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Trabalho e saúde dos professores no Brasil: uma publicação para ser destacada

Lemos com bastante apreço o artigo intitulado “Afastamento do trabalho por distúrbios musculoesqueléticos entre os professores da educação básica no Brasil” 11. Barbosa REC, Alcantara MA, Fonseca GC, Assunção AA. Afastamento do trabalho por distúrbios musculoesqueléticos entre os professores da educação básica no Brasil. Rev Bras Saude Ocup [Internet]. 2023 [citado em 9 nov 2023];48:edepi5. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-6369/18822pt2023v48edepi5
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, publicado no Dossiê Epidemiologia, Saúde e Trabalho da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO).

Como os próprios autores destacaram na introdução: “Nos últimos anos, houve crescimento no número de estudos realizados no país interessados em investigar as relações trabalho e saúde nesta categoria ocupacional. Em geral, essas pesquisas focalizaram professores de cidades ou grupo de cidades brasileiras, sem, contudo, atingir abrangência e representatividade nacionais”. Estudando o assunto há algum tempo e participando desse movimento de “crescimento” do interesse observado pelos autores, identificamos, de fato, tanto o aumento de publicações em um período de 20 anos (1997-2017) quanto a necessidade de trabalhos com abrangência e representatividade nacional, visto que, das 175 publicações que encontramos, nenhuma assim se caracterizava 22. Silva JP, Fischer FM. O perfil das publicações sobre condições de trabalho e saúde dos professores: um aporte para (re) pensar a literatura. Saude Soc [Internet]. 2021 [citado em 9 nov 2023];30(4):e210070. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021210070
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. Antes disso, o mais próximo que observamos foi a pesquisa de Wanderley Codo sobre burnout entre os professores, a qual, segundo relato, envolveu mais de 52.000 participantes, distribuídos por 1.440 escolas de diversos estados da federação. O estudo constatou que “praticamente a metade (48%) dos trabalhadores em educação” estava sofrendo com pelo menos um dos indicativos de burnout 33. Codo W, coordenador. Educação: carinho e trabalho. Petrópolis: Vozes; 1999. . Desse modo, o livro com os resultados da pesquisa gerou grande contribuição aos estudos e debates sobre o tema.

Com relação ao artigo aqui comentado, convém ressaltar a robustez de seu desenho, de seus procedimentos e da sua acurácia metodológica. Utilizando dados do Estudo Educatel, trabalho que ensejou outras publicações e cuja significativa contribuição vem sendo mencionada 44. Reimberg CO, Silva JP. Condições de trabalho e saúde dos professores no Brasil – da educação básica ao ensino superior: um panorama. In: Silva JP, Reimberg CO, Souza DM, Oliveira JAO. Condições de trabalho e saúde dos professores no Brasil: uma revisão para subsidiar as políticas públicas. São Paulo: Fundacentro; 2022. p. 7-59. , 55. Fernandes FT, Lorenzi RLL. Estatísticas e indicadores epidemiológicos de saúde dos professores: um novo olhar com base em dados públicos oficiais [Internet]. São Paulo: Fundacentro; 2022 [citado em 9 nov 2023]. Relatório técnico. Disponível em: http://biblioteca.fundacentro.gov.br/permalink/f/gm54o4/fjd_aleph000054359
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, a publicação em questão nos permite agora afirmar que, nos limites que os dados autorreferidos e o recorte temporal puderam expressar, a prevalência de afastamentos por distúrbios musculoesqueléticos (DME) entre professores brasileiros é da ordem de 14,7%. Isso não é pouca coisa, visto que até recentemente os estudos publicados não permitiam falar sobre tal prevalência entre “professores brasileiros”, mas entre professores de determinadas localidades. Em nossa pesquisa sobre o perfil das publicações, por exemplo 22. Silva JP, Fischer FM. O perfil das publicações sobre condições de trabalho e saúde dos professores: um aporte para (re) pensar a literatura. Saude Soc [Internet]. 2021 [citado em 9 nov 2023];30(4):e210070. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021210070
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, dos 175 artigos identificados, apenas dois eram específicos sobre afastamentos por DME 66. Cardoso JP, Ribeiro IQB, Araújo TM, Carvalho FM, Reis EJFB. Prevalência de dor musculoesquelética em professores. Rev Bras Epidemiol [Internet]. 2009 [citado em 9 nov 2023];12(4):604-14. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1415-790X2009000400010
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, 77. Cardoso JP, Araújo TM, Carvalho FM, Oliveira NF, Reis EJFB. Aspectos psicossociais do trabalho e dor musculoesquelética em professores. Cad Saude Publica [Internet]. 2011 [citado em 9 nov 2023];27(8):1498-506. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2011000800005
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, nenhum de cunho nacional. Para nós, isso só reforça a importância do referido artigo que, em tom de congratulação e destaque, comentamos, sem demérito algum, claro, à relevância para o avanço dos estudos que esses trabalhos prévios e esforços empreendidos por outros grupos de pesquisadores, referenciados aqui ou não, representam.

Do ponto de vista dos resultados, diversos pontos chamaram a atenção, mas três em especial nos instigaram a tecer breves considerações.

O primeiro é o lugar ocupado pelos DME, que apareceram como segunda principal causa de afastamento (14,7%), atrás dos problemas relacionados à voz (15,8%) e antes dos “problemas emocionais” (12,9%). Isso chama a atenção porque na literatura tal prevalência costuma ser menor, conforme mencionado pelos próprios autores. Além disso, em outros artigos e especialmente em levantamentos recentes feitos com base na lei de acesso à informação, são os transtornos mentais que, embora tecnicamente não sejam o mesmo que “problemas emocionais”, mas podem com eles estar relacionados na qualidade de, por exemplo, categoria temática que os congrega, visto que problemas emocionais podem indicar ou prenunciar transtornos mentais, têm a tendência de figurar como principal causa dos afastamentos, sendo por vezes até mais prevalentes do que os distúrbios da voz. Em alguns casos, inclusive, chama-se a atenção para suas possíveis associações. Seria essa uma percepção equivocada, ou poderia parte desses DME estar denunciando também transtornos mentais, na linha das questões “somáticas” aludida pelos autores? O segundo ponto foi que, de modo talvez contraintuitivo, variáveis como ruído, indisciplina e tempo insuficiente para realizar as tarefas profissionais apareceram associadas a afastamentos por DME. Ao comentar a associação com essa última variável e indicar que houve maior prevalência entre participantes do sexo feminino, os autores atribuíram tal associação à questão das atividades domésticas, afirmando que “esse tipo de dupla jornada de trabalho perturba a regulação do tempo para as atividades de recuperação”. Focalizando as tarefas domésticas, mas deixando de mencionar o avançar de dimensões do trabalho sobre a vida pessoal, algo conhecido na profissão 88. Silva JP, Fischer FM. Multiform invasion of life by work among basic education teachers and repercussions on health. Rev Saude Publica [Internet]. 2020 [citado em 9 nov 2023];54:03. Disponível em: https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054001547
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, perguntamo-nos: os autores não considerariam o impacto desse trabalho levado para casa na equação? Por fim, mas não menos importante, as diferenças de desfecho entre participantes dos sexos masculino e feminino se destacaram. Autores têm chamado a atenção para a centralidade dessas diferenças 99. Neves MY, Muniz HP, Silva EF, Costa JD, Brito J, Athayde M. Saúde, gênero e trabalho nas escolas públicas: potencialidades e desafios de uma experiência com o dispositivo “comunidade ampliada de pesquisa e intervenção”. Laboreal [Internet]. 2015 [citado em 9 nov 2023];11(1):53-68. Disponível em: https://doi.org/10.4000/laboreal.4169
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. Como conclusão, indicou-se que o desafio de superação se impõe às políticas e ações estratégicas, com o que concordamos 1010. Silva JP, Reimberg CO. Condições de trabalho e saúde dos professores no Brasil: caminhos e descaminhos das políticas públicas na avaliação de um grupo de pesquisadoras [Internet]. São Paulo: Fundacentro; 2022 [citado em 9 nov 2023]. Relatório técnico. Disponível em: http://biblioteca.fundacentro.gov.br/permalink/f/gm54o4/fjd_aleph000054364
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. Mas perguntas persistem: quais exemplos ou sugestões de políticas podemos dar? Caberia aos pesquisadores unir forças para sugerir mudanças?

Referências

Editado por

Editor-Chefe
Eduardo Algranti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2023
  • Aceito
    07 Nov 2023
  • Revisado
    31 Out 2023
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