Desde os anos 1980, vimos evoluir, no Brasil e em outros países, conceitos e métodos para abordar a problemática denominada Saúde do Trabalhador (ST) com base no estudo das características do modo de produção na sociedade e dos processos de trabalho particulares1. Assumiu-se que ter saúde, adoecer, recuperar-se parcial ou totalmente, desfrutar da longevidade ou morrer precocemente são expressões da vida em constante relação tanto com a atividade desenvolvida pelo adulto que trabalha quanto com as garantias que o seu emprego lhe assegura. Continua atual essa perspectiva que fundamenta as conexões entre a macroestrutura e a situação de saúde no plano coletivo e individual2. Neste Editorial, argumentamos, primeiro, sobre as evidências em ST relacionadas às transformações em curso nas décadas do novo milênio. Segundo, consideramos a necessidade de outras formulações e aperfeiçoamento metodológico.
A escala e a velocidade das transformações econômicas e políticas produziram efeitos sobre a saúde, os quais atingiram grupos inseridos ou não na força de trabalho. Com interesse nos primeiros, viu-se, entre inúmeros resultados de saúde, que o trabalho em turnos aumentou o risco de demência3. Já o trabalho precário aumentou o risco de acidente vascular cerebral (AVC) e possivelmente de enfarte do miocárdio4. O risco de AVC foi maior no grupo dos empregados em regime de jornadas prolongadas, se comparados aos que trabalham em jornadas de duração regulamentar5. Em vários países, a carga elevada de doenças cardiovasculares e depressão foi atribuída à exposição aos fatores psicossociais no trabalho6.
Inúmeras situações laborais não incluem um local específico para desenvolver as atividades, como os serviços guiados pelas plataformas digitais, de que são exemplos o transporte de passageiros e a entrega de produtos7. No Brasil8 e em outros países do Sul global9, aumenta a parcela da força de trabalho em circunstâncias de emprego instável, além de outra parcela que não encontra lugar no processo produtivo. Não é suficiente, portanto, estudar os grupos dos empregados formalmente contratados10. Quanto aos processos de trabalho, tanto na indústria quanto no agronegócio, produção arcaica e processos com alta densidade tecnológica coexistem num mesmo território. Essa situação é uma das consequências da economia globalizada sob o ideário neoliberal, cujo modelo simultaneamente conserva, intensifica e supera tanto as relações de emprego quanto os riscos laborais, conforme foram descritos no século XX9. Abordar essa realidade complexa vai exigir sensibilidade e refinamento conceitual, justificando incluir os desafios epistêmicos na agenda de pesquisa.
Iniciativas recentes que se concentraram em estudar as mudanças climáticas indicam a intensificação dos prejuízos decorrentes do desgaste físico dos(as) trabalhadores(as) da mineração, siderurgia e metalurgia, tratamento de efluentes industriais, entre outros setores11. No que se refere à segurança química, métodos para delinear os riscos da nanotecnologia têm produzido novos conhecimentos, por exemplo, os trabalhadores correm risco adicional de exposição a nanopartículas em comparação com a população geral, porque a produção desses materiais, incidental ou não, é mais elevada em locais de trabalho do que em outros ambientes. Investigações qualitativas foram sugeridas como método de avaliação, em razão de resultados já obtidos que identificaram diferentes faixas de risco, de acordo com as tarefas executadas na indústria12, sendo inovador esse delineamento em relação aos modelos anteriores de avaliação ambiental.
O Estudo de Carga de Doença Global (GBD, sigla para o título em inglês Global Burden Disease) investiga os carcinógenos ocupacionais reconhecidos, como arsênico, ácidos, benzeno, berílio, cádmio, cromo, diesel, formaldeído, níquel, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, tabagismo passivo, sílica e tricloroetileno. No Brasil, esses agentes se sobressaíram no ranqueamento dos anos vividos com incapacidade somados àqueles não vividos em razão das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) (13. As lacunas de conhecimento identificadas nesse âmbito suscitaram interesse nos campos da Biologia, da Epidemiologia e da Etnografia, de modo a perfilar objetos compartilhados.
As pesquisas em economia e sociologia do trabalho identificaram, entre outras características, as desigualdades de gênero na composição do mercado de trabalho e na distribuição da força de trabalho segundo o sexo nos setores produtivos14. As mulheres estão sobrerrepresentadas em setores caracterizados por postura sentada prolongada combinada com exigência de esforços visuais contínuos, seja em equipamentos digitais, seja em situações de controle de qualidade na indústria. O conhecimento sobre os efeitos dessas situações sobre a saúde foi veiculado, nos Brasil dos anos 1990, numa conjuntura de intenso debate social que culminou na aprovação de regulamentação específica, notadamente, a Norma Regulamentadora no 17, na qual predomina a abordagem neutra de gênero.
Na era industrial, vimos elaboração de normas e instrumentos regulatórios e prevalecimento do modelo centrado na medicina do trabalho e no arsenal do mapa de riscos. No contraponto, avanços dos modelos assistenciais no Sistema Único de Saúde estabeleceram linhas de cuidado e programas de vigilância de caráter público e universal com base nos princípios do direito ao acesso e respeito à dignidade humana15.
Debates na seara jurídico-trabalhista são esclarecedores quanto ao nível de satisfação desses direitos, mas ainda não foi possível atrair esse conhecimento no esboço das técnicas de controle em situações laborais. Dessa constatação decorre o estímulo a enquadramentos epistemológicos originais.
A ST no Brasil emergiu do entrelaçamento da luta sindical, da prática acadêmica e do contexto institucional. Esse processo integrou debates, valores e interesses dos atores sociais. Por meio de colaborações multilaterais, obteve-se êxito nas negociações em diferentes ocasiões, como o reconhecimento das Lesões por Esforços Repetitivos, nos anos 1980, e o banimento do amianto pelo Supremo Tribunal Federal, em 2017, para ser breve. Mas há casos que ainda não venceram as barreiras institucionais, por exemplo, efeitos vocais relacionados ao excesso de uso da voz. De fato, até aqui, doenças profissionais, acidentes típicos fatais e não fatais de trabalho foram tomados como principais indicadores no rol das ações institucionais. A nosso ver, contudo, é premente construir argumentos válidos para embasar a construção de outros indicadores, sobretudo métodos para a sua operacionalização. Em primeiro lugar, houve diminuição das taxas de acidentes típicos7. Em segundo lugar, os(as) trabalhadores(as) fazem parte da população na qual se registra prevalência crescente de morbidades dificilmente enquadradas no modelo unicausal que orientou a concepção dos indicadores clássicos. Por exemplo, a prevalência de adoecimento mental é desproporcionalmente alta em pessoas de baixa renda, com destaque para os jovens, porque muitas doenças mentais surgem durante essa fase sensível do ciclo da vida. Evidências indicam efeitos psicológicos negativos insuportáveis quando jornadas prolongadas são combinadas ao ritmo acelerado e às exigências de atenção para controle de qualidade ou supervisão dos processos, como é o caso do trabalho em caixas de hipermercados ou na linha de montagem de autopeças, nos quais os jovens estão sobrerrepresentados. No conjunto, são situações atreladas aos comportamentos negativos de saúde - hábito etilista, tabagismo, alimentação hipercalórica, sedentarismo no tempo de lazer - identificados como principais fatores de risco das prevalentes e incapacitantes DCNT16. Quanto a elas, estudos no Brasil são abundantes, sem que os fatores ocupacionais sejam sistematicamente considerados13.
Desenvolver modelos para fundamentar a formulação de programas de proteção do trabalho e prevenção no âmbito da saúde pública é um desafio posto na agenda de pesquisa em ST17. Os resultados mencionados anteriormente são argumentos para refletir sobre as estratégias de compartilhamento, disseminação e aplicação dos conhecimentos científicos, que são, por sua vez, fundamentais na definição de balizas para as proposições metodológicas. Essa etapa facilitaria revisitar e redefinir os programas de vigilância ocupacional sem dispensar as atualizações dos eixos regulatórios vigentes15. Nesse sentido, valerá a pena estimular a reflexão sistemática sobre: as políticas públicas em ST11, considerando o atual perfil da força de trabalho14; os conceitos de exposição laboral17; os métodos superados de pesquisa e de avaliação das situações de saúde e trabalho1), (2; as novas perspectivas em segurança no trabalho17), (18; as tendências macropolíticas que determinam o emprego8), (14; e as brechas no planejamento do Estado9. Provavelmente, serão produzidos elementos para compreender as conexões entre situações de trabalho e gênero; proteção da força de trabalho em face das mudanças climáticas; ou limites dos métodos tradicionais de avaliação de exposições perigosas em face das inovações tecnológicas nos processos e sistemas produtivos.
Reconhecemos a complexidade de propostas para a conversão dos conhecimentos em abordagens conceituais e elaboração de modelos complexos nesses tempos que correm. À vista dessa realidade, será necessário ter disposição intelectual para adequar ou ultrapassar construtos produzidos num contexto já superado, privilegiando, como outrora, o diálogo acadêmico e social. Afinal, já se foi um quarto deste século.
Referências
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