Open-access De autora a personagem: a literatura de e sobre Sylvia Serafim

From Author to Character: Literature by and about Sylvia Serafim

Resumo

Em 26 de dezembro de 1929, Sylvia Serafim assassinou Roberto Rodrigues. Desde então, passou a ser tratada como assassina, tendo sua produção literária, jornalística e política abandonada. A proposta deste artigo é formular um esboço inédito de crítica sobre seu trabalho intelectual, mesclando com alguns elementos de relato pessoal. Para isso, por meio de uma pesquisa em arquivo, foram selecionados materiais que discutem pautas de gênero. Ao final, comprova-se a importância de resgate não somente de Serafim, mas também de outras autoras apagadas pelo cânone.

Literatura brasileira de 1930; Literatura feminista; Sylvia Serafim; Nelson Rodrigues; Assassinato de Roberto Rodrigues

Abstract

On December 26, 1929, Sylvia Serafim murdered Roberto Rodrigues. Since then, Serafim has been treated as a murderer, with her literary, journalistic and political production abandoned and forgotten. The purpose of this paper is to formulate an unprecedented critique of her works, blending with some elements of personal narrative. Among her many materials, and through archival research, we selected articles that discussed gender issues. This paper concludes highlighting the importance of reviving not only Serafim but also other authors erased by the canon.

Brazilian literature of 1930; Feminist literature; Sylvia Serafim; Nelson Rodrigues; Murder of Roberto Rodrigues

Introdução

“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens” (Lispector, 1998:21).

No dia 26 de dezembro de 1929, a jornalista e literata Sylvia Serafim entrou na redação do jornal Crítica e solicitou uma audiência com o proprietário, Mário Rodrigues. Mário não estava, o que a fez procurar por seu filho, Mário Filho, que também não estava. Entrou em um gabinete, então, com outro dos filhos, Roberto Rodrigues, ilustrador do jornal. Não se sabe ao certo o que foi dito ou feito dentro do gabinete, mas o fato é que Sylvia atirou na barriga de Roberto, que faleceu três dias depois. Também estava na redação o jovem Nelson Rodrigues, então com 17 anos, outro dos filhos de Mário. Somente uma bala de um revólver de pequeno porte e novo já foi o suficiente para perfurar o intestino de Roberto (Jornal do Commercio, 1929).

O que se seguiu foi um processo de estetização do crime e uma disputa ideológica e política. O assassinato recebeu ampla cobertura jornalística, tanto pela Crítica quanto por jornais aliados e rivais, como O Jornal, para o qual Sylvia escrevia. Por parte de Crítica, teve início uma campanha de difamação, na qual o jornal classificava a jornalista como “Cadela das Pernas Felpudas”, “Literata do Mangue”, “Mocinha de Todos de Petrópolis”, “Vagabunda Apadrinhada por Amantes que se Supõem Poderosos”, entre outros epítetos, e a acusava de ter privado uma família de um pai provedor. O Jornal, Assis Chateaubriand, Bertha Lutz e outras personalidades e veículos, por outro lado, defendiam a ré por “defesa da honra” e “perda momentânea de sentidos”, tese que seria acatada pelo júri conforme a absolvição de Serafim por cinco votos a dois (O Jornal, 1929).

Depois do crime, os jornais cariocas se dividiram em blocos contra e a favor da jornalista. A Noite, jornal fundado por Irineu Marinho, corroborou a visão dos Rodrigues e publicou, na primeira página, uma matéria (que Crítica reproduziu) sugerindo que Sylvia teria abandonado sua função materna para se dedicar às letras: “como classificar uma mãe que desmancha seu lar para escrever contos nos jornaes?” (Crítica, 1930). A menção ao assassinato aparece apenas no quarto parágrafo, em fonte muito menor, enquanto palavras como “lar”, “família” e “mãe” recebem destaque em todas as frases anteriores. Os Diários Associados, por sua vez, defendiam abertamente o atentado e chegaram a publicar uma manchete, na porta de seu prédio, dizendo “Justo atentado!”, como relata Ruy Castro (1992). Ademais, Chateaubriand auxiliou Sylvia financeira e psicologicamente.

O seu julgamento mobilizou a opinião pública ao ponto de uma multidão se concentrar nas portas do tribunal e ser o primeiro transmitido pelo rádio no Brasil (tecnologia iniciada no país apenas 7 anos antes). O assassinato passou a mobilizar paixões de todos os lados do espectro político-ideológico, cooptado e transposto para uma discussão mais ampla do que o crime em si. Isto é, grupos conservadores e reacionários passaram a utilizá-lo como método para atacar o que viam como degenerescência de valores da família e do feminino, enquanto grupos progressistas fizeram o inverso na tentativa de capitalizar o affair, principalmente para pautas feministas, corrente da qual Sylvia era adepta.

Entretanto, a disputa não desapareceu após a absolvição e nem mesmo morreu com Sylvia em 1936. Se os jornais da época se mobilizaram sobre o caso, trazendo-o para o centro do palco de uma disputa política, ideológica e econômica, após a morte de Sylvia também surgiram em profusão obras artísticas sobre o caso. A poeta assassina, que nunca saiu da memória popular, foi ficcionalizada pela indústria cultural. Surgiram peças, livros, séries, filmes sobre a morte de Roberto, sem que nenhuma dessas obras aludam ao trabalho artístico, político e jornalístico de Sylvia. E não só: diversas produções acadêmicas ‒ nosso levantamento revelou ao menos 30 ‒ a citam sempre como assassina, como nota de rodapé na trajetória de Nelson Rodrigues, nunca como intelectual.

Fora seus dois livros literários ‒ Ramos de coral (poemas de um coração de mãe) e Fios de prata, sinfonia da dor ‒, ela publicou poemas, crônicas e contos em diversos jornais cariocas, em particular em seu suplemento no O Jornal, Para a mulher no lar. Alguns por meio de pseudônimos diversos, como PetiteSource, Cinderella, Borboleta Azul, e outros assinados de fato com seu nome. O resgate que se inicia em torno dessa figura visa a uma análise estética da produção dessa autora esquecida e apagada do cânone, na tentativa de construir uma crítica e de produzir uma reflexão inédita sobre seus trabalhos literários e, em menor medida, também jornalísticos, quando tratam de debates sobre a literatura.

Diante da impossibilidade de cobrir a ampla fortuna intelectual de Serafim, para este artigo privilegiou-se um recorte de alguns trechos de seu livro, Fios de prata, e de alguns de seus artigos na imprensa sobre o trabalho intelectual feminino. Fios de prata foi tomado como uma das principais fontes por uma série de motivos. Em primeiro lugar, a sua disponibilidade: após anos de busca, foi possível encontrá-lo em um sebo em Brasília, embora também esteja na Biblioteca Nacional. A outra obra literária de Serafim, Ramos de coral, está perdida; não se encontra em nenhuma biblioteca, e a última notícia sobre uma edição veio em 2020, quando foi vendida em um leilão digital. No entanto, os leiloeiros não responderam às tentativas de contato por diversos meios. Em conversa privada, um neto de Serafim admitiu que possuía uma edição, mas que a emprestou no início dos anos 2000 para pesquisadoras interessadas no tema e nunca a recebeu de volta.

Além dessa questão pragmática, Fios de prata foi escrito no calor do momento, logo após o assassinato. Na verdade, parte da obra trata dos momentos após o crime. A própria Serafim tinha bastante carinho pelo livro, não à toa selecionou e grifou diversas passagens em um álbum pessoal que legou para sua família. Mesmo que, pelo espaço de um artigo, não seja possível adentrar em profundidade em Fios de prata, vale ao menos uma visão inédita sobre a estrutura de um livro lançado poucos meses depois do assassinato. Por outro lado, foram selecionados artigos jornalísticos de Serafim, dentre inúmeros possíveis, que ressaltassem a importância da pauta de gênero para a intelectual. Tanto A mulher na literatura quanto O trabalho intelectual feminino evidenciam o diálogo que a intelectual traça com outras colegas, pelo Brasil e pelo mundo, como Virginia Woolf, para pensar a emancipação feminina. Tomando a arte como ponto de partida, Serafim pensa a importância da liberdade de escolha individual.

Entre os diversos artigos que Serafim escreveu em seu suplemento para O Jornal, uma parte está concentrada no álbum já mencionado. Adquirido no início da pesquisa, em 2020, o material estava em posse da ex-nora da jornalista, que faleceu no mesmo ano. Nisso reside outra razão pela escolha desses artigos: não somente dialogam com a temática de gênero, mas estão entre seus trabalhos preferidos, inclusos no álbum, junto de cerca de outros cinquenta. Assim, torna-se possível ouvir a voz de Serafim e suas reflexões em textos que ela própria destacava. Dessa forma, será possível não apenas criar uma fortuna crítica sobre sua obra, mas também compreender os motivos que levaram a seu apagamento e sua consequente ficcionalização. Caso bem-sucedido, este exercício poderá iluminar novas facetas de uma figura presente como nota de rodapé de Nelson Rodrigues na literatura brasileira, concedendo a ela vida própria. De forma parecida, em uma perspectiva social, o estudo não deixa de questionar a marginalização de autoras no cânone em função de seu gênero ‒ ou, no caso de Sylvia, também por causa do assassinato. Em suma, este artigo pode, ainda, adicionar voz ao coro de literatas que vêm recebendo um processo de revista, de inclusão ao cânone, personificado no exemplo de Carolina Maria de Jesus.

Sobre desumanização

Um importante eixo para compreender a figura de Sylvia Serafim é a desumanização feminina. Terreno fértil em teoria, esse eixo pensa nas construções discursivas de mulheres desviantes como monstruosas, como seres grotescos ‒ a clássica imagem das bruxas, reeditada por Sandra Gilbert e Susan Gubar (1980) em The madwoman in the attic. A partir do clássico de Charlotte Brontë, Jane Eyre, Gilbert e Gubar mostraram a reconstrução literária e ficcional do feminino como desviante. Indo além, exploraram a ambiguidade de Jane Eyre, ao mesmo tempo um marco da literatura feminina e uma obra que reforça o estereótipo da mulher desviante como monstruosa e insana.

No século XIX e início do século XX, por exemplo, há um fenômeno curioso: as mulheres constituem o maior público leitor, mas isso não se reflete na produção escrita feminina (Watt, 2010). Esse problema aparece como central no ensaio de Virginia Woolf (2019), Um teto todo seu. Não apenas as mulheres precisavam da permissão de seus maridos para publicarem, mas o próprio pensamento e as estruturas conservadoras desencorajavam a literatura feminina. Mesmo sendo o maior público leitor, persistia o mito de que as mulheres não eram capazes de produzir literatura ― e aquelas que o faziam, como Jane Austen, eram desviantes em sua essência.

Woolf mistura realidade com fantasia para criticar e apontar a marginalidade da literatura feminina, sugerindo a possibilidade de que William Shakespeare teria tido uma irmã com a mesma habilidade. Entretanto, por ser mulher, ela não teria tido o mesmo estímulo que o jovem William, caindo em obscuridade. Para sua tese, Woolf usa não apenas a parábola ficcional da irmã de Shakespeare, mas também um alterego narrador com um nome comum, Mary Seton, assumindo o papel de qualquer mulher. Em outras palavras: mostra que a ausência de literatura feminina não é por suposta inabilidade literária, mas por pressão das estruturas sociais conservadoras e patriarcais, o que era inevitavelmente mais intenso nos séculos XVIII e XIX, com a dependência financeira feminina e a ausência de estímulo ― incluindo de espaço físico, o que a autora chama de “um quarto só seu”, essencial à escrita.

No ano seguinte da publicação do ensaio de Woolf, Sylvia Serafim ecoou seus argumentos em seu ensaio A mulher na literatura, publicado na Gazeta de São Paulo. Nele, rejeita que exista pouca literatura feminina devido a uma suposta inabilidade, ou mesmo a uma inteligência menor, como afirmavam os mais radicais. Um crítico brasileiro referido por ela, por exemplo, chegou a afirmar que “nada se parece mais com uma página escrita por uma mulher do que outra página escrita por outra mulher” (Serafim,1930a). Para Serafim, o labor literário, em particular a lírica, é comparável ao ato de despir-se. Esta é justamente a razão da parca produção feminina na época: a pressão social pelo recato transbordava à literatura.

Antes de Woolf, mas anos depois de Austen ou Brontë, Charlotte Perkins Gilman personificou a imagem da louca do sótão em seu conto O papel de parede amarelo. Trancafiada em um quarto por seu marido e por seu irmão, ambos médicos, a narradora do conto de Gilman foi privada de seu trabalho e teve, como consequência, uma piora de sua depressão pós-parto, ao ponto de passar a ter alucinações. Por meio de sua prosa sociológica ‒ a autora não escondia que utilizava a ficção como método para discutir pautas feministas ‒, Gilman (2021) lança mão da imagem da louca para, de forma pioneira, criticar essa figura.

Esses enredos ilustram um processo secular de desumanização da mulher por meio de construções discursivas que a equipara a monstruosidades. A bruxa, o desviante, a louca do sótão são imagens que se repetem por séculos. Por toda a História, não faltam histórias de mulheres que foram marginalizadas conforme adquiriram um pouco de poder ou independência, conforme ousaram adentrar espaços típicos do masculino, como a arte e o jornalismo.

Livros como O corpo impossível e Perversos, amantes e outros trágicos, ambos de Eliane Robert Moraes, e Os anormais, de Michel Foucault, criam genealogias da figura do monstro feminino, fornecendo insumos teóricos importantes. The female malady, de Elaine Showalter, faz o mesmo, mas focando na imagem da histérica. Isto é, enquanto Madwoman in the attic aprofunda a insanidade na ficção, The female malady se volta para o real. Ambos os livros se conectam em um ponto de interseção: atribuem a origem do fenômeno às estruturas patriarcais e conservadoras. Há outro ponto imprescindível que Gubar e Gilbert (1980) percebem na ficção de e sobre mulheres: o clichê de tratar as personagens sempre na dualidade de anjos ou demônios―um padrão que as retira da condição de seres humanos, repletas de imperfeições, desejos e personalidades, para serem vistas como inalcançáveis como seres angelicais, ou como monstros que desvirtuam e destroem homens inocentes.

Algumas dessas obras são essenciais por fazerem uma ponte com outro elemento sobre o qual é preciso pensar: a ligação do monstruoso com o criminoso. Afinal, Serafim pode ter sofrido uma desumanização nos moldes da descrita por autores como Showalter, Gubar e Gilbert, mas também foi mais do que somente uma mulher tomada por histérica. Nesse ponto, se destaca a obra de Foucault (2010), por conceder insumos que corroboram a questão.

Em Os anormais, Foucault (2010) aponta como o conservadorismo patriarcal espera o crime por parte do desviante. Aquele a quem recai o desvio ― e Serafim por certo se enquadra nesse cenário, considerando seu papel como feminista, escritora e jornalista em época em que as mulheres ainda não podiam sequer votar ― tem no crime apenas seu corolário. Não éà toa que matérias de jornal que trazem Sylvia como assassina sempre também recordem sua atuação intelectual, por vezes colocando isso em evidência sobre o crime. Do desviante para o monstruoso, basta mais um pequeno grau, um pequeno passo, mais um desvio (Foucault, 2016). É evidente, contudo, que não se trata de inocentar a violência perpetrada, mas de realçar mecanismos de condenação social que antecipam a condenação em nível jurídico, principalmente no início do século XX.

Crítica sobre Sylvia ‒ em que ponto se encontra?

Embora chamar atenção para aspectos teóricos sobre desumanização seja importante, o principal objetivo deste trabalho é formar crítica sobre uma autora polêmica e esquecida pelo cânone literário. Trata-se de fornecer, no processo, novas faces para alguém que entrou à História da literatura e do jornalismo tão somente como assassina, ressaltando a sua produção intelectual, apontando destaques, eixos temáticos, fragilidades e o que pode ser relevante para o contemporâneo. Esse é um esforço que, caso bem-sucedido, permite não apenas resgatar a produção de Sylvia Serafim, mas mesmo humanizá-la, em alguma medida, retirando-a do lugar exclusivo de assassina para enriquecê-la também como intelectual.

A literatura de Sylvia permanece inédita. A tentativa de uma crítica, ainda incipiente, foi feita por Ruy Castro em O anjo pornográfico, quando este afirma que sua literatura era ruim, porém sem entrar em detalhes sobre as razões:

Sylvia não tinha a menor vocação para a literatura. Poucos meses antes do julgamento, ela publicara o seu primeiro livro: ‘Fios de prata (Sinfonias da dor)’, uma coletânea de crônicas ginasianas de amor, entre as quais a que começava com a frase ‘Malditos sejam todos aqueles que me desejam’. Era dedicado aos que ‘me fizeram sofrer’. No ano seguinte lançaria ‘Ramos de coral (Poemas de um coração de mãe)’, ilustrado com fotos de seus filhos e incluindo textos em estilo tatibitate com evocações à ‘alma de seu nenê’, a fadas e ao Papai do Céu. Mas seu livro mais surpreendente seria o ‘Manual de civilidade’, publicado em 1935: um rigoroso manual de etiqueta, afinal bem escrito, mas de um cruel deboche tratando-se de uma autora que respeitara bem pouco a etiqueta ao visitar aquela redação em 1929 (Castro, 1992:104-105).

O trabalho literário de Sylvia recebe apenas uma piscadela de Castro, e não há menção ao seu trabalho jornalístico e político. Isso chamaria atenção de Wilson Martins, em coluna publicada no Jornal do Brasil em 05 de junho de 1993:

No terrível episódio em que Sylvia Seraphim se viu envolvida, o menos que se pode dizer é que lhe invadiram a privacidade de forma brutal e grosseira, sem que nenhuma razão de ordem pública o justificasse. É, por isso mesmo, descabida a censura que lhe faz Ruy Castro a propósito do Manual de civilidade: ‘um rigoroso manual de etiqueta, afinal bem escrito, mas de um cruel deboche tratando-se de uma autora que respeitara bem pouco a etiqueta ao visitar aquela redação em 1929’. Não seriam, certamente, os jornalistas da Crítica os mais autorizados a dar lições de civilidade. Tudo isso prova que também Ruy Castro é humano (Martins, 1993:04).

Mesmo sua produção jornalística segue praticamente inédita. Um levantamento entre trabalhos acadêmicos revela um tímido movimento, limitado aos últimos dez anos, de análise sobre alguns de seus artigos. Na verdade, apenas dois trabalhos se aprofundaram um pouco mais na figura de Serafim como intelectual. Um deles, que ainda não foi sequer publicado, é composto por uma série de artigos escritos por volta de 2020, de Marcus de Moura Barros, doutor por Sorbonne. O outro é o capítulo O corpo e as subjetividades de Sylvia Serafim, de Karla Carloni, professora de História na Universidade Federal Fluminense (UFF), dentro do seu livro Mulheres tecendo o tempo. Publicado em 2020, talvez pela primeira vez na academia, empreendeu-se um resgate de outras facetas de Sylvia, ainda que seja inevitável que o assassinato também compreenda parte imprescindível do artigo.

Carloni não é apenas a primeira a analisar em profundidade tais escritos, mas o é também a reconhecer suas qualidades. Ao contrário do esvaziamento promovido por Castro, a professora da UFF sugere que o texto da jornalista era “requintado e marcado por toques de ironia” (Carloni, 2020:72). Além disso, chama atenção para um ponto: os diversos pseudônimos que Serafim empregava e a “personalidade” de cada um. Sem chegar ao ponto de heterônimos, mas cada um dos pseudônimos (Cinderella, PetiteSource, Maripoza Doirada, para citar os principais) assumia um fragmento de seus interesses. Por exemplo, os artigos assinados por PetiteSource ou com seu próprio nome eram mais voltados para temas político-sociais, como a defesa de pautas feministas; enquanto Cinderella ocupava espaço com temáticas como moda e maternidade. Conforme Carloni (2020:73), “as múltiplas personalidades de Sylvia demonstram as rupturas e as continuidades negociadas da escritora que dialoga com si mesma, com a sua condição histórica de mulher moderna e com o modelo de feminilidade correspondente ao grupo social ao qual pertencia”.

Dado o curto espaço de um artigo transposto para capítulo e a necessidade de contextualizar e apresentar o assassinato, as reflexões de Carloni ainda aparecem como embrionárias―reflexões inovadoras e essenciais, mas incipientes, com um amplo flanco a ser descoberto e explorado.

Breve aproximação sobre o trabalho de Sylvia Serafim

Pensa que eu, tão fiel ao nosso amor,

Eu também amanhã te esquecerei.

A vida sua lei há de me impor,

E de novo sorrir aprenderei (Serafim, jun. 1936:23).

Todos os três livros de Serafim foram publicados depois do assassinato. Consegui encontrar o primeiro, Fios de prata, sinfonia da dor, em um sebo de Brasília, a Livraria Pindorama. O livro foi lançado pela editora Officinas Graphicas Alba e consiste em uma coleção de crônicas e ensaios poéticos em tom confessional. Não foi barato, classificado na estante de livros raros, mas está em excelente estado. Embora a maior parte dos materiais apareçam como “Sylvia Serafim”, Fios de prata é assinado como ‘Silvia Serafim’.

A Officinas Graphicas Alba ficava próxima à Praça Tiradentes, na Rua do Lavradio, número 60, Centro do Rio, onde hoje fica um antiquário e casa de leilões. Não há muita informação disponível sobre ela ‒ uma busca no Google pouco revela, não constando menções em plataformas como a Biblioteca Nacional ou o Cpdoc ‒, mas, graças a uma busca em sítios de leiloeiros, podemos descobrir que também editou literatos ilustres, como Raymundo Moraes (Levy Leiloeiro, 2012) e Jorge de Lima (Jonas Leilões, 2016), além de ter durado ao menos até 1943, data em que publica Homenagem a Graciliano Ramos (Levy Leiloeiro, 2022).

Sem ser revolucionário, Fios de prata tem os seus destaques. Em suas quase 200 páginas e quase 40 crônicas poéticas, Serafim destila sensibilidade, ainda que alguns dos trabalhos sejam, de fato, “ginasianos”, como classificou Castro (1992). Tanto mais interessante, a autora divide as crônicas em três partes, classificadas de acordo com o ano em que foram escritas: 1928, 1929 e 1930. Somente os trabalhos de 1930, tendo ciência do acontecido, já justificariam a leitura para qualquer uma interessada em Nelson Rodrigues ou na historiografia da imprensa/literatura brasileira. Foram escritos em janeiro; portanto, no mês seguinte ao atentado.

Figura 1
– Capa de Fios de prata

Fonte: Serafim (1930b).


Enquanto a capa externa é toda verde, a capa interna traz um desenho dos fios de prata. Os fios lembram um riacho, ou ao menos uma água fluindo. Próximo a eles, concentradas na parte superior, há o que parecem ser lágrimas. Considerando o tom melancólico do livro, talvez não seja absurdo assumirmos que os tais fios de prata sejam, na verdade, o choro da autora―hipótese que o subtítulo, Sinfonia da dor, corrobora.

Figura 2
– Capa interna de Fios de prata

Fonte: Serafim (1930b).


A obra abre com uma foto de Serafim, assinada embaixo tanto com seu nome quanto com seu principal pseudônimo, Petite Source. Ela usava esse pseudônimo ― Pequena Fonte, em tradução livre ― em suas principais publicações, como os livros e os artigos com pretensões políticas ou literárias, nunca em seus trabalhos sobre temas como moda. Não encontramos, ao menos até agora, nenhuma declaração de Serafim sobre o significado de seu principal pseudônimo. No limite, talvez seja possível interpretar Pequena Fonte como uma fonte desconhecida, uma espécie de fonte anônima, e por isso interessante; uma pequena fonte de notícias, de ideias e de conhecimentos. Duas páginas depois, uma dedicatória sintomática: “A todos aquelles que me fizeram soffrer”. Mais uma vez vale lembrar: o livro foi publicado depois do assassinato.

Figura 3
– Foto de Sylvia Serafim na folha de rosto de Fios de prata, sinfonia da dor

Fonte: Serafim (1930b).


O Sinfonia da dor no título não é somente figura de linguagem: o livro traz, de fato, uma sinfonia impressa. Como diz Serafim (1930b:s.p.) na abertura, “Fios de prata, inspirou a conhecido maestro uma verdadeira symphonia, da qual acompanham este livro os trechos que tiveram por motivo alguns de seus capítulos, como prenuncio da obra musical a apparecer muito breve na integra e com o nome de seu autor. Sylvia Serafim (P.S.)”.

Figura 4
– Fragmento de Fios de prata, sinfonia da dor que mostra a sinfonia de abertura

Fonte: Serafim (1930b).


Se não temos críticas especializadas da literatura de Sylvia, uma dedicatória que encontrei na edição supre minimamente esse vazio. Como normal em livros comprados em sebos, este veio com marcas dos antigos proprietários. Há um nome espalhado por algumas páginas, Yolanda Rios1. Logo antes da página da sinfonia, também aparece uma anotação ilegível a lápis, na folha de rosto. Parece ser um nome, seguido de uma data. Pode estar escrito “Arthur Pano 44”, “Arthur Pano 99”, “Arthur j/ano 44 (ou 99)”. Pode ser “44”, “99”, ou nada disso. O mais curioso: há uma dedicatória para alguém chamado Arthur, dizendo “entre os meus livros prediletos escolhi este para você... Já está velho, é verdade. O tempo passando amarelou-lhe as páginas, mas a ausência é a mesma, por isso é que lh’o ofereço. Não sei se você vai gostar... Talvez não lhe agrade a melódia triste de uma alma que viveu para o sofrimento...”. O trabalho de Sylvia, então, despertou o interesse de ao menos outra pessoa além de mim, seja quem for.

Figura 5
– Dedicatória no livro de Sylvia.

Fonte: Serafim (1930b).


Figura 6
– Dedicatória no livro de Sylvia.

Fonte: Serafim (1930b).


Yolanda Rios, seja quem for, acerta ao destacar a melancolia na obra de Serafim. Como pode ser visto na mesma página da dedicatória, a obra abre com um prelúdio escrito ‒ ao menos de acordo com a autora ‒ em maio de 1928. Além da referida sinfonia, o prelúdio contém alguns ensaios iniciais. É perceptível, conforme se avança no livro, a mudança no tema. Embora a melancolia se mantenha constante, as crônicas de 1930 destilam também nítido rancor e até mesmo alguma agressividade ‒ como na já descrita dedicatória que abre o livro. Em Como foi, por exemplo, supostamente escrito um mês após o assassinato, Serafim (1930b:143) abre declarando: “socego e descanso não existem para mim, no mundo”.

O assassinato de Roberto não é referido diretamente em nenhum desses textos, mas permanece como uma grande sombra. Tomemos outra abertura como exemplo, de Esquecer!, também de janeiro de 1930: “Suffocam-me os factos. Allucina-me a sequência do que foi. O que foi é tão monstruoso que não podia ter sido” (Serafim, 1930b:157). Pode ser que Serafim esteja tratando de qualquer outro assunto, mas, dada a proximidade temporal, é inevitável pensar na relação. Já as crônicas iniciais, ainda que em sua maioria mantenham a mesma aura de tristeza, não trazem a sensação perene de que há algo sendo omitido. Em Como a festa é curta, Serafim (1930b) lamenta, no que parece uma alegoria para os sofrimentos mundanos, a brevidade da Festa de São João. Destacando a alegria que a efeméride traz, pensa em como esses momentos de felicidade são curtos em comparação com uma dor cotidiana.

É compreensível o que Castro quer dizer quando acusa Fios de prata de ser ginasiano. De fato, os textos reunidos são mais lamentações e declarações do que crônicas literariamente estruturadas e elaboradas. No entanto, uma vez mais, senão possuem valor literário inovador, revelam ao menos valor historiográfico, para perceber como o assassinato impactou a própria assassina, seus sentimentos, sua relação com o caso e como se posicionava. Em suma, para ouvir a sua própria voz.

Se é verdade que Serafim, como poeta, não ofereça grandes inovações estéticas, também o é que suas posições e reflexões como crítica literária e política permanecem relevantes ainda hoje. Em A mulher na literatura, a autora defende que a poesia seria uma espécie de desnudamento, uma exposição das “emoções mais secretas e sagradas” do poeta. Utilizando a metáfora clássica do coração bombeando sangue para todo o corpo, a sensibilidade do poeta bombeia a lírica à sua criação: “Não são seus pensamentos só que ele extrai do cérebro, pois arranca os sentimentos do imo da consciência, tortura-se para aprisioná-los em fórmulas compreensíveis, esmaga-os sem compaixão na prensa da autoanálise, afim de fazer-lhes dessorar toda a verdade humana que contém” (Serafim, 1930a). Em suma, a lírica não é apenas racionalidade, mas um amálgama explosivo dela com a sensibilidade, a idiossincrasia e a vontade de poder.

Indo além, Sylvia se detém sobre romancistas em geral. Para ela, enquanto o “romance de aventura” ou “de movimento” emula modelos específicos da realidade na criação do seu novo real, o “romance de psicologia” é aprisionado em seu “Eu”, dado a incapacidade do autor de aplicar uma observação direta. Isto é, o “romance de movimento” é um misto “do real objetivo combinado infinitamente pela imaginação”, o real elevado ao infinito pela potencialidade da mente, enquanto o “romance de psicologia” é limitado pela nossa compreensão dos outros indivíduos (Serafim, 1930a). O autor, preso a seu próprio ser, precisa transportar para os demais as suas sensações, objetivar o subjetivo. A sua consciência transborda, contaminando o alheio. Serafim sugere uma incapacidade do autor em se separar por completo de seu objeto, transmutando para seus personagens, nesse estilo literário, “a vibração da personalidade inconfundível” (Serafim, 1930a), o que pode, inclusive, atuar como autossabotagem por parte do autor, tomando os personagens como método para atacar a si próprio.

Mas a jornalista não para aí e afirma que essas idiossincrasias dos estilos literários seriam, inclusive, responsáveis em parte pela parca literatura feminina produzida na época. Em particular sobre o que chamou de “romance de psicologia” (ou psicológico), argumenta que a mulher encontraria dificuldade em se expressar, dadas as pressões sociais para o recato. Para Mary del Priore (2002:423), em consonância com os argumentos de Serafim, “a poesia lírica que não a mera exposição de sentimentos adequados exigia um eu confessional forte, difícil para as mulheres sujeitas às definições culturais da época”.

Serafim compara, assim, o ato de escrever como ato de desnudar-se, o que, em um contexto em que a nudez feminina literal era imoral, o próprio ato de escrever, por extensão, também o era. Escrever, para uma mulher, era um ato íntimo, uma sensação de nudez que pode ser confortável para pessoas próximas, mas inevitavelmente gera estranhamento quando para o público geral: “Ao escrever para o público, um pudor obscuro e invencível a contém, obrigando-a a descobrir apenas o rosto, as mãos... Os braços... Isto é, suas impressões e julgamentos mais superficiais cuja externação não compromete” (Serafim, 1930a). A falta de produção feminina, rebate Serafim, ocorre não por “inteligência menor” ou “incapacidade literária” das mulheres, como argumentavam os conservadores da época, mas pelas mesmas pressões sociais que não creditavam às mulheres o direito ao voto, por exemplo.

É claro que as ideias de Serafim não brotaram do etéreo, mas dialogam com contemporâneas suas, como Woolf e Gilman, e com antecessoras como Nísia Floresta. Um século antes de Serafim, Floresta defendia a existência de um círculo vicioso que impedia que as mulheres se expressassem nas artes ou na política em suas potencialidades: elas não recebiam uma educação formal para não irem além da condição de “anjo do lar” e não saíam do ambiente caseiro por ausência de educação formal (Priore, 2004). Um ponto em comum entre Serafim, Woolf, Gilman, Floresta e Wollstonecraft: todas ressaltam a essencialidade da instrução como única forma possível de alcançar uma verdadeira igualdade entre gêneros2.

Woolf, por exemplo, argumenta que o caminho à emancipação feminina na literatura era “matar” essa imagem do “anjo do lar”. Enquanto limitada à condição de musa inspiradora, ao binômio sacro/demoníaco, tanto a mulher criadora quanto a criatura não seriam vistas como seres humanos, mas como um “espelho mágico dotado do poder de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural” (Priore, 2004:408). Somente ao transcender essas duas imagens paradoxais, elas se tornariam humanizadas e compreendidas enquanto artistas e pessoas. Caso não acontecesse, isso já era por si só um desviante.

A literatura feminina era desvalorizada por ser feminina, antes de qualquer crítica sobre sua qualidade. Era vista como mera vaidade, um lúdico brincar de fazer artístico de seres que eram vistos como adultos infantilizados. Não é coincidência, deslocando para o contemporâneo, como vimos, que Castro (1992) chame a literatura de Serafim de “ginasiana” sem de fato elaborar uma crítica sobre ela. A literatura feminina em geral era vista ‒ e ainda o é ‒ como um jogo pueril. Como sugerem Priore (2004:409) e Barbosa (2022), a propósito, a “literatura ginasiana” era, muitas vezes, o espaço possível para essas autoras:

Ao falar dos “cadernos-goiabada”, Lygia se refere aos cadernos onde as mocinhas escreviam pensamentos e estados de alma, diários que perdiam o sentido depois do casamento, pois a partir daí não mais se podia pensar em segredo — que se sabe, em se tratando de mulher casada, só podia ser bandalheira. Ficavam sim com o caderno do dia-a-dia, onde, em meio a receitas e gastos domésticos, ousavam escrever uma lembrança ou ideia. Cadernos que Lygia vê como um marco das primeiras arremetidas da mulher brasileira na carreira de letras, ofício de homem (Priore, 2004:409).

Fosse como intelectual, jornalista, escritora, mulher ou mãe, Serafim se opôs a essas amarras por toda a sua vida, em diversos de seus trabalhos, e talvez seja possível afirmar que terminou por ser vítima delas. A incapacidade de a mulher expressar o seu verdadeiro “eu” nas relações, dada a pressão e o controle que o social exerce sobre si, ocorre também na literatura. Isso explica como era comum a utilização de pseudônimos masculinos, como os que Sylvia Serafim utilizava, além de casos clássicos como o de George Eliot, usado pela escritora inglesa Mary Ann Evans. Nesse sentido, diz Sylvia Serafim, a literatura feminina é cerceada e não consegue se desenvolver, tornando-se “água clara e insossa”, o que explica a frase que cita como argumento geral dos conservadores: “Nada se parece tanto com uma página escrita por uma mulher como outra página escrita por outra mulher” (Serafim, 1930a). Em suma, literatas e jornalistas “se apresentam ao público, nos livros e jornais, vestidas segundo o figurino da moral aceita, e os vultos de seus corações parecem tão semelhantes quanto os de seus corpos, na rua, sob cortes e tecidos parecidos” (Serafim, 1930a).

Sobre outro artigo, O trabalho intellectual feminino, Serafim abre com uma citação bíblica (a primeira epístola a Thimoteo) para pensar processos de silenciamento da mulher: “A mulher deve aprender em silêncio com toda sujeição” (Serafim, 1929:05, tradução nossa). A intelectual rejeita essa noção logo de início, chamando-a de “injusta”, uma ideia arcaica que permanece predominante em 1929: “Como julgará e geração futura as ideias absurdas e mesquinhas que ainda em nossa época nos acorrentam o pensamento, relativamente ao papel da mulher na sociedade?” (Serafim, 1929:05). Era compreensível, em uma era de obscuridade como a Idade Média, como diz, a reunião de um conselho para discutir se mulheres possuíam alma ou não. O problema é a permanência e reconstrução dessa visão de mundo tantos séculos depois.

Serafim traz luz às reconstruções de violências discursivas contra a mulher. Recorda, por exemplo, que, em um passado recente para então, 1871, cientistas e pesquisadores ainda atribuíam uma suposta inferioridade intelectual ao feminino, como o Dr. Frederico Bischoff, da Universidade de Munique, autor de um livro sobre o tema. Mas a História é feita de progresso e reação, e na mesma época, ressalta, a Universidade de Edimburgo admitia suas primeiras estudantes. Além do mais, não rejeita a importância da atividade doméstica na divisão do trabalho social, mas critica a falta de opções às mulheres, enquanto os homens podem escolher qual atividade seguir profissionalmente:

Cogitam os maridos, si para a cozinha e a costura foram fadadas, que não por outro motivo, além da exclusiva fatalidade de serem mulheres? Muitos espíritos femininos há que para a existência monótona e caseira foram feitos... Porém os outros?... Aquelles cuja potência intellectual se debate no círculo estreito e monótono dos afaseres domésticos tal um filhote d'águia na gaiola de um canário? Será preciso que para seguirem seu destino tenham de renunciar à felicidade, e que a satisfação de sua personalidade intellectual seja incompatível com a realização de suas aspirações sentimentaes? (Serafim, 1929).

Em suma, a autora advogava pela plena capacidade de as mulheres ocuparem cargos e trabalhos não apenas voltados para o físico, tanto mais para o intelectual. Usando a metáfora de uma águia presa em uma gaiola de canário, critica os argumentos de que uma mulher que pensa “se masculiniza e não deve, pois, casar” (Serafim, 1929). Uma vez mais, encontra eco em Floresta, que afirmava que “certamente o Céu criou as mulheres para um melhor fim, que para trabalhar em vão toda sua vida” (Priore, 2004:406). Como visto em seu debate sobre a ausência de literatura feminina, rechaça a argumentação de uma suposta “inteligência menor”, para buscar explicações sociológicas na exclusão.

A participação feminina na imprensa e na literatura ainda era negada até por uma parcela de intelectuais e artistas progressistas no século XX, mesmo entre alguns que se colocavam a favor do feminismo em alguns aspectos. Vinte anos antes de Sylvia Serafim, João do Rio, por exemplo, percebe, “de forma progressista, a presença de mulheres nas ruas, a emancipação pelo trabalho, como caixeiras ou médicas. Mas mostra ‘um atemorado respeito’ pelas mulheres de letras” (Dealtry, 2021:19). A exceção se faz para Júlia Lopes de Almeida, a quem reconhece o talento (Dealtry, 2021).

Na argumentação de Rio, a literatura feminina não somente era medíocre, como desvirtuava a mulher por afastá-la do ideal de feminilidade. A literata seria tomada por proselitismo, aplicando uma arte panfletária e cheia de adornos ‒ uma literatura, portanto, coquete, fútil, barulhenta, que tornaria a mulher menos mulher e a faria se afastar do que de fato importava: maternidade e matrimônio. Para João do Rio, o trabalho feminino era aceitável e mesmo desejado, desde que não fosse artístico ou intelectual graças ao “perigo de uma escrita questionadora dos papéis determinados à mulher” (Dealtry, 2021:20) ‒ uma posição que Sylvia Serafim busca combater em diversos de seus artigos.

Considerações finais

Sem perder de vista o imperativo do assassinato, a proposta deste artigo foi apresentar outras faces de uma autora esquecida, bem como seu processo de apagamento, seus motivos e suas consequências. Claro que, sendo incapaz de contemplar todas essas questões, limitado pelo espaço e tempo de um artigo, espera-se que ao menos se tenha lançado luz sobre aspectos importantes de seu esquecimento e de sua produção. Para isso, a regressão teórica sobre aspectos de desumanização aparece como fundamental para pensar outros processos semelhantes e análogos, evidenciando uma série de mecanismos lógicos para o apagamento de mulheres intelectuais ‒ com o agravante do assassinato. Serafim, nesse sentido, encarna a imagem clássica da louca do sótão descrita por Gubar e Gilbert.

À luz das noções de desumanização, a segunda parte do trabalho se pautou na tentativa de formular uma crítica inédita sobre a produção da jornalista. Tendo recebido não mais do que uma piscadela de autores como Ruy Castro, é fundamental apontar a relevância contemporânea de sua produção, destacando eventuais aspectos positivos e negativos. Em última instância, o resgate de uma mulher apagada do cânone, nas suas condições, pode auxiliar na compreensão de processos semelhantes e no questionamento dos processos de exclusão do cânone.

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  • 1
    Empreendi uma busca sobre essa pessoa, mas nada encontrei.
  • 2
    Além da já mencionada Carolina Maria de Jesus, vale citar também Ana Lisboa dos Guimarães Peixoto Bastos, mais conhecida como Cora Coralina, como outro exemplo de escritora que superou a adversidade da falta de instrução para se tornar reconhecida como intelectual, ainda que somente no final da vida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2024
  • Aceito
    02 Maio 2024
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