Resumos
Tendo como escopo geral o estudo da leitura literária para crianças no período Vargas, neste artigo estudamos o trabalho da Comissão Nacional de Literatura Infantil (CNLI), e sua compreensão acerca desse gênero de leitura. Na análise podemos perceber o quanto a perspectiva dos intelectuais da comissão era determinada pela tensão entre o lúdico e o pedagógico. Em seguida, discutimos a renovação pedagógica proposta pela Escola Nova e suas afinidades com a concepção de leitura literária proposta pela CNLI. Por fim, analisamos a obra didática de Cecília Meireles, Rute e Alberto resolveram ser turistas (1938). Constatamos que, nessa obra de caráter eminentemente pedagógico, a autora deixou evidente seus vínculos com os valores encarnados pela Escola Nova. Nela, Cecília tentou utilizar recursos literários, como a criação de personagens, espaços ficcionais, o uso de diálogos e narrativas, sem, no entanto, conseguir a contento equacionar a complexa dinâmica entre ensino e ludicidade. O resultado é um trabalho que, comparado a outras obras da autora, está aquém de suas realizações literárias.
literatura infantil; CNLI; Estado Novo
Having as general scope the study of children's literature and reading during the period of Getúlio Vargas, this article studies the work done by the Children's Literature National Committee (CNLI) and its understanding of this kind of reading. The analysis shows how much the perspective of those intellectuals was determined by the tensions between the playful and the pedagogical. After that, the paper discusses the pedagogical innovation proposed by the movement called Escola Nova and its affinities with the concept of literary reading proposed by the Committee. Finally, the text analyses the book Rute e Alberto resolveram ser turistas (1938), by Cecília Meireles. We observed that, in this eminently pedagogical book, the author evidenced her links with the values promoted by Escola Nova and tried to use some literary devices, such as character creation, setting, dialogues, and narratives, but was unable to solve the complex dynamics of teaching and playfulness. The result is a work which, in comparison with other works by Meireles, is below her literary achievements.
children's literature; CNLI; Estado Novo
Tratando del estudio de la lectura de obras literarias para niños en el período de Vargas, este artículo examina el trabajo de la Comisión Nacional de Literatura Infantil (CNLI) y su comprensión de este tipo de lectura. El análisis muestra cómo la perspectiva de aquelllos intelectuales fue determinada por la tensión entre lo lúdico y lo pedagógico. A continuación, el artículo discute la renovación pedagógica propuesta por la Escuela Nueva y sus conexiones con el concepto de la lectura de obras literarias propuestas por la CNLI. Por fin, el texto analiza la obra didáctica de Cecilia Meireles Rute e Alberto resolveram ser turistas (1938). Se há verificado que em esa obra de carácter eminentemente didáctico, la autora dejó clara su relación con los valores consagrados por la Escuela Nueva. Cecilia, en essa obra, intento utilizar recursos literarios, tales como la creación de personajes, espacios de ficción, el uso de diálogos y narraciones, sin obtener el equilibrio en la compleja dinámica entre la enseñanza y lo lúdico. El resultado es una obra que, en comparación con otras de la misma autora, no está a la altura de sus logros literarios.
literatura infantil; CNLI; Estado Nuevo
ARTIGOS
Rute e Alberto resolveram ser turistas a leitura literária para crianças no período Vargas*
Rute e Alberto resolveram ser turistas: literary reading for children during the Vargas period
Rute e Alberto resolveram ser turistas: la lectura de obras literarias para niños en el período Vargas
Celdon FritzenI; Gladir da Silva CabralII
IUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
IIUniversidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, SC, Brasil
RESUMO
Tendo como escopo geral o estudo da leitura literária para crianças no período Vargas, neste artigo estudamos o trabalho da Comissão Nacional de Literatura Infantil (CNLI), e sua compreensão acerca desse gênero de leitura. Na análise podemos perceber o quanto a perspectiva dos intelectuais da comissão era determinada pela tensão entre o lúdico e o pedagógico. Em seguida, discutimos a renovação pedagógica proposta pela Escola Nova e suas afinidades com a concepção de leitura literária proposta pela CNLI. Por fim, analisamos a obra didática de Cecília Meireles, Rute e Alberto resolveram ser turistas (1938). Constatamos que, nessa obra de caráter eminentemente pedagógico, a autora deixou evidente seus vínculos com os valores encarnados pela Escola Nova. Nela, Cecília tentou utilizar recursos literários, como a criação de personagens, espaços ficcionais, o uso de diálogos e narrativas, sem, no entanto, conseguir a contento equacionar a complexa dinâmica entre ensino e ludicidade. O resultado é um trabalho que, comparado a outras obras da autora, está aquém de suas realizações literárias.
Palavras-chave: literatura infantil; CNLI; Estado Novo.
ABSTRACT
Having as general scope the study of children's literature and reading during the period of Getúlio Vargas, this article studies the work done by the Children's Literature National Committee (CNLI) and its understanding of this kind of reading. The analysis shows how much the perspective of those intellectuals was determined by the tensions between the playful and the pedagogical. After that, the paper discusses the pedagogical innovation proposed by the movement called Escola Nova and its affinities with the concept of literary reading proposed by the Committee. Finally, the text analyses the book Rute e Alberto resolveram ser turistas (1938), by Cecília Meireles. We observed that, in this eminently pedagogical book, the author evidenced her links with the values promoted by Escola Nova and tried to use some literary devices, such as character creation, setting, dialogues, and narratives, but was unable to solve the complex dynamics of teaching and playfulness. The result is a work which, in comparison with other works by Meireles, is below her literary achievements.
Keywords: children's literature; CNLI; Estado Novo.
RESUMEN
Tratando del estudio de la lectura de obras literarias para niños en el período de Vargas, este artículo examina el trabajo de la Comisión Nacional de Literatura Infantil (CNLI) y su comprensión de este tipo de lectura. El análisis muestra cómo la perspectiva de aquelllos intelectuales fue determinada por la tensión entre lo lúdico y lo pedagógico. A continuación, el artículo discute la renovación pedagógica propuesta por la Escuela Nueva y sus conexiones con el concepto de la lectura de obras literarias propuestas por la CNLI. Por fin, el texto analiza la obra didáctica de Cecilia Meireles Rute e Alberto resolveram ser turistas (1938). Se há verificado que em esa obra de carácter eminentemente didáctico, la autora dejó clara su relación con los valores consagrados por la Escuela Nueva. Cecilia, en essa obra, intento utilizar recursos literarios, tales como la creación de personajes, espacios de ficción, el uso de diálogos y narraciones, sin obtener el equilibrio en la compleja dinámica entre la enseñanza y lo lúdico. El resultado es una obra que, en comparación con otras de la misma autora, no está a la altura de sus logros literarios.
Palabras clave: literatura infantil; CNLI; Estado Nuevo.
Após a Revolução de 1930, uma série de intervenções de ordem socioeconômica foi posta em ação de modo que atendesse às exigências de modernização que o novo governo queria ver implementadas. Em que pesem as diversas tensões políticas que a atravessaram, a década de 1930 passou a ser considerada um marco da expansão da urbanização e industrialização do Brasil, iniciando um trajeto que faria o país diversificar suas atividades econômicas após o crash de 1929 e as perdas no setor cafeeiro. Nesse clima de transformações, pleiteadas pela classe média, em consonância com a necessidade de fazer frente ao novo cenário de modernização, os debates em torno de reformas educacionais também se puseram. Evidentemente, o tema da leitura e de sua importância enquanto ferramenta formativa também fez parte da pauta de debates.
A preocupação com a leitura pode ser observada em pesquisas realizadas tanto por Cecília Meireles (1944) como por Lourenço Filho,1 vinculadas ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), as quais buscavam conhecer de modo geral as relações das crianças cariocas com os livros, ao indagar estudantes, pais e professores. Desse modo, a leitura se caracterizava como objeto de uma política pública promovida pelo Estado, a fim de saber dos hábitos e gostos a ela vinculados e, assim, mais eficientemente poder intervir na realidade.
Outra demonstração do quanto a leitura se tornara uma preocupação do governo pós-revolucionário de Getúlio Vargas foi a criação da Comissão Nacional de Literatura Infantil (CNLI), nomeada pelo ministro Gustavo Capanema no dia 29 de abril de 1936, funcionando até fim de 1938. Faziam parte da comissão intelectuais de renome nacional da literatura brasileira: Jorge de Lima, Murilo Mendes, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Maria Junqueira Schmidt, Cecília Meireles e Elvira Nizinska da Silva. Com a saída de Cecília Meireles, entraram na comissão Maria Eugênia Celso e Lourenço Filho.
Gostaríamos aqui de discutir o conceito de leitura literária que presidia a política do Estado Novo e suas implicações na produção de obras para crianças naquele momento. Para isso, primeiramente, discutiremos o que a CNLI compreendia por leitura literária para crianças, salientando a tensão entre brincar e aprender que preocupava seus membros. Em seguida, analisaremos a renovação pedagógica proposta pela Escola Nova e sua influência na concepção de leitura literária da CNLI. Para problematizar, por fim, os limites da relação entre o lúdico e o pedagógico, analisaremos uma obra didática de Cecília Meireles, Rute e Alberto resolveram ser turistas (1938), com base nas especificidades do currículo e da literariedade.
LITERATURA INFANTIL: RECREAR E EDUCAR
Entre os aspectos contemplados pelas discussões da CNLI estavam: o conceito de literatura infantil e sua relação com a literatura em geral, os gêneros mais apropriados para serem utilizados, a relação entre a literatura infantil e a educação, a definição de faixas etárias, a fim de classificar a produção de acordo com um público específico, as "qualidades essenciais" de um livro infantil, o tipo de estímulo a ser dado à produção de livros infantis, a questão das obras estrangeiras, a linguagem apropriada e o lugar das ilustrações (GC 36.04.29; S 0870). Ao final, a comissão esbarrou com seus limites, seja pela falta de financiamento para compra de material para análise ou mesmo premiação dos trabalhos vencedores nos concursos, seja pela falta de poder político para coibir a publicação de livros e revistas considerados impróprios (C 36.04.29; S 0893/3).2
No início de suas atividades, porém, a definição do que seria literatura infantil foi o que teve implicações importantíssimas para o trabalho da comissão e para a compreensão das práticas de leitura. Tanto que cada membro apresentou uma proposição inicial e, com o conjunto dessas proposições, começaram então os debates. Jorge de Lima, por exemplo, entendia a literatura infantil como aquela que não é didática nem programática. Entretanto, afirmava também que, mesmo não sendo didática, a literatura infantil "pode sem querer ensinar muita coisa" (GC 36.04.29; S 0815).3 Como se vê, a relação entre o recreativo e o pedagógico é perceptível desde os primeiros encontros e textos produzidos pela comissão.
Para Elvira Nizinska, o grande desafio consistia em saber o que interessava à criança, qual seu gosto de leitura. Nessa perspectiva, o recreativo viria lado a lado com o educativo, cujo foco seria a recriação de experiências, ênfase nas qualidades morais, nos problemas sociais, históricos e científicos, no estudo da linguagem e na informação (GC 36.04.29 3). Essa mesma opinião era compartilhada por Murilo Mendes, para quem a literatura infantil não existiria se não fosse pelo aspecto recreativo. Para ele, o excesso de moralismo estragava o livro infantil e embotava o exercício da imaginação. Jorge de Lima também era enfático em sua opinião inicial: é infantil a literatura que não é didática, não é programática, portanto não é ideológica (GC 36.04.29; S 0815). Ele criticava, por exemplo, o excesso de doutrina nazista nos livros infantis alemães. Manuel Bandeira também compactuava da mesma ideia de que o recreativo deveria vir antes do didático. José Lins do Rego chegava à mesma conclusão ao afirmar que o livro deveria ser acima de tudo divertido, e não mais uma forma de trabalho. O livro infantil também não devia servir de disfarce, pois, segundo ele, "a didática compete aos mestres" (GC 36.04.29; S 0822/3).
Entretanto, por mais que a comissão privilegiasse o lúdico e o literário, a dimensão pedagógica e a escola como instituição estavam sempre presentes como pano de fundo das discussões e definição das etapas do trabalho. Ou seja, por mais que se apontassem critérios prioritariamente estéticos, os elementos morais, pedagógicos, portanto utilitários e práticos, circundavam e eventualmente assumiam a centralidade das posturas e encaminhamentos da comissão.
Para a comissão, o lúdico por si só não assegurava a qualidade desejada para tornar uma obra recomendável para crianças. Tanto é verdade que um dos segmentos de leitura analisados por ela foram os suplementos literários para o público infantil. José Lins do Rego fez uma curiosa pesquisa com o jornaleiro de sua rua, em Botafogo, procurando demonstrar o quanto esse produto da incipiente indústria cultural brasileira era consumido.
Os meninos nem esperam que ele chegue às portas de suas casas, vão ao seu encontro. O suplemento juvenil é o que mais se vende nos dias de sua saída. A matéria desse jornal é a mesma. Um polícia [
sic
] que persegue o bandido, o bandido que se disfarça. Este é o grande assunto. Outra seção procurada, sobretudo pelos meninos, nas edições do domingo nos jornais é o cinema, para a coleção de artistas. As meninas se empenham grandemente, mais do que os meninos, nesse gênero de pesquisa. (GC 36.04.29; 0821/2)
Embora divertisse e cooptasse o gosto das crianças, era um tipo de leitura do qual se temia trazer um prejuízo na formação do ser, pois, por exemplo, o contato com os relatos sobre feitos criminosos poderia causar uma influência negativa. Não é à toa que a atenção da comissão se voltou também para a influência dos programas infantis de rádio, tendo em vista que a radiofusão se transformara num "poderoso aparelho educacional" (GC 36.04.29; S 0865/2). Com essa preocupação, a CNLI escreveu, em maio de 1936, à Associação Brasileira de Imprensa (ABI) sugerindo que esta constituísse também uma comissão a fim de estudar a influência do sensacionalismo sobre crianças e adolescentes. Destacava, em particular, "o noticiário sobre crimes de morte, roubos, suicídios, desastres impressionantes", cuja configuração nem sempre se mostrava adequada em relação aos cuidados que a imprensa "deve ter sobre a educação do povo". E continuava:
Igualmente, seria de grande interesse e significação que essa associação fizesse uma ação de propaganda, no sentido do desenvolvimento, nos jornais e revistas de todo o país, de ações especialmente destinadas às crianças e aos jovens, e cuja orientação educativa, de um modo geral, poderia ser feita, se assim for julgado conveniente, por meio de sugestões periódicas da Comissão de Literatura Infantil. (GC 36.04.29; 0827/2)
Curiosamente, podemos então concluir que já não era o lúdico o fator decisivo para fazer com que o texto fosse abrigado no gênero literatura infantil, uma vez que, sendo atendido esse critério pelos suplementos infantis dos jornais da época, assim mesmo medidas que visavam controlar tais publicações foram sugeridas. Se bastava, aos livros didáticos, o elemento recreativo para a comissão julgar que podiam ser inscritos no gênero literatura infantil, o mesmo não ocorria às publicações não didáticas, porque estas, mesmo divertindo, podiam comprometer a educação das crianças. Ou seja, aqui o lúdico se tornava perigoso, tendo em vista que podia subverter a dimensão educativa. Ora, isso não sugere que, para a CNLI, o pedagógico seria, ao fim, a instância decisiva na seleção e estímulo da/à produção literária dirigida às crianças?
Como podemos perceber, pela análise dos documentos da CNLI, a literatura infantojuvenil era vista se movendo constantemente na tensão entre o recreativo e o pedagógico. Embora a comissão afirmasse explicitamente que a literatura devia primeiro ter valor estético - portanto, de diversão - para depois educar e edificar, e, embora admitisse que o livro que apenas se pretendia divertido poderia também ensinar, a tendência era valorizar cada vez mais o caráter pedagógico e moral da produção literária. Como bem observa Ângela de Castro Gomes (2003), em seu artigo "As aventuras de Tibicuera: literatura infantil, história do Brasil e política cultural na Era Vargas", a comissão encontrou sérias dificuldades, primeiramente para definir o que era literatura infantil e suas peculiaridades. Segundo o olhar da comissão,
Não é literatura infantil todo um conjunto de textos com explícitos objetivos didáticos e programáticos, além daqueles de caráter técnico e científico, não importando a faixa etária a que se destinavam. Isso significava que a Comissão definia (desejava e projetava) como literatura infantil aquela que, por excelência, investia na imaginação infantojuvenil e, nesses termos, contribuía para educar. A "fantasia", como se dizia, deveria presidir o texto, que teria que ser "recreativo", para, dessa maneira, ser "instrutivo". (
idem
, p. 118)
A posição da comissão era, portanto, favorável à perspectiva de que o prazer estético, a diversão e a qualidade artística da obra precedem o caráter didático.
Contudo, a relação entre o caráter recreativo e o educacional da literatura infantil, levada aos extremos, apontava impasses: a literatura infantil sempre deveria primeiramente recrear, para depois alcançar o objetivo de educar; entretanto, nem sempre o que recreia chega a educar e, portanto, havia que se cuidar com essas obras que apenas distraíam - caso dos gibis, por exemplo; por outro lado, nem tudo o que busca educar traz recreação, o que também era um processo indesejado pela comissão, posto que a meta pedagógica poderia ser posta em perigo. Sendo assim, a obra ideal seria aquela que agregasse dois valores: o lúdico e o didático; a obra desprezível como leitura literária para crianças seria aquela que apenas divertisse, mas não educasse; e o resultado lamentável seria a obra que, não obstante os nobres objetivos morais e educacionais, não chegasse a divertir, pois temia-se que, sem o lúdico, a meta pedagógica não fosse alcançada por falta de motivação por parte das crianças.
Mas quais seriam as bases dessa discussão em que a identificação da leitura com o brincar tem tanta importância no processo educativo? O debate protagonizado pela comissão acerca da relação entre o caráter lúdico e o pedagógico da literatura infantil tem claros pontos de conexão com alguns paradigmas da filosofia que norteavam a Escola Nova em sua crítica à escola tradicional.
A ESCOLA NOVA E A LEITURA LITERÁRIA
Primeiramente, a própria criação da comissão já apontava para um momento novo de estudo científico e teoricamente embasado da situação da literatura infantil no Brasil. Um dos aspectos que chamam a atenção é a ideia, expressa no Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, em 1932, de integrar a realidade escolar com a realidade da sociedade brasileira. A educação era um projeto que devia envolver toda a sociedade, e não apenas a escola. Nesse projeto, família, demais instituições sociais e culturais entrariam em cena. Daí a importância da literatura infantil como um dos elementos paraescolares ou extraescolares de formação do indivíduo. Livro infantil educa.
Outro aspecto importante da interconexão entre os debates da comissão sobre literatura infantil e a proposta escolanovista era a valorização do conceito de atividade, isto é, o ensino não poderia ser um processo do qual o aluno participasse apenas passivamente. A educação deveria ocorrer de dentro para fora do indivíduo, ou seja, um movimento participativo, dinâmico. Dessa maneira, já não havia como conceber uma educação que se apoiasse num intelectualismo infértil, numa verborragia vazia de significação e subsidiada pela passividade. O foco do novo projeto era a atividade. Nesse sentido, a leitura literária tornava-se elemento fundamental na medida em que, "[n]essa nova concepção da escola, [...] [a] atividade que está na base de todos os seus trabalhos [...] é a atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessidades do próprio indivíduo" (Azevedo et al., 2010, p. 11).
Outro valor extremamente importante para a Escola Nova e também de interesse da CNLI era a criatividade. Assim, a literatura infantil poderia funcionar como uma bela ferramenta para ativação e desenvolvimento das habilidades criativas das crianças. Entre os princípios da Escola Nova, estava a ideia de que o educando - seus interesses, sua livre participação, sua plena realização - era o centro do processo de ensino. Nesse sentido, a ênfase no ensino como um processo motivador, espontâneo e vinculado à realidade do educando estava plenamente contemplada na percepção que a comissão tinha de literatura infantil, ou seja, esta era vista como instrumento estratégico de formação cultural, moral e social do indivíduo.
Em contraste, a escola tradicional era palco do desinteresse, do tédio, das lições obrigatórias, do autoritarismo absurdo e embrutecedor, do "regime de imobilidade, do silêncio, do ar confinado, das pesadas horas de trabalho, dos estudos sem interesse, de sistemática negação de toda espontaneidade" (Meireles, 1930, p. 7 apud Lôbo, 2010, p. 25). Sem liberdade e sem espontaneidade, não há processo educativo que seja bem-sucedido, como bem lembrou Anísio Teixeira (1934). Como um dos princípios do movimento Escola Nova, a criança estava no centro do processo educativo, que devia priorizar a liberdade, o interesse e a criatividade. Ora, o caráter lúdico da literatura infantil apelaria justamente para esse quê de espontâneo e livre que se manifesta na criança. Por isso também o brinquedo é tão importante no processo formativo dessa nova perspectiva educacional (Lôbo, 2010).
Como comentou Cecília Meireles em suas crônicas sobre educação, o respeito à criança é condição fundamental para que o processo educativo se dê de forma natural e livre, evitando "que os [...] alunos venham a pensar tal qual [o professor] pensa", para não "agrilhoá-los ao passado" (Meireles, 1930 apud Lôbo, 2010, p. 29). Para Cecília, a escola precisava ser um lugar belo, que recebesse o belo, e onde a experiência do belo fosse possível. Na escola tradicional, dizia Cecília, o espaço era marcado por uma experiência antiestética, pela falta de beleza e pela obsolescência:
[...] o relógio feroz, que não perdoa os atrasos do bonde; o livro de ponto ferocíssimo, com a sua antipática roupagem de percalina preta e a sua sinistra numeração, pela página abaixo. [...] De toda a parte surgem objetos detestáveis: réguas, globos empoeirados, borrachas revestidas de madeira, tímpanos, vidros de goma arábica, todas essas coisas hediondas que se convencionou fazerem parte integrante da fisionomia da escola, e que são acreditadas indispensáveis e insubstituíveis. Coisas mortas. (
idem
, p. 30)
E de novo a liberdade e espontaneidade tornavam-se ingredientes fundamentais da nova educação, no parecer de Cecília Meireles:
O que a escola moderna pretende, acima de tudo, é restituir à criatura humana as suas primitivas qualidades de ânimo livre, de inteligência franca, de sentimento justo e de vontade equilibradora, reconquistando-lhe a independência de qualquer preconceito novo, pelo estímulo da sua iniciativa de observar, do seu destemor de experimentar, da sua coragem de agir, uma vez desenvolvidas, prévia e sabiamente, todas as suas faculdades, num ambiente de iniciações favoráveis. (
idem
, p. 81)
Para Cecília, o primeiro compromisso da escola deveria ser com o educar, não apenas com o instruir, isto é, mais que treinar habilidades, a escola deveria formar pessoas, seres humanos plenos de ação e significado de viver. Nesse processo formativo, a produção autoral da criança seria de fundamental importância.
Como se vê, no trabalho da CNLI podem-se observar pontos de conexão com os princípios da Escola Nova para além do fato de dois de seus integrantes, Cecília Meireles e Lourenço Filho, terem sido signatários do manifesto. A leitura literária era vista talvez de modo exemplar, modelo do que a nova escola, pós- -revolução, deveria desenvolver na totalidade dos processos pedagógicos, posto que ali era o interesse da criança, movido pela experiência recreativa descortinada pela leitura, que presidia a atividade. Entretanto, vale repetir, esse contato da criança com o lúdico só recebia, ao fim, validade à medida que podia ser aproximado de um horizonte pedagógico. Ou seja, ao mesmo tempo em que a comissão nos seus debates se empenhava em delimitar o estético, negando pertencer à literatura infantil o que tivesse caráter eminentemente pedagógico, em seguida recuperava a dimensão educativa da leitura literária, salientando a possível articulação desta com o pedagógico. Assim, numa perspectiva que muito se estreitava com a concepção escolanovista, o estético recebia excedente educativo e o pedagógico, recurso motivacional.
Ora, restaria indagar como a proposta de José Lins do Rego, exposta nos debates da CNLI, de que "o livro para menino deve ser um recreio" (GC 36.04.29; 0833/3), mas ao mesmo tempo pode (ou deve) educar, como ela se efetivaria? Não teriam, aquilo que é recreação e aquilo que é educativo, exigências, envolvimentos subjetivos, enfim, temporalidades diferenciadas? Se pensarmos, por exemplo, nos espaços formais de educação, o recreio é o tempo em que os sujeitos estão dados a si mesmos para que, por sua vez, entreguem-se à atividade que lhes satisfaça. Nele, o tempo regrado da aula está temporariamente suspenso para que se possa, após renovação e autonomia concedida, retornar mais produtivo. Ou seja, o que é recreação, lúdico, pode conviver com o que é sistematicamente educativo, de modo que este possa ser potencializado. Mas, para além desse exemplo da educação formal - caso de justaposição, intercalação -, podem eles se reunir numa só ação? De que maneira seria possível, no caso que aqui nos interessa, numa obra oferecida às crianças, a sua reunião? Dando asas à motivação do educando, defendida pela Escola Nova, as crianças poderiam, num livro didático, recrear-se?
RUTE E ALBERTO: APRENDER E/OU BRINCAR?
Gostaríamos, a essa altura, de discutir uma proposta de livro para crianças que nos parece ter sido desenvolvida em consonância com o contexto e o desdobramento das questões aqui enfocadas. Trata-se de Rute e Alberto resolveram ser turistas, escrito por Cecília Meireles em 1938, portanto, no calor dos debates que estamos apresentando e já dentro do Estado Novo. Depois de seu envolvimento crítico nas reformas educacionais (Lamego, 1996), do suicídio do marido em 1935, da organização da pioneira biblioteca infantil do Pavilhão Mourisco - fechada em 1937 por conter livro de perfil comunista4 (Pimenta, 2001) -, no mesmo ano de 1938 em que inscreve Viagem no concurso literário da Academia Brasileira de Letras (ABL) - cuja premiação lhe abriria as portas de uma carreira literária de reconhecimento -, Cecília publica Rute e Alberto resolveram ser turistas. Vê-se que a convivência, nesse período, da poetisa com a pedagoga confluiu em trabalho intenso, provavelmente necessário pela situação de viúva e mãe de três filhas. É o resultado desse trabalho que nos cumpre, pois, interrogar, para que se possa perceber o funcionamento da reunião - em uma mesma obra para crianças, na esteira das discussões que reproduzimos anteriormente acerca da CNLI e da Escola Nova - da dimensão educativa e literária, da leitura didática e recreativa.
Rute e Alberto resolveram ser turistas não recebeu atenção especial da crítica literária, e estudos o situam mais no âmbito de interesse da história da educação. O livro não está, por exemplo, reunido no espólio da Poesia completa da autora, elaborado pela editora Nova Aguilar (Meireles, 1993), assim como não estão também outras obras de Cecília dirigidas às crianças, à exceção de Ou isto ou aquilo. Quanto aos posicionamentos críticos sobre o livro, pode-se dizer que são ambivalentes no que se refere à avaliação, mostrando-o como obra didática, mas com mérito pelo ineditismo da proposta,5 ou ressaltando que, embora com feição pedagógica e moralizante, como boa parte da obra de Cecília para a infância, Rute e Alberto possui o importante papel de preparar a comunicação da experiência poética para leitores iniciantes.6
Vê-se que, na recepção crítica acerca da filiação ao gênero didático ou literário, é o pertencimento ao primeiro que predomina. De todo modo, afora a autoria renomada, Rute e Alberto deve possuir elementos que o vinculam ao universo literário para que as questões sobre filiação ganhassem no mínimo a possibilidade de se constituírem. E como se articulariam esses aspectos?
Rute e Alberto conta a história de uma família, em época presumivelmente próxima ao ano de sua publicação, que sai de sua casa na Tijuca para passar as férias de verão na praia de Copacabana. Embora residentes no Rio de Janeiro, pela primeira vez os irmãos, cujos nomes compõem o título do livro, veriam o mar. Nessa viagem, estavam o pai e a mãe das crianças e Georgina, a empregada da casa. No trajeto da viagem, as crianças aprendem várias coisas com o pai sobre os lugares por onde passavam. Instalados em Copacabana, Rute e Alberto resolvem ser turistas. Os passeios das crianças pelo Rio de Janeiro são narrados principalmente depois da chegada de tio Mário, que vem de São Paulo para com eles passar o Natal, data festiva que encerra a narrativa. Com esses passeios, a curiosidade das crianças com o que vão encontrando é atendida pelo tio e pelo pai, os principais "professores", com conhecimentos de ordem histórica, geográfica, social, higiênica, entre outras.
Se indagarmos a estrutura e os mecanismos narrativo-pedagógicos de Rute e Alberto, encontraremos algumas curiosidades que melhor nos ajudarão a entender sua ambivalência didático-literária. De saída, o seu conteúdo disciplinar tornado narrativa.
O livro
Rute e Alberto resolveram ser turistas
é um livro didático de uma disciplina específica: as ciências sociais. As crianças podem lê-lo como um "livro de histórias" e não perceberão, ao seguir as aventuras dos dois irmãos, o que salta aos olhos do leitor adulto: o conteúdo programático claramente identificável: noções de tempo e de espaço mais sistematizadas e complexas que nos livros escritos para crianças menores (semana, mês, ano, ano bissexto, estações do ano; pontos cardeais, orientação na cidade e no campo, meios de transporte, representações do espaço), o planeta terra (esfericidade, movimentos de rotação e translação, a linha do equador, polo Norte e polo Sul, hemisférios), acidentes geográficos, o Brasil (extensão e riquezas, diversidade regional, atividades econômicas) e a História do Brasil (descobrimento do Brasil, fundação da cidade do Rio de Janeiro, período colonial, a vinda da corte portuguesa, monarquia e república). (Neves, s/d.)
O enredo da narrativa Rute e Alberto predominantemente foi dirigido pelo conteúdo do Programa de Ciências Sociais da terceira série do ensino primário, como o subtítulo da folha de rosto anuncia. As situações envolvendo os personagens são determinadas de modo que se convertessem em motivos para a exposição de matérias curriculares. As refeições realizadas pela família, por exemplo, constituem-se em oportunidades para abordar a importância dos hábitos de higiene e de uma alimentação saudável e equilibrada. Os passeios pela cidade, por sua vez, criam contextos para que os personagens levantem considerações sobre a história do Rio de Janeiro, à medida que monumentos são visitados.
Ainda em consonância com a posição escolanovista da produção de conhecimento por meio da experiência do educando, o cenário básico para as ações narrativo-didáticas traz o cotidiano. É ele que se torna o palco em que os atores farão - daquilo que está imediatamente próximo da experiência das crianças leitoras cariocas - o teatro da aula. Percebamos, por exemplo, como o episódio da chuva de verão se torna o espetáculo no qual a transformação dos estados físicos da água ganha representação:
À hora do jantar, chovia copiosamente.
- Chuva de verão... - disse o dr. Silveira olhando as vidraças, por onde a água escorria. - Certamente ainda vamos ter noite estrelada.
- É sim. - disse Alberto - Quando cai essa chuvarada grande, daí a pouco já está de novo bom tempo...
Rute gostava era do cheirinho de terra molhada.
- Parece o jardim lá da outra casa, quando o jardineiro regava...
O dr. Silveira continuava uma explicação de chuva, para Alberto.
- ... O ar está sempre com uma quantidade de vapor d'água. O vapor d'água você sabe que é o resultado da evaporação, isto é, da transformação do estado líquido em gasoso...
- É a história da água que ferve... não é? - perguntou Alberto. (Meireles, 1938, p. 120)
E o diálogo continua com o pai, Dr. Silveira, informando às crianças acerca do papel do vapor d'água na atmosfera. Aliás, necessário também é mencionar a estratégia de ação fundamental pela qual se busca fazer a leitura de maneira que um programa curricular ganhe narratividade. Se a experiência envolvendo cenas do cotidiano é o laboratório pelo qual o exercício da aprendizagem se viabiliza, é por meio do diálogo que a voz professoral dos adultos se dilui ou é reforçada. A interlocução entre os personagens torna aquilo que seria conteúdo curricular em objeto de interesse promovido pela realidade imediata das crianças: a aula é uma conversa sobre fenômenos cotidianos.
O que se busca, portanto, é transformar o conteúdo programático em leitura literária, aproximá-lo da experiência de leitura como recreio, que seria característica da relação da criança com a literatura infantil. Segundo a CNLI, esse seria o objetivo que se busca alcançar ao vestir de narratividade a matéria da aula; um verdadeiro consórcio entre o lúdico e o didático, posto em ação por Rute e Alberto resolveram ser turistas.
Pois bem, apesar de todo o esforço de reunir a um só tempo o lúdico e o didático, pelo esquecimento que recebeu, nada indica que Rute e Alberto tenha se tornado um sucesso de aceitação pelo público infantil. Ao contrário de outras obras destinadas às crianças, como as de Monteiro Lobato ou mesmo o Cazuza, de Viriato Corrêa, o livro de Cecília não encontrou sucessivas edições. Como não existem pesquisas que revelem como Rute e Alberto foi recebido nas escolas à época de sua publicação,7 o que gostaríamos agora é de considerá-lo do ponto vista de suas estratégias ficcionais. Abordando mais sua dimensão estética, nossa análise buscará problematizar aspectos que mostram algumas fragilidades da proposta de Cecília como obra literária (o que também, presume-se, é causa da empatia sem fortuna com o público, a despeito de outras obras suas). Fixaremos nossa abordagem em torno da concepção de narrativa de Rute e Alberto, a relação entre adultos e crianças representada nos diálogos e o tipo de recepção que o livro idealiza.
Curiosamente, se Rute e Alberto apresenta uma diversidade de cenas e acontecimentos nos deslocamentos feitos na cidade do Rio de Janeiro, não há tensão que os apresente para o leitor, compreendida esta como conflito(s). A oposição aos interesses dos protagonistas, seja de ordem interna ou externa, é inexistente. A narrativa se constitui no encadear de uma série de cenas oportunamente criadas como motivo para introduzir um tópico curricular. Tal ausência de conflito torna a leitura sem maiores tensões, pois não ocorre o constante processo, desdobrado na leitura literária, de antecipação e retrospecção dos eventos narrativos à proporção que as expectativas são concretizadas ou surpreendidas com o inesperado. Veja-se este momento aleatório e exemplar da narrativa:
Rute e Alberto foram lavar as mãos correndo.
- Estamos todos com muita fome! Proclamou o dr. Silveira sentando-se. - Andamos em excursão pelo bairro...
- Muita coisa interessante? Perguntou D. Isabel para as crianças.
Rute e Alberto puseram-se a falar ao mesmo tempo:
- Uma confeitaria! - disse a menina.
- Um cinema - exclamou Alberto.
- Uma pracinha, mamãe, cheinha de árvores bonitas como as lá de casa! - disse Rute.
- E onde se pode andar de bicicleta... - acrescentou Alberto.
- Um teatrinho, mamãe - disse a menina - Um teatrinho de 200 reis!
- Um guignol, - esclareceu o dr. Silveira.
- Um coreto para música! - disse Rute.
- E um busto no meio da praça - acrescentou Alberto com valentia. - De Serzedelo Corrêa.
Houve uma pausa. Acabaram de tomar a sopa, lentamente. Georgina veio tirar os pratos. (Meireles, 1938, p. 75)
A mãe das crianças se queixa dos problemas de deslocamento urbano e, em seguida, nessa cena dialogada, são apresentadas as grandes cidades brasileiras - além do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife etc. - em contraste com as do Brasil rural. Retomaremos o ponto de vista da modernização adiante. Interessa agora observar o caráter esvaziado de tensão dramática que caracteriza os diálogos de Rute e Alberto e que dão a dimensão da inexistência de conflito no todo da obra. Entre uma e outra cena familiar movendo-se no cotidiano carioca, seguem-se as aulas encenadas em diálogos harmônicos. Harmonia, aliás, que caracteriza o modo de vida de uma família de classe média urbana carioca. Nada quebra a tranquilidade dos personagens nas sequências narrativas de Rute e Alberto, o que permite indagar que curiosidade em torno da solução para a tensão dramática vincularia o leitor, de modo geral, a interessar-se pelo desdobramento das aulas encenadas?
A isso pode-se considerar também a relação que se manifesta entre personagens adultas e infantis nos diálogos de Rute e Alberto. Aqui é bom lembrar Lobato e sua estratégia de dar voz às crianças no Sítio do Picapau Amarelo, de modo que manifestassem estar de acordo ou não com aquilo que o mundo adulto esperava. Frequentemente, Dona Benta expunha temas como ética, ciência, arte, saber, enfim. O diálogo, na obra de Lobato, principalmente com Emília, é contestação, ironia, muitas vezes deboche e recorrentemente humor. A relação de assimetria entre adulto e criança, que se repetiria no poder do autor sobre o leitor infantil, relativiza-se com a posição ativa das crianças no processo de recepção, esvaziando a autoridade adulta como centro absoluto. Ora, Rute e Alberto também se manifestam em relação ao que os adultos lhe transmitem, colocando-se como voz que ouve. Entretanto, diferentemente dos personagens de Lobato, sua interlocução com os adultos é sempre comportada, virtuosa, quem sabe obediente. Caracterização esta que estaria justamente em conformidade com a concepção de criança que Cecília queria ver em seu livro, como sugere a passagem de sua correspondência com outro pensador da Escola Nova, Fernando de Azevedo, quando comenta sua leitura de Lobato.
Recebi os livros de Lobato. Preciso saber o endereço dele para lhe agradecer diretamente. Ele é muito engraçado, escrevendo. Mas aqueles seus personagens são tudo quanto há mais malcriado e detestável no território da infância. De modo que eu penso que seus livros podem divertir (tenho reparado que diverte mais os adultos que as crianças) mas acho que deseducam muito. É uma pena [...]. Por nenhuma fortuna do mundo eu assinaria um livro como os do Lobato, embora não deixe de os achar interessantes. (Lamego, 1996, p. 229
apud
Zilberman, 2001, p. 181)
Depois de apresentar essa citação, Zilberman, amparada em Debus (2004), contrapõe-se à opinião de que as crianças não apreciavam as narrativas lobatianas, fato que nos faz pensar que o processo de identificação do leitor com as crianças do Sítio ocorria de modo muito mais eficaz que com as de Rute e Alberto.
E, como aqui entramos na discussão sobre a recepção de Rute e Alberto e a identificação das crianças leitoras com os personagens, gostaríamos de abordar uma das particularidades da leitura literária vinculada à experiência lúdica que ela possibilita e à relação que pode ser estabelecida com o outro por meio dessa dinâmica. Sabe-se que o ato de fruir literatura - e a arte de forma geral - nos põe diante da possibilidade de viver a vida alheia, de nos colocar, por um processo de identificação, de catarse, no lugar do outro e sofrer e vibrar com suas ações narradas. Isso é o que Bakhtin (1994) caracterizou como exotopia, processo envolvido na criação estética (mas também na pesquisa científica da área de ciências humanas), segundo o qual o ser (EU) procura se colocar no lugar do outro e compreender como, pela sua visão, que é única, ele se coloca em relação ao mundo para depois retornar à sua "posição inicial" acrescido da experiência do outro, mas também acrescentando ao outro o que este não vê, pois é como o ser (EU) o vê ao fim do percurso, dando-lhe uma visão que ele (o outro) de si não tem.
Subentende-se que a exotopia pode desencadear conhecimento, aprendizagem por meio da identificação com o outro que a leitura literária descortina. Mas isso é possível se a tensão dramática contagiar o leitor, se ele se envolver com os conflitos que movem e/ou atormentam os personagens. No caso Rute e Alberto, obra em que buscamos mostrar a ausência de conflitos, posto que a sequência narrativa é o conteúdo programático, como esse jogo cênico entre leitor e personagem ocorreria? Com quem o leitor se identificaria de maneira que vivenciasse a carga dramática?
O horizonte didático que move Rute e Alberto tenta promover a identificação do leitor com um determinado personagem moderno, agente ideal no processo de conhecer por meio do lazer: o turista. O modelo de leitor que deve ser perseguido é o do turista, pois é com ele que Rute e Alberto se mostram identificados quando adquirem uma postura de crianças pesquisadoras. Quem é esse turista que o livro de Cecília apresenta?
É o próprio Alberto que, indagado pela mãe, responde:
Papai disse que os turistas são pessoas que andam pelo mundo visitando os lugares bonitos. Vendo montanhas, praias, florestas, todas as coisas bonitas da natureza. - e também certos palácios, igrejas, museus, uma porção de coisas que não me lembro bem. Disse que os países que têm assim lugares muito bonitos são visitados por estrangeiros, que querem conhecer essas coisas e que isso é ótimo porque as pessoas de um país ficam conhecendo as pessoas de outros países, e ficam assim gostando umas das outras. Papai disse que seria muito bom se todos no mundo se gostassem. Que talvez não houvesse mais guerras. [...]
- De modo que agora vocês são turistas brasileiros?
- Somos sim - disseram as duas crianças ao mesmo tempo. (Meireles, 1938, p. 108-111)
O turista seria, nessa perspectiva, aquele que espontaneamente desenvolve uma atividade de lazer ao mesmo tempo em que busca conhecer o outro. Ele reúne interesse em aprender quando ocupa o tempo livre na busca interessada pelo que é belo no outro. É ele quem os personagens infantis de Cecília resolvem imitar de modo que o espaço cotidiano do Rio de Janeiro se revele como história. É também o turista o modelo com quem o leitor de Rute e Alberto deve se identificar para viver a leitura da narrativa do conteúdo programático como saber e sabor:
- Vocês já passaram pela lagoa Rodrigo de Freitas? - perguntou Tio Mário.
- Passamos... mas eu não me lembro - disse Rute.
- Ainda não éramos turistas... - explicou Alberto. (idem, p. 193)
Todavia, o turista é uma figura que as crianças na narrativa avistam de longe e indagam ao pai o que ele faz, que língua fala... É mais um elemento da paisagem urbana do Rio de Janeiro que propriamente uma existência dramática que permita ao leitor experimentar a exotopia, a catarse da leitura literária. Se o turista se lança pelo mundo em busca de saber e beleza, o lúdico que estaria aí implicado é diferente daquele vivenciado na leitura literária, como foi observado pela CNLI. O turista em Rute e Alberto é o modelo que a pedagogia deseja que a criança adote em relação ao conteúdo de ciências sociais. Mas isso não faz com que esse ideal se transforme na experiência da leitura literária, porque ele é um horizonte, não um personagem, e a narrativa termina privada de tensão dramática que permita processos catárticos.
Não podemos também deixar de considerar, por fim, os aspectos ideológicos que a escolha do turista como modelo de conhecimento adquire em Rute e Alberto. O turismo surge no mundo histórico com as novas condições de possibilidade, que fazem com que o deslocamento das pessoas se torne mais rápido e acessível como mercadoria, produto desenvolvido pelo desdobramento tecnológico da ciência. Um dos efeitos da globalização, o turismo nos é apresentado por Cecília numa perspectiva universalista e celebradora da modernidade e, se pensarmos bem, em conformidade com o modo pelo qual ela se interessou, em suas viagens, pelas diferenças culturais e as buscou compreender respeitosamente.8
Contudo, se a escolha do turista como símbolo sugere uma contraposição a qualquer nacionalismo ufanista, não podemos também deixar de considerar a divergência entre a concepção de literatura que comumente Cecília praticou e a utilitarista apresentada em Rute e Alberto. É a importância da fantasia, do sonho, encarnada de modo geral em sua poesia de inspiração simbolista, que o projeto de Rute e Alberto contradiz. E aqui queremos chamar a atenção menos para o caráter formativo da literatura, que Cecília defendeu ao longo de sua obra, que para essa subordinação da imaginação a exigências utilitárias que a narrativa baseada em conteúdo programático de Rute e Alberto demonstra. A fantasia tem uma grande importância em sua obra poética de modo geral, mas, para ressaltá-la no âmbito específico da literatura para crianças, é oportuno registrar, por exemplo, a defesa que Cecília faz da literatura oral como fonte de interesse para as crianças:
[...] é a Literatura Tradicional (literatura oral) a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o seu primeiro livro, antes mesmo da alfabetização, e o único, nos grupos sociais carecidos de letras. Por esse caminho, recebe a infância a visão do mundo sentido, antes de explicado; do mundo ainda em estágio mágico. Ainda mal acordada para a realidade da vida, é por essa ponte de sonho que a criança caminha, tonta do nascimento, na paisagem do seu próprio mistério. Essa pedagogia secular explica-lhe, em forma poética, fluida, com as incertezas tão sugestivas do empirismo, o ambiente que a rodeia - seus habitantes, seu comportamento, sua auréola. Vagarosamente elaborada, pela contribuição de todos, essa literatura possui todas as qualidades necessárias à formação humana. Por isso, não admira que tenham tentado fixá-la por escrito, e que, sem narradores que a apliquem no momento oportuno, para maior proveito do exemplo, a criança se incline com ávida curiosidade para o livro, onde esses ensinamentos perduram. (Meireles, 1984, p. 66)
No entanto, esse lugar da imaginação, da fantasia, do sonho - dimensões da ficção por meio das quais a tensão dramática e a exotopia se configuram na leitura literária - encontra-se hierarquicamente vigiado em Rute e Alberto, como demonstra, por exemplo, a passagem em que tio Mário retorna, ao final da narrativa, junto com Alberto, trazendo os presentes comprados e que serão distribuídos aos membros da família. O objeto do diálogo é Rute, ainda crente em Papai Noel, que recebe uma discreta reprimenda do universo masculino.
- Rute é muito engraçada - replicou o tio. Acredita em fadas, sereias, anjos... As meninas são assim... Pensam em tanta coisa bonita...! Os homens como nós (Alberto ficou muito contente com as palavras do tio) pensam em negócios, política... Mas as meninas sonham com coisas maravilhosas... E a vida é muito interessante assim... - se todos fizessem a mesma coisa, era horrível! - também uns dão para agricultores, outros para negociantes, outros para poetas - e todos são necessários, e todos têm o seu valor... (Meireles, 1938, p. 185)
O comentário parece que muito apropriadamente também diz o lugar que a leitura literária deve assumir. Se havia lugar para ela nas novas preocupações de um Brasil urbanizado, posto que nele "todos têm o seu valor", era também o de subordinação a funções masculinas e utilitárias. O lugar que a beleza, a fantasia deveria ocupar nessa nova configuração social que a modernização do país exigia e que se representava em Rute e Alberto era de apreço, mas secundário em relação a outros objetivos da nova ordem produtiva. Realmente, a leitura literária era objeto de interesse tanto mais quanto se pudesse, ao fim, torná-la móvel da concepção utilitarista do Brasil pós-revolução. Ora, isso está em consonância com a perspectiva da Escola Nova, que pretendia também enfatizar mais o caráter científico da educação, num desejo de superar o perfil eminentemente literário de nossa formação tradicional, embora o manifesto queira fazê-lo "sem negar a arte, a literatura e os valores culturais" (Azevedo et al., 2010, p. 12).9
Por fim, essa concepção de leitura literária subordinada ao utilitarismo burguês não parece ter passado despercebida a Cecília, e o abandono da literatura para crianças no formato que Rute e Alberto encarna pode confirmar sua coerência poética com manifestações posteriores acerca da importância do sonho, do mistério na leitura literária, como vimos antes na citação de Problemas da literatura infantil. Não podemos esquecer que, no mesmo ano de publicação de Rute e Alberto, também era publicado Viagem, cuja concepção de leitura e literatura, embora tenha outro público-alvo, está longe de assemelhar-se àquela. Para além de uma interpretação de fundo econômico sobre as condições de criação de Rute e Alberto, talvez possamos encontrar na obra uma tensão ausente em Viagem, tomando para isso uma declaração de Cecília, em uma carta dirigida também a Fernando de Azevedo, momento em que se manifesta acerca do engajamento que, a despeito de suas próprias crenças, o tempo do país pós-revolução de 1930 exigia, o que nos faria pensar em Rute e Alberto como seu sacrifício da literatura ao utilitarismo nacionalista.
Gostaria de fazer uma coisa diretamente relacionada com a chamada "realidade brasileira". E não lhe pareça estranho atender a essa realidade, sendo criatura tão embebida em sonho. É o pequeno sacrifício a que me dou, de olhos abertos, neste convívio com os que nunca me compreenderão. Para afligi-los com a certeza (que eles nunca entenderão bem) da separação irremediável em que vivemos? E, se eles não podem ir até este mundo de solidão em que me sinto, neste exílio inexorável, por que não ir até seu tumulto, o seu delírio, para lhes dar certa impressão de comunicabilidade, se essa impressão lhes é necessária e faz bem? (Meireles, 1934
apud
Vidal, 2001, p. 85)
Recebido em agosto de 2011
Aprovado em março de 2013
SOBRE OS AUTORES
Celdon Fritzen é doutor em teoria e história literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: celdon@hotmail.com.
Gladir da Silva Cabral é doutor em letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). E-mail: gla@unesc.net.
Referências bibliográficas
- Arquivo Gustavo Capanema. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV. CG g 36.04.29. Pastas 1, 2, 3, 4.
- Azevedo, Fernando de et al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959).Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Ed. Massangana, 2010.
- Bakhtin. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
- Debus, Eliane Santana Dias. Monteiro Lobato e o leitor, esse conhecido. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004.
- Goldstein, Norma Seltzer. Cecília Meireles, autora de livros voltados aos pequenos leitores. Revista Linha D'Água, São Paulo: Universidade de São Paulo, FFLCH, n. 23, p. 47-57, 2010. Edição Especial de 30 anos. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/62339/65143 Acesso em: 9 jun. 2011.
- Gomes, Ângela de Castro. As aventuras de Tibicuera: literatura infantil, história do Brasil e política cultural na Era Vargas. Revista da USP, São Paulo: USP, n. 59, p. 116-133, set./nov. 2003.
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- Lôbo, Yolanda. Cecília Meireles. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Ed. Massangana, 2010.
- Meireles, Cecília. Rute e Alberto resolveram ser turistas Porto Alegre: Livraria do Globo, 1938.
- ______. Leituras infantis. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944.
- ______. Problemas de literatura infantil 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
- ______. Poesia completa 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.
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- Pimenta, Jussara. Leitura e encantamento: a biblioteca infantil do Pavilhão Mourisco. In: Neves, Margarida de Souza; Lôbo, Yolanda Lima; Mignot, Ana Chrystina Venancio. Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Loyola, 2001.
- Teixeira, Anísio. Educação progressiva: para a aventura da reconstrução da educação. São Paulo: Editora Nacional, 1934.
- Vidal, Diana Gonçalves. Da sonhadora para o arquiteto: Cecília Meireles escreve a Fernando de Azevedo. In: Neves, Margarida de Souza; Lôbo, Yolanda Lima; Mignot, Ana Chrystina Venancio. Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Loyola, 2001.
- Zilberman, Regina. Em busca da criança leitora. In: Neves, Margarida de Souza; Lôbo, Yolanda Lima; Mignot, Ana Chrystina Venancio. Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Loyola, 2001.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Jul 2014 -
Data do Fascículo
Jun 2014
Histórico
-
Recebido
Ago 2011 -
Aceito
Mar 2013