Open-access Guaraná, a planta do Brasil

Guaraná, Brazil’s plant

GARFIELD, Seth. Guaraná: how Brazil embraced the world’s most caffeine-rich plant. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2022. 320.

As bolhas e o sabor adocicado enchiam minha boca, numa sensação inédita de prazer. Eu tinha cerca de 5 anos, e estava na casa de minha avó. Após me sentar à mesa, pegou uma garrafa e me serviu cerimoniosamente a bebida numa pequena taça de cristal. Os signos do rótulo me instigaram, mas eu ainda não sabia ler. Vovó Neném (nome paradoxal, como, aliás, ela era) solucionou o mistério, em voz alta: guaraná Antarctica.

Tal como no ambiente mágico da recordação infantil, a leitura do livro de Seth Garfield desenrola uma miríade de histórias da semente do guaraná, privilegiando lugares, temporalidades, atitudes, perspectivas e atores históricos diversos que redimensionaram o sentido daquele momento singelo em que vovó me serviu tal iguaria pela primeira vez. Ao me possibilitar conectar minha vida de menina a outros tempos e lugares, simultaneamente evidenciando a raridade da minha experiência, Garfield cumpriu o melhor roteiro de um historiador. Por meio de uma narrativa fascinante, construída com um rol impressionante de informações e análises refinadas, seu livro estimula a mudança não apenas da nossa forma de entender o passado, mas especialmente a reconsideração das práticas e do horizonte de possibilidades no ponto em que estamos.

Mesmo convivendo com garrafas do refrigerante guaraná desde a tenra idade, surpreendi-me ao mirar a capa do livro e constatar que eu nunca tinha visto uma semente da planta, o que não deixa de ser bastante coerente com a “comodificação” do guaraná e a criação de um fiel mercado consumidor nos ambientes urbanos brasileiros. Especialmente a partir do pós-guerra, muitas representações e valores foram investidos em torno da produção em escala industrial e para a sofisticação de estratégias de propaganda no Brasil. As muitas promessas acenavam com estilos charmosos de vida, praticidade, saúde, prazer e modernidade a ser acionados com a abertura da tampa e o despertar da efervescência da bebida. Rituais sociais sugeridos pelas diversas imagens de peças publicitárias reforçaram estereótipos de raça e de gênero, como demonstra o autor em instigantes abordagens do material iconográfico que integra a vasta documentação utilizada.

Em sua análise de longa duração, abrangendo desde o cultivo e consumo do guaraná no período pré-colombiano pelos sateré-mawé na região do Baixo Amazonas até o tempo presente, Garfield apresenta diversos atores humanos que contracenaram com a planta e entre si, ultrapassando a tradicional separação entre a história humana e a natureza. A sedução exercida pelo Waraná (como chamado pelas comunidades indígenas), guaraná ou Paullinia cupana (nomenclatura científica), talvez possa ser compreendida pela semelhança de sua semente a um olho e pelos impactos da alta concentração de cafeína na disposição humana (Garfield, 2022, p.14). Uma vez apresentado ao protagonista vegetal, o leitor é capturado num enredo envolvente, complexo e de percurso não linear em que se entrelaçam as ações de indígenas, colonizadores, jesuítas, historiadores naturais, empresários norte-americanos da indústria farmacêutica, boticários e médicos brasileiros, mulheres, trabalhadores urbanos e rurais, elites do agrobusiness, indústria e comércio, crianças, geneticistas, publicitários, antropólogos e ativistas ambientais.

Esses personagens se movimentaram em contextos muito diferentes no devir histórico, nas ondulações turbilhonares dos enfrentamentos sociopolíticos. Por isso, ao longo da leitura, ocorreu-me que o autor constrói uma refinada genealogia (Foucault, 1979, p.15-38). Certamente essa é uma interpretação minha, já que o autor não mobiliza o conceito em nenhum momento. Ao fragmentar as identidades construídas em torno do guaraná, Garfield aponta sua proveniência repleta de acontecimentos perdidos (como a patente do guaraná como medicamento nos EUA no século XIX) e descontinuidades (como a disparidade entre o consumo ritual do guaraná pelos indígenas e as experimentações de sementes pelos agrônomos nos anos 1980). Como declarou o próprio autor em entrevista, seu estudo intenta “desfamiliarizar o familiar” (Koutsoukos-Chalhoub, Ferraz, Garfield, 20 dez. 2022).

Garfield demonstra como o guaraná foi e tem sido reconfigurado em múltiplas práticas nas quais recebeu significados diversos: planta sagrada, fármaco, marcador da identidade nacional brasileira (seja nos projetos de integração territorial por Silva Coutinho no século XIX, seja no slogan recente “é coisa nossa”), commodity, objeto de reinvenção da indigeneidade por comunidades resilientes em busca de autonomia e inserção na modernidade, produto de fair trade conquistando consumidores europeus simpatizantes do slow food movement.

O autor detém-se na emergência de práticas diversas em torno do guaraná, nas tensões e conflitos sociais em diferentes conjunturas, assim como nos acasos e desvios que, por vezes, influíram nas disputas pelo poder e pela dominância. Assim, no período colonial, o guaraná foi integrado em processos mundiais de expansão dos impérios, de avanço da cristianização e de globalização do conhecimento. Imiscuiu-se nas disputas entre jesuítas e colonos em torno do tratamento dirigido aos indígenas, e foi configurado como droga do sertão (Garfield, 2022, capítulo 2). Nos anos 1970, o guaraná figurou em enredos de modificações alimentares dos brasileiros, de ascensão da indústria de ultraprocessados, de investimentos da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional na pesquisa agrícola no Brasil, da ascensão do agrobusiness, da criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em 1972, do crédito agrícola concedido pelo governo ditatorial aos grandes proprietários de terra.

O livro de Garfield transita entre vários campos da história, com contribuições à história da Amazônia, dos povos indígenas, das commodities, da comida e alimentação, do consumo, da ciência, da medicina, do meio ambiente. Seu diálogo com a antropologia é fundamental, denso e profícuo. Maneja fontes variegadas com criatividade e vigor metodológico. Temos nas mãos um trabalho de fôlego. Ao final, somos apresentados aos desafios contemporâneos dos sateré-mawé, sua resiliência e criatividade, numa narrativa disruptiva em relação a estereótipos centenários sobre os indígenas.

Excepcionalmente bem escrito, o livro interessa a antropólogos e historiadores de várias especialidades, mas também a tantos brasileiros cujas vidas se entrelaçam ao guaraná. Por tudo isso, sua tradução ao português é tarefa urgente.

REFERÊNCIAS

  • FOUCAULT, Michel. Nietzche, a genealogia e a história. In: Machado, Roberto (org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.15-38.
  • GARFIELD, Seth. Guaraná: how Brazil embraced the world's most caffeine-rich plant. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2022.
  • KOUTSOUKOS-CHALHOUB, Lucas; FERRAZ, Luiz Paulo; GARFIELD, Seth. Entrevista com o historiador Seth Garfield. Blog Brazil por Brasil, 20 dez. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/entrevista-com-o-historiador-seth-garfield Acesso em: 9 maio 2023.
    » https://www.historiadaditadura.com.br/post/entrevista-com-o-historiador-seth-garfield

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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