepinephrine on the outcome of septic shock. Crit Care Med. 2000;28(8):2758-65.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Dez 2006 -
Data do Fascículo
Out 2006