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Perda pilosa por líquen plano pilar após transplante capilar: relato de dois casos e revisão da literatura

Resumos

Alopecia androgenética é tratada com frequência por meio de microtransplante capilar, téc nica em que os fios transplantados geralmente não caem, pois mantêm características da área doadora, mais resistente. O líquen plano pilar é uma alopecia cicatricial com permanente destruição pilosa. Este artigo relata dois casos de lesões compatíveis com líquen plano pilar em áreas receptora e doadora póstransplante. A dominância da área doadora foi aparentemente sobrepujada pelo líquen plano pilar, que deve ter gerado a queda dos fios. Relatos semelhantes são raros. À suspeita de líquen plano pilar, devese biopsiar o couro cabeludo e evitar o transplante durante a atividade da doença.

Alopecia; Líquen plano; Transplante; Transplante autólogo


Androgenetic alopecia is often treated by follicular unit transplantation, a technique that involves minimal risk of hair loss because of the more resistant nature of the donor area. Lichen planopilaris is a cicatricial alopecia that causes permanent destruction of hair follicles. We report two cases of post-transplantation lesions compatible with lichen planopilaris in both recipient and donor areas. The quality of the hair follicles in the donor area was apparently compromised by lichen planopilaris, the probable cause of hair loss. Similar reports are rare. When lichen planopilaris is suspected, a biopsy of the scalp must be performed to avoid transplantation during disease activity.

Alopecia; Lichen planus; Transplantation; Transplantation, autologous


CASO CLÍNICO

Perda pilosa por líquen plano pilar após transplante capilar: relato de dois casos e revisão da literatura* * Trabalho realizado na Clin - Cirurgia Plástica, Dermatologia e Tratamento da Calvície - Fortaleza (CE), Brasil.

Márcio Rocha CrisóstomoI; Manoela Campos Cavalcante CrisóstomoII; Marília Gabriela Rocha CrisóstomoIII; Victor José Timbó GondimIV; Mara Rocha CrisóstomoIV; André Nunes BenevidesV

IMestre em cirurgia pela Universidade Federal do Ceará (UFC); membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, da Sociedade Brasileira de Cirurgia da Restauração Capilar e da International Society of Hair Restoration Surgery - Fortaleza (CE), Brasil

IIMembro titular da Sociedade Brasileira de Dermatologia, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica e da Sociedade Brasileira de Laser - Fortaleza (CE), Brasil

IIIMédica residente de dermatologia do Centro de Dermatologia Dona Libânia; assistente da equipe do Centro de Implante Capilar (Clin) - Fortaleza (CE), Brasil

IVMédico(a) graduado(a) pela Universidade Federal do Ceará (UFC) - Fortaleza (CE), Brasil

VMembro da Liga de Cirurgia Plástica e Microcirurgia Reconstrutiva Dr. Germano Riquet; acadêmico de medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) - Fortaleza (CE), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Márcio R. Crisóstomo Clin - Cirurgia Plástica, Dermatologia e Tratamento da Calvície Avenida Dom Luís, 1233, 21º andar, Meireles 60160-230 - Fortaleza - CE Tel/fax: (85) 3242 0405 / (85) 3267 6804 e-mail: marcio@implantecapilar.med.br

RESUMO

Alopecia androgenética é tratada com frequência por meio de microtransplante capilar, téc nica em que os fios transplantados geralmente não caem, pois mantêm características da área doadora, mais resistente. O líquen plano pilar é uma alopecia cicatricial com permanente destruição pilosa. Este artigo relata dois casos de lesões compatíveis com líquen plano pilar em áreas receptora e doadora póstransplante. A dominância da área doadora foi aparentemente sobrepujada pelo líquen plano pilar, que deve ter gerado a queda dos fios. Relatos semelhantes são raros. À suspeita de líquen plano pilar, devese biopsiar o couro cabeludo e evitar o transplante durante a atividade da doença.

Palavras-chave: Alopecia; Líquen plano; Transplante; Transplante autólogo

INTRODUÇÃO

Alopecia é uma condição dermatológica crônica na qual se perde parte ou todos os fios da cabeça, muitas vezes com envolvimento de outras partes do corpo. A fisiopatogenia não é totalmente compreendida, mas há um processo inflamatório que emerge de uma combinação de influências genéticas e ambientais. A causa mais comum de perda de fios é a alopecia androgenética (AAG), que afeta aproximadamente 50% dos homens aos 50 anos e 20 a 50% das mulheres na mesma idade.1,2

Para a calvície consolidada, o tratamento cirúrgico com a realização do microtransplante capilar está indicado.3,4 A técnica consiste na retirada de uma faixa de couro cabeludo das regiões occipital e lateral da cabeça, área geralmente não afetada pela AAG.3 Em seguida são preparadas unidades foliculares, que contêm de um a quatro folículos cada e que são implantadas na área calva.5 Os fios transplantados, após o nascimento, não caem mais, pois mantêm as características da área doadora, onde são resistentes aos efeitos da AAG.5

O termo alopecia cicatricial engloba um grupo de desordens cutâneas diversas caracterizadas por destruição permanente do folículo piloso e fibrose residual.6 Inúmeras etiologias podem ser implicadas nessa condição, entre elas trauma, como queimaduras, desordens congênitas, inflamatórias e infecciosas.4,7 As formas de apresentação podem ser classificadas em estáveis e instáveis.7 As formas instáveis são caracterizadas pela tendência à progressão e recorrência; nesse grupo estão incluídas as alopecias de causas inflamatórias, das quais o líquen plano pilar (LPP) representa 40% do total.8 A alopecia cicatricial pode acometer toda a região do couro cabeludo, inclusive a área doadora, de onde são retirados os fios para o transplante capilar.9

O objetivo deste trabalho é relatar dois casos de perda de fios transplantados por provável LPP.

RELATO DOS CASOS

Paciente 1: paciente do sexo masculino, 50 anos, apresentou-se com queixa de perda dos fios na área receptora após transplante capilar realizado em outro serviço seis anos antes. Ao exame, o paciente apresentava rarefação e falhas difusas na parte superior da cabeça e vértex (Figura 1). Observaram-se falhas difusas e coalescentes nas regiões occipital e lateral da cabeça, sugestivas de alopecia cicatricial (Figura 2). Novo transplante capilar foi contraindicado neste caso pelo comprometimento extenso da área doadora, além de a expectativa do paciente ser incompatível com o resultado que poderia ser obtido. Não há seguimento deste caso.



Paciente 2: paciente do sexo masculino, 46 anos, realizou transplante capilar há dois anos em outro serviço, com queixa semelhante à do primeiro paciente de perda parcial dos fios transplantados. Ao exame, observaram-se áreas difusas de alopecia na região superior da cabeça e no vértex (Figura 3). Nas regiões posterior e lateral da cabeça, foram evidenciadas falhas difusas sugestivas de alopecia cicatricial e eritema perifolicular em algumas lesões, indicando atividade da doença (Figura 4).



Um fragmento de pele do couro cabeludo da região póstero-lateral esquerda da cabeça do paciente 2 foi submetido a estudo histopatológico com descrição sugestiva de LPP (Figura 5). Nesse paciente foram realizadas infiltrações intralesionais de triancinolona com estabilização das lesões, caracterizada pelo desaparecimento do eritema periférico. Novo transplante não foi indicado até o momento, mas o paciente permanece em acompanhamento.


DISCUSSÃO

Inicialmente descrito por Pringle em 1985, o LPP é uma desordem cutânea pilosa por um processo inflamatório linfocítico, que eventualmente pode destruir o folículo piloso, com substituição folicular por tecido fibroso.9,10 O LPP é um processo frequentemente crônico e recorrente, de etiologia ainda incerta, mas de provável patogênese autoimune.10 Pode ser dividido em três variantes: a forma clássica de LPP, a alopecia fibrosante frontal e a síndrome de Graham-Little.6,9,10 Embora afetem preferencialmente faixas etárias e gêneros diferentes, todas as formas compartilham o processo inflamatório caracterizado por pápulas eritematosas.10 O LPP é mais comum em mulheres, representando 60 a 90% dos casos, iniciando-se frequentemente da quinta à sétima décadas de vida.9

Como nos casos relatados, as lesões frequentemente envolvem o vértex, embora qualquer região do escalpo possa ser acometida.9 As lesões precoces clássicas são caracterizadas por um eritema folicular violáceo e acúmulos de ceratinócitos acuminados, localizando-se preferencialmente na periferia da zona de alopecia,6,9,10 correspondendo às áreas de expansão. O processo inflamatório do LPP tende a resolver-se espontaneamente; após a perda capilar e a resolução, cicatrizes atróficas substituem as outras lesões, com perda definitiva dos orifícios foliculares, correspondendo ao estágio final de qualquer alopecia cicatricial.9 A evolução do LPP é imprevisível e sem fim aparente. Contudo, não há estudos de longo prazo que forneçam respostas sobre o curso natural da doença.

O diagnóstico diferencial é feito com lúpus eritematoso discoide, pseudopelada de Brocq e alopecia areata.10 Essas entidades podem ser diferenciadas pelo estudo histopatológico obtido por biópsia, especialmente quando no estágio ativo e inicial. O histopatológico mostra inflamação com hipergranulose, hiperceratose, hiperacantose e degeneração dos ceratinócitos basais e da camada basal em metade dos casos de LPP.8,9,10 Um infiltrado subepidérmico costuma ser presente, envolvendo os folículos entre o infundíbulo e o istmo e poupando a porção inferior (diferente da alopecia areata). Na camada basal, observam-se corpos coloides, que são ceratócitos degenerados que se coram em rosa à eosina. Todo esse padrão histopatológico foi observado de forma semelhante no paciente 2 (Figura 5).9 O lúpus eritematoso discoide pode ser diferenciado do LPP pelo padrão predominantemente central das lesões e pelo infiltrado linfocítico que envolve vasculatura superficial e profunda, assim como outras estruturas anexas.10 Se o LPP não estiver em expansão com inflamação perifolicular e hiperceratose, é impossível distingui-lo da pseudopelada de Brocq, que alguns autores consideram um estágio final de LPP, e não uma entidade distinta.9,11

O tratamento do LPP é essencialmente clínico, visando a reduzir a gravidade dos sintomas, como desconforto, prurido e perda de cabelos, e a prevenir que a inflamação se alastre.9 A terapia de primeira linha permanece sendo a infiltração intralesional de corticoesteroides, como a triancinolona, que visa a reduzir o processo inflamatório e permite a parada da progressão da alopecia, como realizado no paciente 2, que evidenciou estabilização das lesões.6,9,12 Tratamentos sistêmicos vêm sendo utilizados em casos de refratariedade à terapia inicial.6,9,10 Após a resolução do processo inflamatório e a estabilização da alopecia, o tratamento cirúrgico, com redução do escalpo ou transplante capilar, pode ser considerado nesses pacientes.7,10 A literatura sobre o transplante capilar em pacientes com LPP é escassa mas, de forma empírica, alguns autores sugerem que se aguarde por pelo menos dois anos sem nenhuma atividade da doença para que o transplante capilar seja indicado e que o paciente deva ser avisado de que a integração dos enxertos pode estar diminuída, em torno de 60 a 90%.13 Deve-se ter em mente que o LPP é uma doença de natureza possivelmente sistêmica e autoimune, o que pode interferir com o resultado final do transplante capilar.

Relatos semelhantes de desenvolvimento de LPP após transplante capilar são escassos na literatura. Kossard et al. relatam caso em um homem de 75 anos que desenvolveu quadro de rarefação pilosa na região frontal somente após 10 anos do último procedimento de transplante capilar, tendo ele sido submetido a múltiplos procedimentos anteriormente.14

Drogas, infecções, fatores genéticos e anormalidades imunológicas são aventados como possíveis fatores iniciadores do LPP.10 Nos pacientes relatados, a dominância da área doadora foi aparentemente sobrepujada pela doença, o que provavelmente levou à queda dos fios transplantados. Permanece a questão se o transplante capilar pode ou não ter auxiliado no desencadeamento do LPP.

A perda folicular após o transplante capilar pode ocorrer de forma imediata ou de forma gradual devido à própria AAG. Isso contrasta com o processo tardio e progressivo que ocorreu nos pacientes relatados.14,15 A ocorrência de LPP reforça a necessidade de uma avaliação clínico-laboratorial minuciosa do paciente, com especial atenção à área doadora. Entidades como as alopecias cicatriciais devem sempre ser cogitadas quando os pacientes apresentarem falhas nas áreas doadoras ou falhas que não compartilhem o padrão da AAG. O implante capilar é uma técnica definitiva e um insucesso desse procedimento pode trazer insatisfações diversas para

o paciente. O exame da área doadora é fundamental no planejamento de um transplante capilar e, à suspeita de LPP, deve-se realizar biópsia de couro cabeludo e evitar o transplante capilar quando a doença estiver em atividade, pois os fios transplantados podem cair posteriormente, como nos dois casos relatados neste trabalho.

Recebido em 16.11.2009.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 08.05.2010.

Conflito de interesse: Nenhum

None Suporte financeiro: Nenhum

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  • Endereço para correspondência:
    Márcio R. Crisóstomo
    Clin - Cirurgia Plástica, Dermatologia e Tratamento da Calvície
    Avenida Dom Luís, 1233, 21º andar, Meireles
    60160-230 - Fortaleza - CE
    Tel/fax: (85) 3242 0405 / (85) 3267 6804
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    Trabalho realizado na Clin - Cirurgia Plástica, Dermatologia e Tratamento da Calvície - Fortaleza (CE), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      16 Nov 2009
    • Aceito
      08 Maio 2010
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