Nos últimos seis anos – depois do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff –, a maioria dos pesquisadores brasileiros sofreu por parte do governo episódios de agressão, intimidação e, até, persecução marcados pelas ações de desmonte das instituições de investigação científica e pela criminosa fragilização das intervenções sanitárias, médico-ambientais e sociais ancoradas na ciência. O final de 2022 trouxe um acontecimento que nos traz otimismo: a designação de Nísia Trindade Lima como ministra da Saúde. A partir de janeiro de 2023, ela é a primeira mulher a comandar o órgão federal, criado em 1953, cujos 50 predecessores foram homens. Ela é parte do governo democrático de Luiz Inácio Lula da Silva, com enorme possibilidade de reviver e multiplicar os melhores momentos da história recente do Brasil.
A confiança em sua gestão não advém do fato de ser mulher. Confirma que cientistas sociais e historiadores podem contribuir com seus estudos para as políticas públicas de saúde e para o Sistema Único de Saúde (SUS). Conhecemos sua capacidade intelectual porque a maioria de suas pesquisas e publicações se situa no campo da história da saúde. Seu clássico livro Um sertão chamado Brasil estuda as valorizações intelectuais, sanitárias e políticas de uma vasta região do país, analisa uma metáfora da fragmentação entre regiões mais e menos desenvolvidas e reflexiona sobre a desigualdade social no país (Lima, 2013LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec, 2013.).
Sua notável trajetória lhe fornece as melhores credenciais para enfrentar novos desafios, graças a sua capacidade de articular diálogos intersetoriais frutíferos entre ciência, sociedade civil, política nacional e saúde global. Nísia Trindade Lima é mestre em ciência política e doutora em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos). Desde 1987, quando ingressou na Fiocruz, revestiu-se de habilidades especiais, ao combinar sua pesquisa e sua docência com a administração acadêmica. Suas atividades foram gestadas na Casa de Oswaldo Cruz (COC), unidade da Fiocruz especializada nos estudos sobre história das ciências e da saúde, divulgação científica, preservação da memória e do patrimônio da saúde. Entre 1998 e 2005, Nísia foi professora, chefe do departamento de pesquisa, vice-diretora e, depois, diretora da COC. Em recente número de História, Ciência, Saúde – Manguinhos, contamos com o privilégio de publicar sua carta como editora convidada, a qual celebrava os 21 anos do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da COC. Segundo Nísia, a história é como “uma janela que se abre para o passado e o presente” e que “permite pensar o futuro como produto da imaginação histórica” (Lima, 2022LIMA, Nísia Trindade. A história como janela para o futuro: os 21 anos do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.29, n.4, p.887-889, 2022., p.889).
Nísia levou sua valiosa bagagem para a Editora Fiocruz e a Vice-presidência de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz, onde se notabilizou pelos esforços de inserção da Fiocruz na saúde global. Foi eleita presidente da Fundação em 2017 – sendo a primeira mulher a ocupar o cargo –, com amplo apoio de sanitaristas da Fiocruz e de outras instituições brasileiras de saúde. Foi reconduzida ao cargo em 2021, para um segundo mandato. Nessa função, liderou com sabedoria e sobriedade as ações de enfrentamento à pandemia de covid-19. Viabilizou a rápida construção do Centro Hospitalar para a Pandemia de Covid-19 no campus de Manguinhos, a organização de ações emergenciais junto às populações vulneráveis e a parceria da Fiocruz com a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca para a produção da vacina contra a covid-19 no Brasil. Desde então, a unidade Bio-Manguinhos foi transformada em um dos principais centros de produção de vacinas na América Latina.
Além de capacidade intelectual, inteligência política e experiência profissional, Nísia adquiriu, em sua trajetória na Fiocruz, admiração e respeito de seus colegas e da comunidade científica. De seus inúmeros reconhecimentos, cumpre destacar sua eleição, em dezembro de 2020, para membro titular da Academia Brasileira de Ciências, na categoria Ciências Sociais. Dois anos depois, foi nomeada para a Academia Mundial de Ciências, uma organização acadêmica dedicada a impulsionar o avanço da ciência nos países em desenvolvimento.
Temos convicção de que Nísia é uma extraordinária gestora e comunicadora persuasiva para diferentes públicos, capaz de assumir desafios esmagadores como enfrentar o desmonte do financiamento do SUS, a desestruturação da atenção primária e a recuperação de programas como o Programa Nacional de Imunizações e o Programa Farmácia Popular do Brasil. Sem dúvida Nísia terá que exercer todas as suas qualidades no escorregadio e movediço terreno da política contemporânea. Confiamos firmemente que seu talento, sua competência e sua dedicação confirmarão em pouco tempo o título desta carta. Além de ser um orgulho para os historiadores da saúde, a Casa de Oswaldo Cruz e a Fiocruz, estamos certos de que em breve Nísia será reconhecida popularmente como um orgulho para todo o Brasil.
Gostaríamos de finalizar esta carta com um assunto diferente e importante vinculado às boas práticas de ciência aberta utilizadas por muitos periódicos da coleção SciELO. A partir de 2023, História, Ciências, Saúde – Manguinhos passa a adotar o sistema de publicação contínua (também conhecido como publicação em fluxo contínuo). Esse sistema consiste na publicação eletrônica dos artigos da revista, isolados ou em pequenos grupos, à medida que forem aprovados e processados internamente (revisão linguística, normalização, diagramação etc.), em vez de publicar todos os artigos de cada número de uma só vez. A publicação contínua permite a divulgação das pesquisas de nossos autores com mais agilidade e deve incrementar a visibilidade do periódico.
Oxalá essa modernização editorial e a feliz notícia da posse de Nísia Trindade Lima como ministra da Saúde representem o começo de um ano promissor para a comunidade científica e a saúde pública brasileira.
REFERÊNCIAS
- LIMA, Nísia Trindade. A história como janela para o futuro: os 21 anos do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.29, n.4, p.887-889, 2022.
- LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec, 2013.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Abr 2023 -
Data do Fascículo
2023