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SHARPE, Christina. 2023. No Vestígio: negridade e existência. São Paulo: Editora Ubu. 256 pp.

SHARPE, Christina. . 2023. No Vestígio: negridade e existência . São Paulo: Editora Ubu. 256pp.

Como encontrar palavras para dar sentido à existência negra em uma paisagem de mundo marcada pela antinegridade? Como recusar a violência antinegro enquanto um clima total? Se o passado não passou, se escravidão assombra o presente, como descrever a vida após a morte da propriedade, a sobrevida da escravidão, o “estado de emergência contínuo em que vida negra permanece em perigo” (Hartman 2021HARTMAN, Saidya. 2021. “Venus em dois atos”. In: C. Barzaghi; S. Paterniani & A. Arias,Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo: n-1 edições. pp. 105-129.)? No Vestígio: negridade e existência, de Christina Sharpe, é um livro obrigatório para quem insiste em abrir um pequeno caminho - etnográfico, por que não? - em direção às relações de sentido que nos fazem conhecer o arquivo racial além do terror, ainda que através dele.

É impossível ler este livro e não conectar os assassinatos de Mike Brown e Trayvon Martin, nos Estados Unidos, às perdas familiares sofridas pela própria autora e por ela relatadas já no primeiro capítulo. Essas mortes, tão específicas quanto cumulativas, contam sobre o que é viver no/com o terror não somente para uma única família negra norte-americana, e sim para todas as pessoas negras no vestígio. Afinal, o relato pessoal é uma janela para processos sociais e históricos mais amplos, é uma forma de produzir envolvimento conectando o estrutural com o mais particular e é, ainda, uma promessa de conhecimento do cotidiano através de métodos de pesquisa e formas de escrita que não violam a capacidade negra de ler, pensar e imaginar de outro modo aquilo que já foi contado.

Sharpe parte da polissemia do termo em inglês “wake”, traduzido ora como vestígio, vigília, vigia, velório e/ou vereda, para dar sentido ao árduo trabalho emocional, físico e intelectual de persistir à beira da morte. Assim, “wake” remete à vigilância inscrita em ato de falas como “não saia sem a sua identidade” ou “tira esse capuz, menino”; às ondas que um navio deixa em seu rastro ao avançar mar adentro, levando no porão corpos que, se chegam à costa, o fazem não tendo para onde retornar; à companhia que pessoas negras fazem umas às outras quando alguém dos braços delas é retirado pela morte, mas não sem ter a sua vida reconhecida como vida digna de luto em contextos precisos; à escrita do tempo como estratégia de disgrafia do léxico que sustenta a inteligibilidade do vestígio.

Sharpe fala sobre o que o cativeiro (não) contém. Sua escrita existe na tensão entre o otimismo e o pessimismo negro. De frente para a foto de uma menina haitiana com uma fita colada em sua testa onde se lê navio, a autora recusa se submeter à obliteração da vida que enxerga. É preciso olhar com cuidado, entender o olhar como esse gesto. A palavra navio não é tudo que há para ser visto. O que o rosto dessa menina conta? Para quem e onde ela olha? Sabe que há uma fita colada nela? Onde estavam os seus familiares? A quem podia recorrer antes e durante o terremoto que destruiu parte do seu país e a inscreveu na rota das embarcações de ajuda humanitária? O navio é o seu destino? “Como alguém marca uma pessoa para um espaço - o navio - quando ela já está marcada por ele?” (:94).

Cada uma dessas perguntas surge, diante de um olhar cuja demanda ética invade a autora, sinalizando que há mais para saber sobre os mortos, os mortos em vida e quase mortos dos quais o mar insiste em lembrar. No intervalo entre essas perguntas e suas respostas, qualquer coisa pode acontecer. É essa abertura, essa possibilidade, insegura e incerta, que Sharpe não deixa se fechar. Adentrar nesse mundo possível e habitá-lo é trabalhar para manter o corpo negro respirando mesmo quando isso já não parece tão possível. Se há fôlego, o que significa ficar a salvo? Por um lado, aspirar fluidos do pulmão, movimento dolorido de extração e, por outro lado, aspirar um sonho, sonhar o Haiti. O intervalo é uma abertura no cotidiano passível de ser preenchida com um estilo de improvisação negro.

Em No vestígio, uma lógica racial de cuidado emerge através da própria atividade de pesquisa porque a autora traz os mortos para o centro da cena sempre atenta à forma como os textualiza e nos faz lembrar deles. E isto vale também para os vivos e as imagens com as quais trabalha, pois fica evidente a intenção de expor o enquadramento fotográfico, escandalizando as suas regras de constituição, explorando o que está mais afastado do centro da cena, propondo cortes que criam imagens a partir de fotografias prévias, construindo relações entre imagens de obras de arte que criam ângulos de observação e envolvimento imprevistos. Desafiar “os modos presumidos de visualização” é uma forma de existir no vestígio em estado de vigília e vigia com todos os que foram (re)enquadrados.

O livro, dividido em quatro capítulos - o vestígio, o navio, o porão e o tempo -, é uma costura detalhada de acontecimentos em diferentes lugares e tempos: da plantation a uma escola em Geórgia na segunda década dos anos 2000, quando Mikia Hutchings, de 12 anos, foi radicalmente punida por ter ousado escrever “oi” em uma parede; da Passagem do Meio (refere-se à travessia e ao comércio de pessoas escravizadas pelo oceano Atlântico) a um filme em que Aeirelle Jackson é apresentada como uma ex-mãe, uma mulher negra cujos filhos foram retirados pelo Estado; de barcos imigrantes à deriva a treinamentos racistas de médicos em uma universidade norte-americana. A costura não é uma relação de causalidade inadvertida e linear, porque é ela mesma o evento racial projetado sempre um pouco mais adiante e em múltiplas direções como vestígio.

A existência negra no vestígio é anagramatical. Uma mãe que pode ser dita como uma ex-mãe é alguém a quem o significado do próprio termo mãe foi interposto: estava num corpo onde não deveria estar e, por isso, foi dali retirado. Uma mãe você não é. “O canal de parto de mulheres Negras ou de mulheres que dão à luz a negridade, então, é outro tipo de Passagem do Meio” (:135). O útero é o porão do Navio e é também o canal por onde meninos negros nascem já sendo lidos como adultos, afinal parecem mais velhos do que são. Ter a infância sequestrada pelo olhar dos outros é ver o significado da palavra criança escapar e outro, cujo fundo histórico conhecemos, ser posto no lugar: criminoso. O que é uma criança negra? - pergunta Sharpe quase como se colocasse diante de um processo duplo que não consegue fazer cessar de uma vez por todas, mas ainda assim insiste em recusar: o deslizamento de sentido (criança) dando lugar ao excesso de sentido (criminoso).

Aeirelle Jackson e seus filhos me fazem lembrar de Venus e sua amiga, meninas negras que Saidiya Hartman, teórica e professora da universidade de Colúmbia, inscreve na história não simplesmente como escravizadas, mas como duas jovens que poderiam ter encontrado colo uma na outra antes de serem assassinadas em um tumbeiro (Hartman 2020). Lembro de Hartman porque o projeto político-intelectual de Sharpe ressoa com o dela. Juntas, e com Fred Moten (2021MOTEN, Fred. 2021. “Ser preto e ser nada (misticismo na carne)”. In: C. Barzaghi; S. Paterniani & A. Arias,Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo: n-1 edições. pp. 131-192.), teórico e professor da Universidade de Nova Iorque - para ficar com nomes de autores cujas obras estão sendo traduzidas ao português no Brasil -, inventam e inventariam, cada um à sua maneira, formas de fazer frente à redução das vidas negras à cena sujeição, como se o negro fosse o filho da violência e a afirmação “eu nasci” fosse desde o princípio constituída pela morte num mundo cujo clima total é antinegro e a própria ideia de humanidade depende da perpetuação dessa morte tanto no plano concreto quanto em um nível ontológico. É factível ler No Vestígio como um livro marcado pelo acontecimento do afropessimismo (Wilderson 2021WILDERSON, Frank B. 2021. Afropessimismo. São Paulo: Todavia.)1 1 Dito de modo sucinto, refere-se ao estatuto ontológico de negros como nada, carne e/ou ferramenta da qual se extrai em um processo repetitivo, psíquico e violento a humanidade de pessoas brancas. na cena intelectual norte-americana, mas também como uma modalidade de recusa dessa ontologia em função de todo o trabalho investido para ir além da dor.

Este é um livro que pode energizar criativamente a sociologia e a antropologia das relações raciais no país, não porque as questões que propõe ainda não tenham sido trabalhadas, afinal, na prática, já resultaram em proposições como a de Osmundo Pinho, Beatriz Nascimento, Guilherme Marcondes, Maria-Elvira Díaz-Benítez, dentre outros, e sim porque o método que emprega não é convencional e os resultados obtidos através dele também não o são. O que Sharpe chama de anotação negra tem algo a nos ensinar sobre como pensar analiticamente as transformações - e permanências - dos esquemas raciais e, talvez, mais ainda sobre como utopias negras vivem no mundo e como podemos mobilizá-las em nossos trabalhos. No Vestígio é uma ferramenta que me lembra obras de jovens artistas negros brasileiros, e não tenho dúvida de que eles saberão o que fazer com essas palavras. Tenho a esperança de que os antropólogos saibam também como fazer dessas palavras projetos etnográficos.

Referências

  • HARTMAN, Saidya. 2021. “Venus em dois atos”. In: C. Barzaghi; S. Paterniani & A. Arias,Pensamento negro radical: antologia de ensaios São Paulo: Crocodilo: n-1 edições. pp. 105-129.
  • MOTEN, Fred. 2021. “Ser preto e ser nada (misticismo na carne)”. In: C. Barzaghi; S. Paterniani & A. Arias,Pensamento negro radical: antologia de ensaios São Paulo: Crocodilo: n-1 edições. pp. 131-192.
  • WILDERSON, Frank B. 2021. Afropessimismo São Paulo: Todavia.

Nota

  • 1
    Dito de modo sucinto, refere-se ao estatuto ontológico de negros como nada, carne e/ou ferramenta da qual se extrai em um processo repetitivo, psíquico e violento a humanidade de pessoas brancas.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2024
  • Aceito
    24 Jun 2024
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