EDITORIAL
O trabalho de Melo et al.1 faz uma abordagem interessante da correlação clínico-histológica na análise diagnóstica e terapêutica da nefrite lúpica. Nesse trabalho, os autores realizaram uma análise retrospectiva de 100 casos consecutivos de LES acompanhados por nefrite lúpica no Serviço de Reumatologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. O objetivo foi comparar a resposta terapêutica em 12 e 24 meses em relação a diversas variáveis no momento inicial do tratamento e em relação à classe de comprometimento renal, estabelecida alternativamente com base na análise histológica ou na estimativa clínica. Embora não tenha sido um estudo prospectivo e controlado, os autores se beneficiaram do fato de que o regime terapêutico preconizado no serviço é padronizado e utilizado de forma regular, de sorte que houve aceitável homogeneidade nesse quesito. Para formas consideradas mais brandas (classe II) foi utilizado corticosteroide em dose de 1mg/kg/dia e para formas consideradas mais graves (classes III, IV e V) foi utilizado o regime clássico, baseado na indução com ciclofosfamida e metilprednisolona por via endovenosa e manutenção com azatioprina ou micofenolato mofetil.
Ao longo do período de observação, houve resposta favorável na grande maioria dos pacientes, tendo-se alcançado remissão total em 72,7% dos pacientes aos 12 meses e em 85,7% dos pacientes aos 24 meses. Remissão parcial foi observada em 27,3% dos pacientes aos 12 meses e em 14,3% dos pacientes aos 24 meses. Embora o acompanhamento tenha sido relativamente curto, esses dados são animadores, principalmente quando consideramos as condições nem sempre ideais de suporte à assistência médica nos serviços de saúde pública. Como esperado, uma parcela significativa dos pacientes apresentou recaída, a maior parte durante a fase de manutenção, mas houve resposta favorável com o ajuste da dose de corticosteroides e imunossupressores.
Com relação à influência das diversas variáveis sobre a resposta terapêutica, os autores encontraram alguns achados interessantes. Como esperado, os pacientes do sexo masculino apresentaram taxas de remissão total (45,5%) inferiores às observadas nas pacientes do sexo feminino. Esse achado confirma a noção já estabelecida de um pior prognóstico da nefrite lúpica no paciente do sexo masculino. As variáveis clínicas e laboratoriais aferidas no início do tratamento não foram capazes de discriminar os pacientes que apresentaram remissão total daqueles que apresentaram remissão parcial aos 12 meses. Entretanto, vale salientar que os níveis de creatinina sérica e os níveis de leucocitúria apresentaram tendência a maiores valores nos pacientes que apresentaram apenas remissão parcial.
A contribuição mais relevante do trabalho foi a engenhosa análise comparativa entre o julgamento clínico-laboratorial e o exame histopatológico para definição da classe de glomerulonefrite em relação ao resultado terapêutico. Interessantemente, os parâmetros referentes à atividade de doença, alterações urinárias e consumo do Complemento sérico não diferiram entre os pacientes definidos como classe IV pelo critério histológico ou pelo julgamento clínico-laboratorial. Esse dado parece sugerir razoável equivalência entre ambos os critérios. No entanto, a resposta terapêutica foi claramente mais favorável no grupo de pacientes definidos como classe IV pelo julgamento clínico-laboratorial do que no grupo definido pelo critério histológico. Esse achado pode ser interpretado de formas variadas. Uma interpretação razoável é de que no grupo selecionado segundo o julgamento clínico-laboratorial poderia haver pacientes cuja classificação histológica não correspondia à classe IV, embora as manifestações clínico-laboratoriais assim o sugerissem. Como possíveis representantes de classes histológicas II e III, esses pacientes podem ter desviado o grupo para um maior índice de remissão total. Esse raciocínio está de acordo com o conceito de que o critério histológico é mais acurado em predizer a evolução clínica. Essa interpretação pode sugerir que se indique a biopsia renal com maior liberalidade. Porém, pode também reforçar a idéia de que, para uma boa parte dos casos, o julgamento clínico-laboratorial pode ser suficiente para tomada inicial de decisão por um clínico experimentado e com bom senso, e que a resposta terapêutica poderá representar um parâmetro adicional para condução desses casos. Assim, o trabalho de Melo et al. reitera a complexidade do tema e confronta a viabilidade de duas formas distintas e complementares na abordagem da nefrite lúpica.
Outra faceta intrigante na pesquisa do LES é a busca por parâmetros fidedignos de monitoração da atividade inflamatória. Vários parâmetros têm sido propostos, tais como os níveis séricos de alguns autoanticorpos, a dosagem de componentes do sistema Complemento, provas de fase aguda, avaliação do sedimento urinário e índices hematimétricos, entre outros.
Entre os autoanticorpos, destacam-se os níveis de anticorpos anti-DNA nativo, antinucleossomo, anti-C1q e anti-P ribossomal. Diversos estudos têm demonstrado que esses autoanticorpos tendem a ter seus níveis elevados nos períodos de maior atividade da enfermidade e tendem a cair ou mesmo desaparecer nos períodos de remissão. Embora anticorpos contra os antígenos nucleares extraíveis (SS-A/Ro, SS-B/La, Sm e U1-RNP) também apresentem flutuação ao longo da enfermidade, não há evidência de correlação com a atividade inflamatória.2 Da mesma forma, não há evidência de que os níveis de anticorpos antinúcleo (FAN ou anticorpos contra constituintes celulares) guardem associação com a atividade de doença. A associação da atividade de doença com os níveis séricos dos anticorpos contra DNA nativo, nucleossomo, C1q e proteína P ribossomal parece sugerir que esses autoanticorpos tenham um papel fisiopatológico genuíno em uma parcela dos pacientes com LES. No entanto, essa associação está longe de ser absoluta, pois diversos pacientes não a obedecem. Ademais, uma grande parte dos pacientes não exibe esses autoanticorpos em momento algum da enfermidade. Assim, os níveis de determinados autoanticorpos no LES têm um papel real, mas restrito, no monitoramento da atividade do LES.
Como uma das vias fisiopatológicas características do LES baseia-se na deposição de imunocomplexos e ativação do sistema Complemento, é natural que a monitoração dos componentes desse sistema tenha utilidade no acompanhamento da atividade do LES. Por várias décadas tem-se medido a atividade hemolítica total do Complemento bem como os níveis séricos de alguns componentes desse sistema como auxílio na monitoração da atividade de doença no LES. Embora haja associação entre consumo do Complemento e atividade de doença, especialmente na nefrite lúpica, há vários casos de discordância, particularmente nas formas não renais. Parte dessa discordância possivelmente deriva do fato de que os níveis dos componentes do Complemento sofrem influência de variáveis extrínsecas, tais como variabilidade na taxa de reposição do pool, aumento de síntese como efeito de fase aguda e ampla variação dos valores de normalidade. Mais recentemente, alguns autores têm proposto a medição de produtos de degradação do Complemento, como o C4a, C3a e Bb, que não sofreriam essas influências.3 O desempenho desses parâmetros na monitoração da atividade de doença persiste sob julgamento.
As proteínas de fase aguda seriam em tese parâmetros racionais para se monitorar a atividade de doenças inflamatórias, como o LES. Curiosamente, no entanto, isso não se observa sistematicamente na prática. Frequentemente observam-se pacientes sem sinais evidentes de atividade de doença e que apresentam níveis consistentemente elevados de proteína C reativa (PCR) e de velocidade de hemossedimentação. Reciprocamente, não é infrequente que se observem pacientes em franca atividade e com valores normais ou minimamente alterados. Esse paradoxo provavelmente esconde algum aspecto inusitado e possivelmente de grande interesse para entendimento da fisiopatologia do LES.
Como consequência das limitações dos parâmetros laboratoriais disponíveis para monitoração da atividade do LES, diversos pesquisadores persistem buscando alternativas mais eficientes. Neste número da Revista Brasileira de Reumatologia, Carvalho et al. documentam um novo e interessante parâmetro com potencial associação com a atividade de doença no LES.4 Os anticorpos contra a lipoproteína lipase (LPL) foram recentemente descritos no LES e em outras doenças autoimunes.5-7 Interessantemente, esses autoanticorpos apresentam correlação com os níveis séricos de triglicérides. Carvalho et al. haviam demonstrado previamente que os anticorpos anti-LPL guardam correlação com alguns parâmetros de atividade de doença, como hipocomplementemia, PCR ultrassensível, e SLEDAI.6 Na presente edição, esses autores sugerem, mediante relato de caso de 5 pacientes, um interessante comportamento dual desses autoanticorpos. Nos pacientes com doença consistentemente quiescente, os anticorpos anti-LPL mantiveram-se estáveis e em níveis altos. Em contrapartida, os níveis de anti-LPL oscilaram em pacientes com doença instável, com períodos de atividade alternando com períodos de quiescência. Esse é um achado intrigante e que certamente estimulará estudos adicionais para determinar possíveis diferenças nas subpopulações de anticorpos anti-LPL nesses contextos, bem como para delimitar a utilidade dos mesmos na monitoração da atividade de doença no LES.
A busca pela excelência é uma característica humana em todas as áreas em que esse irrequieto ser labora. Por vezes essa busca almeja uma solução utópica, de simplicidade e resolutividade absolutas. O Santo Graal, a Pedra Filosofal e o Moto Continuum são representações arquetípicas dessa característica de nossa espécie. No entanto, os progressos reais ao longo de nossa história têm sido alcançados mediante esforços concretos e infinitesimais. Tijolo por tijolo, argamassa, sonho e suor. Assim também tem sido a conquista do lúpus eritematoso sistêmico. Não há mágica, não há parâmetro absoluto. O Santo Graal consiste em uma mistura de conhecimento cumulativo de estudos como os comentados anteriormente, de madura experiência clínica, de excelência técnica, do empenho em ajudar o paciente e da capacidade de um julgamento humilde frente a cada caso.
Luís Eduardo Coelho Andrade
Professor Adjunto Livre-docente - Chefe da Disciplina de Reumatologia - EPM-UNIFESP
-
1Melo AKG, Avelar AB, Maegawa FKM, Souza BDB. Avaliação de 100 pacientes com nefrite lúpica acompanhados por dois anos. Rev Bras Reumatol 2009;49(1):8-19.
-
2Faria AC, Barcellos KSA, Andrade LEC. Longitudinal fluctuation of antibodies to extractable nuclear antigens in systemic lupus erythematosus. J Rheumatol 2005;32: 1267-72.
-
3Watanabe H, Noguchi E, Shio K, Iwadate H, Kobayashi H, Ohira H. Usefulness of complement split product, Bb, as a clinical marker for disease activity of lupus nephritis. Fukushima J Med Sci 2006;52: 103-9.
-
4de Carvalho JF, Viana VST, Neto EFB, Leon EP, Bueno C, Bonfá E. Estudo longitudinal do anticorpo antilipoproteína lipase e sua relação com atividade de doença nos indivíduos com lúpus eritematoso sistêmico sem anticorpos anti-dsDNA. Rev Bras Reumatol 2009;49(1):39-47.
-
5Reichlin M, Fesmire J, Quintero-Del-Rio AI, Wolfson-Reichlin M. Autoantibodies to lipoprotein lipase and dyslipidemia in Systemic Lupus Erythematosus. Arthritis Rheum 2002; 46: 2957-63.
-
6de Carvalho JF, Borba EF, Viana VS, Bueno C, Leon EP, Bonfá E. Anti-lipoprotein lipase antibodies: a new player in the complex atherosclerotic process in systemic lupus erythematosus? Arthritis Rheum 2004; 50: 3610-5.
-
7Reichlin M. Serological correlations with nephritis in systemic lupus erythematosus. Clin Immunol 2005; 117: 12-4.
O Santo Graal e o lúpus eritematoso sistêmico
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Mar 2009 -
Data do Fascículo
Fev 2009