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Jovens trabalhadores em 3x4: Fotografia e história do trabalho no Rio Grande do Sul, 1933-1943

Young Workers in 3x4: Photography and the History of Work in Rio Grande do Sul State, from 1933 to 1943

Resumo

A proposta deste artigo é analisar um conjunto de informações sobre jovens trabalhadores do Rio Grande do Sul que solicitaram carteira profissional entre os anos de 1933 e 1943. O objetivo será desenvolvido a partir das fichas de qualificação profissional que estão salvaguardadas no Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Pelotas. Pretende-se averiguar alguns dados registrados nelas, como a profissão, e as fotografias 3x4 desses trabalhadores. Os dados serão comparados com o decreto que criou a carteira profissional, em 1932, e com aquele que regulamentou o trabalho dos menores com idade entre 14 e 18 anos, publicado no mesmo ano. Em relação às fotografias 3x4, elas constituem suportes importantes para compreender a participação de meninos e meninas trabalhadores nos mundos do trabalho no momento em que as relações entre o estado, governado por Getúlio Vargas, e os trabalhadores estavam se intensificando a partir da criação de leis trabalhistas. A análise das fotografias 3x4 permitiu compreender nuances sobre o trabalho infanto-juvenil nas décadas de 1930 e 1940 e, igualmente, as condições de trabalho que nem sempre respeitavam as normas vigentes.

Palavras-chave
carteira profissional; fotografia; jovens trabalhadores

Abstract

This article aims to analyze information about young workers in Rio Grande do Sul state who applied for a carteira profissional (official work documents) from 1933 to 1943. Used for this will be the professional qualification records kept by Historical Documentation Group of the Federal University of Pelotas. It is intended to discover some data kept in these, such as profession and the 3x4 photographs of these workers. The data will be compared with the government decree that created the carteira profissional in 1932 and also with the one that regulated the work of minors, aged between14 and 18, published the same year. In relation to the 3x4 photographs, they constitute important supports for understanding the participation of boys and girls in the world of work at a time when the relations between the state governed by Getulio Vargas and workers were intensifying due to the creation of labor laws. The analysis of 3x4 photographs has made it possible to understand the work of children and youth in the 1930s and 1940s and also that working conditions that did not always comply with the regulations in force at the time.

Keywords
carteira profissional; photography; young workers

Considerações iniciais

Em 2015, a Pesquisa por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, apontou que havia 2,7 milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, trabalhando em atividades proibidas pela legislação. Eles desenvolviam suas atividades em vários setores da economia, como a indústria da transformação, trabalho doméstico, agricultura, comércio, construção civil, entre outros. No caso do Rio Grande do Sul, os dados disponíveis no mapa do Trabalho Escravo revelam a presença de 177.765 trabalhadores infanto-juvenis, sobretudo na agricultura.1 1 Disponível em: http://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/mapa-do-trabalho-infantil/. Acesso em: 02 mai. 2018.

O trabalho infantil, ou infanto-juvenil, é expressivo no Brasil contemporâneo, mas já estava presente na história do Brasil colonial e imperial (Priore, 2013PRIORE, Mary Del (Org). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto , 2013.). No século XIX, por exemplo, a presença do trabalho infantil é elucidada nos registros de um dos viajantes estrangeiros, Auguste Saint-Hilaire. Em sua Viagem ao Rio Grande do Sul, realizada em 1820, registrou, quando de sua passagem por Pelotas: “Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos, que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a oferecer um copo de água e a prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que esta criança” (Saint-Hilaire, 2002SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002., p.119-120).

A condição das crianças escravas foi alterada com a Lei do Ventre Livre que tornava livre todos os nascidos de mães escravas a partir de 1871. Entretanto, a lei possui, conforme apontado por Katia Mattoso, ambiguidades e contradições. A nova lei pouco alterou as condições das crianças negras, que continuavam sofrendo exploração dos senhores de suas mães, até os 8 anos ou até os 21 anos: “é quando o filho da escrava completar oito anos que a lei permite ao senhor - que tem prazo de um mês para fazê-lo - escolher a modalidade de “libertação” que lhe convém” (Mattoso, 1988MATTOSO, Kátia. O filho da escrava (Em torno da Lei do Ventre Livre). Revista Brasileira de História, vol. 8, n. 16, p.37-55, 1988., p.54). Dessa forma, se o senhor desejasse, ele poderia manter o menor vinculado a sua responsabilidade até os 21 anos, explorando treze anos de sua mão de obra. O trabalho infantil continuou sendo debatido após o fim da escravidão, agora direcionado “ao preparo da criança e do adolescente para o trabalho, na indústria e na agricultura” (Rizzini, 2013RIZZINI, Irma. Pequenos trabalhadores do Brasil. In: PRIORE, Mary Del (Org). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto , 2013. p.376-406., p.376).

À situação da criança, uma nova atenção foi dada com o Brasil republicano. Em 1891, um decreto-lei regulamentou o trabalho dos menores nas fábricas, indústrias e oficinas da Capital Federal. A idade mínima para trabalhar foi definida em 12 anos e os menores desta idade, poderiam ser admitidos, a partir dos 8 anos completos, como menores aprendizes nas fábricas de tecido (Barbosa, 2015BARBOSA, Pedro. O trabalho dos menores no Decreto 1.313 de 17 de janeiro de 1891. Revista Angelus Novos, n. 10, p.61-86, 2015., p.83).2 2 O artigo utilizará o termo menor em determinados momentos acompanhando a documentação. Ressalta-se que há uma bibliografia relativa aos estudos das crianças e adolescentes que opta pelo não uso do termo porque ele está associado ao abandono, criminalidade e exclusão social. Ver: MOURA, 1999. Um código somente seria estabelecido anos mais tarde, em 1927, com o Código de Menores, que proibiu o trabalho antes dos 12 anos (Bercito, 2011BERCITO, Sonia. Corpos-máquinas: trabalhadores na produção industrial em São Paulo (décadas de 1930 e 1940). In: PRIORI. Mary Del; AMANTINO, Marcia (org.). História do corpo no Brasil. São Paulo: Unesp, 2011, p.371-404., p.400).

Contudo, nas primeiras décadas do século XX, a situação da criança continuava sendo de exploração. No ano de 1901, um estudo sobre as fábricas de São Paulo apontou a presença de muitos menores nas linhas de produção: “É considerável o número de menores, a contar de cinco anos, que se ocupam em serviços fabris, percebendo salários que começam por duzentos réis diários” (Hall; Pinheiro, 1981HALL, Michael; PINHEIRO, Paulo Sérgio. A classe operária no Brasil. 1889-1930. Vol. 2: Condições de vida e de trabalho, relações com os empresários e o estado. São Paulo: Brasiliense, 1981., p.31).3 3 Trata-se de um estudo realizado por Antônio Francisco Bandeira Junior de 145 fábricas de São Paulo. Apesar da referência aos menores, o autor não critica essa situação, ao contrário, enfatiza que eles, dessa forma, adquirem “hábitos de trabalho, aprendendo um oficio que lhes garante o futuro, ao passo que não aumentam a falange dos menores vagabundos que infestam essa cidade” (HALL; PINHEIRO, 1981, p.31).

A atenção ao trabalho infantil seria retomada nos anos 1930, na esteira das leis trabalhistas criadas por Getúlio Vargas nos primeiros anos após ascender ao poder. Decretos sobre férias, regulamentação do trabalho feminino, carga horária, e a criação da Justiça do Trabalho, entre outros, foram promulgados, atingindo seu ápice com a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943 (French, 2001FRENCH, John D. Afogados em leis. A CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.). Na lista dos decretos, um criava a carteira profissional e outro regulamentava o trabalho dos menores na indústria, ambos de 1932. A proposta deste artigo é analisar um conjunto de informações sobre trabalhadores menores que solicitaram carteira profissional, no Rio Grande do Sul, entre os anos de 1933 e 1943. Essas informações constam nas fichas de qualificação profissional que eram o documento que registrava os dados daqueles que solicitavam a carteira.4 4 O Acervo da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul é formado por aproximadamente 627.000 fichas de qualificação profissional, distribuídas em 1.100 caixas de arquivo permanente abrangendo de 1933, o primeiro ano da Delegacia, até 1968. Desde 2007, as pesquisas no acervo foram facilitadas com a criação de um banco de dados que repete os campos da ficha e permite cruzar as informações já inseridas. Atualmente, o banco comporta dados de 46.345 fichas, entre 1943 e 1944, sendo que este ano ainda está em digitação. Pretende-se abordar determinados aspectos presentes nas fichas, como profissão, sexo, cor, local de trabalho e ano de nascimento, e cruzá-los com os artigos do Decreto que estabeleceu as regras para o trabalho dos menores na indústria, em especial, com o artigo quinto, que estipulava condições à admissão dos menores em determinados trabalhos.

Além dos dados, uma parte significativa da análise será feita com as fotografias 3x4 afixadas nas fichas.5 5 Atualmente, o trabalho de pesquisa com as fichas de qualificação profissional está possibilitando a criação de um banco de imagens com as fotografias 3x4 dos trabalhadores, as quais não estão reproduzidas no banco que armazenam os dados textuais dos documentos. No momento, aproximadamente 5.300 fotografias 3x4 já estão reproduzidas. Como afirma Ana Mauad, “a fotografia é considerada como testemunho: atesta a existência de uma realidade” (Mauad, 2008MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Editora da UFF, 2008., p.33). E, também, ela é “marca de uma materialidade passada” (Mauad, 2008MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Editora da UFF, 2008., p.37) que possibilita compreender determinados aspectos do passado. Nesse sentido, as fotografias “permitem-nos conhecer, por ângulos pouco habituais, a urdidura das relações sociais” (Mauad, 2016MAUAD, Ana Maria. Sobre as imagens na História, um balanço de conceitos e perspectivas. Maracanan, vol. 12, n. 14, p.33-48, 2016., p.37). Tomando as considerações da autora como um suporte para a proposta deste artigo, é possível considerar as fotografias dos menores como um meio para compreensão de parte dos mundos do trabalho relativo à participação de meninos e meninas trabalhadores em seu processo de construção. Dessa forma, as fotografias dos jovens trabalhadores se tornam indícios importantes à compreensão sobre o trabalho infanto-juvenil nas décadas de 1930 e 1940, já que permitem não apenas dar a ver seus rostos, como também apontam para as condições de trabalho nas quais estavam envolvidos e que nem sempre respeitavam a legislação vigente. Se a fotografia, o “ato fotográfico, ou o processo que deu origem a uma representação fotográfica, tem seu desenrolar em um momento histórico específico (caracterizado por um determinado contexto econômico, social, político, religioso, estético, etc)” (Kossoy, 2012KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012., p.41), as fotografias desses jovens trabalhadores demonstram, por um lado, uma parte da história do desenvolvimento econômico do estado nos anos 1930/1940, alcançado, em parte, com a participação dessa mão de obra. Por outro, elas permitem compreender aspectos das trajetórias profissionais desses jovens, que permaneceram no anonimato, esquecidas no tempo, mas parte delas é rememorada a partir de suas fotografias e dos seus dados anotados nas suas fichas de qualificação profissional.

Os decretos e o trabalho dos menores

No ano de 1908, o fotógrafo norte-americano Lewis Hine (1874-1940) iniciou um trabalho de documentação fotográfica para o Comitê Nacional do Trabalho Infantil para o qual continuaria contribuindo até 1924. Suas fotografias registraram as condições de trabalho e de vida das crianças dos Estados Unidos.6 6 A coleção é composta por mais de 5.100 impressões fotográficas e 355 negativos de vidro salvaguarda na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Disponível em: http://www.loc.gov/pictures/collection/nclc/. Acesso em: 07 mai. 2018. Durante esse período, Hine:

Carring a simple box camera like the one he used at Ellis Island, Lewis Hine traveled back and forth across the country, from the sardine canneries of Maine to the cotton fields of Texas. He took pictures of kids at work, listened to their stories, and reported on their lives (Freedman, 1994FREEDMAN, Russell. Kids at Work. Lewis Hine and the Crusade against Child Labor. New York: Clarion Books, 1994., p.21).7 7 “Carregando um simples câmera, como a que ele usou em Ellis Island, Lewis Hine viajou de um lado para o outro do país, das fábricas de sardinha em conserva do Maine aos campos de algodão do Texas. Ele tirou fotos de crianças no trabalho, ouviu suas histórias e relatou as suas vidas”. Tradução do autor.

Parte do resultado do seu trabalho foi publicado em dois livros no ano de 1909: Child Labor in the Carolinas e Day Laborers Before Their Time.8 8 Disponível em: https://global.britannica.com/biography/Lewis-W-Hine Acesso em: 07 mai. 2018. Suas fotografias contribuíram para a aprovação, no ano de 1916, de uma legislação específica sobre o trabalho infantil nas fábricas. O Keating-Owen Child Labor Act (1916) foi o primeiro decreto que regulamentou o trabalho infantil, a nível federal, estipulou 14 anos como idade mínima para ser admitido nas fábricas, definiu cargas horárias, entre outros; contudo, sua duração foi curta e logo foi derrubado pela Suprema Corte (Arnesen, 2007ARNESEN, Eric (ed.). Encyclopedia of U.S. Labor and Working-Class History. Vol. 1: A-Z Index. New York: Routledge, 2007., p.735-736).

No Brasil, o estabelecimento de leis reguladoras do trabalho dos menores foi mais tardio do que a discussão nos Estados Unidos. Conforme apontado nas considerações iniciais, somente em 1927 foi aprovado um código específico sobre os menores. Essa legislação seria alterada alguns anos depois com o decreto que regulamentou o trabalho dos menores promulgado em 03 de novembro de 1932. A regulamentação, no entanto, era dirigida apenas aos menores na indústria; nada foi abordado sobre aqueles que atuavam no comércio, na agricultura ou na construção civil, por exemplo.

O novo documento alterava o que havia sido previsto no Código de 1927 em relação a idade mínima para trabalhar na indústria, de 12 para 14 anos, conforme o artigo primeiro: “É vedado na indústria, em geral, o trabalho de menores que não hajam completado a idade de 14 anos”.9 9 BRASIL. Decreto n. 22.042, 03 nov.1932. Estabelece as condições do trabalho dos menores na indústria. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-22042-3-novembro-1932-499365-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 24 out. 2017. Ainda era necessário que o trabalhador com idade entre 14 e 18 anos apresentasse quatro documentos: certidão de idade ou documentos que o substitua; autorização do pai, mãe, responsável legal ou autoridade judiciária; atestado médico de capacidade física, mental e vacinação e prova de saber ler, escrever e contar. No final, o decreto trazia anexado um quadro com indústrias que estavam proibidas de contratar menores e outro nas quais eles poderiam trabalhar exercendo apenas determinados trabalhos.10 10 Os quadros serão explicados no próximo tópico.

Já o decreto que criou a carteira profissional foi publicado também em 1932. Há dois artigos que fazem referência a idade dos trabalhadores. No artigo primeiro era definido quem poderia solicitar a carteira: “Fica instituída, no território nacional, a carteira profissional para as pessoas maiores de 16 anos de idade, sem distinção de sexo, que exerçam emprego ou prestem serviços remunerados no comércio ou na indústria”.11 11 BRASIL. Decreto n. 21.175, 21 mar. 1932. Institui a carteira profissional. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21175-21-marco-1932-526745-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 21 out. 2017. Outros dois decretos sobre a carteira ainda foram publicados em 1932.

No segundo, uma mudança nesse artigo atribuía a carteira para todos os trabalhadores remunerados, independente do setor de produção. O terceiro manteve essa atribuição. Colocado de forma igual estava o artigo quinto, que especificava o trabalho do menor: “As informações do declarante, ou, caso de menores, dos seus pais ou tutores, deverão ser apoiados por documentos idôneos ou confirmadas por duas testemunhas as quais assinarão com o interessado”.12 12 BRASIL. Decreto n. 22.035, 29 out.1932. Altera o decreto n. 21.580, de 29 jun. 1932, que regulamentou o de n. 21.175, de 21 mar. 1932, pelo qual foi instituída a carteira profissional. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21580-29-junho-1932-526759-republicacao-81815-pe.html. Acesso em: 21 out. 2017. O artigo não informava a idade mínima necessária para solicitar a carteira e, provavelmente, aqueles com 12 anos, conforme previsto no Código de Menores, poderiam solicitar nos primeiros meses posteriores à publicação do decreto.13 13 Essa questão não é possível de ser verificada para o caso do Rio Grande do Sul, uma vez que a instalação do órgão do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, responsável por reunir os dados, somente foi instalado no ano de 1933. Essa questão somente ficaria esclarecida quando da promulgação daquele regramento específico ao trabalho dos menores, feito cinco dias após a publicação do último decreto que tratava acerca da carteira profissional. Um decreto complementava o outro e a partir da publicação daquele sobre o trabalho dos menores ficava mais evidente a idade mínima atribuída ao trabalhador.

Averiguar a idade do solicitante da carteira profissional, no estado Rio Grande do Sul, é facilitado pela burocracia definida para a coleta das informações dos trabalhadores. O sistema elaborado pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio para a confecção das carteiras era minucioso. O MTIC aproveitou a estrutura da Inspetoria Regional do Trabalho - renomeada posteriormente para Delegacia Regional do Trabalho - que era o órgão que o representava nos estados, incumbindo-a, além da fiscalização das suas leis, também a tarefa da emissão da carteira profissional.

A carteira profissional era mais um dos elementos da legislação social que regulou as relações de trabalho no Brasil entre o estado e os trabalhadores, no período pós 1930. Angela de Castro Gomes coloca que a origem dessa relação ocorreu com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio ainda em 1930, seguido pela lei de sindicalização de 1931. A autora destaca que foi durante a gestão do Ministro do MTIC Joaquim Pedro Salgado Filho (1932-1934)

que foram promulgadas quase todas as leis que passaram a regular as relações de trabalho no Brasil, quer em termos das condições de trabalho (horário, férias, trabalho feminino e de menores), quer em termos das compensações sociais devidas àqueles que participavam da produção (extensão dos benefícios de aposentadorias e pensões), quer em termos dos mecanismos institucionais para o enfrentamento dos conflitos de trabalho (Comissões e Juntas de Conciliação, Convenções Coletivas do Trabalho) (Gomes, 2005GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2005., p.164).

A carteira profissional tinha, portanto, um papel importante em todo esse processo. O primeiro decreto que criou a carteira explicitava em seu artigo vigésimo segundo a importância da carteira para dirimir possíveis conflitos entre os trabalhadores e seus empregadores: “Após doze meses de vigência do presente decreto, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio só tomará conhecimento das queixas e reclamações dos empregados que possuírem carteiras profissionais”.14 14 BRASIL. Decreto n. 21.175, 21 mar. 1932. Institui a carteira profissional. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21175-21-marco-1932-526745-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 21 out. 2017. O governo estabelecia, com a carteira: “um instrumento capaz de exercer um controle bem eficaz sobre a massa trabalhadora” (Gomes, 2005GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2005., p.167).

Esse controle começava no momento que o trabalhador solicitava sua carteira profissional.15 15 A proposta, no entanto, não visa discutir se essa política de controle dos trabalhadores pelo estado a partir da carteira profissional e das demais leis dirigidas à classe trabalhadora foi, de fato, eficaz e os controlou. O que importa na análise é verificar como essa tentativa de controle foi articulada e executada pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. A ficha de qualificação profissional, com seus muitos detalhes sobre a vida pessoal e profissional do trabalhador, era uma parte importante da implementação dessa política. Para agilizar o processo de coleta das informações, foi definida uma Ficha de Qualificação Profissional. Trata-se de um questionário composto por campos para o registro de informações pessoais, como nome, filiação, estado civil, dependentes, dados antropométricos, local (cidade e país) e data de nascimento, residência e sinais particulares. Também havia campos para os dados profissionais: profissão, nome e endereço do estabelecimento, salário e se o trabalhador estava vinculado a algum sindicato. Ainda poderiam ser informados detalhes de imigrantes, como data da chegada ao Brasil e, se fosse o caso, o ano da naturalização.

No verso da ficha era afixada a fotografia 3x4 e as digitais dos dedos das mãos do trabalhador. O decreto apresentava recomendações específicas sobre a fotografia: menção a data do registro, três exemplares da fotografia que deveria ser tirada reproduzindo “a imagem da cabeça tomada de frente, com as dimensões aproximadas de três centímetros por quatro”.16 16 BRASIL. Decreto nº 21.175, 21 mar. 1932. Institui a carteira profissional. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21175-21-marco-1932-526745-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 21 out. 2017. Uma das fotografias ficaria na ficha do trabalhador, na Delegacia, outra seguiria na segunda via da ficha para o MTIC, no Rio de Janeiro, e a última retornaria ao trabalhador, fixada em sua carteira.

Não somente o registro dos dados constituía parte do sistema burocrático, mas o armazenamento das fotografias no estado de solicitação e no órgão do governo, na Capital Federal, demonstra como o processo de controle do estado objetivava funcionar. Entretanto, o recurso ao registro visual, como controle do estado, não era uma novidade. Logo após a criação da fotografia, a sua utilização ganhou ares de controle estatal, sobretudo a partir dos anos 1870 quando ocorre o que John Tagg denominou de um encontro entre o estado e a nova tecnologia, ou seja, a fotografia (Tagg, 2002, p.63)TAGG, John. The Burden of Representation. Essays on Photographies and Histories. New York: Palgrave Macmillan, 2002.. Ela foi utilizada por Alphonse Bertillon, chefe do Serviço de Identidade Judiciária da Polícia de Paris, que desenvolveu a mensuração antropométrica do preso (Dubois, 1993DUBOIS, Philippe. O Ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993., p.241). André Rouillé aponta que apenas a fotografia não era suficiente para exercer uma função de controle, já que o fotografado passava por transformações físicas. Diante disso, Bertillon acrescentou outros mecanismos ao controle, como a antropometria signalética, ou seja, os retratos dos prisioneiros são acompanhados “de medidas de certas partes do corpo: a cabeça, o nariz, a testa, a orelha, os pés, a distância dos dedos médio, mínimo e cotovelo, etc” (Rouillé, 2009ROUILLÉ, André. A fotografia entre documento e arte contemporânea. Trad. Constancia Egrejas. São Paulo: Editora do SENAC, 2009., p.87).

Essa proposta, que aproveitava o modelo face/perfil, serviu de exemplo para a fotografia, no formato 3x4, direcionada aos documentos pessoais. Já o registro das informações antropométricas na ficha - cor dos cabelos e dos olhos, altura, cor, sinais particulares e no caso dos homens a presença de bigode e/ou barba - aliado aos três exemplares da fotografia - foi aproveitado à emissão da carteira profissional criada na Era Vargas. Esse mecanismo burocrático de controle permitiu que milhares de informações sobre uma parcela dos trabalhadores do Rio Grande do Sul fossem anotadas, permitindo que muitos trabalhadores e trabalhadoras comuns, anônimos nos mundos do trabalho, permanecessem com um fio de suas histórias conservado na documentação.

Entre eles, encontram-se muitos menores, incluindo uma parcela significativa de meninas. É a partir dos dados e das fotografias 3x4 desses meninos e meninas que se buscará dar a ver esses jovens trabalhadores. Se as fotografias de Lewis Hine explicitaram a exploração das crianças e dos adolescentes e ajudaram a pensar nas leis sobre o trabalho infantil nos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX, as fotografias das fichas do órgão do governo brasileiro, entre os anos 1930/1940, expõem que, autorizada a trabalhar pelos decretos, a mão de obra infantil ainda era significativa naquele momento.

Os jovens trabalhadores nos dados da DRT/RS

O decreto que regulamentou o trabalho dos menores nas indústrias obrigava a apresentação de determinados documentos, como visto no tópico anterior. Não foi possível encontrar informações sobre como esse controle era feito na prática, possivelmente através das fiscalizações realizadas pelos inspetores do MTIC, conforme era previsto no próprio decreto. Uma possibilidade, no entanto, está nas fichas dos trabalhadores menores. Nelas era anotada a seguinte informação: “Apresentou documentação de acordo com o decreto 22.042”, numa referência ao número do decreto dos menores. Até o momento foram localizadas setecentas e oitenta e duas fichas com essa anotação. Isso não significa que outros trabalhadores menores entre 14 e 18 anos não solicitassem a carteira. Vale lembrar, por exemplo, que aqueles vinculados ao comércio não estavam obrigados a apresentar os documentos, visto que o decreto tratava apenas daqueles com vínculo empregatício na indústria. Dessa forma, o número de menores nos mais diversos setores, com ficha de solicitação, é maior.17 17 Serão abordadas, neste tópico, somente as fichas dos menores com a informação sobre o Decreto 22.042. No tópico seguinte, a análise se concentrará em algumas das profissões declaradas e que não estavam de acordo com os quadros do Decreto. No entanto, há fichas de outros trabalhadores menores no comércio e no setor de construções sem a informação sobre o decreto.

Se for levada em consideração a presença de menores na economia do Rio Grande do Sul nos anos 1930/1940 como um todo, incluindo aqueles que não estão nos dados do acervo da DRT/RS, certamente o número é maior ainda. Conforme os dados do Censo de 1940, havia no estado 430.946 menores com idades entre 10 e 14 anos e, com idades entre 15 e 20 anos, 428.210 jovens de um total de 3.320.689 habitantes.18 18 FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul. Censos do RS: 1803-1950. Porto Alegre: FEE/Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, 1981. p.143. Um número expressivo, que representa quase um terço da população, muitos em idade já considerada economicamente ativa e disponível para o trabalho.

Entre os setecentos e oitenta e dois trabalhadores menores que solicitaram carteira profissional, foi verificado um universo variado de ocupações. Entre as quais, se destacam: servente (360 trabalhadores), auxiliar de comércio (230), magarefe (21), costureira (14) e sapateiro (14). Nota-se uma discrepância entre as duas profissões com maior número de menores e as três que se seguem. Uma possível explicação para o elevado número de serventes e auxiliares de comércio está no desempenho deste tipo de ocupação. Servente era uma atividade múltipla, que poderia ser desempenhada nas mais variadas indústrias e estabelecimentos enquanto o auxiliar de comércio, de forma semelhante, permitia a atuação nos diversos comércios existentes no estado.

Outro dado importante é a informação sobre os estabelecimentos dos serventes e dos auxiliares de comércio. Entre os serventes, sessenta e sete informaram que estavam desempregados e sessenta não informaram, enquanto entre os auxiliares de comércio, cento e dois declararam não ter emprego e outros dezoito não informaram. Dessa forma, ao solicitar a carteira, parte destes menores estava em busca de um trabalho que não necessitava de uma formação específica ou conhecimento prévio, como no caso dos magarefes, das costureiras e dos sapateiros. E, quando fossem admitidos, já estariam com a carteira

No que se refere ao sexo dos trabalhadores, quatrocentos e setenta e três eram do sexo masculino e trezentos e nove do sexo feminino. Destacam-se, entre as mulheres, as jovens costureiras que concentram quase a totalidade da profissão, já que apenas um jovem apontou costureiro como ocupação. A localização das quatorze costureiras menores pode ser vista como um pequeno indício do uso da mão de obra feminina e infantil na indústria têxtil do Rio Grande do Sul, da mesma forma como já ocorria em outras regiões do país (Hall; Pinheiro, 1981HALL, Michael; PINHEIRO, Paulo Sérgio. A classe operária no Brasil. 1889-1930. Vol. 2: Condições de vida e de trabalho, relações com os empresários e o estado. São Paulo: Brasiliense, 1981.). Contudo, a profissão com maior presença feminina é a de servente (136 fichas), assim como entre os jovens do sexo masculino (224 fichas).

Em relação à cor registrada nas fichas, predominava a branca com seiscentos e oitenta e sete trabalhadores, enquanto os de cor parda somavam cinquenta e cinco, aqueles de cor preta dezessete, seguidos por quinze mistos e oito morenos. O expressivo número de brancos estava de acordo com os totais das cores registradas nas fichas das carteiras solicitadas no período, que representa 87% dos trabalhadores. A pouca presença de trabalhadores de outras cores, em especial entre os menores, não indica que eles não estavam trabalhando, mas que a participação no mercado de trabalho com carteira profissional ainda era distante.

Entre os setecentos e oitenta e dois trabalhadores que solicitaram carteira profissional e apresentaram a documentação de acordo com o decreto 22.042, nem todos poderiam ter o documento no momento do pedido. Alguns deles desenvolviam atividades profissionais proibidas pela nova legislação, conforme constava nos quadros anexados ao decreto. O artigo quinto esclarece essa questão: “Os menores de 14 a 18 anos não serão admitidos ao trabalho, nas indústrias especificadas no quadro A, anexo, e só poderão ser admitidos ao trabalho nas indústrias especificadas no quadro B, também anexo, sob as condições ali determinadas”.19 19 BRASIL. Decreto n. 22.042, 03 nov.1932. Estabelece as condições do trabalho dos menores na indústria. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-22042-3-novembro-1932-499365-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 24 out. 2017.

O quadro A, com os trabalhos proibidos, listava indústrias com perigo de envenenamento (ácidos, arseniatos, cianureto de potássio, azul da Prússia, entre outros produtos químicos) com possibilidades de acidentes (trabalhos sob ar comprimido, fabricação de ácido sulfúrico e explosivos), por emanações nocivas (fabricação de ácidos, adubos, nitratos, esquartejamento e matança de animais, preparação de óleos e outros corpos gordurosos extraídos de resíduos animais), pela presença de poeiras e vapores nocivos (trabalhos com chumbo, cromolitografia, fabricação de corantes e derivados, demolição dos fornos nas fábricas de vidros e cristais, gravação e polimento dos cristais e dos vidros, operações de desfiar e rasgar trapos), pelo perigo de doenças especiais produzidas por emanações nocivas (fabricação de alvaiade de chumbo, cromato de potássio, fósforo, sulfato de mercúrio, entre outros) e pela necessidade de um trabalho atento e muito prudente (fabricação de celulóide, nitratos, trabalhos em fornos com alta temperatura, manutenção e vigilância de linhas, aparelhos e máquinas elétricas em certas condições perigosas).

Já o quadro B apresentava os estabelecimentos nos quais os menores poderiam trabalhar desde que não efetivassem determinados trabalhos. O arrolamento apontava, no segundo e no terceiro itens:

II - Por apresentarem perigos de acidentes: trabalhos no subsolo ou sob ar comprimido, nos locais em que se faz a corrida dos metais nos altos fornos, em certas operações das usinas de açúcar, nas oficinas de soldagem, nas olarias, na fabricação de fósforos.

III - Nos locais em que se desprendem vapores nocivos: das destilações e depósitos de álcool, fábricas de artefatos de borracha; fábricas de cerveja, nas tinturarias das fábricas de chapéus de feltro; fábricas de couros envernizados, de artefatos de cobre, de colódio; curtumes, preparações de crinas e plumas, oficinas de douração, prateação e niquelagem; drogarias; fabricação de tipos para imprensa, quando entrar mais de 10% de chumbo na liga; fábricas de esmaltes, galvanizações de ferro, frigoríficos, usinas de gás de iluminação, fábricas de papeis pintados, peleterias; fábricas de produtos químicos, de sabão, de sulfureto de carbono, de terebentina; manipulação e fabricação do tabaco, tinturarias, lavanderias; fábricas de vernizes, de vidros e cristais, fundições de zinco, matança e esquartejamento de animais.

No quadro B não constava quais as profissões eram proibidas aos menores, apenas os determinados trabalhos vetados. O mesmo ocorre com os tipos de indústrias do quadro A. Em outras palavras, a ausência da profissão proibida poderia levar o empregador a apenas contratar o menor com outro cargo, no qual ele acabaria realizando o trabalho previsto nos quadros. Essa parece ser a situação de alguns dos setecentos e oitenta e dois menores que solicitaram carteira profissional. Ao comparar a profissão declarada e os quadros do decreto, foram encontrados trabalhadores com idades entre os 13 e os 18 anos com vínculo empregatício em algumas das indústrias listadas. O próximo tópico vai analisar conjuntos fotográficos de jovens trabalhadores que estavam vinculados com determinadas ocupações que, pelo decreto, não poderiam ser desempenhadas por menores. A fotografia, dessa forma, se torna um importante indício para compreender as condições laborais nas quais eles estavam inseridos, contribuindo à compreensão sobre o trabalho infanto-juvenil nos anos 1930/1940.

As fotografias 3x4 dos menores

Uma das principais atividades econômicas do Rio Grande do Sul é aquela direcionada à produção de carne. Inicialmente, essa indústria estava vinculada às charqueadas no século XIX, sobretudo aquelas que se desenvolveram na cidade de Pelotas, e, a partir das primeiras décadas do século XX, à carne frigorificada (Michelon, 2012MICHELON, Francisca. Sociedade Anônima Frigorífico Anglo de Pelotas: o trabalho do passado nas fotografias do presente. Pelotas: Editora da UFPel, 2012.). A participação de menores nessa indústria foi percebida entre os frigoríficos que aparecem nos dados da DRT/RS.

Entre os setecentos e oitenta e dois menores que apresentaram documentação de acordo com o decreto, cinquenta e sete estavam vinculados a frigoríficos. Ambos os quadros fazem referência ao trabalho com animais e os dois apontam a mesma ocupação: esquartejamento e matança de animais. Ora, se essa função é proibida em um quadro e permitida no outro, qual a diferença? A diferença está no tipo de trabalho executado, ou seja, na profissão desempenhada, mas ela não está explicitada em nenhum dos quadros. Essa condição permite que, entre os cinquenta e sete menores, vinte e um declararam, como apontado no tópico anterior, magarefe como sua profissão, seguidos por trinta e quatro serventes, uma datilógrafa e um auxiliar de comércio. De acordo com o Dicionário Aurélio, magarefe é “aquele que mata e esfola reses nos matadouros; açougueiro, carniceiro, carneador” (Ferreira, 2004FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba: Positivo, 2004., p.1248). Em outras palavras, o magarefe realiza a matança e o esquartejamento de animais, trabalho proibido aos menores. A figura 1 apresenta as fotografias 3x4 de dez magarefes menores.

Fig. 1
Jovens magarefes.

Acervo: DRT/RS-NDH/UFPel


O primeiro trabalhador desenvolvia suas atividades no Frigoríficos Nacionais Sul-Brasileiros LTDA, localizado no município de Carazinho. Ele nasceu em 02/02/1922 e sua fotografia foi feita em 14/06/1939, conforme a placa que está na sua roupa, quando ele tinha 17 anos. Nota-se que a fotografia possui o formato 3x4, mas, provavelmente, ela não foi feita em estúdio. Uma primeira característica está na produção em série das fotografias dos trabalhadores desse frigorífico: ele foi fotografado no mesmo dia que outros quarenta e dois homens. Uma segunda característica está no fundo da fotografia. Ao que tudo indica, trata-se de uma parede e não um tecido, usualmente colocado nos estúdios para esse tipo de fotografia. Outro detalhe está na roupa do jovem: é possível identificar que ele usa um avental e que há uma mancha na parte inferior da fotografia, a qual não parece ser uma marca causada pela revelação ou pelo tempo; é possível que seja sangue. Dessa forma, é muito provável que esse trabalhador, ao lado dos demais, tenha parado a linha de produção para tirar a fotografia e, em seguida, continuou o trabalho.

Esta fotografia 3x4 é um importante meio para a análise proposta acima, nas considerações iniciais, sobre a fotografia enquanto um indício para compreender as condições do trabalho infanto-juvenil. Considerando a hipótese de que ele foi fotografado na própria empresa e que seu avental demonstra que sua atividade estava diretamente relacionada com a linha de produção da carne, seu registro fotográfico atesta a não observância do decreto. É possível considerar, portanto, que a sua fotografia, assim como aquelas dos demais menores, “guardam na sua superfície sensível, a marca indefectível do passado que as produziu e consumiu” (Mauad, 2008MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Editora da UFF, 2008., p.41). Os dados registrados na ficha desses trabalhadores indicam que eles são magarefes, mas as informações não permitem perceber como essa atividade era desenvolvida. As fotografias são os suportes que apontam à compreensão dessa atividade, a partir dos detalhes captados nas imagens - no caso do primeiro trabalhador, o avental e a possível marca de sangue.

Como o decreto que criou a carteira previa que os próprios empregadores poderiam providenciar as solicitações das carteiras, muitos agilizavam os registros fotográficos antes do pedido. A disponibilidade de encaminhar a carteira no interior do estado era mais difícil devido a não existência de postos de identificação; os primeiros foram instalados em Passo Fundo (1945) e em Pelotas (1948) (Loner, 2008LONER, Beatriz Ana. Um perfil do trabalhador gaúcho na década de 1930. Anais eletrônicos do IX Encontro Estadual de História da ANPUH-RS. Porto Alegre: ANPUH-RS/UFRGS, p.01-18, 2008., p.03). Dessa forma, os funcionários da Delegacia viajavam pelo interior para coletar os dados diretamente nos estabelecimentos. Antes da chegada deles, os trabalhadores já deveriam estar com as cópias das três fotografias 3x4 em mãos, o que justifica a produção de fotografias em série feitas, possivelmente, no próprio local de trabalho e promovida pelos empregadores.

Essa constatação se torna mais evidente nas fotografias 3x4 do segundo ao sétimo trabalhadores da figura 1: todos foram registrados no mesmo dia, com idêntico fundo e fora de um estúdio. Eles foram fotografados em 05/06/1940 e todos eram magarefes da Cooperativa de produção de banha Santa Isabel localizada no município de Erechim.20 20 A região onde estava localizada a Cooperativa se emancipou e atualmente constitui o município de Gaurama. O segundo trabalhador é o único que se apresenta com casaco e gravata e sua fotografia foi realizada quando ele ainda tinha 13 anos, visto que ele nasceu em 15/08/1926. Essa idade caracteriza uma irregularidade, uma vez que o decreto que regularizou o trabalho dos menores previa, em seu artigo décimo sétimo, um prazo de 12 meses, a contar da data da publicação do decreto - 1932 - para os estabelecimentos regularizarem a situação dos menores. Todos aqueles com 14 anos incompletos deveriam ser demitidos até 05 de novembro de 1933. Passado esse tempo, o empregador incorria em irregularidade. O pedido da carteira do menor foi feito quase sete anos após o fim do prazo, o que torna evidente que a contratação de menores de 14 anos ainda era prática recorrente em determinados setores da indústria.

O oitavo trabalhador também estava vinculado a um estabelecimento de Erechim, o Frigorífico Boavistense. Ele foi fotografado no dia 20/05/1940, com 15 anos, e sua fotografia é muito semelhante àquelas dos trabalhadores da Cooperativa de banha. O fundo é praticamente o mesmo, enquanto o modelo da placa é idêntico em todas elas. É provável que o fotógrafo realizasse os registros nas indústrias, improvisando um fundo com um pano neutro e tomando o cuidado de ajustar a placa com a data correspondente ao dia. A visita do fotógrafo à fábrica era uma prática recorrente. O fotógrafo Assis Horta, de Diamantina, por exemplo, realizou o registro dos trabalhadores da Fábrica de Tecidos na Vila de Biribiri. Como Cléber Silva aponta, tendo sido “indicado por seu cunhado para fotografar os quase 300 operários da fábrica de fiação” Horta, “montou ali um estúdio improvisado. Levou sua máquina Compur de fole, com lente original Voigtländer Braunschweg Heliar 1:45 fm, um tripé e um rebatedor” (Silva, 2017SILVA, Cléber. O olhar de Assis Horta: Tradição e dignidade em retratos de operários. Dissertação (Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2017., p.100). O autor ainda coloca que Horta fez o mesmo em várias outras fábricas da região a partir de 1943 e que ele, em relação ao fundo, “optava sempre por um que fosse escuro, podendo ser a parede formada por tábuas de madeira ou por um tecido escuro estendido atrás do fotografado” (Silva, 2017SILVA, Cléber. O olhar de Assis Horta: Tradição e dignidade em retratos de operários. Dissertação (Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2017., p.99). Semelhante alternativa foi utilizada pelos fotógrafos que registraram os trabalhadores no Rio Grande do Sul.

As duas últimas fotografias da figura 1 também apresentam as mesmas características das demais, embora os trabalhadores fossem de outra cidade. Eles atuavam na Cooperativa Castilhense de carnes e derivados LTDA, localizada no município de Júlio de Castilhos. Ambos os menores foram fotografados com roupas simples, apenas o penúltimo usa casaco, mas nenhum deles está com gravata e alguns botões da sua camisa estão desabotoados. A fotografia do último trabalhador deixa mais evidente o recurso do tecido no fundo, já que é vista uma ondulação provocada pela má fixação do pano na parede.

Ainda no que se refere aos trabalhadores menores vinculados aos frigoríficos, outro grupo foi fotografado em circunstâncias semelhantes àquele da figura 1. Trata-se de um conjunto de cinco menores vinculados à Fábrica de Produtos Suínos Zucchetti e Companhia LTDA localizada no Distrito de Araçá no município de Nova Prata (Fig. 2). As fichas desses trabalhadores não contêm, ao contrário de todas as outras analisadas no artigo, a anotação se os pedidos estavam de acordo com o decreto 22.042. Contudo, nelas estavam anexadas uma declaração da fábrica atestando o vínculo do menor com o estabelecimento e a profissão exercida e uma autorização do pai ou da mãe permitindo a solicitação da carteira.

Fig. 2
Jovens da Fábrica Zucchetti.

Acervo: DRT/RS-NDH/UFPel


As fotografias desses menores se enquadram nas características apontadas para aquelas da figura 1: todos foram registrados no mesmo dia, 04/11/1939, ao lado de outros trabalhadores e o fundo novamente é composto por um tecido. Um detalhe importante é a idade do primeiro trabalhador quando o registro foi feito. Ele nasceu em 27/08/1926 e, conforme a data da placa, ele tinha 13 anos naquele momento. Ele faria a idade mínima para ser contratado somente em 1940, o que acarretava, da mesma forma que o segundo trabalhador da figura 1, em uma irregularidade ao não ser observado o artigo décimo sétimo do decreto.

As fotografias da figura 2 permitem ainda outras observações. Um aspecto relevante está no enquadramento dos fotografados. Conforme já visto no tópico anterior, o decreto que criou a carteira estipulava que a reprodução deveria ser uma imagem da cabeça tomada de frente. As cinco fotografias da figura 2 não se encaixavam nessa determinação, uma vez que os trabalhadores foram fotografados da cintura para cima. Esse tipo de enquadramento fotográfico surgiu, sobretudo, a partir da Comuna de Paris para o registro dos prisioneiros:

O retrato ganha uma funcionalidade até então desconhecida: o modelo está sentado numa cadeira diante de um fundo claro. De frente ou de meio perfil, olha para a objetiva colocada acima da linha dos olhos. O enquadramento escolhido, que corta o corpo na metade, permite captar a gestualidade particular de cada modelo - mão na cintura ou na coxa, braços cruzados, polegar no colete, etc (Fabris, 2004FABRIS, Annateresa. Identidades virtuais. Uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004., p.42).

Já no Brasil, os fotógrafos Chichico Alkmim e Assis Horta, que atuavam no mesmo período de produção das fotografias da DRT/RS, também enquadravam parte de seus fotografados da cintura para cima. No caso do primeiro, ele “experimentou livremente o retrato” e o “seu enquadramento bastante fechado e certa secura remetem às fotografias 3x4” (Ferraz, 2017FERRAZ, Eucanaã. Diamantes, vidro, cristal. In: FERRAZ, Eucanaã (org.). Chichico Alkmim fotógrafo. São Paulo: IMS, 2017, p.07-23., p.21). No entanto, Eucanaã Ferraz explica que não se tratava apenas de fotografias funcionais; na maioria são registros de pessoas que procuraram o fotógrafo pelo “desejo coletivo pela imagem fotográfica” (Ferraz, 2017, p.21). O mesmo recurso seria utilizado por Horta, o que “explicaria certos enquadramentos que não se encaixam nos modelos mais tradicionais da época” (Silva, 2017SILVA, Cléber. O olhar de Assis Horta: Tradição e dignidade em retratos de operários. Dissertação (Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2017., p.97). As fotografias da figura 2 foram produzidas em condições semelhantes, é visível o enquadramento da cintura para cima, o que permite visualizar os seus braços estendidos rente ao corpo. Também alguns detalhes são visíveis, os quais não apareceriam no padrão habitual 3x4: o cinto usado pelos dois primeiros trabalhadores e a camiseta por baixo da camisa do segundo trabalhador. Outro detalhe que apareceu no registro deste trabalhador e na fotografia da última trabalhadora, foi parte do encosto da cadeira, o que também acontecia nas fotografias de Alkmim (Silva, 2017SILVA, Cléber. O olhar de Assis Horta: Tradição e dignidade em retratos de operários. Dissertação (Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2017., p.216) e Horta (Silva, 2017SILVA, Cléber. O olhar de Assis Horta: Tradição e dignidade em retratos de operários. Dissertação (Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens) - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2017., p.223).

Outro detalhe que se tornou mais evidente devido ao enquadramento da fotografia são as camisas brancas dos menores. Os três meninos estão vestindo um modelo parecido de camisa, e aquelas do segundo e do terceiro trabalhadores estão sujas. Nota-se que esse detalhe vai de encontro com o que se considerava esperado por aquele que procurava se registrar em uma fotografia, fosse de família, fosse uma 3x4 para documentos. Miriam Moreira Leite explica, ao abordar as fotografias de família, que, devido aos custos com o fotógrafo e a preocupação com o espetáculo do registro, que será visto por outros ramos da família, “ela enverga o que alguns chamariam de trajes domingueiros, e outros, a roupa de sair (de casa) ou de festa” (Leite, 1993LEITE, Miriam. Retratos de família. São Paulo: EDUSP, 1993., p.97). Os meninos estão posando para uma fotografia funcional, mas não seguem esse padrão, ou seja, não estão vestindo a sua melhor roupa. A semelhança das camisas e a condição de ambas permitem apontar que essas roupas eram usadas apenas para o trabalho.

Ao verificar os demais fotografados com os menores e que também trabalhavam na mesma fábrica, a maioria usa o mesmo modelo de camisa, com dois bolsos na frente. Tal constatação leva, também, à confirmação do registro feito fora do estúdio e em um momento de pausa da produção. A condição das camisas dos dois menores pode ser relacionada com a profissão declarada. Os cinco declararam auxiliar de expedição. Ao contrário daqueles da figura 1, que eram magarefes, estes não estavam associados diretamente a tarefas como, por exemplo, esquartejamento de animais, que era proibido de acordo com os quadros do decreto. O trabalho de expedição geralmente está atrelado a tarefas mais administrativas, como o controle da entrada e da saída de produtos. No entanto, a condição das camisas parece demonstrar que a atividade dos menores não era tão simples e apenas burocrática, mas que eles estavam envolvidos em tarefas que não estavam restritamente associadas à expedição.

Esse conjunto fotográfico, sobretudo os registros dos meninos, pode ser apontado, como visto em relação ao primeiro trabalhador da figura 1, como um meio para compreender o trabalho infanto-juvenil nos anos 1930/1940. A análise de suas trajetórias profissionais a partir apenas dos dados anotados em suas fichas aponta a presença de menores na Fábrica Zucchetti, mas eles não demonstram as condições laborais nas quais estavam envolvidos. Tais condições surgem a partir de suas fotografias, que os apresenta com roupas de trabalho que levam à hipótese de que, apesar da profissão declarada ser auxiliar de expedição, eles trabalhavam diretamente com a produção da carne. Se, como afirma Peter Burke (2004)BURKE, Peter. Testemunha ocular. História e imagem. Bauru-SP: EDUSC, 2004., a imagem é uma evidência histórica, as fotografias 3x4 dos jovens trabalhadores evidenciam as suas condições de trabalho em um estabelecimento que não poderia contratá-los no ano de registro de suas fotografias, 1939, se cumprisse o que estava definido no decreto de 1932.

Os curtumes era outro segmento industrial previsto, no Quadro B, como permitido com a condição da realização de apenas determinados trabalhos. Entre os menores, alguns estavam vinculados a esse tipo de estabelecimento. A figura 3 apresenta oito fotografias 3x4 dos menores em curtumes. Algumas das informações das fichas dos seis primeiros não foram preenchidas. Dentre elas, não consta o estabelecimento, mas o tipo de atividade foi registrado como curtume, localizado no município de Guaporé. Novamente, é possível ver na placa que todos foram fotografados no mesmo dia: 27/06/1940. No entanto, ao contrário das fotografias anteriores, nestas a placa parece improvisada e a data escrita à mão. O fundo, plenamente escuro e sem detalhes, não permite afirmar se era um tecido, parede ou outro material que o compunha, o que também não permite afirmar se o registro foi feito em estúdio. Ao contrário das outras fotografias dessa figura, apenas o quinto menino não usa casaco e sua camisa está com as mangas dobradas.

Fig 3
Jovens em curtumes.

Acervo: DRT/RS-NDH/UFPel


O penúltimo trabalhador estava vinculado a outro curtume do município de Getúlio Vargas e seu casaco claro destoa entre as roupas dos demais. Já o último trabalhador, vinculado a um curtume de São Jerônimo, foi registrado com casaco e gravata. A profissão declarada pelos sete primeiros foi a mesma: servente enquanto o último era aprendiz de tamanqueiro. É possível que a ocupação do último, que tinha 16 anos, fosse a única que estava de acordo com o que foi listado no quadro B do decreto. Como visto no tópico anterior, a profissão dos demais engloba múltiplas tarefas e eles poderiam, entre tantas atribuições, manusear os produtos utilizados no processamento do couro ou trabalhar auxiliando os curtumeiros.

Outros três grupos de estabelecimentos previstos no Quadro B como autorizados a admitir menores em certos trabalhos eram aqueles destinados à fabricação de fósforos, esmaltes e artefatos de borracha.21 21 Também foram localizadas no acervo fichas de menores trabalhando em fábricas de vidros (8 trabalhadores), de botões (5) e minas de carvão (5). Optou-se por trabalhar com as ocupações com maior número de menores e, no caso específico dos menores nas fábricas de vidros, a maioria das fotografias 3x4 está deteriorada. Em todos estes setores foram localizados trabalhadores com idade entre 13 e 18 anos. Em suas fichas constava a informação de que o pedido estava de acordo com o decreto 22.042.

Sobre as fábricas de fósforos foram localizadas oito fichas de trabalhadores. Sete deles estavam vinculados à Companhia Brasileira de Fósforos, instalada no município de São Leopoldo, e uma trabalhava na Fábrica Sul Rio-Grandense de Fósforos em Passo Fundo (Fig. 4). Novamente, nota-se que os quatro primeiros trabalhadores foram fotografados no mesmo dia e no mesmo ambiente, o qual, como denota o pano como fundo, não era um estúdio fotográfico. Já as trabalhadoras, quinta e sexta, fizeram seus registros em datas distintas, mas, pelo modelo da placa e pelo fundo, ambas foram fotografadas no mesmo local ou no mesmo estúdio. A última trabalhadora é a menor vinculada à fábrica de Passo Fundo. O diferencial da sua fotografia, em relação a todas as outras jovens, está no seu penteado com cabelos ondulados, característico dos anos 1930 (Marques, 2009MARQUES, Sílvia. A história do penteado. São Paulo: Matrix, 2009., p.57). Todos eles declararam como profissão servente, o que leva ao mesmo questionamento em relação aos menores dos curtumes: qual a atribuição do servente? A realização de múltiplas tarefas, provavelmente, expunha esses jovens aos perigos de acidentes dos quais o decreto tentava os proteger.

Fig 4
Jovens em fábricas de fósforos.

Acervo: DRT/RS-NDH/UFPel


Em relação aos esmaltes, o quadro não especifica o tipo de empresa, mas eles estão no grupo daqueles que desprendem poeiras. Dessa forma, é possível que se tratasse das fábricas de produtos esmaltados. E é justamente em uma delas que foram localizados seis menores (Fig. 5). A Companhia Esmaltados Rio-Grandenses S. A. de Novo Hamburgo. Além das características já apontadas para os demais conjuntos, como a mesma data e o fundo igual, o que também aponta para o registro fora do estúdio, os fotografados apresentam detalhes específicos em seus acessórios. As duas primeiras trabalhadoras usam brincos e seus cabelos estão organizados com penteados elaborados. A terceira trabalhadora está com um laço no cabelo. Já os três trabalhadores estão usando casaco, mas apenas o primeiro usa um modelo de camisa social. A camisa do segundo, com botões apenas na parte superior, está aberta. A camisa do terceiro é um modelo com cordão.

Fig 5
Jovens em fábrica de esmaltes.

Acervo: DRT/RS-NDH/UFPel


Já os artefatos de borracha eram fabricados pela Fábrica de Borracha Hoelzel e Companhia LTDA, atual Mercur, de Santa Cruz do Sul, que contava com vinte e seis trabalhadores menores. A figura 6 apresenta dez deles. Os trabalhadores, primeiro ao quinto, foram fotografados no mesmo dia e provavelmente no interior da Fábrica, conforme o fundo dos registros. Ao contrário das fotografias apresentadas até o momento, o diferencial deste conjunto está na ausência de um tecido formando o fundo, revelando parte das instalações do local de trabalho. Há, também, um enquadramento da fotografia que não deixou os dois primeiros trabalhadores centralizados em seus registros, enquanto a terceira fotografia deixou a trabalhadora em um primeiro plano mais evidente do que os demais. O registro da quinta trabalhadora é o único que possui um fundo mais uniforme, embora ela tenha sido fotografada no mesmo local dos demais. A parte direita da fotografia é igual à fotografia dos outros, mas o lado esquerdo, que revelou mais nitidamente a fábrica nas outras, está todo preto.

Fig 6
Jovens em fábrica de artefatos de borracha.

Acervo: DRT/RS-NDH/UFPel


Nota-se que todas essas fotografias foram realizadas exatamente no mesmo local, ou seja, os fotografados se revezaram, sentando na frente do fotógrafo, que permanecia no mesmo lugar, esperando pelo próximo trabalhador enquanto preparava sua câmera para o novo registro. Talvez uma iluminação não percebida tenha possibilitado captar algo a mais além do fotografado e que acabou aparecendo no processo da revelação ou, outra possibilidade, que tal iluminação tenha sido notada e corrigida, como exemplifica o registro dessa trabalhadora.

Já as trabalhadoras sexta a décima foram fotografadas em dias diferentes. A sexta trabalhadora deixa escapar um leve sorriso, o que contrasta seu semblante com todos os demais que estão sérios. Essa trabalhadora nasceu em 23/07/1925 e quando do registro em 1938 ela tinha 13 anos. Assim como visto para outros trabalhadores, ela foi contratada não respeitando o que estava previsto no decreto 22.042. A sétima trabalhadora tem um detalhe: o fotógrafo esqueceu de afixar a placa com a data, o que era obrigatório, sendo feita a mão após a revelação. Percebe-se que a oitava e a nona trabalhadoras foram fotografadas no mesmo estúdio da sétima, mas elas apresentam suas etiquetas. Já a décima trabalhadora foi fotografada no mesmo estúdio da sexta trabalhadora, como indica o modelo da placa que ambas estão usando.

Considerações finais

As fichas de qualificação profissional serviram para o propósito para o qual foram concebidas: registrar os dados do trabalhador que seriam utilizados à confecção da carteira profissional. Para elas, após a efetivação do pedido, restavam ser guardadas e permanecerem esquecidas em uma caixa de arquivo. A conservação de um conjunto expressivo de mais de 600.000 fichas - que não corresponde ao total dos pedidos de carteiras e muito menos ao todo da classe trabalhadora do estado do Rio Grande do Sul - possibilita averiguar um determinado perfil dos seus solicitantes. Entre as mais variadas pesquisas possíveis, aquela sobre a participação dos jovens trabalhadores averiguou detalhes importantes para além de uma simples presença nos mundos do trabalho. Ao cruzar os artigos do decreto que criou a carteira e aquele que regulamentou o trabalho dos menores na indústria, ficou evidente que eles se complementavam, uma vez que os menores entre 14 e 18 anos poderiam trabalhar e ter carteira profissional.

Outro aspecto verificado foi que, mesmo com a regulamentação, ainda havia contratação de menores com 13 anos. Esse é um ponto relevante. A pesquisa encontrou poucos trabalhadores nestas condições com a informação em suas fichas de que a solicitação estava de acordo com o decreto 22.042, mas não estava, visto que o solicitante tinha 13 anos e mesmo que fosse completar a idade mínima no ano da solicitação, o vínculo com a empresa já existia, o que caracterizava uma irregularidade. É possível que o número de crianças e adolescentes trabalhando nas fábricas do Rio Grande do Sul com idade inferior àquela prevista como mínima fosse muito superior à pequena parcela encontrada no acervo.

Já as fotografias 3x4 registraram um momento da vida desses jovens, o instante que iniciavam a trabalhar, como possuidores de carteira profissional. É possível que para muitos desses jovens essa tenha sido a primeira experiência diante de uma câmera. Naquele período, por mais que a fotografia fosse comum entre os mais abastados, para os mais pobres ela ainda era uma novidade. O ato inédito de se deixar registrar possivelmente foi o que os levou a encarar o fotógrafo, embora os olhares de alguns pareçam desconfiados. O trabalhador da fotografia 1, da figura 2, e os seis primeiros trabalhadores da figura 3, exemplificam essa situação.

As fotografias, como coloca Ana Maria Mauad, “não são janelas que se abrem para o passado, são monumentos, vestígios de uma vontade de ver perenizada, na superfície sensível do papel, uma determinada imagem de si próprio e dos seus” (Mauad, 2013MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o Império. In: PRIORE, Mary Del (org). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013. p.137-176., p.141). A fotografia 3x4, apesar de ser produzida para documentos oficiais, acabava também exercendo papel semelhante ao apontado pela autora. Ela representa uma imagem de si, de como o fotografado quer se mostrar em sua carteira profissional. No entanto, essa escolha nem sempre foi possível. Como visto nos conjuntos das fotografias 3x4 que formam as figuras do artigo, muitos eram fotografados fora de um estúdio, com uma iluminação e um enquadramento não apropriados e o fundo composto por um tecido. Todas as fotografias 3x4 não são, de fato, janelas que se abrem para o passado, são possibilidades para interpretar aspectos do passado.

Os registros fotográficos são avaliados como um meio para o conhecimento sobre o trabalho infanto-juvenil nas décadas de 1930/1940, já que é somente a partir deles que é possível analisar as condições laborais dos fotografados. A primeira fotografia da figura 1, que registrou um magarefe com seu avental e uma possível mancha de sangue, as fotografias dos meninos trabalhadores do frigorífico Zucchetti, na figura 2, captados com suas roupas marcadas pelo trabalho, e aqueles da figura 6, fotografados no interior da fábrica, são os meios que permitem compreender parte do trabalho infanto-juvenil. Nesse sentido, todas as fotografias analisadas permitem compreender um breve momento da vida dos jovens trabalhadores, meninos e meninas comuns e anônimos, em busca de suas carteiras profissionais.

  • 1
  • 2
    O artigo utilizará o termo menor em determinados momentos acompanhando a documentação. Ressalta-se que há uma bibliografia relativa aos estudos das crianças e adolescentes que opta pelo não uso do termo porque ele está associado ao abandono, criminalidade e exclusão social. Ver: MOURA, 1999MOURA, Esmeralda. Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha. Rev. bras. Hist., vol.19, n.37, p.85-102, 1999..
  • 3
    Trata-se de um estudo realizado por Antônio Francisco Bandeira Junior de 145 fábricas de São Paulo. Apesar da referência aos menores, o autor não critica essa situação, ao contrário, enfatiza que eles, dessa forma, adquirem “hábitos de trabalho, aprendendo um oficio que lhes garante o futuro, ao passo que não aumentam a falange dos menores vagabundos que infestam essa cidade” (HALL; PINHEIRO, 1981HALL, Michael; PINHEIRO, Paulo Sérgio. A classe operária no Brasil. 1889-1930. Vol. 2: Condições de vida e de trabalho, relações com os empresários e o estado. São Paulo: Brasiliense, 1981., p.31).
  • 4
    O Acervo da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul é formado por aproximadamente 627.000 fichas de qualificação profissional, distribuídas em 1.100 caixas de arquivo permanente abrangendo de 1933, o primeiro ano da Delegacia, até 1968. Desde 2007, as pesquisas no acervo foram facilitadas com a criação de um banco de dados que repete os campos da ficha e permite cruzar as informações já inseridas. Atualmente, o banco comporta dados de 46.345 fichas, entre 1943 e 1944, sendo que este ano ainda está em digitação.
  • 5
    Atualmente, o trabalho de pesquisa com as fichas de qualificação profissional está possibilitando a criação de um banco de imagens com as fotografias 3x4 dos trabalhadores, as quais não estão reproduzidas no banco que armazenam os dados textuais dos documentos. No momento, aproximadamente 5.300 fotografias 3x4 já estão reproduzidas.
  • 6
    A coleção é composta por mais de 5.100 impressões fotográficas e 355 negativos de vidro salvaguarda na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Disponível em: http://www.loc.gov/pictures/collection/nclc/. Acesso em: 07 mai. 2018.
  • 7
    “Carregando um simples câmera, como a que ele usou em Ellis Island, Lewis Hine viajou de um lado para o outro do país, das fábricas de sardinha em conserva do Maine aos campos de algodão do Texas. Ele tirou fotos de crianças no trabalho, ouviu suas histórias e relatou as suas vidas”. Tradução do autor.
  • 8
    Disponível em: https://global.britannica.com/biography/Lewis-W-Hine Acesso em: 07 mai. 2018.
  • 9
    BRASIL. Decreto n. 22.042, 03 nov.1932. Estabelece as condições do trabalho dos menores na indústria. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-22042-3-novembro-1932-499365-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 24 out. 2017.
  • 10
    Os quadros serão explicados no próximo tópico.
  • 11
    BRASIL. Decreto n. 21.175, 21 mar. 1932. Institui a carteira profissional. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21175-21-marco-1932-526745-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 21 out. 2017.
  • 12
    BRASIL. Decreto n. 22.035, 29 out.1932. Altera o decreto n. 21.580, de 29 jun. 1932, que regulamentou o de n. 21.175, de 21 mar. 1932, pelo qual foi instituída a carteira profissional. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21580-29-junho-1932-526759-republicacao-81815-pe.html. Acesso em: 21 out. 2017.
  • 13
    Essa questão não é possível de ser verificada para o caso do Rio Grande do Sul, uma vez que a instalação do órgão do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, responsável por reunir os dados, somente foi instalado no ano de 1933.
  • 14
    BRASIL. Decreto n. 21.175, 21 mar. 1932. Institui a carteira profissional. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21175-21-marco-1932-526745-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 21 out. 2017.
  • 15
    A proposta, no entanto, não visa discutir se essa política de controle dos trabalhadores pelo estado a partir da carteira profissional e das demais leis dirigidas à classe trabalhadora foi, de fato, eficaz e os controlou. O que importa na análise é verificar como essa tentativa de controle foi articulada e executada pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. A ficha de qualificação profissional, com seus muitos detalhes sobre a vida pessoal e profissional do trabalhador, era uma parte importante da implementação dessa política.
  • 16
    BRASIL. Decreto nº 21.175, 21 mar. 1932. Institui a carteira profissional. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21175-21-marco-1932-526745-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 21 out. 2017.
  • 17
    Serão abordadas, neste tópico, somente as fichas dos menores com a informação sobre o Decreto 22.042. No tópico seguinte, a análise se concentrará em algumas das profissões declaradas e que não estavam de acordo com os quadros do Decreto. No entanto, há fichas de outros trabalhadores menores no comércio e no setor de construções sem a informação sobre o decreto.
  • 18
    FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul. Censos do RS: 1803-1950. Porto Alegre: FEE/Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, 1981. p.143.
  • 19
    BRASIL. Decreto n. 22.042, 03 nov.1932. Estabelece as condições do trabalho dos menores na indústria. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-22042-3-novembro-1932-499365-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 24 out. 2017.
  • 20
    A região onde estava localizada a Cooperativa se emancipou e atualmente constitui o município de Gaurama.
  • 21
    Também foram localizadas no acervo fichas de menores trabalhando em fábricas de vidros (8 trabalhadores), de botões (5) e minas de carvão (5). Optou-se por trabalhar com as ocupações com maior número de menores e, no caso específico dos menores nas fábricas de vidros, a maioria das fotografias 3x4 está deteriorada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2018
  • Revisado
    25 Nov 2018
  • Aceito
    05 Dez 2018
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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