Resumos
Analisa uma versão manuscrita de 1790, do livro escrito originalmente em 1710 pelo jesuíta Pedro Montenegro, Materia medica misionera. Além da persistência de saberes mágico-religiosos e dos exóticos ingredientes para as receitas, encontram-se na obra a inconfundível presença das concepções hipocráticas e galênicas e o crescente empirismo que marca as transformações científicas do século XVIII. Sua análise permite, ainda, a reflexão sobre difusão, circulação e produção de conhecimentos farmacológicos e médicos na primeira metade do século XVIII, no âmbito das reduções e dos colégios instalados na região Província Jesuítica do Paraguai, na América meridional.
medicina; tratados; práticas científicas; Materia medica misionera; Pedro Montenegro SJ (1663-1728)
The article analyzes a 1790 manuscript copy of Materia medica misionera, a book written in 1710 by a Jesuit, Pedro Montenegro. Alongside knowledge of a magical or religious nature, and exotic ingredients for the recipes, this work also contains the unmistakable presence of Hippocratic and Galenic conceptions and a growing empiricism, characteristic of the scientific transformations seen in the eighteenth century. The analysis of this work also prompts reflections about the diffusion, circulation and production of pharmacological and medical knowledge in the first half of the eighteenth century within the missions and colleges installed in the area that was the Jesuit Province of Paraguay, southern America.
medicine; treatise; scientific practice; Materia medica misionera; Pedro Montenegro SJ (1663-1728)
ANÁLISE
Circulação e produção de saberes e práticas científicas na América meridional no século XVIII: uma análise do manuscrito Materia medica misionera de Pedro Montenegro (1710)* * Esta pesquisa conta com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul.
Eliane Cristina Deckmann FleckI; Roberto PolettoII
IProfessora da graduação e do Programa de Pós-graduação em História/ Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Travessa Iracema, 461. 93032-190 - São Leopoldo - RS - Brasil. ecdfleck@terra.com.br
IIMestrando do Programa de Pós-graduação em História/Unisinos. Avenida Unisinos, 950. 93022-000 - São Leopoldo - RS - Brasil. robertopoletto@hotmail.com
RESUMO
Analisa uma versão manuscrita de 1790, do livro escrito originalmente em 1710 pelo jesuíta Pedro Montenegro, Materia medica misionera. Além da persistência de saberes mágico-religiosos e dos exóticos ingredientes para as receitas, encontram-se na obra a inconfundível presença das concepções hipocráticas e galênicas e o crescente empirismo que marca as transformações científicas do século XVIII. Sua análise permite, ainda, a reflexão sobre difusão, circulação e produção de conhecimentos farmacológicos e médicos na primeira metade do século XVIII, no âmbito das reduções e dos colégios instalados na região Província Jesuítica do Paraguai, na América meridional.
Palavras-chave: medicina; tratados; práticas científicas; Materia medica misionera; Pedro Montenegro SJ (1663-1728).
Tanto as cartas ânuas quanto os tratados de medicina, receituários e catálogos de botânica médica - relacionados em inventários de bibliotecas jesuíticas ou escritos por missionários que atuaram na América nos séculos XVII e XVIII - constituem fonte privilegiada para a análise do embate em torno das concepções de saúde e doença e da gradativa incorporação da farmacopeia nativa e de terapêuticas curativas indígenas vivenciadas na América hispânica e portuguesa.1 1 Na América portuguesa, já no século XVI, os missionários jesuítas atuaram como físicos, sangradores e cirurgiões, instalando boticas e enfermarias nos colégios da Província Jesuítica do Brasil. A falta de médicos profissionais, pelo menos até o século XVIII, e o elevado preço de drogas e remédios provenientes de Portugal e do Oriente - sujeitos à deterioração nos navios e portos - obrigaram os inacianos a voltar-se para os recursos naturais oferecidos pela terra e para os saberes curativos dos indígenas. (Calainho, 2005). Também a "falta de recursos curativos e o medo da morte estimularam o desenvolvimento de um receituário, cujos componentes principais estavam sempre disponíveis, perto das pessoas. Ingredientes oferecidos pela natureza, dotados de atributos singulares nas curas de variadas enfermidades, e que foram amplamente difundidos" (Ribeiro, 1997, p.70). Em relação aos manuais de medicina que eram aplicados no Brasil setecentista, havia um "número considerável de livros traduzidos para o português que, após passarem pela Real Mesa Censória, rumaram às terras de além-mar", visando "difundir normas de higiene e de viver com saúde ... impedir ou mesmo tratar as doenças que assolavam as populações" cumprindo, assim, "a tarefa de fazer circular preceitos de medicina dita científica. Em tempos nos quais a magia, a religião e a ciência andavam de mãos atadas, aconselhar, e, preferencialmente, ensinar o povo revelava-se auspicioso" (Marques, 2004). Apesar de estes saberes e procedimentos terem sido, inicialmente, alvo de depreciação ou de enfática condenação - por sua eficácia mágico-ritual - os registros jesuíticos dão conta de sua utilização, bem como de experiências com medicamentos feitas por alguns missionários e da existência de herbários e boticas nos colégios e nas reduções jesuíticas2 2 As cartas ânuas que os padres jesuítas enviavam aos seus superiores nos informam sobre "o intenso trabalho implantado por eles nas enfermarias e boticas anexas aos Colégios nas diferentes regiões americanas. Em momentos de epidemias, o Colégio de Córdoba se transformava em um verdadeiro hospital, sendo que os professores de Filosofia e Teologia abandonavam suas cátedras e se colocavam a ajudar, a limpar, lavar e curar os enfermos". Nas missões instaladas nas regiões da Província Jesuítica do Paraguai, os procedimentos de cura compreendiam "desde o preparo de beberagens, a invocação da virgem, o arrependimento pelos pecados cometidos... Muitas das espécies utilizadas e recomendadas continuaram sendo usadas no séculos subsequentes e algumas chegaram a ser conhecidas e utilizadas na Europa, enquanto muitas delas podiam ser plantadas e cresciam até mesmo nos pátios das casas" (Page; Flachs, 2010, p.117-118). , atestando que as epidemias - e a consequente busca de - determinaram uma observação cada vez mais racional da natureza, a sistematização desse conhecimento e sua aplicação prática nas aldeias, reduções e nos povoados próximos aos colégios jesuíticos instalados na América.
Empenhados em garantir a saúde das almas e dos corpos - conciliando a busca do martírio e a edificação com a modernidade e o racionalismo - , os missionários jesuítas acabaram por conferir incontestável originalidade à Companhia de Jesus3 3 As reflexões em torno das múltiplas atividades exercidas pelos membros da Companhia de Jesus sempre dividiram as opiniões dos historiadores. Por mais de quatro séculos, recaiu sobre a ordem uma apreciação negativa, associando-se a ela a oposição a qualquer inovação no campo da ciência moderna. Essa tradição historiográfica se alterou significativamente a partir dos anos noventa do século passado, em decorrência de uma série de investigações que, com base em documentação acessada nos arquivos da Companhia e da Inquisição em Roma, destacaram o inegável papel desempenhado pelos jesuítas na história intelectual do Renascimento e dos inícios da era moderna. no século XVII e no XVIII, evidenciada no conhecimento médico e farmacêutico que produziram e fizeram circular pelos vários continentes. São inúmeras as referências que encontramos nas cartas ânuas a obras clássicas de medicina e a tratados de cirurgia, que, com certeza, deveriam integrar os acervos das bibliotecas de algumas reduções e de alguns colégios jesuíticos4 4 Havia um catálogo de livros que podiam ser vendidos e enviados às chamadas Indias Ocidentales e no qual constavam obras como Disputaciones de Medicina, de Garcia; De Corpore humana, de Valverde; Cirugía, de Redondo; De morbo galico, de Duarte Madeira; Cirugía, de Borbon, bem como o Promptuario, de Remigio; e o Promptuario, de Salazar. A Biblioteca da Universidade de Córdoba, segundo o mesmo autor, contava com obras como Tesoro de Medicina, de Egidio de Villalón; Cirugía Universal, de Calvo; El Tratado de todas las enfermedades, de Francisco Diaz; Tratado de Medicina, de Juan Amato; e Los Principios de Cirugía, de Ayala. Já a do Colégio de Mendoza possuía um exemplar do Tratado de Cirugía, de Juan Tabault e uma edição de 1750 de Obras médico-quirúrgicas, de Fouquet (Furlong, 1944, p.50-57; p.110-118). De acordo com Carlos Page, o Index Librorum de 1757, do Colégio Máximo do Paraguai, revela que sua biblioteca contava com obras como Arte de Botica, de Alphonsus Fubera; Tratado de Botica, de Luis de Oviedo; De Re Medica, de Pachus Aigiteta; Opera Medica, de Donato Antonio Altomare; Fructus Medicina e Tractatus Medicina, de Joannes Amatus; Thesaurus Medico, de Adrianus Amynsicht; e Scientia media defensata, do jesuíta Francisco Annatus (Page; Flachs, 2010, p.129). , a saber, Farmacopea, de Palácios; Opera Medica, de Hotosmani; dois tomos médicos de Carlos Muretano; Opera Medica e Diccionario Medico, de Ribera; Cirugía, de Robledo; Postemas, de López; Medicina, de Guadalupe; Cirugía, de Vigo; Farmacopea, de Matritense; Farmacopea, de Ceci; e Opera Medica, de Syderas.
No século XVIII, especificamente, a influência exercida pelos conhecimentos médicos europeus e por aqueles adquiridos através da observação e da experimentação em territórios americanos5 5 Deve-se ter em conta "o esforço de coleta e sistematização do conhecimento médico por parte dos inacianos, demonstrando como tal iniciativa era feita a partir dos referenciais da cultura erudita do período, sendo os estudos sobre as virtudes das plantas e animais realizados a partir dos referenciais da História Natural e da Medicina hipocrática" (Gesteira, 2006, p.1). pode ser constatada nas obras produzidas pelo irmão Pedro Montenegro e pelo padre Segismundo Asperger, jesuítas que, por terem organizado catálogos de plantas medicinais - e de suas respectivas aplicações - , são tidos como pioneiros na sistematização de informações relativas à farmacopeia americana. Neste artigo, nos deteremos na análise da obra Materia medica misionera6 6 A Materia medica misionera do irmão Pedro Montenegro se constitui de um volumoso thesaurus de plantas medicinais nativas da América, descritas detalhadamente a partir de suas propriedades terapêuticas, e de um receituário que previa a sua utilização. Segundo Heloísa Gesteira (2006, p.5), a obra servia: "de guia para ser usado em lugares distantes das cidades, como por exemplo, os missionários das reduções, pois sabemos que os Colégios, situados nos centros urbanos coloniais, eram dotados de botica". do irmão jesuíta Montenegro, para, através dela, refletir sobre a difusão, a produção e a circulação de conhecimentos médicos na primeira metade do século XVIII, na ampla região circunscrita à Província Jesuítica do Paraguai.
Pedro Montenegro nasceu na Galícia espanhola, em maio de 1663, e, ainda jovem - provavelmente em 1679 - , iniciou seus estudos de medicina no Hospital General de Madrid, tendo ingressado na Companhia de Jesus em abril de 1691. No Catálogo da Província do ano de 1703, consta que o irmão Montenegro "havia feito os últimos votos em 25 de abril de 1703, que se encontrava nas missões do rio Paraná, que suas forças físicas eram débeis e seu ofício era de cirurgião (Chirurgus)" (Furlong, 1947, p.67; grifo no original).7 7 "No Catálogo da Província do ano de 1703, consta que o irmão Montenegro "había hecho los últimos votos el 25 de abril de 1703, que se allaba en las Misiones del Rio Paraná, que sus fuerzas físicas eran débiles y su oficio era el de cirujano ( Chirurgus)". Considerando a formação que Pedro Montenegro teve na Espanha e os procedimentos terapêuticos empregados pelos médicos e cirurgiões à época - que previam sangrias, ingestão de ervas medicinais, fricções, aplicação de ventosas e emplastros com os mais variados ingredientes e cataplasmas, bem como amputações e correções de desvios ósseos - e o ofício a ele atribuído no Catálogo - o de cirurgião - , pode-se inferir que atividades viria a desempenhar nas missões da Companhia de Jesus na América. Nessa e nas demais citações de textos publicados em outros idiomas que não o português a tradução é livre.
A obra tem 458 páginas, além de 148 desenhos de plantas feitos à mão8 8 A obra conta com cinco capítulos, sendo as três primeiras partes direcionadas às nomenclaturas e propriedades das plantas, às orientações quanto ao tempo certo para seu recolhimento e as suas virtudes. O quarto capítulo apresenta, detalhadamente, ervas, raízes e cascas que deveriam ser administradas em determinadas enfermidades. De acordo com Furlong (1962, p.611), a quinta parte, intitulada "Otras curiosidades e recetas útiles", não teria sido escrita por Montenegro. , e conta em seu frontispício com uma imagem de Nossa Senhora das Dores, padroeira dos doentes.9 9 O livro é dedicado à "sereníssima Rainha dos anjos Maria santíssima e Nossa Senhora das Dores" e, em várias passagens do prólogo, Montenegro menciona que Deus era o verdadeiro "Criador da Medicina", o "Grande Arquiteto" reconhecido pelos "grandes estudiosos gregos e latinos". A versão que analisamos neste artigo, porém, é uma cópia manuscrita de 1790, disponível para consulta no Acervo do Instituto Anchietano de Pesquisas da Unisinos (IAP)10 10 Uma cópia do texto de Pedro Montenegro se encontra guardada na Biblioteca Nacional de Madri, sendo possível também consultá-lo - em versão digital - na Biblioteca Virtual del Paraguay. Há, ainda, uma publicação argentina, cujo título é Materia medica misionera, e que foi editada pela Revista de la Biblioteca Nacional, em Buenos Aires. Recentemente, um manuscrito localizado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e intitulado Curiosidad: un libro de medicina escrito por los jesuítas en las misiones del Paraguai, datado supostamente de 1580, foi analisado por Heloísa Gesteira. Ao constatar que os dois textos traziam "partes idênticas", a pesquisadora levantou, inicialmente, "a hipótese de que trabalhos deste tipo eram compartilhados pelos missionários", e também, a de que o documento depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro pudesse ser "uma reprodução do texto de Montenegro" (Gesteira, 2006, p.2-3). , que não conta com os desenhos presentes no original, e que, ao que tudo indica, feita por pessoa pouco letrada, haja vista as incorreções gramaticais.11 11 No exemplar manuscrito que consultamos no IAP há uma breve anotação feita à mão por Bartolomeu Melià e datada de 1986: "O presente manuscrito parece ser da época e foi escrito por quem não domina a língua espanhola [castelhana] e, assim, poderia ser um índio missioneiro". Essa observação parece confirmar a hipótese levantada por Heloísa Gesteira de que "esses textos eram copiados (pelos próprios missionários ou, então, por copistas indígenas), distribuídos e compartilhados pelos inacianos instalados em várias regiões atendidas pela Companhia de Jesus" (Gesteira, 2006, p.5).
Sobre práticas curativas e evidências de circulação de saberes
A situação com que se defrontaram os missionários jesuítas ao se instalar na Província Jesuítica do Paraguai, no início do século XVII, foi descrita da seguinte forma pelo padre jesuíta Marcial de Lorenzana, em carta de junho de 1610, dirigida ao padre Diego de Torres Bollo:
é terra miserável e faltam todas as coisas. Fora raízes de totora e pescado não existem outros alimentos. Os mosquitos são sem conta ... nem de dia nem de noite deixam sossegar os homens, por conta disto minhas mãos e meu rosto parecem de um sarnento ou leproso. Certas vezes, passo um pouco de papa de milho por não haver outra coisa (Carta ânua, 1927a, p.65).
O padre relator da ânua de 1613 retomaria essa descrição, acrescentando que "é grande o número de enfermos, os quais perecem por falta de remédios. Ademais, não se usa aqui carne, razão pela qual não há nada de muito substancioso que possa fortalecer os enfermos" (Carta ânua, 1927a, p.165). Essa mesma situação seria descrita nas ânuas de 1616 e 1617:
Também com os poucos remédios que existem aqui procuramos curá-los porque eles não têm e nem fazem remédios, deixando-se morrer. No ano passado, houve uma enfermidade de catarro em que adoeceu quase todo o povoado e o padre Juan de Salas lhes fez um xarope com que se curaram quase todos ainda que alguns tenham morrido (Carta ânua, 1927b, p.88).12 12 "Tambien con los pocos remedios que aca ay procuramos curarlos por que ellos no tienen medicinas ni hacen remedios sino dexassen morir. El año pasado dio una enfermedad de catarro de que enfermo caso todo el pueblo y el padre Juan de Salas les hiço un jarave con que sanaron casi todos aunque algunos murieron".
O padre Nicolas Mastrillo Durán, na ânua de 1626-1627, destacaria a manutenção da preocupação que os missionários tinham em garantir alimentos e promover a cura das doenças que afligiam os indígenas: "porque buscamos as medicinas para lhes aplicar, e damos de comer e os sangramos por nossas mãos, e este meio tem sido o melhor para domesticar os indígenas, sobretudo, os mais novos" (Carta ânua, 1927c, p.264-266.).
Às recorrentes informações sobre a falta ou, então, os poucos remédios disponíveis que encontramos nas primeiras ânuas - e que apontam tanto para o apego a remédios e terapias europeias quanto para o desconhecimento de uma farmacopeia nativa à disposição dos europeus - somam-se a condenação das práticas curativas indígenas e, sobretudo, a perseguição aos xamãs, descritos como sacerdotes do diabo ou ministros do demônio:
Que fazem coisas que espantam e não podem ser senão por arte do demônio ... usam de toda a solenidade de gestos; falam com o demônio por meio da erva ... pegam as cinzas acesas nas mãos sem se queimar e as comem às bocadas, como se fosse coisa muito gostosa e comestível ... faziam abrir um buraco no teto, por onde entraria o mau espírito, tinham uns desmaios e faziam caretas selvagens e trejeitos (Arróspide, 1997, p.99-101).13 13 "Que hacen cosas que espantan y no pueden ser sino por arte del demonio ... usan de todo el aparato solemne de gesticulaciones; hablan con el demonio por medio de la yerba ... cogen las brasas encendidas en las manos sin quemarse y se las comen a bocados, como si fuera cosa muy gustosa y comestible ... hacía abrir un agujero en el techo, por donde había de entrar el mal espíritu, le daban unos desmayos y hacía fieros visajes y meneos".
Em sua obra Conquista espiritual, de 1639, o padre Antônio Ruiz de Montoya fornece informações que parecem contrariar os registros feitos pelos missionários nas primeiras décadas do século XVII - de que os indígenas guaranis não tinham remédios e deixavam-se morrer:
Usam os índios muitos remédios e ervas medicinais que lá a natureza tem produzido. A pedra de São Paulo é de ajuda comprovada; são-no também os alhos esmagados, ingerido o remédio como bebida; a pedra bezoar e outras ervas medicinais. Mas o remédio mais caseiro é o fogo, queimando-se com uma faca em brasa a parte ferida pulverizada com enxofre. É conhecido este remédio e, acudindo-se a tempo, a gente picada por cobra está fora de perigo. Os fígados de víbora, sendo ingeridos como alimento, usam-nos como remédio (Montoya, 1985, p.25).
O jesuíta não deixa, contudo, de ressaltar o caráter supersticioso das práticas curativas xamanísticas:
As superstições dos feiticeiros baseiam-se em adivinhações por meio dos cantos das aves: do que inventaram não poucas fábulas relativas a medicar e isto com embustes, chupando, por exemplo, ao enfermo, as partes lesadas e tirando o feiticeiro da boca objetos que nela leva ocultos ou escondidos, e mostrando que ele, com sua virtude, lhe tinha tirado aquilo que lhe causava a doença, assim como uma espinha de peixe, um carvão ou coisa semelhante (Montoya, 1985, p.54).
Cabe, no entanto, ressaltar que se, por um lado, as terapêuticas curativas rituais empregadas pelos xamãs continuaram sofrendo contestação, por outro, os registros feitos por padres jesuítas, especialmente os da segunda metade do século XVII e da primeira metade do século XVIII, dão conta de uma apropriação cada vez maior da farmacopeia americana no tratamento de doenças.
A precariedade com que era realizado o transporte e as condições em que chegavam os medicamentos vindos da Europa, além do baixo número de médicos que se encontravam na América14 14 Na América hispânica, ao longo de todo o século XVII, os jesuítas, "com mais boa vontade do que ciência adequada, ajudavam no alívio dos enfermos. Não eram médicos, nem entendiam de medicina, se bem atuaram como curandeiros nos primeiros tempos das reduções" (Furlong, 1962, p. 604). Alguns, como padre Cristóbal Altamirano, chegaram a organizar uma botica que atendia às demais reduções, outros, como o irmão Diego Bassuari, escreveram livros de medicina, com base em receituários. Deve-se, ainda, considerar que muitos dos missionários que atuavam na América meridional haviam ingressado tardiamente na Companhia, o que permite deduzir que alguns deles pudessem ter estudado medicina na Europa. Se, no século XVII, não houve médicos atuando nas reduções, "não podemos dizer o mesmo no que diz respeito ao século XVIII, já que não foram poucos os homens de ciência e de experiência técnica que dirigiram a saúde missioneira" (Furlong, 1962, p.607). - constatadas pelos jesuítas desde o século XVII - , continuaram motivando-os a conhecer melhor a flora americana e suas possíveis utilidades no atendimento dos enfermos:
Nestas terras da América, sem botica e nem boticários, me vi desafiado a ser autor de botica confeccionando umas com outras como se pode ver nos seus tratados [o que] me desculpa em parte por não ser de meu ofício escrever livros com novo modo de composições e descobrimentos de estrangeiros e peregrinos simples nestas partes pode estar certo [de que] me move mais a caridade de fazer o bem a meus irmãos [do] que a ambição de ser autor de um livro (Montenegro, 1790, Prólogo).15 15 "En estas tierras de la America sin Botica ni boticarios me vi desaviado con ellas a ser autor de Botica confeccionando unas con otras cual se puede ver en sus tratados [ilegível] lo cual te pido q. e sien algo [ilegível] yerro me disculpa en parte porque no siendo de mi estado el escribir libros con nuevo modo de composiciones, y descubrimiento de extraños y peregrinos simples en estas partes puedes estar cierto me mueve mas la caridad de hacer bien a mis hermanos q. e la ambición de autor de un libro".
A observação, a coleta e os experimentalismos parecem ter sido complementados por intensas trocas com indígenas informantes, como se pode constatar nesta passagem em que Montenegro informa que as propriedades da batatilla (Ipomoea trifida) lhe teriam sido repassadas por um índio já convertido:
Alguns índios a usam para disenteria hemorrágica, assim por bebida como para auxílio, não sei com que bons ou maus sucessos; 'só dei algum crédito a um bom cristão chamado Clemente' que me assegurou ser bom e eficaz remédio e assim não duvido sejam os casos de diarréia decorrentes de indigestão grave ou coisa assentada no estômago, ou, então, por lombrigas ou vermes e, nestes casos, pode ser eficaz (Montenegro, 1790, p.139).16 16 "Ussanla algunos Indios para camaras de sangre assi per bebidas como per ayudas, nose con que buenos susezos, o malos 'solo di algún crédito a un buen christiano llamado Clemente' ... que me aseguro era buena y eficas medicina y assi no dudo seran las camaras per una de dos causas opor indigestion grave o cosa asentada en el estomago, o por lombrices, o por gujanos que en estas causas le hallo puede ser eficaz".
Na Materia medica misionera são constantes as referências à utilização de plantas medicinais americanas na Europa e na Ásia, apontando não apenas para a circulação de medicamentos, mas também para a troca de conhecimentos e de práticas terapêuticas. Isso pode ser constatado na menção feita ao bálsamo de copayba (Copaifera sp) - indicado no tratamento de feridas - e que "é hoje muito conhecido e usado por toda a Europa, África e América, com grande estima e preço elevado no Japão e China, conforme estou informado devido às suas admiráveis virtudes" (Montenegro, 1790, p.11).17 17 "es oy mui conocido y usado por toda la Europa, Africa y America, y con grande estima y subido precio en el Japon y China segun estoi informado a causa de sus admirables virtudes". Chama-nos a atenção o quão bem informado estava o irmão jesuíta, sobretudo na menção feita ao preço elevado da copayba no Japão e na China, o que parece comprovar que havia efetivamente na América meridional - nas e entre as regiões das províncias jesuíticas - relativamente isoladas geograficamente - , uma contínua circulação de informações e ideias.
Para além das recorrentes menções aos autores clássicos, uma passagem na obra parece comprovar a circulação de conhecimentos da 'arte médica'. Nela, Montenegro menciona que, devido à censura exercida pelo Santo Ofício, "passados dezoito anos... chegou às minhas mãos as obras de Guillermo Pison e Jacobo Bonti que escreveram no Brasil sobre várias plantas com nomes destas terras" (Montenegro, 1790, p.96).18 18 "pasados dies y ocho años... llego a mis manos las obras de Guillermo Pison, y Jacobo Bonti q. e escrevieron en el Bracil (ñ) en varias Plantas con los nombres de estas tierras".
À semelhança de Piso, Montenegro dedicou-se a observar a natureza19 19 Mas não apenas o conhecimento das propriedades curativas oferecidas pela natureza - sobretudo, da flora americana existente no entorno das missões. No século XVIII, os missionários continuaram observando as instruções definidas pelo provincial Diego de Torres Bollo, em 1610, procurando instalar as reduções longe da umidade danosa dos pântanos, para que pudessem desfrutar de ar mais puro, fugir dos mosquitos, sapos e víboras e contar com boas águas para beber, lavar-se e banhar-se, erguendo-as próximo a bosques, seguindo a orientação sul, o que favorecia os ventos frescos tão necessários nessa terra de tantos calores. - tanto do regime dos ventos e das águas, quanto dos hábitos dos índios e também dos animais - o que se manifesta na descrição que faz das virtudes do ceibo (sumaúma ou corticeira):
e esse remédio usa muitas vezes o tigre para resfriar o ardor de suas unhas envenenadas de grande calor e umidade o qual subindo nele aranha sua casca profundamente até a mesma vara deixando-a como sapato [ilegível], com o qual se refresca e volta muito rápido para suas caças e pescas (Montenegro, 1790, p.55).20 20 "y ese remedio usa muchas veces al tigre para refrigerar el ardor de sus uñas embenenadas de gran calor y humedad el qual subiendo a el arana su cortesa profundamente hasta el mismo pala dejandola como zapato [ilegível], con lo qual se refresca y queda muy ligero para sus caserias y pescas".
Além das referências a autores clássicos da medicina, como Galeno e Avicena, Montenegro faz especial menção a Dioscórides, que escreveu a importante obra De materia medica. Alguns de seus editores e comentadores do século XVI, como Pietro Mattioli e Andrés Laguna, são igualmente citados por Montenegro. Isso parece explicar por que, ao escrever sobre as qualidades encontradas nas plantas, o irmão jesuíta tenha recorrido a explicações dadas por Dioscórides e Mattioli: "Quatro são as qualidades: calor, umidade, frieza e sequidão, em cada uma destas se encontram quatro graus, e os simples dos quais trata este livro tem estas qualidades e seus graus nelas" (Montenegro, 1790, Advertências necessárias).21 21 "Quatro son las qualidades calor, humedad, frialdad e sequedad, en cada una de estas se cuentran quatro grados, y los simples de q. e se trata en este libro tienen de estas qualidades y sus grados en ellas".
Em relação aos procedimentos que deveriam ser adotados para o reconhecimento das qualidades de cada planta, ele complementa: "As qualidades atuais de calor, umidade, frieza ou sequidão se diferenciam ou se conhecem pelo tato, cujo principal instrumento é a pele interior dos dedos, sendo em meio a todos os excessos constituído" (Montenegro, 1790, Advertências necessárias).22 22 "Las qualidades actuales de calor, humedad, frialdad o sequedad, se discernem, o conocen por el tacto, cujo principal instrumento es el cuerecito interior de los dedos siendo en medio de todos los excessos constituído". Outro fator importante para a identificação das utilidades das plantas era o sabor - que teria relação direta com as qualidades acima referidas - , pressuposto, aliás, também observado e defendido pelo coetâneo Geronimo de Ayala, e que pode ser observado na Materia medica misionera: "Conhecem-se também as potenciais virtudes das medicinas ou simples pelo sabor, que [ilegível] o gosto dos quais por uma mescla das quatro qualidades são engendrados; de onde nascem que aos elementos puros, e simplíssimos ... nenhum sabor por não constar [sic] cada um deles senão de apenas duas qualidades" (Montenegro, 1790, Advertências necessárias).23 23 "Conocen se también las virtudes potenciales de las medicinas o simples por los sabores, que [ilegível] el gusto los cuales por una mescla delas cuatro cualidades primas son engendradas; de donde nacen que a los elementos puros, y simplísimos ... ningún sabor por no costar [sic] cada uno de ellos sino de dos cualidades".
Segundo ele, a maioria das plantas apresentava possibilidades de usos diversos, conforme a parte que fosse usada, como a flor, folha, casca ou raiz, ou, então, diferenciava-se a partir do modo de seu preparo, sendo comuns as beberagens, os pós e as folhas para mastigar, entre outros. Entre as plantas de uso diversificado estava a coniza mayor ou zaragatona (Plantago psyllium) que funcionava como uma espécie de pesticida, espantando pulgas, cobras e aranhas, além de ser aplicada como emplasto e ter função purgativa e abortiva:
Esmagada e cozida com vinho e aplicada às mordidas de serpentes socorre e cura as feridas com admiração assim de serpentes como de instrumentos ou paus assim como o alecrim de suas folhas e gomos uma onça cozida em vinho e dado a beber quatro onças de seu cozimento acelera o parto e faz baixar a menstruação retida; para curar o gotejar da urina, as dores de estômago e a icterícia bebidas com vinagre o pó das mesmas cosas curam a gota coral, seu suco colocado na entrada do útero purga-a (Montenegro, 1790, p.136).24 24 "Machacada e cosida con bino aplicadas alas mordeduras delas serpientes los socorre y cura las heridas con admiracion asside serpientes como de instrumentos o palos assi como el romero de sus flores ojas y cogollos una onsa cosidas en bino y dado a beber quatro onsas de su cosim. to acelera el parto y hace bajar el mestruo retenido; p.ª sanar el estilicidio dela orina, los torcijones del bientre y la ytericia bebidas con binagre el polvo de las mismas cojas sanan la gota coral, su sumo metido en la boca dela matris purgala".
Apesar de descrever as qualidades de todas as plantas referidas no tratado, Montenegro apresenta também dúvidas quanto à adequação e à eficácia do uso de algumas, destacando as contradições existentes entre as opiniões de diferentes autores. Além de evidenciarem seu profundo conhecimento, essas observações parecem revelar uma postura crítica do jesuíta em relação a sua indiscriminada aplicação: "São os cravos, segundo Pablo Cgineta [Egineta], agudos odoríferos e bastante amargos, quentes e secos em terceiro grau, porém segundo a história da Etiópia, escrita pelo padre Manuel de Almeida, na crônica de Portugal, é seco no quarto grau" (Montenegro, 1790, p.6).25 25 "Son los clavos segun Pablo Cgineta [Egineta] odoriferos agudos, y con bastante amargor, calientes y secos en el tercero grad, pero segun la historia de Ethiopia escrita por el padre Manuelte, en la cronica de Portugal, es seco en el cuarto grado". O mesmo pode ser observado na referência que faz ao incienso laurel:
não tenho experiência dela por não tê-la colhido, é pouco maior que o ybabiyu ou rayan das montanhas; esta é a que pude rastrear desta árvore certamente muito medicinal e amiga da natureza humana para que por aqui possam outros de melhor engenho e com o tempo averiguando suas virtudes pouco a pouco por serem tão perigosas as às experiências dos simples (Montenegro, 1790, p.27).26 26 "no tengo esperiencia de ella por no haverla sacado, es poco mayor dela del ybabiyu ao rayan montaño; esta es la que he podido rastrear de este arbol cierto muy medicinal y amigo dela naturalesa humana para que por aqui pudan otros de mejor ingenio ir con el tiempo aberiguando sus virtudes poco a poco por ser tan peligrosas las esperiencias de los simples".
Na Materia de Montenegro são recorrentes as descrições de experiências que ele próprio fazia com plantas, o que, de alguma forma, legitimava e autorizava suas recomendações, como fica demonstrado na descrição feita sobre o asaro menor (Asarum europaeum) e sua utilização na cicatrização de feridas:
Tenho-as por quente em segundo grau e secos em terceiro ainda que tenha na superfície de suas folhas certa qualidade fria ou temperada de sorte que, a princípio, aplicadas às erisipelas ou chagas erisipelatosas das pernas repelem [ilegível] e, em parte, resolvem como se pode ver pela experiência em toda chaga destemperada quente e nas cancerosas com o mesmo destempero como tenho experimentado, e averiguado várias vezes (Montenegro, 1790, p.105).27 27 "tengo las por calientes en el segundo grado y secos en el tercero aunq. e halla en la superficial y de sus ojas sierta qualidad fria o templada de suerte que al principio aplicadas alas ericipelas o llagas er[x]icipe latosas las delas piernas repelen en [ilegível] y en parte resuelben como se puede ber por la esperiencia en toda llaga de destemplansa caliente y en las canserosas con dicha destemplansa como lo tengo esperimentado, y aberiguado barias veces".
Essa posição é assumida já no prólogo da Materia medica misionera, no qual Montenegro afirma que a virtude de uma receita residia na sua aplicação conforme a observância de prescrições, pois:
vai para 18 anos que estou averiguando suas qualidades segundo sua graduação ... Te posso dizer como coisa certa que desde [ilegível] me sinto inclinado [ilegível] a conhecer e saber a virtude das plantas e com elas curar a mim e a meus próximos, e a elas devo a vida por três vezes, que de várias enfermidades e feridas mortais que, segundo vários autores afirmam, não eram curáveis (Montenegro, 1790, Prólogo).28 28 "va para 18 años q. e estoi aberiguando sus qualidades segun su graduacion ... te puedo decir como cosa sierta que desde [ilegível] acuerdo tener uso de rason me siento inclinado [ilegível] de conocer y saver la virtud delas plantas y curar com elas a mi y a mis proximos, y a ellas devo la vida por tres veses, q. e de varias enfermedades y heridas mortales de necessidad; segun varios Autores afirman no ser curables".
As recomendações para que a receitas fossem seguidas à risca podem ser encontradas ao longo de todo o tratado, com as advertências de que qualquer mudança na composição das medidas - ou então da parte utilizada da planta - tornaria a receita perigosa ou causadora de outras doenças, como nesta referência ao lino selvage ou Mbocay (Acrocomia aculeata): "A raiz do Mbocayi cozida, uma onça dela ou meia de suas cascas em três quartilhos de água ... até esgotá-la, tem virtude especial contra as febres malignas, tomando de seu cozimento em jejum oito onças com duas de mel de abelhas ou xarope de limão ou cidra, e, assim mesmo, é remédio às febres pútridas, às mordidas de víboras e animais" (Montenegro, 1790, p.198).29 29 "La raiz del Mbocayi echa cosim. to una onza de ella o media de sus cortesas' en tres quartillos de agua ... hasta mermar, el uno tiene virtud especial contra las fiebres malignas tomando de su cosim. to en ayunas ocho onsas con dos de mieles de abejas o xarave de limon o sidra, y assi mismo es remedio alas fiebres putridas, y las mordeduras de vivoras y animalejos".
Ao descrever o modo de preparo de uma infusão de rosa mosqueta - eficiente para limpar o sangue, purgar a cólera e a melancolia - Montenegro ressalta que deveriam ser fervidas duas onças da flor em uma vasilha de prata - ou vidrada - e um quartilho de água30 30 Unidade de medida para líquidos, equivalente a meio litro. , após o que deveriam ser misturados. Essas recomendações, sobretudo as relativas ao uso de uma vasilha de prata e ao tempo de duração da fervura - o tempo de uma Ave Maria - , são recorrentes na obra do irmão jesuíta.
Sobre evidências da manutenção do caráter mágico-ritual e da convergência de saberes
Apesar dos avanços significativos - decorrentes da experimentação - observáveis no conhecimento médico do Setecentos, muitos dos procedimentos terapêuticos se mantinham ainda atrelados às recomendações feitas pelos religiosos e a medicamentos e práticas de caráter mágico-ritual. O tratado escrito pelo jesuíta Montenegro parece refletir bem isso, ao exaltar a intervenção divina nas curas, como se pode constatar em duas passagens do prólogo.31 31 Tanto a medicina quanto a farmácia química não eram racionais no século XVII, pois "a Medicina faz fé nas virtudes curativas de certos objetos que não são mais do que amuletos" (Leal Ferreira, 2007, p.89-90), dentre os quais se destacavam o queixo de ouriço-cacheiro utilizado para curar dores de dentes, o azeviche em bruto para problemas oculares, o cavalo marinho para prevenir a melancolia e a carapaça de tartaruga para favorecer a longevidade e a fertilidade. É bem provável que nesse período as manipulações alquímicas, experimentos e preparados farmacêuticos tenham sido realizados de forma secreta, devido às ameaças de condenação por heresia pela Igreja. A primeira em que afirma que "Tem-se por coisa certa tanto entre os autores gregos como entre os latinos que 'o inventor da medicina foi somente Deus imortal e certamente tal averiguação é fundada na razão'", e a segunda, em que atribui a cura a Deus, "aquele Sumo Arquiteto construtor de céus e terra" (Montenegro, 1790, Prólogo).32 32 "Tiene se por cosa sierta assi entre los autores Griegos como entre los latinos que el imbentor dela medicina fue solo Dios immortal y sierto va fundada en rason la tal aberiguacion" e atribui a cura a Deus, "aquel Sumo Architecto fabricador de cielos e tierra".
Outra forma de Montenegro exaltar esse aspecto se dá através da descrição que faz das qualidades de plantas encontradas nas regiões que circundavam as reduções, como o aracay (Marlieria tomentosa) usado para combater a disenteria hemorrágica: "a Divina Providência a pôs nestas terras tão pobres de médicos e boticas e a cria em tanta abundância que homens e animais dela se valem para sustento e medicina" (Montenegro, 1790, p.44).33 33 Referindo-se ao aracay, Montenegro afirma: "Pusso la Divina Providencia en estas tierras tan pobres de médicos y boticas, y la cria en tanta abundancia que hombres e animales se valen de ella para sustento y medicina".
Essa associação entre as plantas e o Evangelho se aproxima daquilo que ficou conhecido como ervanária dos sinais - que remontaria ao Renascimento e teria origem em antigas teorias herméticas - na qual, "dada a existência de Deus, as plantas curativas são portadoras de marcas que indicam aos homens suas virtudes terapêuticas. Assim, a noz, cuja forma evoca o cérebro humano, serve para o tratamento de perturbações mentais, e as plantas aveludadas, ou com caules ou raízes com aspecto peludo, são boas contra a queda de cabelo" (Le Goff, 1984, p.353).
Na obra de Montenegro verificamos algo distinto, já que em nenhum momento o formato da planta, folhas ou flores é associado a uma terapêutica que guarde semelhança com alguma parte do corpo. O que se vê são plantas que, por lembrar determinada passagem do Evangelho, trazem em si um toque divino. Como se pode constatar no processo de floração da açucena silvestre americana:
suas flores são de cores variadas, umas brancas, outras vermelhas ou encarnadas, outras rajadas de branco e encarnado e, enfim, outras rajadas como se salpicadas de sangue; todas elas, menos as encarnadas, põem folhas de dois em dois e anos, há as de três quartos e meio de largura, com talo grosso em cima do qual há certa haste longa e pontiaguda na qual terminam cinco açucenas, e cada uma delas vai abrindo sua flor por sucessão como funis, cada uma composta por cinco folhas; todo misterioso, assim como a verdadeira açucena ou lírio-branco, que representam as chagas de Nosso Redentor, essa parece querer recordar-nos todos os anos ao botar suas flores as chagas e sangue da nossa Redenção (Montenegro, 1790, p.130).34 34 "son barias, en color sus flores unas blancas otras coloradas o encarnadas otras jaspeadas de Blanco y encarnado y enfin otras diciplinadas como salpicadas de sangre todas ellas menos las encarnadas echan ojas dedos endos y anoho, y tres quartas y media de largo con un talo grueso y alto de abana en sima del qual en sierto surrancillo largo y puntiagudo se ensierran sinco Azucenas, el qual abierto se ba cada una de ellas abriendo p. r sucesion su flor a modo de embudo cada una compuesta de sinco ojas, todo ello misteriojo, assi como la verdadera Azucena o lirio blanco, como representacion de las llagas de Nro. Redemptor que parece que quiere recordarnos esta planta todos los años al salir su flor la memoria de las llagas y sangre de nn.â Redempcion".
Ao referir-se a um bálsamo feito com a planta aromática chamada nardo (Nardostachys jatamansi), Montenegro não apenas o associa a uso milenar, pois "se não me engano é aquele com que os antigos ungiam o corpo dos mortos", como vincula-o também à própria história do cristianismo, pois "é aquele que Madalena derramou aos pés de Cristo que, segundo grandes autores afirmam, é este nardo, que, com o tempo, perdeu-se a forma de sua composição" (Montenegro, 1790, p.128).35 35 Ao referir-se a um bálsamo feito com a planta aromática chamada nardo, Montenegro não apenas associa-o a uso milenar, pois "si mal no me engano es aquel de los antiguos conq. e ungian los cuerpos muertos", como vincula-o também à própria história do cristianismo, pois "el que la Magdalena derramó a los pies de Christo que segun grandes autores afirman es este nno. nardo, sino que con el tiempo se perdio la noticia de su composission".
A presença de procedimentos mágico-curativos pode ser constatada, ainda, na menção feita ao pão-porcino (Cyclamen europaeum), empregado tanto no combate ao veneno das serpentes e na purga da fleuma quanto na regulação da menstruação: "Provoca a menstruação ao beber ou, aplicando-se sobre a pele da mulher com a raiz atada à coxa esquerda, dizem acelerar o parto" (Montenegro, 1790, p.123).36 36 Referindo-se ao uso do pão-porcino na regulação da menstruação: "Provoca el menstruo a ora se beba o se apliq. e a la natura dela muger atada su rais al muslo isquierdo dicen acelera el parto". Como se depreende da orientação, independentemente de sua ingestão, a raiz parecia provocar o efeito esperado - desde que fosse amarrada na coxa esquerda - , havendo a explícita recomendação de que a planta não fosse dada a mulheres grávidas, pois poderia provocar o parto prematuro ou mesmo o aborto. Montenegro destaca, ainda, o uso que as indígenas faziam do tabaco durante os partos:
A raiz do cox[r]o [coro] mascado é aplicada sobre a mulher que não pode expelir a criatura morta ou viva de suas partes ... que está tão atravessada a criatura que não pode sair sem que a retirem e isso é feito com maior eficácia e rapidez se a parteira masca outro pedaço de raiz e com aquela saliva unge os quadris da paciente, ao mesmo tempo que ela traga a saliva da raiz que ela mascou, colocando-a de pé para que a criatura saia (Montenegro, 1790, p.187-188).37 37 "La raiz del cox[r]o mascando decha un pedacito cano una pulpada de ancho la muger que no puede echar la criatura muerta o biva o las pares, tragando el sumo de ella echa luego todo lo tenido sino es que este tan atrabesada la criatura que no pueda salir sin que la revuelvan, y esto hace con mayor eficacia y prestesa si la partera masca otro pedaso de rais y con aq. ella saliva le da uncion en los y jares y quadriles ala paciente al mismo tpô. q. e ella traga la saliva de la rais que ella masco poniendola enpie para q. e salga la criatura".
A ajuda prestada pela parteira, mascando tabaco e ungindo os quadris da parturiente com saliva, revela não apenas a manutenção de práticas largamente adotadas pelos indígenas - mesmo antes de serem reunidos nas reduções jesuíticas38 38 As parteiras indígenas eram reconhecidas por sua habilidade em recolocar a criatura nos últimos dias da gravidez, fazendo com que o bebê nasça 'de cabeça' e não 'de pé'. Contam as mulheres kaiová que nesses casos se necessitava a ajuda de três 'parteiras' e que quando a parturiente "tinha criaturas maiores geralmente o trabalho do parto se fazia em uma casa separada, construída para esse fim e provida de fogo" (Chamorro, 2009, p.267). - , como o papel que as mulheres desempenhariam nas enfermarias e nos hospitais nelas instalados.39 39 Na carta ânua de 1635-1637 encontramos referências à instalação de enfermarias nas reduções e nos colégios durante as epidemias, bem como ao atendimento prestado aos enfermos pelas próprias índias nelas internadas - que ficavam encarregadas de varrer as salas dos colégios e da limpeza dos instrumentos de cirurgia - , e por aquelas que integravam congregações e irmandades nas reduções.
Também a utilização de amuletos é mencionada, com destaque para a pedra bezoar, que na obra de Montenegro é referida em ao menos duas receitas. Numa delas, a pedra seria utilizada contra a varíola, juntamente com quatro folhas de calamita menor (planta fóssil equisetínea) e duas onças de açúcar, o que provocaria suores nos pacientes, razões pela qual recomendava que fossem resguardados do vento. Em outra receita, Montenegro faz menção ao seu uso combinado com folhas da sextula maior: "E se lhe colocam umas duas folhas de borragem [borracha-chimarrona] ou de pedra bezoar, por ser mais sudorífica atenua as dores internas, assim do ventrículo como do fígado" (Montenegro, 1790, p.142).40 40 "I si sele echan unas dos ojas de boraja y piedra bezoar es mas sudorifica y mitiga los dolores internos assi del ventrículo como del higado".
Partes do corpo humano ou de determinados animais41 41 Assim como na Europa, também nos colégios e reduções da Companhia de Jesus na América eram produzidos medicamentos de origem animal provenientes de cães, pombas, galinhas, cabras e carneiros que eram criados nestes espaços (Anagnostou, 2000). eram recurso terapêutico amplamente utilizado pela sociedade europeia no Setecentos, assim como fezes, urina42 42 Deve-se considerar que "as curas, fossem de doenças ou supostos feitiços, faziam-se com uma série de combinações de ingredientes e procedimentos, que podiam ser ingeridos ou esfregados no corpo: substâncias de origem animal e vegetal; alimentos e líquidos diversos; excrementos e fluidos corporais; cabelos, unhas e cadáveres. Os mesmos medicamentos eram usados para combater doenças naturais e supostos enfeitiçamentos, inexistindo, assim, uma fronteira nítida entre o mundo natural e o sobrenatural" (Calainho, 2007, p.64-67). Para além de seu uso terapêutico, vale lembrar que a observação da urina, as chamadas águas do enfermo, era na época uma das principais formas de diagnóstico. e saliva. Na obra Materia medica misionera encontramos uma receita que prevê o uso de uma cabeça de carneiro:
Pegarás uma cabeça de carneiro velho tirando o corpo e colocá-la para cozinhar em um pote que tenha quatro asumbres de água e estando pela metade, deve ser cozinhado colocando as seguintes ervas: mansanilla, eneldo e ruda um punhado de cada uma delas cozidos meio quarto de hora e, ao fim disso, coloque quatro onças de toracaã, bledos flancos, parietaria mercuriais, malvas, raízes de borragem e de chicória e aspargos, um punhado de cada; cozinhar, então, dois punhados de fiecho lavados, cozidos até que a carne da cabeça se desprenda dos ossos ... lhe poderá adicionar água quente de sorte que ficando [ilegível] cozimento ... adicionando a cada um uma onça de azeite ocaracu mini toma-se de manhã ou a tarde como for melhor ao paciente em cada dia (Montenegro, 1790, p.143).43 43 "Tomarás una cabeza de carnero biejo quitando el cuerpo por la a cocer en una olla que tenga quatro asumbres de agua y em estando a medio cocer leiras echando las yerbas seguientes; mansanilla, eneldo, y ruda de cada uno un puñado cuesan medio quarto de hora y al cabo del ponle toracaã quatro onsas bledos flancos, parietaria mercuriales, malvas, raices de borrajas y de achicorias y de esparragos un puñado de cada una [ã] fiecho labado dos puñados cuesan hasta que la carne de la cabesa se despegue de los guesos y si fuere tan dura que apuer mas de mitad del agua le podras añadir de otra agua caliente de suerte q. e quedandos [ilegível] cosim. to del qual se achan ayudas añadiendo a cada una una onsa de aceite ocaracu mini tomance de mañana o por la tarde como mejor se hallase el paciente cada dia una".
A astrologia - e suas influências sobre as plantações e os humanos - também se faz presente na obra do jesuíta.44 44 Na Inglaterra do início do século XVI, "Era geralmente aceito que os quatro elementos que constituíam a região sublunar - terra, ar, fogo e água - eram mantidos no seu estado de incessante permuta pelo movimento dos corpos celestiais. Os vários planetas transmitiam diferentes quantidades das quatro qualidades fisiológicas de calor e frio, secura e umidade. A astrologia era, assim, menos uma disciplina separada que um aspecto de uma imagem do mundo aceita por todos. Ela era necessária para o entendimento da fisiologia e, portanto, da medicina" (Thomas, 1991, p.238). No século XVIII, muito dessa visão já havia se perdido, mas os aspectos acima citados por Thomas se faziam ainda presentes na concepção teórica mais aceita de medicina - a tradição hipocrática - que defendia "a influência dos ares e dos lugares no desenvolvimento do feto, na elaboração dos temperamentos, na gênese das paixões, nas formas de linguagem e no gênio das nações" (Corbin, 1987, p.22) e se manifesta no texto de Pedro Montenegro. Por reiteradas vezes, Montenegro recomenda que algumas plantas fossem colhidas em determinado mês do ano ou fase da lua: "para colher o sangue de dragão é necessário que seja o último dia de lua crescente; deve-se fazer incisões na árvore no mês de julho ou agosto, colocando ... uma cabaça para que colete da árvore que dá em abundância" (Montenegro, 1790, p.37).45 45 "y así para sacar la sangre de drago es nessesario q. e es la creciente de luna a lo último de ella hagan talla al arbol en el mes de Julio o Agosto poniendo un mate o calabaso p.ª q. e la recoja arimado ala ficion del arbol q. e lada en abundancia". Uma planta chamada guembe ou guaimbê (Philodendron laciniatum) - indicada para os males decorrentes de "comida assentada no estômago" - mereceu a atenção especial do jesuíta, que descreveu a influência que os planetas exerciam sobre ela:
essa planta se sabe ser procriada do planeta sol pois todas as partes estão dizendo como se vê em parte um pouco frias [ilegível] frutifica por ser pouco ajudada e nele fortalecida. Tem grandes influências de Marte sendo inimiga dos coléricos, e atrai muito a Terra com suas raízes pelo muito que ela recebe da lua e por isso é tão venenosa cozida ao crescente da lua (Montenegro, 1790, p.81).46 46 "esta planta se conoce ser procreada del planeta sol, pues todas as partas lo estan disiendo como se be q.e en partes algo frias [ilegível] fructifica por ser poco ayudada y fortalecida del. tiene grandes influencias de Marte por que es enemiga a los colericos, y atrae mucho dela Tierra con sus raises p. r lo mucho que ella recibe dela luna y p. r esso es tan benenojo cogida en creciente de luna".
O tratado contempla, ainda, algumas receitas curiosas, como a indicada para queda de cabelo - tratada com verbena - e as que previam o uso de henula campana (caa cambí guazú ou cardo-santo), a flor da paixão ou consuela (consuelda) mayor índica para a conservação da 'virtude genital':
misturadas suas raízes [de henula campana] com as de consuelda mayor ... misturadas as duas raízes meia libra de cada e postas a cozinhar em pote novo de barro em quatro ou cinco quartilhos de água e que ferva a metade e o melhor é quebrar bem essas raízes adicionar-lhe uma onça de alumbre de roca e meia de caparrosa e com este cozimento ou composição lavar-se pelo espaço de oito dias as meretrizes ou moças que tendo [ilegível] caído na fraqueza da carne antes de casarem podem estar certas que passam por virgens nas núpcias, especialmente se com pedaços de algodão ou lã bem lavada introduzirem o cozimento na entrada da vagina por algumas horas ao deitar-se; na falta das raízes de mburucuya servem as de dictamo segundo caabera mini que nascem nas colinas (Montenegro, 1790, p.96).47 47 "mesclada su rais con la dela consuelda mayor índica que aqui doi domi diligencia discubierta machacadas las dos raises de cada una media libra y puesta a cocer en ollanue de varro sin estrenar en quatro quartilhos o sinco de agua y que merme la mitad y lo mejor es quebrantar mui bien estas raices y colado añodirle alumbre de roca una onsa y media caparrosa media onsa y con esto cosim. to o compocicion labarce por espacio de ocho dias las meretrices o masuelas q. e [ilegível] caido en flaqueza de carne antes de ser casadas pueden estar seguras pasan por virgines en los desposorios maiorm. te si con mecha de algodon o lana bien labada introdugeren el cosim. to en la voca dela matris p. r alguna oras al acostarce afulta de las raices del mburucuya sirven las del dictamo segundo caabera mini que digo que nace por las lomas".
Há, ainda, um grande número de plantas indicadas como contravenenos, tais como a coniza (Baccharis trimera), a acetosa menor (Rumex acetosa) e a erva de charrua (Eupatorium subhastatum), cujas propriedades já haviam sido descritas pelo padre jesuíta Antônio Ruiz de Montoya, que observou seu uso pelos indígenas guaranis na primeira metade do século XVII:
é muito conhecida pelos índios desde os tempos anteriores à sua conversão, pois sobre ela escreveu [símbolo desconhecido] Montoya, de onde retirei sua etimologia que é o nome de um pássaro chamado macaguã, o qual briga com a víbora até matá-la, dando-lhe fortes bicadas por entre as penas e sentindo-se ferido busca a erva para comer a qual lhe serve de cura e antídoto contra o veneno de seu contrário e volta à luta; se acaso caia morta, no mesmo instante [ilegível] enterra de pronto a cabeça e acaba de curar suas partes internas da qualidade fria de seu veneno (Montenegro, 1790, p.172).48 48 "es mui conocida de los Indios desde su infidelidad pues escribe de ella el [símbolo desconhecido] Montoya de donde e sacado su etimologia que es nombre de un pájaro llamado macaguã, el qual haciendo arnes de mui la pelea con la vivora hasta matarla dando les fuertes picotazos p. r entre las plumas y sintiendose herido acude a comer de la yerba la cual le sirve de cura y antidoto contra la maliciosa ponsoña de su contrario y buelbe a la pelea si acaso do quiede de todo muerta y al instante se [ilegível]ga entera sin reservar cabesa ni cola con que se [ilegível], y acaba de curar lo interno de sus entrañas de la venenosa calidad fria de su veneno".
Como se pode constatar, para além do método e da observação rigorosa que caracterizava as experimentações com plantas medicinais realizadas por Montenegro, as receitas que integram a Materia medica misionera parecem comprovar tanto a persistência de uma forte religiosidade e de muitas das práticas curativas mágico-rituais originárias da ritualística católica e do universo simbólico europeu quanto a existência de uma refinada convergência de saberes médicos e de práticas culturais na América meridional.49 49 O inventário da botica do Colégio de Córdoba - realizado em fevereiro de 1768, logo após a expulsão da Companhia de Jesus dos territórios de domínio espanhol - parece confirmar essa afirmação, ao relacionar vinhos, unguentos, azeites, essências, bálsamos, tinturas, sais, farinhas, raízes, flores e águas. Ao lado de preparados à base de nitro-ácido e amoníaco, como os vinhos e as águas, como a rosada, de melissa e de canela, encontravam-se os pós extraídos da ipecacuanha, planta medicinal americana (Page; Flachs, 2010, p.123).
Considerações finais
A coleta e as experiências realizadas com plantas existentes nas imediações dos colégios e das reduções resultaram não apenas na instalação de herbários50 50 Pedro Arata (1898) faz referência aos herbários de plantas medicinais existentes nas reduções jesuíticas em seu artigo "Los herbarios de las misiones de Paraguay", de 1898. Neles, além de plantas nativas americanas, podiam ser encontradas plantas medicinais europeias como o alecrim, a menta, o cominho, a camomila e a losna, como se pode constatar no Tratado breve de medicina do padre jesuíta Segismund Asperger. e no melhor atendimento de doentes através das boticas, como também na organização de tratados de farmacopeia nativa. Muitos desses conhecimentos - sobre medicamentos e práticas terapêuticas - foram compartilhados através da intensa correspondência que os missionários mantiveram entre si ou das cópias dos catálogos e receituários51 51 Cientes da importância desses estudos, os jesuítas não descuidaram de incluir uma recomendação muito especial nas cópias que produziram: ¡Secreto de los jesuítas! (Arata, 1898, p.430-431). Os padres empenhavam-se em "manter o segredo como algo da esfera do divino, da religião e não dos homens, algo que precisava manter-se em sigilo; do contrário, os remédios perderiam sua 'estimação'. Ocorreria algo como 'quebra do encanto' e do mistério que os envolvia. Os remédios de segredo juntaram exemplarmente magia, religião e ciência, em pleno Século das Luzes" (Marques, 2003, p.164, 179, 186). que fizeram circular entre as reduções e os colégios das Províncias Jesuíticas da América meridional e aqueles instalados na Europa - em especial, com a farmácia do Colégio Romano52 52 Sabe-se que a triaga romana - medicamento tido como panaceia e, por isso, empregado contra todos os venenos - era uma especialidade do Colégio Romano - central europeia de sua distribuição - e que, por ser muito procurado e valioso, tinha sua receita mantida em segredo. Nos inventários das farmácias dos colégios da América colonial, há menção a uma variante da triaga europeia. Muito provavelmente, os experimentos feitos na América se deram em decorrência das poucas e irregulares remessas da triaga europeia. - e também no Oriente (Anagnostou, 2000). Algumas boticas - como a do Colegio San Pablo, de Lima - transformaram-se, com o passar do tempo, em centro de referência, enviando medicamentos - como o bezoar peruano, a ambrosia mexicana e a quina53 53 A ambrosia mexicana ( Chenopodium ambrosioides), também conhecida como mastruz, mastruço, erva- formigueira, erva-de-santa-maria, chá-dos-jesuítas, apasote e chá-do-México, tem propriedades anti-helmínticas, sendo também empregada para aliviar cólicas, diminuir gases, estimular o apetite, melho-rar a digestão, curar picada de insetos, bronquites e úlceras. Da quina se extrai o quinino que é medicamento antisséptico e antitérmico usado sob a forma de xarope, pós ou infusão, sendo o mais antigo medicamento usado contra a malária e o paludismo. Também chamada de corteza peruana ou cinchona, a quina já era utilizada pelos nativos americanos e teve seu uso difundido na Europa durante o século XVII, passando a ser comercializada por jesuítas espanhóis. - para estabelecimentos da Companhia de Jesus no Chile, Paraguai, Argentina, Equador, Panamá e no Velho Mundo, atestando a intensa circulação de saberes, medicamentos e práticas curativas.
Concomitante a esse processo, ocorria na Europa a ampliação da impressão de livros especializados em botânica, química, farmácia e medicina54 54 Muitas dessas obras resultaram das observações de viajantes e/ou cientistas "enviados por governos ou instituições científicas do Velho Mundo" ou que "por iniciativa própria, cruzaram o mar para chegar ao Novo atraídos pelo inesgotável material de sua flora" (Page, Flachs, 2010, p.127). , favorecendo a difusão e a modernização dos conhecimentos científicos, além da melhor formação dos 'homens de ciência'. Apesar de não serem "especialistas na Ciência de Galeno e em Farmacopeia" (Page, Flachs, 2010, p.128) os jesuítas - dada a sua atuação como médicos e boticários - seguramente procuraram suprir a falta de conhecimentos importando livros editados na Europa, incorporando-os a suas bibliotecas, como atestam as correspondências trocadas entre eles e os inventários dos bens da Companhia de Jesus na América após sua expulsão.55 55 No século XVIII, na América hispânica, "os diversos textos de saber médicos editados na Europa tiveram presença e vários autores clássicos passaram a ser conhecidos e lidos", contudo - e, lamentavelmente - , os inventários das boticas do Colégio Máximo do Paraguai e do Colégio de Córdoba - feitos após a expulsão dos jesuítas - parecem apontar tanto para a imprecisão e a 'falta de inteligência' dos encarregados de realizá-los (os inventariantes se limitaram a informações genéricas sobre a matéria, o tamanho e o valor estimado das obras) quanto para "a dispersão que sofreram os livros de medicina e farmacopeias existentes" nestas boticas, contornada, em parte, pelo levantamento realizado pelo padre Carlos Leonhardt SJ no início do século XX (Page, Flachs, 2010, p.128, 135). As menções feitas por Pedro Montenegro a Pedro Andrés Mathiolo, Andrés de Laguna e Dioscórides e a aplicação de alguns de seus pressupostos, especialmente nos três primeiros capítulos da Materia medica misionera, parecem confirmar o acesso e a leitura dessas obras médicas de referência pelo irmão jesuíta.
A análise da obra Materia medica misionera do irmão jesuíta Pedro Montenegro permite, em razão disso, a reconstituição dos saberes médicos e do conhecimento científico difundido e produzido na primeira década do século XVIII na América meridional. Nela, estão presentes tanto as dificuldades encontradas pelos missionários para contornar as epidemias que se abatiam sobre as populações indígenas quanto as constantes - e necessárias - experi-mentações que tiveram que ser feitas em decorrência das carências e das características do meio em que eles atuavam, determinando a coleta e a organização de saberes sobre a natureza e o território. Por outro lado, as inúmeras referências que Montenegro faz a autores clássicos de tratados de medicina - e a alguns de seus contemporâneos - , além de evidenciarem seu conhecimento sobre a arte médica, apontam para aplicação e para a circulação de conhecimentos farmacológicos e médico-cirúrgicos europeus nas áreas dos impérios coloniais ibéricos na Europa.
A obra nos revela, ainda, que os espaços jesuíticos de formação e de missão na América meridional - com destaque para os colégios e as reduções - foram palco tanto da aplicação dos saberes europeus quanto de sua avaliação - o que fica evidenciado nas manifestações explícitas de sua aceitação, comprovação ou contestação que Montenegro faz ao longo do texto - , como também de experimentalismos e trocas culturais entre saberes e práticas de cura, que podem ser constatadas nos catálogos de botânica médica, tratados médico-cirúrgicos e receituários escritos por irmãos e padres da Companhia de Jesus na primeira metade do século XVIII.56 56 Em recente resenha da obra Science in the Spanish and Portugueses Empires: 1500-1800 (organizada por Daniela Bleichmar e publicada em 2009, pela Stanford University Press), Iris Kantor (2010, p.295-296) faz uma afirmação que corrobora as conclusões da investigação que realizamos. Ela chama a atenção para os efeitos da apropriação de "imagens negativas do colonialismo ibérico pela historiografia decadentista (tanto na vertente liberal como marxista) que, por sua vez, atribuiu à censura inquisitorial, ao catolicismo e aos jesuítas, as principais obstruções do pensamento científico nos países e regiões de colonização ibérica". Ela prossegue, afirmando que "Os estudos reunidos nessa coletânea procuram superar definitivamente a dicotomia entre prática científica e cultura católica, demonstrando que o enquadramento teológico político do mundo natural - sensibilidade científica barroca que conjuga a intervenção divina com o experimentalismo - não teria constituído um impedimento para formulação de modelos explicativos com validade universal".
Notas
Recebido para publicação em fevereiro de 2011.
Aprovado para publicação em julho de 2011.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Jan 2013 -
Data do Fascículo
Dez 2012
Histórico
-
Recebido
01 Fev 2011 -
Aceito
01 Jul 2011