Open-access Concomitância de autoanticorpos na esclerose sistêmica: como interpretar?

Resumos

Os autoanticorpos possivelmente influenciam as manifestações clínicas da esclerose sistêmica (ES). Essa correlação clínico-sorológica, associada à insuficiência de casos de concomitância de autoanticorpos, originou o paradigma histórico de que seriam mutuamente excludentes. Porém, pode-se questionar essa tese. Poderia a multiplicidade de autoanticorpos significar a coexistência de duas patologias distintas? Por outro lado, se assumidos como anticorpos específicos de uma doença única, essa multiplicidade seria um evento aleatório ou representaria um subgrupo distinto de pacientes, com características clínicas, patogênicas e imunogenéticas próprias? A prevalência de autoanticorpos na ES precoce é elevada. Entretanto, a duplicidade do anticorpo anticentrômero (AAC) e do anticorpo antitopoisomerase 1 (AAT) é um evento raro. Já a coexistência de AAC, AAT e anticorpo anti-RNA polimerase (anti-RNA-P) III ainda não foi descrita em um paciente isolado. Neste relato, com positividade para AAC, AAT e anti-RNA-P III, notamos manifestações vasculares precoces e posterior comprometimento cutâneo limitado. Este parece ser o primeiro relato de concomitância de três autoanticorpos específicos em um paciente com ES. Acreditamos que essa coexistência representa um subgrupo sorológico raro de uma única doença, com possível valor clínico e prognóstico - porém, ainda há necessidade de confirmação.

esclerodermia sistêmica; DNA topoisomerases; RNA polimerase III


Autoantibodies possibly influence clinical manifestations of systemic sclerosis (SSc). This clinical-serological correlation, associated with the paucity of autoantibodies concomitance, gave rise to the historical paradigm of autoantibodies mutual exclusivity. However, one can question this assumption. Does autoantibodies concomitance mean coexistence of two different entities? On the other hand, if considered a unique disease, is this phenomenon a random event or does it represent a distinct subgroup of patients, with peculiar clinical, pathogenic, and immunogenetic characteristics? The autoantibodies' prevalence in early SSc is high. However, anti-centromere antibody (ACA) and antitopoisomerase 1 antibody (ATA) duplicity is a rare event. Similarly, the ACA, ATA, and anti-RNA polymerase (anti-RNA-P) III coexistence have not been described yet in single patient. In the reported case, with ACA, ATA, and anti-RNA-P III positivity, we have noted early vascular manifestations and late limited cutaneous involvement. This is, to our knowledge, the first report of three concomitant specific autoantibodies in a patient with SSc. We do believe this coexistence represents a rare serologic subgroup of a unique disease, with possible clinical and prognostic value, although this remains to be confirmed.

systemic scleroderma; DNA topoisomerases; RNA polymerase III


RELATO DE CASO

Concomitância de autoanticorpos na esclerose sistêmica: como interpretar?

Scheila FritschI; Vanessa Irusta Dal PizzolII; Eduardo dos Santos PaivaIII; Carolina de Souza MullerIV

IResidente em Clínica Médica, , Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná - HC-UFPR

IIEspecialização em Clínica Médica, HC-UFPR

IIIProfessor da Disciplina de Reumatologia, HC-UFPR

IVProfessora voluntária da Disciplina de Reumatologia, HC-UFPR

Correspondência para Correspondência para: Scheila Fritsch Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 180, 10º andar CEP: 80060-900. Curitiba, PR, Brasil E-mail: scheilaf@gmail.com

RESUMO

Os autoanticorpos possivelmente influenciam as manifestações clínicas da esclerose sistêmica (ES). Essa correlação clínico-sorológica, associada à insuficiência de casos de concomitância de autoanticorpos, originou o paradigma histórico de que seriam mutuamente excludentes. Porém, pode-se questionar essa tese. Poderia a multiplicidade de autoanticorpos significar a coexistência de duas patologias distintas? Por outro lado, se assumidos como anticorpos específicos de uma doença única, essa multiplicidade seria um evento aleatório ou representaria um subgrupo distinto de pacientes, com características clínicas, patogênicas e imunogenéticas próprias? A prevalência de autoanticorpos na ES precoce é elevada. Entretanto, a duplicidade do anticorpo anticentrômero (AAC) e do anticorpo antitopoisomerase 1 (AAT) é um evento raro. Já a coexistência de AAC, AAT e anticorpo anti-RNA polimerase (anti-RNA-P) III ainda não foi descrita em um paciente isolado. Neste relato, com positividade para AAC, AAT e anti-RNA-P III, notamos manifestações vasculares precoces e posterior comprometimento cutâneo limitado. Este parece ser o primeiro relato de concomitância de três autoanticorpos específicos em um paciente com ES. Acreditamos que essa coexistência representa um subgrupo sorológico raro de uma única doença, com possível valor clínico e prognóstico - porém, ainda há necessidade de confirmação.

Palavras-chave: esclerodermia sistêmica, DNA topoisomerases, RNA polimerase III.

INTRODUÇÃO

A primeira descrição da dualidade de autoanticorpos na esclerose sistêmica (ES) - anticorpo anticentrômero (AAC) e anticorpo antitopoisomerase 1 (AAT) - data de 1985,1 e seu significado ainda precisa ser elucidado. Este fato pode ser explicado pela raridade da descrição desse fenômeno na literatura, com prevalência de 0,05%-5,6%,2 com variações significativas de acordo com os métodos de detecção utilizados (imunofluorescência indireta, imunodifusão, ELISA ou imunotransferência). Há também concomitância desses autoanticorpos com os anticorpos anti-RNA polimerase (anti-RNA-P) I, II e III, anti-Ro, anti-La, anti-Jo, anti-U3-RNP, anti-Th-RNP, anti-Pm-Scl, anti-Ku,3 antihistona e anticorpos antimitocond riais.2

Embora não esteja comprovado, existem dados clínicos que respaldam o entendimento geral de que o perfil autoimune individual correlaciona-se com as manifestações clínicas da ES.2-4 Na prática clínica, esse conceito induz ao monitoramento distinto do paciente em cada subgrupo da doença.5 Essa correlação clínica e laboratorial e a insuficiência de casos com concomitância de autoanticorpos originou o paradigma histórico de que seriam mutuamente excludentes. Não obstante, tal hipótese pode ser questionada, bem como a ideia de a coexistência ser explicada simplesmente de forma casual.

RELATO DE CASO

Mulher, de 38 anos, apresentava sintomas de artralgias associados ao fenômeno de Raynaud ao longo dos últimos três anos. A paciente não apresentava artrite, rigidez matinal, fotossensibilidade, xeroftalmia, disfagia, queixas urinárias, febre ou perda de peso, embora apresentasse evidência de retardo no esvaziamento esofágico. Não havia espessamento cutâneo, sinovite ou úlceras digitais. Os testes laboratoriais foram normais, exceto pelo hipotireoidismo, com anticorpo antitireoglobulina positivo. As sorologias para sífilis, hepatite, HIV, HTLV e doença de Chagas foram negativas. Os anticorpos antinucleares (ANA) mostraram padrão anticentrômero (título de 1:10240, método de imunofluorescência indireta - Hep-2). Anti-Sm, anti-DNA, anti-La e AAT foram negativos, mas o anti-Ro foi positivo (48 U/mL, valor de referência < 10). Após um ano, a paciente apresentou esclerodactilia, quando foi então feito o diagnóstico de ES. Durante o curso da doença, outros autoanticorpos tornaram-se positivos, tais como anti-RNP, 58 U/mL (valor de referência < 10); anti-La, 41 U/mL (valor de referência < 10); AAT, 21,6 U (valor de referência < 20); e anti-RNA-P III, 22,9 (valor de referência < 20). Todos eles foram testados pela prova de imunoabsorção enzimática (ELISA).

DISCUSSÃO

A prevalência de autoanticorpos na ES é elevada (de 75%6 a 95%,7), e sua presença precede as manifestações clínicas em muitos casos.8 Por outro lado, a prevalência da duplicidade AAC + AAT é raramente relatada, variando de 0,05% a 5,6%.2 Esses achados, associados com a correlação entre autoanticorpos, alelos do sistema HLA e perfil de comprometimento clínico, levaram ao conceito histórico de que seriam mutuamente excludentes e de que o curso dos títulos dos autoanticorpos era constante ao longo do tempo, o que foi baseado, provavelmente, em técnicas insensíveis de análise.8 A técnica de imunotransferência parece melhorar a sensibilidade de detecção do AAC, quando comparada com a técnica da imunofluorescência isoladamente.9 Os relatos de concomitância de autoanticorpos fortalecem a necessidade de reavaliar esse paradigma. Há também a descrição da associação do AAT com o anti-RNA-P II.3 Todavia, a triplicidade (AAT + AAC + anti-RNA-P III) ainda não foi descrita na literatura.

No contexto da ES, a associação clínica e sorológica do AAC, AAT e anti-RNA-P III é sugerida.4 Na teoria, não há dados para comprovar uma relação de causa e efeito entre o perfil sorológico e manifestações clínicas da doença. Deve-se considerar a ativação policlonal, com consequente hipergamaglobulinemia, além dos processos patológicos concomitantes da ES, tais como câncer.10 Além disso, técnicas diferentes para detectar ou quantificar os autoanticorpos apresentam sensibilidade e especificidade distintas, conforme descrito anteriormente, e que podem levar a falsos resultados. Finalmente, uma vez que essa doença apresenta muitas manifestações clínicas e cada uma representa uma combinação de fatores genéticos e ambientais, torna-se arriscado, ou talvez impossível, atribuir um papel tão grande ao perfil sorológico.

Por outro lado, existem dados epidemiológicos que sugerem uma correlação entre o status sorológico e as características clínicas, conforme descrito na Tabela 1.2-4,6 Tendo em vista que o monitoramento e o tratamento dos pacientes apresentam abordagens diferentes dependendo do seu perfil autoimune, como proceder no grupo com múltiplos autoanticorpos específicos? No contexto da concomitância de AAC e AAT, tanto em pacientes acometidos com a forma limitada ou difusa da doença, Kikuchi et al.1 observaram a predominância do fenômeno de Raynaud (95% dos pacientes), além da disfunção esofágica e da frequência mais baixa de esclerodactilia, calcinose e fibrose pulmonar. Segundo os autores, esse achado poderia indicar um efeito supressivo recíproco desses produtos do sistema imune. Jarzabeck-Chorzelski et al.,9 usando três técnicas para a detecção do autoanticorpo (imunofluorescência, imunotransferência e dupla imunodifusão), obtiveram a mais alta prevalência da duplicidade do AAC e do AAT relatada até o momento (5,6%), com um pronunciado comprometimento vascular - telangiectasia e fenômeno de Raynaud -, bem como esclerodactilia, calcinose e comprometimento visceral (nove de dez pacientes). Com base nesses dados, foi sugerido que o resultado positivo do AAC e do AAT poderia indicar uma variante incompleta da síndrome de CREST.1 A presença do anti-RNA-P II não define um subtipo clínico diferente nos pacientes portadores do AAT.6

Este trabalho acrescenta à discussão o caso de uma paciente com ES que apresenta simultaneamente três autoanticorpos específicos da doença (AAC, AAT e anti-RNA-P III). Não há descrição na literatura de um caso similar. Portanto, é plenamente justificável que a validade deste achado deva ser cuidadosamente considerada. Nesse sentido, é importante notar que os valores inferiores (próximos aos pontos de corte) para os anticorpos AAT e anti-RNA-P III foram encontrados por ELISA, de sensibilidade mais elevada, porém com baixa especificidade. A maioria dos kits ELISA expressa os resultados dos anticorpos como positivos, indeterminados ou negativos; alguns kits trazem esses resultados como positivos, fracamente positivos ou negativos. Portanto, devemos ter em mente que os resultados "fracamente positivos" encontrados neste trabalho, especialmente para os anticorpos AAT e anti-RNA-P III, poderiam ser expressos como "indeterminados". Com tal resultado, apresentado nesses termos, certamente estamos menos propensos ao erro, tendo em vista que não vamos considerá-lo como um achado definitivamente positivo.

Uma vez feitas essas considerações, acreditamos que a questão dos autoanticorpos na ES, como em muitas outras doenças autoimunes, não está concluída, mas, em vez disso, está se tornando mais pungente, propiciando um debate interessante. Em nosso caso, no qual havia coexistência de AAC, AAT e anti-RNA-P III, houve um comprometimento vascular precoce (Raynaud) e subsequente patologia cutânea limitada (esclerodactilia). Contudo, não devemos tirar conclusões sobre a ausência de maior gravidade, considerando que um caso isolado não é suficiente para prever o perfil clínico de um grupo de pacientes.

Todos esses achados enfatizam a participação do sistema imune na patogênese da ES. Vários mecanismos foram propostos. Os exemplos incluem a liberação da enzima topoisomerase-1, durante a apoptose da célula endotelial, com sua ligação à superfície dos fibroblastos e posteriormente aos autoanticorpos.8 Além disso, Casciola-Rosen11sugeriu que a fragmentação/fosforilação do RNA-P e da topoisomerase-1, durante a apoptose, leve à exposição de epítopos previamente ocultos do sistema imune. A partir da apresentação desses neoepítopos, a tolerância dos linfócitos seria perdida. Esta apresentação requer as moléculas do MHC, o que explica a associação sugerida entre os autoanticorpos e os alelos HLA: AAC com DR1, 4 e 8; e AAT com DR11.2 Contudo, na ausência de associações absolutas entre a manifestação da ES e dos epítopos HLA, além da inexistência de um epítopo definitivamente culpado, seria possível que vários mecanismos distintos contribuíssem para processos patológicos similares, os quais, por sua vez, poderiam expressar espectros clínicos diferentes - a assim chamada "teoria da etiologia múltipla".6

Por outro lado, a multiplicidade de autoanticorpos poderia significar a existência de doenças diferentes (a ES como uma composição de entidades clínicas independentes). Dick et al.2 relataram três casos de pacientes com resultados positivos para AAC + AAT que apresentaram alelos HLA-específicos para cada um dos autoanticorpos. Com base nessa observação imunogenética, eles sugeriram que a duplicidade ocorre de forma independente. Além disso, os mesmos autores demonstraram a flutuação oposta das concentrações de autoanticorpos ao longo do tempo, corroborando a hipótese da independência. Harvey et al.3 também defendem o conceito de que diferentes subgrupos sorológicos (AAC, AAT e anti-RNA-P I) representam, na realidade, três patologias distintas com base na análise dos alelos HLA. Em contraste, as associações entre os alelos do classe II e os subgrupos sorológicos na ES não são sólidas o bastante para comprovar esta teoria.5,12

Em vez de ocorrer juntos por acaso ou como patologias distintas, os autoanticorpos distintos poderiam representar uma única doença com suas próprias características imunogenéticas, clínicas e fisiopatológicas. Kikuchi et al.1 consideram que os autoanticorpos não coexistem por acaso, baseados na observação de que a prevalência da simultaneidade AAT + AAC é menor que a probabilidade esperada para que eles ocorram juntos aleatoriamente. Além disso, a flutuação oposta encontrada em pacientes com duplicidade poderia refletir a atividade da mesma doença autoimune em polos diferentes. Se houver espectros sorológicos distintos ao longo do tempo, poderia ser útil medir os títulos dos autoanticorpos durante o curso da doença, a fim de prever a evolução clínica. Em nosso caso, o resultado positivo do AAT, um ano após um diagnóstico de ES limitada, enfatiza essa abordagem e poderia alterar o comprometimento dos órgãos internos e da pele, além do prognóstico global do paciente, embora isso ainda deva ser comprovado.

Este relato demonstra, pela primeira vez, a coexistência de três autoanticorpos específicos na ES, além da autoimunidade tireoidiana. Defendemos a ideia de que essa triplicidade indica um raro subgrupo sorológico de uma única doença (isto é, não ocorre por acaso), com implicações prognósticas e clínicas, porém ainda não comprovadas. Além disso, acreditamos que a prevalência da multiplicidade de autoanticorpos positivos na ES deve ser reavaliada. Isso poderia ser alcançado por meio d e técnicas mais sensíveis, já disponíveis, e pelo monitoramento dos títulos dos autoanticorpos durante o curso da doença, aumentando assim a probabilidade de detecção de tal evento.

Recebido em 25/01/2011.

Aprovado em 05/09/2012.

ESP declara ter recebido honorários por apresentação, conferência ou palestra. Os demais autores declaram a inexistência de conflito de interesse.

Hospital das Clínicas, Universidade Federal do Paraná - HC-UFPR.

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  • Correspondência para:
    Scheila Fritsch
    Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná
    Rua General Carneiro, 180, 10º andar
    CEP: 80060-900. Curitiba, PR, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      25 Jan 2011
    • Aceito
      05 Set 2012
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