Open-access Uma leitura feminista sobre o desejo feminino em Lilian M (1975), de Reichenbach

Resumo

Articulando pensamento feminista e cinema, este artigo indaga o resplandecer do desejo da mulher no filme Lilian M (1975), de Carlos Reichenbach, observando como o cineasta interage com os debates dos anos 1970 sobre a sexualidade feminina e integra-os à composição narrativa. A análise fílmica enfatiza um processo de intercâmbio entre desejo, insatisfação feminina e o mascaramento, como um trabalho autoral crítico, que não desconsidera os diálogos com o voyeurismo, o sistema de dominação-exploração da mulher e as aventuras sexuais da comédia erótica.

Lilian M - confissões amorosas/relatório confidencial; Carlos Reichenbach; Feminismo

Abstract

Intertwining feminist thought and cinema, this paper search the freshness of women’s desire in Carlos Reichenbach’s film Lilian M (1975), and try to recognize how the filmmaker interacts with the 1970s debates on sexuality and integrates them into the composition of narrative. The film analysis emphasizes the process of interchange between desire, female displeasure and the masquerade, as an auteur critical work, which does not disregard female agency, the domination-exploitation of women, nor the dialogues with voyeurism and the sexual adventures of erotic comedy.

Lilian M ‒ confissões amorosas/relatório confidencial; Carlos Reichenbach; Feminism

Considerações iniciais

Em 1975, Carlos Reichenbach realizou Lilian M - confissões amorosas/relatório confidencial, que lhe rendeu o título de “cineasta da alma feminina” pelo então crítico e colega de equipe, Jairo Ferreira (2016). Se, até o momento, são poucas as pesquisas substanciais sobre a obra de Reichenbach, o enfoque sobre a construção do feminino em seu cinema mantém-se inédito. À luz do estudo do protagonismo feminino na narrativa cinematográfica e das implicações dicotômicas de seu papel ativo no desenvolvimento e controle da narrativa (Doane, 1987; Mulvey, 1989), procuramos observar como Carlos Reichenbach constrói o universo feminino e o resplandecer do desejo da mulher do ponto de vista discursivo.

Tensionando a agência feminina e a dialética da “dominação-exploração” da mulher (Saffioti, 2009), analisamos as particularidades de uma obra de teor crítico, cuja temática das aventuras sexuais dialoga com a comédia erótica e com o voyeurismo. Diante da complexidade da obra de Reichenbach e dos debates dos anos 1970 sobre a sexualidade feminina, vale averiguar como o cineasta interage com as demandas sobre o direito ao corpo e incorpora essas discussões à composição de seu universo narrativo e à constituição dos personagens.

O artigo observa as ambiguidades discursivas e os momentos de contravenção de uma obra comercial realizada por um cineasta autoral, destinada ao circuito do Marabá (público popular) e do Belas Artes (cinema de arte), como observou Zulmira Tavares (1975)1. O estudo articula a construção narrativa da protagonista Lilian (Célia Olga Benvenutti); o pensamento feminista aplicado ao cinema; bem como os debates do período sobre a sexualidade feminina e a resistência política, por meio da alusão metafórica ao regime militar. Dessa forma, buscamos integrar, de maneira indissociável, os elementos sociais e a concepção estético-narrativa da obra.

Tomamos como arcabouço teórico o trabalho de Mary Ann Doane (1987) sobre a dicotomia dos melodramas nos quais as protagonistas, que dão títulos às obras, nem sempre controlam a diegese. Se a história de Lilian segue a ordem episódica dos relacionamentos com homens, o estudo observa se ela realmente decide seu trajeto e se comanda o desenrolar da narrativa enunciada na primeira pessoa.

Quanto às particularidades da análise, o estudo sobre o desejo feminino e a paródia à femme fatale do cinema noir inclui um percurso rizomático entre a insatisfação da mulher, a agência feminina e o complexo de “dominação-exploração” realizado pelos homens (Saffioti, 2009). É em torno do mascaramento de Lilian como personagem que procuramos localizar as significações múltiplas, que não excluem nem o voyeurismo, nem as formas de resistência da protagonista. Para tanto, nos próximos tópicos, nossa análise desdobra-se em dois níveis, partindo das transformações e dos vínculos de causa e efeito da personagem ao longo de seu trajeto, passando posteriormente a uma mirada feminista acerca das ambiguidades na construção do desejo e do olhar.

A trajetória narrativa de Lilian

O filme Lilian M - confissões amorosas/relatório confidencial apresenta Maria/Lilian em seu trajeto do campo para a cidade. A partir do relato em primeira pessoa, a personagem concede uma entrevista na qual conta como fugiu com um vendedor ambulante, deixando para trás o marido e os filhos na zona rural. Na cidade de São Paulo, Maria adota o codinome Lilian quando se torna amante de um industrial, num percurso que envolve o trabalho como massagista e prostituta, desembocando no relacionamento com diversos homens.

O filme é emoldurado, no início e no fim, pela presença física de um gravador que reproduz a fala da personagem, em retrospecto, aproximando o tempo da intriga e a duração da fita magnética com a entrevista. A narrativa segue, assim, o ponto de vista de Lilian e a ordem cronológica dos fatos, evocando flashbacks para seguir as transformações da personagem, a partir do relacionamento com homens de diferentes classes sociais. A primeira rememoração de Lilian retoma sua vida na zona rural. Melancólica, apática e muda, ela não demonstra nenhum tipo de afeto no cotidiano repleto de tarefas domésticas da vida de casada com dois filhos pequenos. O silêncio da personagem é interrompido quando um vendedor ambulante lhe pede água. Aproveitando-se da situação, o oportunista se aproxima da família e, graças à ausência do marido, procura seduzir a camponesa com frases apaixonadas muito piegas. Sem pensar duas vezes, Lilian vai embora com o vendedor. Dentro do carro, o homem retoma o discurso apologético de si como empreendedor de sucesso. Quando o vendedor menospreza e ofende o marido de Lilian, ela se rebela, bate nele e, sem querer, pisa com força no acelerador, gerando um acidente. Enquanto o vendedor cai morto duas vezes no chão, Lilian anda pela estrada, indiferente.

A vida em São Paulo muda radicalmente o cotidiano da personagem. Perambulando pela capital paulista, Maria é resgatada pela polícia e dorme na prisão. A assistente social lhe consegue um emprego na casa de Braga, um industrial, de quem Maria se torna amante. Braga compra para ela uma kitnet moderna. O relacionamento vai bem, até que Fausto, filho de Braga, descobre o romance e chama Lilian para conversar. Fausto tem uma relação conflituosa com o pai, por ser homossexual e bailarino. Apesar de o dançarino parecer frágil fisicamente, ele espanca Lilian com força e se muda para o apartamento dela, sem autorização. Para explicar o comportamento do jovem, o filme incorpora um comentário psicanalítico sobre a falta da figura materna e a hostilidade ao pai. A mãe de Fausto morreu durante o parto, e ele foi criado por uma madrasta interesseira. Tal trajeto é uma das explicações para as tentativas de suicídio do bailarino, que corta os pulsos, cobre a face com meia-calça na cabeça e coloca um cano do revólver na cabeça, na frente do espelho, como uma citação ao contexto ditatorial e ao plano final de O bravo guerreiro (1968), de Gustavo Dahl.

Embora o início do contato com Fausto seja conflituoso, os dois tornam-se amigos quando dividem o apartamento. Lilian se reconcilia com ele e revela capacidade de perdão, característica comumente atrelada ao feminino como signo de bondade. Depois de ficarem muito próximos, Fausto e Lilian montam uma emboscada a Braga, que termina em ménage à trois. Quando o pai acorda, chora por sua moral, enquanto Fausto gargalha. Depois dessa cena, filho e pai não voltarão à narrativa. Lilian antecipa aos entrevistadores que os dois morreram – o primeiro, num hospício; e o segundo, de desgosto, câncer e doença venérea.

Os relacionamentos seguintes de Lilian com homens acontecem com os clientes da casa de massagem, onde ela vai trabalhar, colocando em pauta personalidades violentas, como a do nazista Hans Hartman. O episódio significa a entrada da personagem no submundo do crime e ainda faz uma menção indireta aos porões da ditadura. O filme de Reichenbach coloca em cena a conexão entre tortura e sadomasoquismo de maneira alegórica, fazendo alusão ao industrial dinamarquês Henning Albert Boilesen, dono da Ultragás, no personagem de Hans Hartman. Ele foi um dos financiadores da Operação Bandeirantes, um dos principais centros de tortura da ditadura, e tinha prazer em assistir às sessões de tortura.

Lilian M teve dois lançamentos: 28 de julho e 06 de outubro de 1975, este último semanas antes do assassinato de Vladimir Herzog pelos órgãos da repressão no dia 25/10 2. Para a exibição, o subtítulo relatório confidencial, que faz menção à documentação secreta da ditadura, foi alterado para confissões amorosas. O aspecto confidencial que o filme aborda diz respeito ao funcionamento da repressão e às cenas de tortura, que são inseridas em crescente no filme. Como cliente da casa de massagem, Hans Hartman se submete a uma sessão de choques elétricos, precedida de uma cena erótica, na qual ele rasga a blusa de Lilian e faz-lhe uma massagem, aplicando força bruta. A cena seguinte remete à perseguição e ação policial da ditadura, quando, no seu refúgio na Represa Billings, Hartman atira na direção de Lilian. Normalizando a violência, ela caminha em direção ao nazista, que encosta o cano do revólver em sua barriga descoberta. A ação é acompanhada de uma marchinha militar em alemão. A sequência articula o apelo fálico e a erotização dos signos do nazismo com a escopofilia. A encenação mórbida de caça aos perseguidos com armas reais e fantasiosas inclui o registro fotográfico feito por Hartman. O ruído do obturador é acompanhado do som de armas de fogo, aviões de caça e bombardeios de guerra. Lilian dispara contra eles com sua metralhadora imaginária. Reichenbach inclui um comentário sonoro anempático (Chion, 1994) do horror no jogo de perseguição de mocinho e bandido, numa alusão ao western. Uma vez que o caçador é um nazista, o outro lado não representa a vilania, mas a vítima perseguida. A cena congela o horror de Lilian, quando vemos o resultado do registro fotográfico, feito por Hartman, da imagem congelada da mulher eternizada e quiçá morta. O congelamento fotográfico, que remete ao delayed cinema (Mulvey, 2006), interrompe a diegese como pausa narrativa.

Depois disso, a tortura é integrada à diegese como evento sadomasoquista, quando Hartman visita Lilian em seu apartamento. O nazista faz um gesto para a moça sentar em seu colo, mostrando o efeito dos dois fios desencapados, que soltam fumaça quando conectados. Na sequência, ele experimenta o efeito nas pernas da massagista. A imagem do choque é substituída pela personagem pulando de dor. Cenas depois, uma alusão à tortura aparece de novo quando Fausto toma banho com uma meia calça na cabeça. Hartman documenta as reações físicas aos choques elétricos, construindo um espetáculo sádico por meio do registro cinematográfico. Primeiro ele prepara minuciosamente a câmera e os dois refletores; depois observa friamente o instante no qual Lilian pula da cama e emite um berro.

Enquanto se envolve com Hartman, Lilian se aproxima de outro cliente da casa de massagem, Edvaldo Lobo, o “grileiro de Jales”, diz a legenda, fazendo uma alusão à voz over de O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla. O grileiro é apresentado pelo locutor anônimo como um homem cínico, calculista e trambiqueiro. O personagem retoma o perfil do empreendedor que incorpora o discurso da autopropaganda como ferramenta para convencer Lilian a comprar terras na zona rural. Desconfiada do homem, a protagonista pede conselhos ao nazista, que sugere contratar um detetive para investigar Lobo. Então, a massagista visita o escritório de Shell Scorpio, personagem que faz alusão ao submundo dos detetives no noir. Se a investigação do detetive não descobre nada de importante sobre o grileiro, Lobo seduz Lilian e vende terras falsas a ela, roubando suas economias. Nervosa, a massagista procura o detetive para obter as fotografias do grileiro, enquanto aciona uma vingança com Hartman. Ela encontra Scorpio à beira da morte, ensanguentado ao lado de uma boneca, com uma faca nas costas.

Rapidamente, Lobo é raptado pelos capangas de Hartman, numa cena que expõe os porões da ditadura. Enquanto o grileiro berra e se declara inocente, Hartman o aguarda no hall do piso superior e coloca óculos para assistir ao espetáculo da tortura de longe. O polegar inclinado para cima e depois para baixo sinaliza a ordem de iniciar os choques e matar Lobo, quando o som dos gritos se torna mais forte até parar3. Lilian e o nazista comemoram a revanche na frente da represa Billings, dançando uma valsa num número musical.

Depois de Hartman, a atração fálica por armas parece levar Lilian a se envolver com Chico, um bandido tuberculoso que faz a massagista de refém numa fuga. Chico apresenta Lilian à dona de um bordel pobre, pedindo-lhe que a acolha depois de sua morte. Como prostituta desse bordel, Lilian se envolve com Gonçalves, cujo relacionamento desemboca numa virada na trama. O cliente é famoso na zona por querer se casar com todas as prostitutas, proposta que a protagonista aceita sem delongas.

Gonçalves incorpora o perfil do funcionário de escritório subalterno, subserviente, passivo e limitado. Ele leva Lilian para morar em sua casa suburbana, sob os olhares contrariados da irmã. A protagonista se empenha na vida a dois. É carinhosa, desempenha as tarefas domésticas, demonstra interesse sexual por Gonçalves e beija-o com frequência. No papel da dona de casa, os traços agressivos de Lilian somem. Ela incorpora um regime colaborativo de vida, que inclui demonstrações de afeto a Gonçalves, extensivas também a sua irmã.

Com o passar do tempo, Lilian se mostra insatisfeita com a vida doméstica; quer voltar a trabalhar. Na feira, um mecânico a persegue. Se a dona de casa xinga e empurra o homem de maneira agressiva, ela não consegue impedir o estupro de que é vítima. Lilian aparece deitada no chão e de olho aberto, como se estivesse morta. Uma criança a sacode, mas ela não se move. A cena seguinte mostra trilhos de trem. Percebendo que é tempo de ir embora, Lilian se despede de Gonçalves na estação, dizendo: “não sirvo para esse tipo de vida. Passei da mão de um para outro”. A frase antecipa uma impossibilidade de retorno ao universo rural, que ela irá visitar em seguida.

Vestida de minissaia e bota de cano alto, Lilian chega à zona rural e grita pelo marido, que a recebe de braços abertos. José incorpora o estereótipo da figura feminina melodramática que espera, pacientemente, a volta do ser amado. Ele chora, abraça a mulher, não faz perguntas e não repara na roupa dela. Não há diálogos porque a cena basta por si só. Ao mesmo tempo, a cena pode ser vista como uma reminiscência de Lilian, como uma versão que ela apresenta aos entrevistadores e como a incorporação dos recursos irônicos, artificiais e ridículos do universo da propaganda na narrativa e na mise en scène. Se as crianças não cresceram nem um pouco, é mais provável que a imagem seja parte da memória da protagonista ou da visão romanceada que ela apresenta aos entrevistadores. Na calada da manhã, Lilian vai embora apressada, sem se despedir.

A imagem seguinte é de silêncio, quando a fita do gravador é cortada para simbolizar o final do filme, da narrativa ou da personagem. Como construção onírica ou fantasiosa, a cena remete à impossibilidade de retorno à família e ao campo. Desde o começo do filme, o mundo rural não era local de felicidade, mas de insatisfação.

Entre a agência feminina e a dominação masculina: o mascaramento de Lilian como estratégia narrativa

A construção da masculinidade, o poder sexual de Lilian e a potência transformadora do desejo feminino podem ser pensados como traços complementares do mecanismo de dominação-exploração e da estratégia de mascaramento da protagonista.

Em busca de supostas representações progressistas da mulher num cinema autoral, num filme cujas escolhas narrativas não excluem o voyeurismo masculino, enfrentamos, em Lilian M, o desafio de adequar os referenciais sobre a composição do olhar no cinema (Mulvey, 1989). Na maior parte das vezes, Reichenbach exclui o primeiro contato visual entre os homens e Lilian quando se conhecem. A única exceção é o relacionamento com o bandido, mas eles não se olham porque Chico a faz de refém, virando seu corpo de costas. Afinal, a maior parte dos relacionamentos não envolve um conflito romântico, mas um acordo financeiro com fins sexuais.

Logicamente, a ausência de registro do primeiro contato visual não exclui a escopofilia nos relacionamentos com Lilian. Pode-se pensar em Lilian M como uma incorporação perversa da fantasia masculina sobre a sexualidade feminina, narrada pela própria pseudo-mulher fatal. Como no cinema noir, Lilian é definida por sua sexualidade e na relação com os homens. Consequentemente, o poder da protagonista é enunciado com encanto e sex appeal e surge como uma visão de mundo do universo masculino sobre ela, à semelhança do cinema noir.

Carlos Reichenbach ressignifica traços do cinema noir e do arquétipo da femme fatale para compor o retrato de Lilian como mulher enigma, que sobrevive no submundo do crime e não corrobora com os preceitos do amor romântico. Como as personagens do noir, a força da protagonista se expressa no estilo visual, realçando seu domínio sobre os homens na composição, no ângulo, no movimento de câmera e na luz (Place, 1998). De maneira esmagadora, Lilian é foco da composição, no centro do quadro ou no fundo; controla o enquadramento e o olhar do herói quando se move.

Os primeiros relacionamentos de Lilian com homens na cidade retomam o perfil heteronormativo, como de industriais ou engravatados que se fazem passar por empreendedores. Lilian M propõe uma abordagem crítica aos papéis heteronormativos, com uma ironia aberta ao discurso apologético dos homens, muito próximo aos preceitos morais da ditadura brasileira. Como comentário na banda sonora, os números musicais, os hinos patrióticos e as marchinhas cumprem um papel mordaz sobre a mesmice do universo masculino. A maior parte dos homens esconde algo na superfície: Braga parece amoroso, mas oferece encontros sexuais com Lilian em troca de negociatas; o filho bailarino homossexual é violento; o ladrão é amoroso; o vendedor ambulante bajulador é assassino. Muitos deles são perversos, golpistas, fracos, insatisfeitos, seja profissional, seja sexualmente.

O perfil dos homens com que Lilian se envolve vai desde o camponês inocente, o lumpenproletariat, o rico infeliz, o herdeiro problemático, o grileiro convencido até o funcionário de escritório afogado na rotina de trabalho. Há uma virada na trama quando Lilian volta a se relacionar com homens de sua mesma classe social, cuja autenticidade inclui uma real preocupação com Lilian, como nos casos do bandido Chico e de Gonçalves. É especialmente com o funcionário de escritório que Lilian deixa de lado a postura agressiva. A fragilidade de Gonçalves ativa nela um perfil maternal, de acolhimento e cuidado desde o primeiro encontro do casal. Quando se conhecem num quarto do bordel, Gonçalves não consegue levar adiante a relação sexual. A atitude envergonhada dele leva Lilian a abraçá-lo, dizendo: “você é só um pobre coitado”. Se a afetuosidade dava seus sinais iniciais no relacionamento com Braga e com Fausto, sua consolidação ocorre com Gonçalves. Por meio da empatia e da solidariedade, Lilian se conecta com uma cultura feminina de maneira definitiva, que se estende à sororidade com Lucivalda, irmã de Gonçalves.

Se o encontro com a cultura feminina não desemboca no mito da maternidade, o retorno passageiro ao lar reenfatiza seu desprendimento em relação ao papel tradicional de mulher. Quando Lilian reencontra o marido, ele também encarna um perfil de pobre coitado. Se José é construído com traços românticos, tais como ingenuidade e bons sentimentos, ele se mantém imune à sedução da publicidade. Contudo, não se trata de uma vitória da autenticidade sobre os valores capitalistas, nem de uma concepção romântica do campo, uma vez que a mercantilização do corpo de Lilian é tomada como resignação e dado inconteste. Trata-se de um desencanto e de uma atitude de conformismo diante das condições do capitalismo.

A expressão do desejo de Lilian depende do perfil dos homens, em um percurso narrativo capaz de provocar-lhe mudanças. Na primeira parte do filme, Lilian permanece muda ou em silêncio. A maior parte dos homens fala muito, enquanto Lilian escuta. O tédio com que ela escuta os parceiros realça o ridículo da verborragia masculina autocentrada. Alguns homens estão em crise, longe do papel tradicional do herói bem resolvido. Os mais problemáticos são de família rica, que dispõem de tempo para se dedicarem à interioridade: Braga e seu filho, Fausto. Típico exemplo da podridão dos milionários, Braga se vangloria de ser um industrial, cuja bondade sustenta algumas centenas de operários e contribui com o progresso brasileiro. O discurso patriótico ridículo é mostrado como o do explorador que esconde seu objetivo ilícito. O personagem hesita entre o perfil do empreendedor e o do fracassado, impedido de agir de maneira livre por sua condição como herdeiro de família rica. Enquanto o filme não recorre à psicologia para explicar Lilian, Braga dá sentido a sua vida por meio de uma narrativa psicanalítica. Ele reduz Lilian ao papel de terapeuta muda e mulher passiva, que escuta sem poder dizer palavra: “O único preço por tudo que lhe fiz foi você sempre me ouvir, sem refutar ou concordar. Sua mudez e, quem sabe, ignorância são elementos altamente terapêuticos para mim”. Ao longo do filme, Lilian escuta muito os homens, mas fala pouco. A exceção é a narrativa construída para os entrevistadores, quando a protagonista também tem direito a expor, não sua interioridade, mas sua trajetória.

Tanto Braga quanto o filho surgem como desdobramento de um mundo sem esperança ou mesmo condenado, típico do filme noir. Nele, as crenças, os valores e a moralidade seguem uma incerteza e constante mudança (Place, 1998). Se nada é estável nem confiável, os dois personagens vivem num labirinto, no qual as referências morais têm pouco significado. Como seres torturados e condenados, a diferença de Braga e Fausto em relação ao noir é que eles colapsam por si mesmos, não por ação da sexualidade feminina.

Enquanto os envolvimentos de Lilian com homens na cidade saem do perfil de rico ou golpista/ativo para o de pobre/fragilizado/passivo, o percurso da protagonista é mais complexo no que concerne ao desejo feminino. No início do filme, não conhecemos os sentimentos, a interioridade e os sonhos de Lilian. As motivações iniciais não se caracterizam com clareza e passam longe da feminilidade tradicional. Quando vive na zona rural, o percurso de passividade evidencia a mudez de Lilian, assim como sua apatia no cotidiano e na vida sexual. A protagonista só fala aos seis minutos do filme, e esse silêncio é uma marca da opressão sobre ela: “o silêncio é evocado como significante, uma marca de exploração, opressão e desumanização. O silêncio é a condição de alguém que foi dominado, feito de objeto; falar é marca de liberdade, de se fazer sujeito” (hooks, 2019:190). Numa perspectiva feminista, o silêncio é visto como parte do discurso machista sobre a feminilidade, como um sinal de submissão da mulher. Contudo, se Lilian cala, a insatisfação e a transgressão transbordam de seu rosto desde o início.

É como se Lilian fosse esvaziada; como um retrato ou anúncio de publicidade, cuja mulher está ausente em cena. Sem fazer uso de um processo de vitimização narrativo melodramático, o cotidiano de apatia sexual, frieza e mudez do casamento é substituído por um processo de ruptura em direção à cidade, que não traz uma consciência infeliz ou culpa melodramática pelo abandono doméstico na busca pela sobrevivência. Dessa forma, se o desejo não está relacionado nem ao casamento, nem à maternidade, ele vai explodir com relação à sexualidade e ao direito ao corpo. A personagem não irá demonstrar remorso, nem é dada uma explicação para a mudança, além do impulso e da curiosidade pela cidade. Embora a maternidade não esteja em pauta no filme, Lilian não é vilanizada por essa razão. A mudança aponta para uma discussão sobre a sexualidade da mulher nos anos 1970 e seu direito ao corpo (Alvarez, 1988).

O percurso de passividade de Lilian até tornar-se sujeito é elencado no primeiro e no penúltimo episódio do filme, que retomam a insatisfação no casamento e o direito ao corpo, temas típicos da representação da imprensa feminina entre as décadas de 1960-1970. O ano de realização de Lilian M é bastante indicativo de todo esse processo. 1975 é o Ano Internacional da Mulher da ONU, data comemorativa que tinha como objetivo a promoção da igualdade entre os gêneros e o fim da violência contra a mulher. No mesmo ano da abertura política lenta e gradual de Geisel, a entidade organizou uma série de eventos internacionais por diversos países do mundo, incluindo o Brasil (Alvarez, 1988). Enquanto, nos anos 1950, a representação da felicidade da mulher nas revistas femininas era atrelada de maneira obrigatória ao casamento, a capa da revista Cláudia trazia, na década de 1960, uma mulher casada infeliz (Buitoni, 1980). Esse arquétipo é aludido em Lilian M com Lucivalda4, irmã de Gonçalves, a tradicional dona de casa. Ela cumpre com esmero as tarefas domésticas, mas permanece infeliz. De maneira irônica, a personagem é apresentada como a esposa sem marido, com inclinações incestuosas. Enquanto os debates dos anos 1970 tinham como pauta a revolução sexual, o amor livre e a imprensa alternativa feminista, Lucivalda arde de desejo e culpa e tem o sexo no centro de sua imaginação melodramática.

No epicentro dessa discussão, não estava apenas a revista Carícia fazendo menção direta ao nome dos órgãos genitais (Buitoni, 1980), mas também havia uma luta política pelo direito ao corpo e pela sexualidade feminina, o que incluía, no debate da contracultura, a libertação sexual e a atenção aos métodos contraceptivos. A liberdade sexual sem culpa de Lilian retoma essa matriz de pensamento que debocha das atitudes bem comportadas. Ao desconstruir a dimensão psicológica da protagonista, Reichenbach recusa também o estereótipo da prostituta como sofredora, evocando de maneira indireta o universo da contracultura. Sem trazer uma punição à mulher que vende seu corpo, o filme traz uma perspectiva progressista e não moralista sobre seu trabalho. Contudo, ao mesmo tempo, há uma contaminação da visão da contracultura que vê a liberação do corpo feminino como algo positivo, quando o assunto envolve a exploração da mulher.

Sem levar em conta a condição de Lilian como prostituta, essa abordagem positiva da liberdade sexual da personagem tem implicações diretas sobre o tipo de construção do desejo feminino. Ao longo do filme, Lilian não manifesta uma motivação existencial consistente. Ao contrário: seu desejo explode na sexualidade e no percurso atrelado à publicidade. Enquanto a mulher fatal do noir esconde um mistério sobre sua interioridade, não há segredo em Lilian, a não ser o óbvio das necessidades capitais de sobrevivência. O único projeto da protagonista aparece atrelado à acumulação financeira, quando Lilian interioriza o sonho do marido como objetivo de vida, visando comprar terras para deixar de herança à família. Consciente da impossibilidade de o marido progredir na zona rural, o desejo de acumulação financeira de Lilian surge a partir da venda de seu corpo como único bem disponível. Mas, quando a personagem cai no golpe orquestrado pelo grileiro, revela-se a impossibilidade de enriquecimento, tanto no campo quanto na cidade. Dessa forma, o capitalismo surge como impossibilidade, sob o signo irônico da propaganda. Esse processo sofrerá uma ruptura quando a interioridade de Lilian é revelada, levando a uma crescente humanização da personagem.

A motivação narrativa inicial de Lilian gira em torno da independência e da liberdade, mas não significa uma ameaça à masculinidade como no noir, porque a força de origem sexual pode ser extravasada sem culpa no papel de prostituta. A respeito do olhar masculino, Lilian parece indiferente, apática e envolta em algum mistério. A mudança com relação ao desejo se dá por meio da explosão da libido. O ponto de inflexão da mudez/apatia de Lilian ocorre no relacionamento sexual com o vendedor ambulante no início do filme, quando ela incorpora um perfil ativo, que vai se estender a outras esferas do relacionamento com os homens.

Antes dessa mudança, Lilian permanecia melancólica e introspectiva, mantendo o olhar fora de campo. Sem dar certeza aos homens se desdenha o flerte, os personagens masculinos se tornam inseguros sobre o sucesso de suas estratégias, o que inverte uma polarização estanque entre o feminino/passivo e o masculino/ativo. É nesses momentos que a atuação da atriz Célia Olga Benvenutti deve ser realçada. Se, no início da história, a atitude da personagem poderia ser vista como timidez e acanhamento, essa não é a chave de compreensão da personagem. Há certa indiferença de Lilian com relação ao olhar masculino. Com a postura ereta, ela permanece de ombros e olhos erguidos. Fala alto, talvez como signo de um desespero por não ser respeitada e ouvida. Discursivamente, Lilian parece dirigir um sinal de que ignora a presença do outro, sem incentivar a paquera. A postura poderia ser vista como frieza, recato ou mesmo desdém. Enfrentando os homens sem medo, a agressividade de Lilian funciona como tentativa de manutenção da integridade física, como um mecanismo de sobrevivência ou medo. Essa estratégia de defesa ao olhar do outro procura evitar, de maneira singela, agressões físicas e sexuais, mas se torna frágil face à força e violência do universo masculino.

Lilian parece portar um véu imaginário de proteção ao olhar dos homens. Ao mesmo tempo, ela é ativa e indiferente, deixando alguns personagens masculinos sem a certeza de que são olhados e desejados. Nesse sentido, a agressividade dela pode ser vista como defesa interna e como uma tentativa de ocultar sua interioridade e subjetividade. Como uma concha que se fecha, a incorporação de signos do universo masculino possibilita a Lilian uma camada autoprotetora contra os olhares. Laura Mulvey (1989) define esses momentos como a expressão de um olhar carregado, ao mesmo tempo, das expressões de medo, desejo e autoestima feminina. No caso de Lilian, a estratégia de resguardar esse esconderijo, a partir do olhar fora de campo, inclui a identificação com o arquétipo masculino. É quase como uma tentativa de gritar para se defender, o que inclui o deboche e a grosseria da protagonista.

A estratégia passa pelo controle da voz, quando Lilian empreende o que bell hooks denomina “erguer a voz”, isto é, impor suas vontades, atrever-se a discordar e expressar sua opinião. Essa transição da mudez da personagem em direção a se tornar sujeito significa um “ato de fala”, que é “expressão” da “transição de objeto para sujeito”. Como disse hooks (2019:29), “a voz liberta”. Enfrentando o desafio e a ameaça à dominação que costuma carregar uma conversa com os homens, a autora propõe que o ato da fala seja uma forma de a mulher chegar ao poder. Se a maioria dos homens em Lilian M são verborrágicos, eles não deixam espaço para Lilian se manifestar. Incorre-se, assim, naquilo que hooks denomina de “fala de um sujeito com um objeto”, dado que inversamente, para a autora, não há “conversa entre dois sujeitos” sem um “discurso humanizador que desafia e enfrenta a dominação” (hooks, 2019:193).

Se não há diálogo entre Lilian e os homens, com exceção de Fausto, o ato de “erguer a voz”, no filme, é convertido numa manifestação da libido da protagonista, que incentiva o voyeurismo. Dessa forma, a agressividade inicial de Lilian com o vendedor ambulante e com o grileiro se rende à investida sexual ousada. Se ela responde com uma voz dominadora, uma postura ativa e uma bofetada, a montagem remete ao gênero erótico como uma paródia, quando um close capta o desejo de Lilian friccionando os lábios de olhos fechados. Com exceção dos relacionamentos com Braga e Gonçalves, nas cenas de sexo, a protagonista responde ao desejo masculino e, como uma boneca de sexo, incorpora tanto os signos fálicos quanto os objetos-fetiche. Cria-se, desse modo, uma ambiguidade, no relacionamento com os homens, entre uma suposta indiferença, uma estratégia de proteção contra o olhar masculino e o desejo que resplandece nas cenas de sexo.

Se o ato de erguer a voz é incorporado ao filme, mas transformado em vazão da libido, o perfil ativo de Lilian se opõe à representação conservadora da mulher indefesa. Mesmo que a protagonista enfrente sua insatisfação inicial como dona de casa, o desejo feminino resplandece em meio à interiorização de um perverso jogo masculino de troca comercial de seu corpo. Numa perspectiva fetichista, Lilian sai da indiferença em direção a uma postura agressiva e dominadora, quando bate nos homens e tira a roupa deles. Uma das inspirações do filme teria sido a personagem da prostituta do noir Naked Kiss/O beijo amargo (1964), de Samuel Fuller, cuja sensualidade e beleza contrastam com as cenas nas quais a protagonista cumpre um papel de justiceira e espanca gigolôs, homens perversos e cafetinas.

Diferente da personagem de Naked Kiss, Lilian não empreende uma performance de feminilidade excessiva. Ao contrário, ela incorpora valores da cultura viril (Morin, 2005), por meio de um olhar firme, de uma voz forte, com uma postura ereta, que é acentuada pelos gestos de Célia Olga Benvenutti e pelo figurino. Ao mesmo tempo, existe a simulação de um comportamento masculino e um mascaramento do olhar, cujas variações e cujo caráter paradoxal procuramos assinalar neste artigo. O mascaramento de Lilian vai além do simples travestimento; ele ocorre de maneira complementar ao desnudamento do corpo e da sexualidade feminina, num processo complexo que envolve momentos de irrupção da feminilidade. Trata-se, segundo Doane (2008), de reconhecer que a feminilidade é construída a partir de máscaras, como uma camada decorativa que se ocupa de sua não identidade. Mais do que o travestimento, o mascaramento envolve um realinhamento da feminilidade (Doane, 2008). O potencial de mascaramento do olhar de Lilian é pensado num jogo sutil de máscaras entre a masculinidade compulsória, a agressividade ao corporificar signos masculinos e o uso da feminilidade. Esses elementos atuam, numa perspectiva feminista, como uma resistência ao olhar masculino5, na mesma zona discursiva do voyeurismo masculino.

É exatamente o antagonismo entre o polo masculino/ativo e o feminino/passivo de Lilian que possibilita retomar as personagens da história do cinema que não se encaixavam no padrão tradicional da mulher passiva. Laura Mulvey (1989) observa como a protagonista Pearl Chavez (Jennifer Jones), de Duelo ao sol (1946), de King Vidor, exibe ao mesmo tempo uma fascinação com a masculinização e uma identificação com o universo masculino. Graças a esse processo, a personagem reacende a fantasia de se tornar ativa, retomando a fase masculina, descrita por Freud, na constituição da mulher6. Enquanto Freud propôs uma oscilação na mulher entre períodos de feminilidade passiva e masculinidade regressa, Mulvey demonstra como essa hesitação entre os dois polos pode propiciar à espectadora (enquanto duplo do personagem na tela) uma identificação com o herói masculino em termos de liberdade e controle da diegese. O processo é contrário à feminilidade tradicional, que reprime demandas como essa. Incapaz de incorporar o signo desse tipo de feminilidade, cabe exatamente à fantasia da ação de Pearl Chavez ser, ao mesmo tempo, uma metáfora da masculinidade e uma forma de ir contra o poder patriarcal.

De maneira paralela a Pearl Chavez (Jennifer Jones), Lilian também alterna momentos de feminilidade com signos da cultura masculina, como a agressão e um caráter ativo e dominador. Mas enquanto Pearl é vista pelos homens como uma mestiça selvagem, incapaz de se tornar uma lady, como diz Mulvey, Lilian parece se travestir da máscara da feminilidade quando o padrão é esperado pelo parceiro. É no relacionamento com Braga que os traços femininos são acentuados nos trajes, na maquiagem, no olhar e nas demonstrações de afeto. Esse perfil não exclui momentos de ambivalência, como quando ela ignora a verborragia de Braga no número musical ou quando ‘descobre que é usada como moeda de troca de negociatas e encosta uma faca na jugular do amante. Com os demais homens, Lilian exibe a performance do desejo sexual, de maneira a incorporar o estereótipo projetado pelos homens.

Lilian M realça especialmente os momentos de sexualidade agressiva da personagem como uma expressão sensual, incorporando alguns traços da femme fatale na composição da protagonista. Especialmente no relacionamento com o nazista Hartman e com o bandido Chico, o filme retoma uma iconografia da violência do noir, quando o uso constante de armas remete ao poder fálico não natural da mulher (Place, 1998). A somatória e a insistência na combinação entre agressividade e sensualidade são a tônica da obsessão dos homens por Lilian. De comum à iconografia da sexualidade feminina do noir, os momentos de desprezo e agressividade de Lilian retomam o perfil da vamp, cuja frieza é um signo invertido da libido exacerbada e proibida na imagem. O maior desvio em relação à femme fatale reside na negação da sexualidade feminina agressiva como ameaça, uma vez que o filme inclui entre suas chaves a paródia e o elogio da sexualidade livre. Sob o anteparo da tragicomédia, a iconografia sensual e violenta de Lilian garante, também, o diálogo com o público popular interessado na comédia erótica.

Essa agressividade de Lilian, que remete à femme fatale, incorpora ao mesmo tempo um figurino mais masculino. Na conversa com Fausto, que a acusa de ser amante do pai, o caráter agressivo de Lilian funciona como estratégia (ineficiente) de defesa. O terninho de cor escura e as calças compridas corroboram com signos sonoros de uma voz forte e firme, como disfarce do feminino. Na história do cinema, o travestimento no figurino masculino reaviva as famosas performances de Marlene Dietrich em Marrocos (1930) e Blonde Venus/A vênus loira (1932), ambos de Josef von Sternberg. Contudo, Lilian não atua de maneira feminina por detrás da roupa masculina, nem procura seduzir os homens como faz a personagem interpretada por Dietrich. Em comum, há o desprezo e a indiferença. Realçando signos masculinos ao longo do filme, o caráter agressivo de Lilian é enfatizado não só pela roupa, mas também pela voz e pelo olhar de frente, desafiador aos homens.

A cena com Fausto possibilita analisar o objetivo de Lilian ao se mascarar e observar como essa figuração é vista e sentida pelos homens. O comportamento agressivo e o figurino masculino parecem explicitar a Fausto o traço feminino por detrás do disfarce. O mesmo processo dá vazão à ousadia do grileiro, que agarra Lilian, vestida de calça jeans, tênis e um agasalho esporte. Para ambos os homens, esses traços de masculinidade são vistos como índices da ausência do masculino, capazes de excitar o grileiro, ou de dar mais força para Fausto espancar Lilian. É exatamente ao performar a ausência do feminino que Lilian explicita e realça sua condição de mulher.

De qualquer forma, Lilian terá algum diálogo de igual para igual apenas com Fausto. Com o amigo gay, ela conversa sobre sentimentos, sonhos e planos de ganhar muito dinheiro com o curso de massagista. Esse é o primeiro objetivo enunciado pela personagem. A mudança interna que decorre desse processo é mostrada na cena seguinte na atuação da atriz. Quando Fausto tenta o suicídio, Lilian vai ao hospital com o mesmo terninho bordeaux. A vestimenta sinaliza como ela atua como representante da figura paterna ausente, mas a agressividade anterior, presente na voz, some e é substituída por lágrimas e comoção.

Se essa tendência agressiva diminui paulatinamente no relacionamento com homens mais pobres e fragilizados, Lilian raramente encontra o que bell hooks (2019) descreve como o estágio de confronto entre homens e mulheres, quando as mulheres falam com voz liberta. “Esse discurso feminista de enfrentamento, fundamentalmente revoltoso e desafiador, indica uma mudança na posição de subordinada das mulheres”, transformando-as em participantes ativas (hooks, 2019:191). Lilian ergue a voz para Fausto, numa cena sem cunho erótico. Se ela é espancada pelo filho de Braga, o fato demonstra como o sistema de exploração-dominação é mais complexo que o perfil heteronormativo. Sem acesso à voz liberta descrita por hooks, nos demais relacionamentos, Lilian incorpora a feminilidade tradicional, ou exibe seu descontentamento e caráter transgressor mais pelo silêncio e pelo olhar fora de campo.

Se Lilian incorpora signos masculinos na voz e no olhar, o disfarce não a impede de sofrer com a violência física, sexual e moral num regime de dependência financeira em relação aos homens. A composição da personagem possibilita observar o funcionamento de uma dualidade entre a agência feminina sobre o corpo e a dominação-exploração descrita por Saffioti (2009).

Embora enfrente visualmente os homens sem medo aparente, o mascaramento por meio de signos viris não quebra o pacto de dominação, porque Lilian depende dos homens para sobreviver. Ela mantém um contrato sexual desigual, mesmo sem trocar obediência por proteção, como acontece no pacto tradicional do casamento, descrito por Heleieth Saffioti (2009). Se a suposta proteção à mulher significa exploração e dominação, o pressuposto do casamento seria a união de indivíduos com relações igualitárias. Contudo, na prática, o homem se une a uma subordinada, num contrato representado por uma troca de promessas. O indivíduo que oferece proteção é autorizado a determinar a forma como a outra parte cumprirá sua função no acordo. Mesmo com a suposta liberdade que Lilian constrói aos entrevistadores, ela ainda se submete a um pacto semelhante de dominação-exploração. Esse regime assegura aos homens os “meios necessários à produção diária da vida”, mas significa uma “contradição de interesses” (Saffioti, 2009:10) com as mulheres, porque preserva os benefícios dos homens, sem conciliar o proveito das duas categorias:

Neste regime, as mulheres são objetos da satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e de novas reprodutoras. Diferentemente dos homens como categoria social, a sujeição das mulheres, também como grupo, envolve prestação de serviços sexuais a seus dominadores. Esta soma/mescla de dominação e exploração é aqui entendida como opressão. (...) Retomando o abrangente fenômeno da opressão feminina, esclarece-se, ainda uma vez, que a dominação-exploração constitui um único fenômeno, apresentando duas faces (Saffioti, 2009:10-11).

Na adequação ao sistema de dominação-exploração (Saffioti, 2009), observamos que o mascaramento de Lilian aparece como recuperação do desejo feminino, mas também como renúncia da mulher que adentra no universo da vontade masculina. Contudo, ao participar do desejo dos homens, o custo para Lilian seria a renúncia ao próprio desejo, porque ela adentra num sistema de valores que não é o seu, tal como abordado por Lucy Irigaray (2017). Embora a autora veja esse padrão como negativo, Lilian empreende esse esforço ao ter que assumir um sistema de valores ligado à prostituição e à dominação masculina. Nesse sentido, o ato de se travestir em signos masculinos e o mascaramento são igualmente organizados para o voyeurismo do espectador masculino.

O processo de resistência e de opressão é simultâneo. Quando Lilian se mostra indiferente aos homens, eles demonstram certa ansiedade com relação ao olhar feminino. Por outro lado, esse processo é cortado nas cenas eróticas, quando ela manifesta seu desejo sexual. Nesses momentos, a ameaça feminina tende a ruir. Tal como a neo-femme fatale de Zizek (2009), a representação de Lilian pode ser pensada como um apoio fantasmático do domínio patriarcal, criada pelo próprio sistema. Se o seu desejo é visto pelos homens ainda dentro do pacto de dominação sexual, a própria transgressão e liberação do desejo feminino integra a fantasia masculina. Nesse sentido, o mascaramento de Lilian pode ser pensado como uma projeção da fantasia masculina, que é incorporada no seu relato aos entrevistadores.

Por caminhos imbricados, o processo de mascaramento se torna um desnudamento, no qual o feminino transborda e se expõe como fragilidade. Como estratégia de ocultação, a tentativa de Lilian falha de maneira plena. Portanto, ao longo do filme, haverá um jogo sutil e dialético entre a tentativa de mascaramento e o desnudamento de Lilian no mesmo plano, quando sua feminilidade, seus desejos, sua interioridade e sua subjetividade afloram.

As duas faces da dominação-exploração podem coexistir com o mecanismo de resistência na mesma zona discursiva, como tentativa de desestabilizar o olhar masculino, o que não chega a se concretizar de maneira plena no filme. Nesse sentido, o mascaramento de Lilian atua em dois sistemas ao mesmo tempo como tentativa de subversão da mulher. Retomando o trabalho pioneiro de Joan Rivière (1929) sobre a mascarada, Mary Ann Doane (2008) observa uma possibilidade de reconhecimento da feminidade construída a partir de máscaras que podem ser removidas. Como uma dupla representação de si, a mascarada, para Doane (2008), fabrica uma falta entre a distância de si mesma e da sua imagem, realinhando a feminilidade e a simulação da lacuna da distância perdida.

Para os personagens masculinos e para o espectador homem, o mascaramento de Lilian indica a ausência de homem por debaixo da roupa. Essa ausência é negada e recuperada pelos homens de maneira simultânea. Nesse sentido, a imagem da mulher seria a da exclusão e da diminuição da ameaça sexual feminina. Enquanto isso, a masculinização da figura feminina, para a espectadora mulher, pode ser vista como uma imagem resistente, de uma maneira que o homem sequer suspeite, tal qual a descrição de Doane (2008). Essa masculinização permitiria uma forma de vínculo feminino com potencial de subversão da dominação patriarcal, que ao mesmo tempo adere a seus termos simbólicos. Embora o mascaramento de Lilian não ameace o sistema de representação do feminino, a estratégia torna possível uma resistência quando as mulheres olham de maneira ativa e podem se apropriar do direito de olhar (Doane, 2008). É na mesma zona discursiva no modus operandi do cinema comercial, voltada ao desejo masculino, que o filme pode operar uma resistência. A leitura é proveitosa para a comédia erótica com sua performance voltada ao voyeurismo. Ao mesmo tempo, ela possibilita observar os momentos nos quais a mulher usa seu lugar como objeto do olhar masculino, fazendo a espectadora se tornar consciente dessa configuração conjunta. Ciente de usar seu corpo como espetáculo, Lilian se faz objeto para o olhar dentro e fora da diegese – dos personagens, dos entrevistadores e dos espectadores do filme. Dessa forma, cria-se uma tensão na imagem, que possibilita duas leituras: a ausência do masculino para o voyeurismo e a postura ativa como resistência, voltado ao cinema autoral e/ou sensível à temática da mulher e do feminismo.

Numa perspectiva feminista, a negação da produção da feminilidade funciona como resistência à posição patriarcal, porque implica no olhar ativo da mulher que se apropria da oposição entre ver e ser vista. Nesses casos, a imagem da mulher manifesta um potencial de ameaça ao sistema de visualização masculino. Para Ann Kaplan (2002), a estratégia possibilitaria gerar uma desestabilização da imagem e da estrutura masculina do olhar, propondo uma desfamiliarização da iconografia feminina. Ao ter uma mirada ativa, a mulher poderia subverter a dominação patriarcal, enquanto aparentemente parece aderir a seus termos simbólicos.

O efeito de desfamiliarização, proposto pelas feministas do cinema, atua de maneira complementar e contraditória no filme de Reichenbach, num processo complexo de mascaramento e desnudamento da figura feminina. Se o caráter agressivo de Lilian possibilita uma proteção contra o olhar masculino, os homens veem a performance como ausência do masculino. Dessa forma, na mesma zona discursiva, os dois sentidos correm juntos de maneira complementar e contraditória, incorporando o voyeurismo e a perspectiva autoral crítica.

Considerações finais

Se, numa perspectiva feminista, pode parecer muito tentador abordar a postura contraventora e o perfil ativo sexual de Lilian em relação aos homens, a análise fílmica detalhada e o entendimento dos processos simultâneos de dominação-exploração, de agência do corpo feminino e de mascaramento permitem avançar na avaliação da obra de um cineasta ainda pouco estudado, como Reichenbach, especialmente sobre a perspectiva do feminino. Evitando o encantamento com o objeto por suas características únicas enquanto cinema autoral, a análise discursiva junto ao estudo dos mecanismos cinematográficos do olhar possibilita observar como a obra está em sintonia com o momento histórico dos anos 1970, quando os cineastas críticos procuravam realizar, ao mesmo tempo, a resistência ao regime e a conquista de um público amplo, quiçá popular (Adamatti, 2019). É por isso que, concomitantemente, o filme participa e transgride o gênero da comédia erótica no tema do direito ao corpo da mulher. De maneira dual, Lilian M ameniza os dissabores com a prostituição, em relação a um filme do período, como Iracema - uma transa amazônica (1974), de Jorge Bodansky e Orlando Senna. Mas, ao mesmo tempo, sem negar o voyeurismo masculino, existe em Lilian M uma sensibilidade em tematizar os assuntos caros ao debate da mulher, nos anos 1970, em perspectiva progressista, como direito ao corpo, pílula anticoncepcional, negação do mito da maternidade e do perfil de dona de casa tradicional. A coexistência observada entre zonas de significação comuns à comédia erótica e a uma perspectiva autoral progressista, sintonizada com o debate da contracultura, nem por isso prescinde de um olhar que despreza o sistema de dominação por meio da prostituição. Tal como analisou Teresa de Lauretis (2019:151) sobre a coexistência de espaços hegemônicos e progressistas, “habitar esses dois tipos de espaço ao mesmo tempo significa viver uma contradição que, (...) é a condição do feminismo aqui e agora: a tensão de uma dupla força em direções contrárias”.

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  • ZIZIK, Slavoj. Lacrimae rerum - ensaios sobre cinema moderno. São Paulo, Boitempo, 2009.
  • 1
    As duas salas de cinema citadas por Zulmira Tavares estão localizadas na cidade de São Paulo. Ambas eram emblemáticas, nos anos 1970, para diferenciar os tipos de espectadores. A sala de cinema Marabá funciona no centro e se destina ao público popular. A sala de cinema Belas Artes, situada nos arredores da Avenida Paulista, se diferenciava nos anos 1970 por ter uma programação considerada de arte e sofisticada.
  • 2
    Herzog era diretor de jornalismo da TV Cultura em São Paulo. Ele foi preso e assassinado no dia consecutivo, após ter sido brutalmente torturado. Herzog tornou-se o grande símbolo da resistência à ditadura e do início do processo de abertura política do país. A morte dele motivou uma imensa comoção pública e um ato ecumênico na catedral da cidade de São Paulo, que reuniu oito mil pessoas, em um momento no qual os protestos eram proibidos.
  • 3
    Cenas depois, os entrevistadores de Lilian comentam como o assassinato de Hartman foi coberto pela imprensa. De maneira alegórica, o filme consegue fazer uma alusão à execução de Boilesen pelo MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes) e pela ALN (Ação Libertadora Nacional), em 1971. Embora não seja o foco deste artigo, curiosamente os censores não cortaram as cenas de tortura, nem o relacionamento com o nazista. A censura retalhou especialmente o episódio sobre Braga, considerado como de degradação familiar. O ménage à trois entre ele, Lilian e Fausto também é citado nos pareceres.
  • 4
    A personagem faz uma alusão paródica à doentia governanta de Rebecca (1941), de Alfred Hitchcock. Como Miss Danvers, Lucivalda anda pela casa como uma aparição fantasmagórica e procura incutir medo em Lilian, falando de espíritos assombrados.
  • 5
    Joan Riviere teorizou o uso das máscaras como performance da feminilidade, em 1929, como um tipo de defesa baseada na simulação da falta do imaginário da mulher, de maneira a reafirmar uma ausência. Graças ao disfarce da máscara, essa aparência pode ser usada e removida, mantendo a mulher à distância. Atentos às particularidades de Lilian no comportamento, no olhar, no figurino, nos gestos, na voz, etc., propomos o conceito de mascaramento do olhar como adaptação e apropriação livre do conceito de ‘mascarada’, teorizado pelas feministas do cinema.
  • 6
    Neste artigo, nos atemos à alternância entre feminino/passivo vs. masculino/ativo, proposta por Laura Mulvey (1989), voltada às personagens femininas do cinema. O pensamento foi reelaborado a partir do estudo de Freud sobre a sexualidade feminina. Mulvey reconstrói de maneira original as observações específicas de Freud sobre o complexo de Édipo na menina durante a fase pré-edipiana com relação à mãe, para estruturar seu estudo sobre as protagonistas adultas, dotadas de um perfil ativo. Em Freud, o argumento parte da diferença biológica dos órgãos genitais como fator determinante de “tendências ativas, e, em todo sentido masculinas, para canais femininos” (Freud, 1974:93). O processo levaria a menina, numa fase inicial, a uma “desafiadora superenfatização de sua masculinidade” (Freud, 1974:84). Se essa oscilação entre passividade e atividade não se realiza em todas as crianças, para Freud, o comportamento a esse respeito pode se relacionar com a intensidade relativa da masculinidade e da feminilidade que a menina irá apresentar em sua sexualidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2022
  • Aceito
    29 Maio 2024
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