RESUMO.
A partir da problemática da violência que nos ‘toma por assalto’ na contemporaneidade, faremos uma reflexão sobre o contexto brasileiro tendo por instrumento teórico a analítica das relações de poder empreendida por Michel Foucault no curso Em defesa da sociedade, ministrado no Collège de France, em 1976. Buscaremos sustentar neste artigo a hipótese de que a política de segurança pública adotada pelo Estado do Rio de Janeiro não é uniforme, e as forças despendidas em nome da paz, do projeto de pacificação, distribuem-se de forma desigual entre a população. Esse pressuposto nos arremessa em uma questão que entendemos ser fundamental para a compreensão do presente, a saber, quais os mecanismos, táticas e técnicas que asseguram ao poder de Estado o uso da força e da violência contra os seus próprios cidadãos?
Palavras-chave:
Foucault; guerra; poder
RESUMEN.
A partir de la problemática de la violencia que nos ‘toma por asalto’ en la contemporaneidad, haremos una reflexión sobre el contexto brasileño, amparados en el instrumental teórico y analítico de las relaciones de poder formulado por Michel Foucault en el curso Em defesa da sociedade,ofrecido en el Collège de France, en 1976. Buscaremos mostrar la hipótesis según la cual la política de seguridad pública adoptada por el Estado de Río de Janeiro no es uniforme y que las fuerzas desplegadas en nombre de la paz, del proyecto de pacificación, se distribuyen en forma desigual entre la población. Este presupuesto nos sitúa em una cuestión que consideramos fundamental para la compresión de nuestro presente: ¿cuáles son los mecanismos, tácticas y técnicas que aseguran al poder del Estado el uso de la fuerza y de la violencia en contra de sus propios ciudadanos?
Palabras clave:
Foucault; guerra; poder
ABSTRACT.
From the problematic of violence that ‘assaults us’ in contemporary times, we offer a reflection on the Brazilian context, taking as a theoretical instrument the analysis of power relations addressed by Michel Foucault in his lecture Em defesa da sociedade, at the Collège de France, in 1976. The present study aimed to advocate the hypothesis that the public security policies adopted by the Rio de Janeiro State are not uniform, and that the forces used in the name of peace, the pacification process, are unequally distributed across the population. This premise throws us into a question that we understand to be fundamental to the understanding of the present, namely, what are the mechanisms, tactics and techniques that ensure state power to use force and violence against its own citizens?
Keywords:
Foucault; war; power
Introdução
Em 2007, o então gov ernador do Estado do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, concede entrevista à imprensa acerca do aborto. Em sua perspectiva, o aborto deveria ser legalizado e integrado às políticas públicas de saúde. O motivo: reduzir os índices de criminalidade. A relação é direta, sem termos falhos e inexatos. O controle da natalidade em áreas pobres da cidade teria um impacto positivo na redução da violência, pois, segundo o governador, a taxa de natalidade nesses lugares − ele se refere especificamente à comunidade da Rocinha, às mulheres da Rocinha − estaria próxima a países como ‘Zambia, Gabão’. Logo, conclui que a favela “[...] é uma fábrica de produzir marginais” (Cabral, 2007Cabral, S. (2007, 16 de outubro). Cabral defende aborto contra violência no Rio de Janeiro [Entrevista concedida a Aluizio Freire]. O Globo. Recuperado de: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html
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).
Em 2017, o jornal Extra, de grande tiragem e circulação no Rio de Janeiro, cria uma editoria de guerra para alocar as notícias que escapam à ‘normalidade’ da violência urbana. Baseados em um dossiê ‘secreto’ do Estado, o veículo da grande imprensa traz ao público o número exato de territórios perdidos para o crime organizado: 843. Segundo Octávio Guedes, diretor de redação do Extra, “[...] para resolver o problema é necessário chamá-lo pelo termo correto”. As mortes violentas provocadas por fuzil, as viúvas de policiais que se somam, as mães que choram a perda dos filhos mortos nas escolas, todos esses fatos depõem a favor do argumento sustentado pelo jornal segundo o qual o Estado já perdeu o controle, mesmo em territórios que se queriam acreditar ‘pacificados’ pelas Unidades de Polícia Pacificadora, UPPs. Para o diretor do jornal, a população que habita esses territórios está subjugada, “[...] aquém do Estado de direito democrático“ [sic]. Logo, afirma, “[...] não há o que se falar, estamos em guerra!” E a guerra, completa, “[...] é tempo, é recurso, tem que ter estratégia” (Editorial, 2017Editorial. (2017, 16 de agosto). Isso não é normal. Extra. Recuperado de: https://extra.globo.com/casos-de-policia/guerra-do-rio/isso-nao-normal-21711104.html
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).
2018. O presidente Michel Temer decreta intervenção federal na área de segurança pública no Rio de Janeiro sob a alegação da necessidade de “[...] enfrentar e derrotar o crime organizado”. O perigo que ameaça toda a sociedade é desenhado por suas palavras: “[...] uma metástase que se espalha pelo país e ameaça a tranquilidade do nosso povo”. A solução, ‘extrema’, coloca-se frente à natureza do problema, “[...] as circunstâncias assim o exigem [...]”, de modo que se lança mão de “[...] respostas duras, firmes”. Temer é enfático ao afirmar que “[...] não podemos aceitar passivamente a morte de inocentes [...] por isso chega, basta!”. O presidente continua sua fala, ressaltando, agora, o que está sob risco: “[...] não vamos aceitar que matem nosso presente nem continuem a assassinar nosso futuro”. Assim, prossegue, “[...] o interventor terá poderes para restaurar a tranquilidade do povo [...] as polícias e as forças armadas [...], unidas, combaterão, enfrentarão e vencerão aqueles que sequestram do povo as nossas cidades”. Sob intervenção, já não restam dúvidas de que há um campo de guerra esquadrinhado, visto que “[...] a desordem é a pior das guerras. Começamos uma batalha em que nosso único caminho só pode ser o sucesso” (Temer, 2018Temer, M. (2018, 16 de fevereiro). Presidente Michel Temer assina decreto de intervenção na segurança do Estado do Rio de Janeiro [Pronunciado público realizado em cadeia nacional]. NBR. Recuperado de: https://www.youtube.com/watch?v=7HOlqToJhcM
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).
Nos três exemplos trazidos acima, delineia-se uma retórica que faz coincidir a guerra como princípio de análise (1) das relações do poder político e (2) da disposição, formação do espaço social, com metáforas que apelam para o corpo singular tornado objeto de cuidado e intervenção frente a uma doença que o assola. Natalidade desordenada, crime organizado, territórios conflagrados, violência, metástase, vida, morte, guerra, estratégia, enfrentamento, derrota. Todas, palavras utilizadas nos discursos e pronunciamentos que tentam legitimar uma política de Estado que impõe o horror e a violência a uma parcela específica da população segundo seus cálculos de força e enfrentamento.
Ora, nesse contexto, podemos questionar: a guerra enunciada é apenas metafórica? Se não, quais os pressupostos que sustentam e legitimam uma guerra? Quais as valências desse combate? Qual a trincheira que se delineia formando agrupamentos e esquadrinhando o espaço social? Como se efetua essa guerra de/do Estado? O modelo da guerra oferece, como afirma o filósofo francês Michel Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 16) no curso Em defesa da sociedade, um “[...] gabarito de inteligibilidade [...]” a partir do qual podemos pensar as relações do presente? É a guerra a última trincheira da política, aquilo que porta seu fracasso, ou, ao contrário, aquilo que a possibilita?
Guerra e fracasso da política
A partir do aforismo do general alemão e teórico da guerra Carl Von Clausewitz, segundo o qual a guerra é a continuação da política por outros meios, Michel Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976.) empreende uma analítica das relações de poder deslocando-se das análises filosófico-jurídicas, que têm por paradigma a soberania, para encontrar outra forma de pensar não O poder, mas as relações que o possibilitam, que o efetuam, que o investem e o rebatem. Do modelo filosófico-jurídico calcado na soberania com seus termos correlatos, quais sejam, contrato, direito natural, servidão, Foucault faz emergir, a partir da genealogia, o paradigma histórico-político na base do qual serão pensados os mecanismos que efetuam o poder, as técnicas de dominação, as táticas de sujeição, o jogo de forças que atravessa e costura a tessitura social, os embates e enfretamentos em torno do poder, pelo poder e a partir do poder.
De saída, Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 15) inverte o aforismo de Clausewitz. Não será a guerra a continuação da política investida de outra forma, antes, o oposto: “[...] a política é a guerra continuada por outros meios”. Estaríamos, deste modo, em estado permanente de guerra, tal qual enunciado pelo mais conhecido teórico da soberania, Thomas Hobbes? A quem, pois, serviria a proposição do general alemão?
O problema filosófico teorizado por Hobbes parte da interrogação sobre os fundamentos jurídicos do poder para firmar a soberania em bases sólidas e confortáveis, posto que esse regime de poder teria como momento fundante e legítimo o contrato estabelecido entre as diversas individualidades de modo a assegurar a vida de todos. Pairando sobre essa massa múltipla (de aparente contradição) e atomizada, estaria o soberano como entidade mítica, detentor dos poderes que lhe foram outorgados, legislando sobre os súditos. O pacto pelo medo, a liberdade pela segurança, a lei e a legislação em detrimento da natureza; o poder e o que lhe excede sob a forma da opressão. Eis o problema da soberania. O que se busca com a fundação do Leviatã, sustentado pelo discurso jurídico-político, não é evitar a guerra disseminada e irrestrita no corpo social, mas segundo Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 24) “[...] dissolver, no interior do poder, o fato da dominação [...]” no momento mesmo em que se ressalta o caráter legítimo da soberania e a obrigação de servir.
A este discurso, portanto, localizado entre os séculos XVII e XVIII, que busca a manutenção do soberano a partir de regras de direito, da lei e da legislação, serve o aforismo de Clausewitz: a guerra é a continuação da política por outros meios. Podemos ler de outro modo: obediência ou barbárie. Neste sentido, a estrutura do poder político teria por começo o silenciar das armas, o cessar dos ruídos e tormentas provocados pela guerra. Entretanto, essa guerra de todos contra todos na qual o Estado intervém e constitui-se como núcleo de pacificação não se refere, adverte-nos Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 43), “[...] ao sangue e à lama das batalhas [...]”, ao horror das disputas, às vitórias arrancadas no combate real.
A guerra enunciada por Hobbes e pelos juristas contratualistas é uma guerra de representação, uma tentativa infinda de manter a pacificação do corpo social, apaziguar as disputas e embates virtuais que carregam como índice a derrocada do poder soberano. Guerra entre iguais, em que a “[...] anarquia das pequenas diferenças” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 76) expõe forças ideais que se desconhecem e rivalizam em um ambiente de incertezas, riscos e medo, compondo “[...] o aleatório na relação primitiva das forças que cria esse estado de guerra” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 76).
Prontidão para a guerra, vontade de guerrear, cálculo de forças: momentos do teatro representacional da guerra primitiva de Hobbes, os quais evidenciam o aleatório das relações de força em disputa e instauram o estado de guerra, e não A guerra, cujo espaço não é a batalha, tampouco o tempo é o combate. Antes, aquilo a que Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 78) denomina de “[...] diplomacia primária [...]” regida pela vontade, vinculada ao medo. Desenha-se, portanto, o modelo filosófico-jurídico da soberania cujo princípio de efetuação é “[...] uma certa vontade radical que faz que se queira viver mesmo quando não se pode viver sem a vontade de um outro” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 81). Soberania que se forma por um ato de vontade vindo de baixo, dos tentáculos e extremidades do corpo eivado de medo. Logo, discurso filósofo-jurídico que busca apaziguar as disputas, eliminar a história das lutas, a reativação de saberes sobre a guerra, os comportamentos correlatos e os efeitos daí decorrentes nas leis e nas instituições reguladoras do poder.
O alvo do silenciamento imposto pela teoria hobbesiana, segundo o filósofo francês, é a guerra com o jogo de forças que lhe é próprio, a possibilidade de inversão da polaridade que esse jogo carrega, as disputas, as conquistas e as vitórias.
Vós a quisestes, sois vós, os súditos, que constituístes a soberania que vos representa. Não nos aborreceis mais, portanto, com vossos repisamentos históricos: ao cabo da conquista (se quiserdes realmente que tenha havido uma conquista) encontrareis ainda o contrato, a vontade amedrontada dos súditos (Hobbes apud Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 82-83).
O que está em jogo na teoria filosófico-jurídica da soberania é o silenciar das forças disruptivas que tencionam se insurgir contra o Estado, a tentativa de reinscrever na história o lamento dos oprimidos, a possibilidade mesma de outra história. Fora do Estado, do Leviatã, da lei, do Soberano, não há saída. A guerra é a continuação da política por outros meios. Se se recusa a estrutura jurídica da política investida e encarnada no soberano, acha-se a guerra de todos contra todos; o massacre, a morte. Recusa aos riscos da vida, preferência pela vida à morte.
Entretanto, um outro discurso se anuncia e inverte esses termos: a política como continuação da guerra por outros meios (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976.). Estamos no discurso histórico-político que se forma no século XVI, diante do paradigma que Clausewitz toma pelo avesso para sustentar a soberania. Qual poder esse discurso faz falar? Como funciona?
A guerra como princípio político
A analítica do poder em Foucault, como já mencionado anteriormente, abandona a referência ao par soberania-obediência para fazer surgir em seu lugar o problema da dominação-sujeição. Não mais buscar no edifício jurídico as regras de direito que sustentam o poder e o impõem de modo vertical, mas empreender um exame do que extravasa essas relações, das multiplicidades que constituem o poder, das capilaridades e ramificações que formam um conjunto de instituições, redes, saberes, técnicas, táticas, estratégias de sujeição. Noutras palavras, buscar compreender os corpos dos súditos assim constituídos pelos efeitos de poder, rastrear as relações de sujeição que fabricam os sujeitos a partir de procedimentos de dominação (Foucault, 2010). Daí a referência ao modelo binário que a guerra oferece.
A política como continuação da guerra por outros meios. Por conseguinte, a guerra como primeira e infindável. Esse é o fio pelo qual se desenvolve o pensamento de Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976.) no Em defesa da sociedade, que, a partir do trabalho genealógico, buscará na história dos povos a reativação do saber sobre a guerra, a inscrição na ordem dos discursos das artimanhas das batalhas, da luta, dos enfrentamentos travados, das forças em disputa, das relações de poder tingidas de sangue e dos efeitos de poder que esses saberes reativados impingem na ordem da política.
Tais saberes ganham corpo com o fim da idade média, quando, paradoxalmente, a guerra é expulsa para as fronteiras do reino e, concomitantemente, constitui-se um aparelho militar cuja função é a guerra. A guerra privada entre os vários componentes é cessada e em seu lugar centraliza-se a guerra como direito do Estado. Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 41) localiza o surgimento do discurso histórico-político no qual a guerra aparece como fundamento das relações sociais nesse momento em que “[...] o corpo social inteiro ficou limpo dessas relações belicosas que o perpassavam integralmente”.
Como princípio de análise, o pensador francês toma a inversão dos termos. Inverte, vira pelo avesso para mostrar o que se esconde sob o consenso da lei e da paz. A lei nasce da guerra que, por sua vez, não encontra ali seu final.
A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares. A guerra é que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor das engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guerra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz. Portanto, estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 43).
A consequência primeira desse discurso, histórico-político, é a binarização da sociedade, cortada em duas: uma vencida, a outra vencedora; uma com seus feitos e fatos contados e enfeitados; a outra, esquecida. Há, nesse discurso, um ‘nós’ que se articula e se recompõe na ordem da batalha, tece trincheiras, apresenta armas e reivindica direitos singulares: da família, raça, direito de superioridade social ou de anterioridade do poder, direito das invasões, das conquistas e ocupações milenares. Neste ponto Foucault faz convergir relações de força e relações de verdade. O sujeito do discurso histórico-político, ao contrário dos filósofos da teoria da soberania, é o sujeito implicado na batalha. Histórico-político porque busca conjurar a memória e usá-la como arma política. Trata-se, portanto, de inserir a história nos domínios do direito.
À vista disso que o historiador Henri de Boulainvilliers, sob encomenda do rei da França Luis XIV, fará uma historiografia do reino não ao molde de uma história monumental para intensificar o brilho e a glória do soberano, a história gloriosa do poder, mas para evidenciar o que ele oculta e que servirá, em consequência, à nobreza reacionária. O clamor do discurso desse representante da aristocracia decadente francesa incide sobre sua classe e conclama para que reabra a memória, tome consciência, recupere o conhecimento e o saber sobre si a fim de reaver o poder do qual fora expropriada pelo monarca e pela burguesia.
Segundo Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976.), ao fazer a historiografia da França, a genealogia do povo franco, dos galo-romanos, dos embates entre as diversas raças, das lutas e conquistas, Boulainvilliers reativou o discurso histórico-político e disseminou a guerra por todo o corpo social; generalização da guerra que a coloca como fundamento da sociedade civil. A relação de força transforma-se em objeto histórico, e este é integralizado aos cálculos políticos a partir de um discurso que reivindica a verdade como arma na batalha.
A importância que esse discurso assume está no que lhe é possível reativar e conjugar: saberes milenares, a verdade dos desvalidos e interditos e mitos tradicionais, em suma, como assinala Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 49), “[...] um discurso em que a verdade funciona como arma para uma vitória exclusivamente partidária. É um discurso sombriamente crítico, mas é também um discurso intensamente mítico; é o dos amores, dos amargores, mas é também das mais loucas esperanças”. Discurso que usará a história como saber para decifrar as forças e, mais ainda, para modificá-las. Verdade como arma política, pois o controle do saber histórico definirá uma posição estratégica no campo da batalha. Discurso, também, que identifica as forças da guerra com os fundamentos da sociedade civil ao decifrar as lutas que perpassam as instituições e a paz.
Nesse contexto, argumentar que a política é a guerra continuada por outros meios é afirmar que as relações de poder se sustentam numa relação de força inscrita na guerra e pela guerra. Nesse modelo, o poder político teria por função reinserir incessantemente essas relações de força na sociedade civil “[...] mediante uma espécie de guerra silenciosa” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 15), em que se expõe e explora os desequilíbrios das forças manifestados na batalha, seja pelas desigualdades econômicas e sociais ou das diferenças linguísticas, étnicas e raciais, dentre tantas outras. Ainda, significaria que por trás da suposta paz civil haveria uma luta política permanente, “[...] enfrentamentos a propósito do poder, com o poder, pelo poder” (Foucault, 2010, p. 16). Denotaria, por fim, um terceiro sentido:
A decisão final só pode vir da guerra, ou seja, de uma prova de força em que as armas, finalmente, deverão ser os juízes. O fim do político seria a derradeira batalha, isto é, a derradeira batalha suspenderia afinal, e afinal somente, o exercício do poder como guerra continuada.
Longe de ter como condição de possibilidade o cessar das armas, o apaziguamento dos embates e o pacto de paz, a sociedade civil acha como seu fundo a própria guerra, e a política pode ser entendida como um modo de funcionamento intrínseco ao modelo da guerra, cujo mecanismo de ação se acha na redistribuição desigual das forças dentro do corpo social, intensificando uns, precarizando outros.
Foucault localizará este arcabouço teórico tanto nas reivindicações populares e da pequena burguesia na Inglaterra pré-revolução e revolucionária quanto nas queixas da aristocracia francesa, como anteriormente discutido, ambos como reação ao controle do rei. Discurso cujo pano de fundo é a reivindicação de direitos baseados na primazia da raça. A guerra de todos contra todos é, no limite, a guerra entre raças diferentes, uma querendo impor a outra a servidão.
Portanto − e essa passagem do discurso histórico-político para a teoria da guerra das raças muito nos interessa aqui −, “[...] a guerra que solapa a nossa sociedade e a divide de um modo binário é a guerra das raças” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 51). O discurso histórico-político empreende um resgate da guerra de raças feita a partir das diferenças de etnias, de língua e de força. É a partir dessa teoria da guerra das raças que se buscará a legitimidade para as lutas nacionalistas e a colonização europeia. Neste ponto em que a luta permanente que rasga o corpo social cruza com a luta das raças vê-se a ‘transcrição’ do discurso histórico-político em discurso biológico-político. A guerra passa de condição de existência da sociedade e das relações políticas para condição de sua própria sobrevivência em suas relações políticas.
Biopolítica e racismo como estratégia de Estado
Para mostrar como o saber-poder local − reativado no século XVII a partir de uma luta contra o poder soberano, cuja base será a pesquisa detalhada sobre a origem dos povos, saber-poder descentralizado e parcial − passa a um discurso centralizado, biológico-racista, detentor do poder e titular da norma, Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976.) realiza mais uma inversão.
A guerra a ser travada não será mais contra um inimigo, o estrangeiro-bárbaro que invadiu, saqueou, apossou-se do reino, fundou instituições para assegurar seu domínio e do qual é preciso se defender, pressupondo uma sociedade binária, composta por eles, invasores, detentores do poder e da violência, e nós, expropriados e submetidos, que reivindicam os direitos anteriores à invasão. Defender-se contra a sociedade, esse é o lema oferecido pelo discurso histórico-político.
Investido e colonizado por técnicas de dominação mais global, o discurso histórico-político se atualizará no desenvolvimento de um racismo biológico-cultural, no século XIX5 5 Foucault mostra como o discurso histórico-político, nas sucessivas transformações que sofreu ao longo do tempo, começou a ser usado pelo discurso revolucionário, vez que aquele modo de saber operava o resgate da história dos oprimidos, recolocava no jogo das palavras os massacres efetuados pelo poder e buscava trazer ao visível a guerra real e seus horrores. Pois bem, nesse intento, o discurso histórico-político, operado pelo discurso revolucionário, passou a transcrever a luta de raças em luta de classes. Foucault (2010, p. 67) cita o trecho de uma carta escrita por Karl Marx a Friedrich Engels, em 1882: “Mas, nossa luta de classes, tu sabes bem onde a encontramos: nós a encontramos nos historiadores franceses quando eles narravam a luta das raças”. Uma contra-história revolucionária. Neste momento, diz-nos Foucault, há uma reação, uma contra-história da contra-história revolucionária que se formava, a qual investirá o saber histórico-político em uma perspectiva biológico-médica, solapando a dimensão histórica desse discurso e constituindo o núcleo duro do que, posteriormente, será o racismo de Estado. , em que estará em questão a teoria evolucionista e a luta pela vida. A guerra das raças é reconfigurada em luta da raça, do plural ao singular. Assim, o inimigo a ser enfrentado não estará para além das fronteiras do Estado, de arma em punho e sedento de sangue e dominação. O perigo a ser combatido cresce no silêncio da vida e dentro da própria sociedade, corrói as entranhas do tecido social, metastaseando-se e impondo uma organização outra contrária a própria ordem da vida. Já não será o confronto entre duas raças, mas uma única super raça é erigida cujo avesso expõe o que lhe escapa e ameaça. Faz-se necessário, portanto, defender o patrimônio biológico, eliminar essa raça ínfima que se multiplica dentro do corpo social: “[...] temos de defender a sociedade contra todos os perigos biológicos dessa outra raça, dessa sub-raça, dessa contrarraça que estamos, sem querer, constituindo” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 52). Em defesa da sociedade, eis o lema da sociedade monística que se pretende homogênea.
Altera-se, por conseguinte, a própria ideia de nação que será pensada não a partir da força guerreira, da intensidade bárbara necessária para a defesa do reino, mas em termos de capacidades, do quão eficaz e eficiente ela é em gerir, governar e administrar o poder e o Estado. Coincidem nação e Estado.
À custa de uma transferência que foi a da lei para a norma, do jurídico para o biológico; a custa de uma passagem que foi a do plural das raças para o singular da raça; à custa de uma transformação que fez do projeto de libertação a preocupação da pureza, a soberania do Estado assumiu, tornou a levar em consideração, reutilizou em sua estratégia própria o discurso da luta das raças (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 68).
A ideia de pureza da raça, com tudo que comporta a um só tempo de monístico, estatal e biológico, será aquela que vai substituir a ideia de luta de raças. Há uma só raça, cujo patrimônio biológico deve ser protegido. O corpo social deve ser homogêneo e todos os desvios da ordem natural que se proliferam, metastaseam-se, portam perigos e ameaçam a integridade do tecido social devem ser eliminados. O Estado será o encarregado de cumprir essa tarefa através da “[...] gestão de uma polícia que assegura a higiene silenciosa de uma sociedade ordenada” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 70).
Normalização e biopolítica
Se, como pontua o filósofo francês, no poder soberano o lema era “[...] fazer morrer e deixar viver [...]” em que a morte e a vida dos súditos passavam, de forma indelével, pelo poder régio detentor do direito à vida e à morte a partir de um ato de vontade, na biopolítica a máxima se inverte: “[...] fazer viver, deixar morrer” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 202). A partir dessa nova inversão, Foucault acentua como ponto nodal da passagem do poder soberano para a biopolítica a inscrição da problemática da vida dentro do poder sobre a morte, ou, em outros termos que o filósofo nos apresenta em A vontade de saber, foi “[...] a entrada da vida na história” (Foucault, 2009Foucault, M. (2009). História da sexualidade: a vontade de saber(19a ed., M. T. C. Albuquerque e J. A. G. Albuquerque, trad.). São Paulo, SP: Graal. Original de 1976., p. 154), a qual passou a integrar os cálculos políticos.
As novas técnicas políticas e de poder em que a vida será problematizada nos serão apresentadas pelo autor em duas frentes. A primeira, a partir da crescente individualização dos corpos e sua exposição à visibilidade com a finalidade de lhes extrair o máximo de força útil segundo estratégias de racionalização do poder. A este poder, localizado no final do século XVII e início do século XVIIII, baseado em disciplinas, organização, hierarquia, alocação dos corpos segundo determinantes espaciais e ritmos temporais, Foucault (2009Foucault, M. (2009). História da sexualidade: a vontade de saber(19a ed., M. T. C. Albuquerque e J. A. G. Albuquerque, trad.). São Paulo, SP: Graal. Original de 1976., 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., 2013Foucault, M. (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão(41a ed., R. Ramalhete, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Vozes. Originalde 1975.) denominará de poder disciplinar.
Vale lembrar que estamos, nesse contexto histórico, no auge do capitalismo industrial em que as demandas por mão de obra e força de trabalho eram crescentes nos países industrializados, e seu aperfeiçoamento e expansão se deram a partir da assunção do corpo nas estratégias econômicas e de poder. Corpos cuja “[...] sujeição constante de suas forças [...]” lhes impõem uma “[...] relação de docilidade-utilidade”, compondo, através das disciplinas, “[...] fórmulas gerais de dominação” (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão(41a ed., R. Ramalhete, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Vozes. Originalde 1975., p. 133).
Já, na segunda metade do século XVIII, aparecerá outra técnica de poder que investirá a primeira, entretanto deslocando-se sobre outra superfície: do homem-corpo do poder disciplina ao homem-espécie, tornado massa, objeto de outras estratégias de controle. Será nessa nova forma de poder, denominado de biopolítica6 6 Optamos, neste artigo, por fazer uso dos termos biopolítica e biopoder como sinônimos, já que no curso objeto da nossa análise, Em defesa da sociedade, Foucault (2010, p. 204) os usa de modo indistinto, inclusive quando marca o nascimento do biopoder, contrapondo-o ao poder disciplinar: “[...] de que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que está se instalando?”. Alguns estudiosos de Foucault explicitam as ambiguidades e indiscernibilidades entre biopoder e biopolítico; é o caso de Thomas Lemke (2018). Já Judith Revel (2005) e Edgar de Castro (2016) marcam uma distinção entre tais conceitos, apontando a biopolítica como a tomada, pela política, dos fatores biológicos concernentes a uma massa de indivíduos que constituem uma população, enquanto o biopoder englobaria tanto a biopolítica quanto o poder disciplinar. Nesse sentido, o biopoder seria a integração da anátomo-política do corpo com a biopolítica da população. , que o discurso histórico-biológico será integralizado aos cálculos políticos, e os processos biológicos como natalidade, mortalidade, longevidade serão esmiuçados em nome da segurança da população face aos perigos que a minam de dentro.
Os fenômenos globais e aleatórios serão os novos alvos de controle e expurgo em nome do equilíbrio, da homeostase da população a fim de impor não uma disciplina, mas uma regulamentação baseada na norma estatística. Cria-se, portanto, uma sociedade de normalização em que se faz conjurar a norma imposta ao corpo máquina com a norma esperada do corpo da população.
O que nos interessa aqui, principalmente, é o estatuto da vida na passagem do poder soberano para o biopoder, quando “[...] a velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é, agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (Foucault, 2009Foucault, M. (2009). História da sexualidade: a vontade de saber(19a ed., M. T. C. Albuquerque e J. A. G. Albuquerque, trad.). São Paulo, SP: Graal. Original de 1976., p. 152). Poder em cuja base assenta-se a preservação da espécie, a eliminação de tudo que possa comprometê-la e corroê-la por dentro, de modo a dilatar a vida em inúmeras possibilidades.
Nesse contexto, o leitor atento já percebeu uma primeira encruzilhada: ora, como esse poder que tem por alvo a vida e a preservação da população pode se utilizar de mecanismos próprios ao poder soberano e reivindicar para si o direito de morte, de fazer morrer, tal qual percebemos em Estados em que a exceção da lei funciona, para determinados segmentos da população, como regra, e o terror de Estado oferece sua face perversa e mortífera?
Racismo de Estado
O argumento utilizado por Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976.) faz convergir biopolítica, racismo e retórica da guerra. As batalhas a serem travadas, a luta a ser conquistada está circunscrita aos domínios do corpo social contra o perigo interno que ameaça a continuação da vida por meio das fraquezas, anomalias, monstruosidades, degenerescências e toda a sorte de desordens que rompem com o equilíbrio do ‘contínuo biológico’, expondo a população ao risco.
Deste modo, o racismo será o argumento biológico-político pelo qual se opera um “[...] corte entre o que deve viver e o que deve morrer” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 214) em nome da purificação e melhoria do corpo social, o que cria uma clivagem no interior da população, precarizando uns segmentos em relação aos outros por meio de uma normalização social contínua. No enlace com a retórica da guerra, o racismo operará não apenas uma qualificação das raças, hierarquizando-as, mas uma relação em que a eliminação do outro inferiorizado pressupõe uma quantificação e qualificação da vida da raça superior e dominante, de modo que o racismo “[...] fornece o fundamento ideológico para identificar os outros, isolá-los, combatê-los ou até mesmo assassiná-los - em nome do aperfeiçoamento da vida” (Lemke, 2018Lemke, T. (2018). Biopolítica: críticas, debates e perspectivas (E. A. C. Santos, trad.). São Paulo, SP: Editora Filosófica Politéia., p. 65).
Será a tomada do racismo pelo biopoder determinante para as ações do Estado que fogem ao objetivo primeiro da biopolítica de assegurar a vida, para investir nos mecanismos cruéis, e agora sutis, da soberania revisitada, de matar e fazer morrer. Sutis, pois nos lembra Foucault (2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976., p. 216), tirar a vida não se limita ao assassínio direto, mas também “[...] o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte”.
Deste modo, a biopolítica, enquanto política da vida que tem por alvo o conjunto de processos biológicos da população, pressupõe para se fazer, de “[...] uma instância centralizada que a conduz e guia, que vigia sua pureza e é forte o suficiente para fazer frente a seus 'elementos inimigos' no interior e no exterior” (Lemke, 2018Lemke, T. (2018). Biopolítica: críticas, debates e perspectivas (E. A. C. Santos, trad.). São Paulo, SP: Editora Filosófica Politéia., p. 65). Como resultado, a racionalidade estatal investe o racismo, orienta-se por ele e o transforma em política de Estado. Isto posto, a raça é o reduto último ao qual o Estado lança apelo em seu projeto de purificação do corpo social, e a guerra, longe de ser um cálculo estratégico de força a serviço da política, passa a objetivo político. Convergência − ou melhor seria paroxismo? − da biopolítica com o poder soberano cujo elo é o racismo.
Problematização
Ao longo do seu trabalho, Foucault nos incita, incessantemente, a estarmos atentos ao presente. Desta feita, é a atualidade da nossa vida que faz com que um problema se coloque, nos instigue e nos force a busca de um gabarito de inteligibilidade, usando as palavras do filósofo, para o que nos atormenta. Pensar o presente, no Brasil, em especial na cidade do Rio de Janeiro, conduz-nos a uma questão que reverbera e, em nós, faz morada: vivemos, no Rio de Janeiro, um estado de exceção no qual a lei opera de modos distintos produzindo uma clivagem no interior da sociedade que pressupõe a vulnerabilidade, a marginalização, a exclusão e, mesmo, a eliminação de determinados segmentos da população em detrimento de outros dos quais é necessário garantir a segurança? É apropriado, do ponto de vista teórico, insistirmos nessa categoria? A urgência com a qual tentamos nos desvencilhar do que nos assola facilmente nos põe em respostas simplórias.
A partir de Foucault buscamos traçar um caminho possível para alcançarmos essas questões espinhosas, porque estão próximas no tempo e no espaço. Assim, compartilhamos a ideia do autor de que o poder disciplinar, em conjunto com a sociedade de normalização, cujo pretexto é o biológico, calcado na estatística e na norma, fundam o biopoder, que reativa o discurso da guerra, agora investido pelo racismo. O inimigo passa a agente perigoso inscrito no seio do próprio Estado.
Quais as armas de que dispõe a biopolítica na guerra a ser travada contra os riscos aos quais a população está exposta? Higienização social, controle de natalidade para combater a violência, política racista, eugenista. Estas estratégias são facilmente localizadas nos Estados totalitários que marcaram o século XX. Entretanto, no século XXI, sobretudo na periferia do capitalismo, é possível pensar o presente, as condições sociais e políticas a partir desse arsenal teórico?
Agamben (2004Agamben, G. (2004). Estado de exceção (I. D. Poleti, trad.). São Paulo, SP: Boitempo.) salienta que o estado de exceção não está localizado numa época histórica específica, mas constitui a própria história das sociedades modernas, criando uma zona de indeterminação entre democracia e totalitarismo. Uma das características centrais desse processo é a apropriação de uma medida que seria temporária, emergencial − e, vale mencionar, quem decide a emergência é o próprio Estado − como técnica duradoura de governo. Para o autor, “[...] a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que eventualmente não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos” (Agamben, 2004Agamben, G. (2004). Estado de exceção (I. D. Poleti, trad.). São Paulo, SP: Boitempo., p. 13).
Vale ressaltar que, tomando distância das transformações históricas que implicam em uma descontinuidade entre o poder soberano e o biopoder, como proposta por Foucault (2009Foucault, M. (2009). História da sexualidade: a vontade de saber(19a ed., M. T. C. Albuquerque e J. A. G. Albuquerque, trad.). São Paulo, SP: Graal. Original de 1976., 2010Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade(2a ed., M. E. Galvão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original de 1976.) - descontinuidade que não significa ruptura, antes um atravessamento que inverte os mecanismos de ação -, Agamben (2010Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I(2a ed., H. Burigo, trad.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.) faz uma aposta na conexão imanente entre essas formas de poder, de modo que a biopolítica constituiria o núcleo duro em torno do qual se articularia o exercício do poder soberano (Lemke, 2018Lemke, T. (2018). Biopolítica: críticas, debates e perspectivas (E. A. C. Santos, trad.). São Paulo, SP: Editora Filosófica Politéia.). Esta distinção é importante, pois a partir dela argumentamos que, no Rio de Janeiro, a biopolítica é indissociável do exercício do poder soberano e este, por sua vez, engendra espaços que estão fora do ordenamento jurídico e, portanto, apartados da proteção da lei. A consequência dramática desses territórios de exclusão é uma cisão qualificativa na materialidade da vida, cujo resultado e resíduo são o homo sacer como a outra face do soberano, ou seja, a produção sistemática e insistente da ‘vida nua’, ou a “[...] vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio” (Agamben, 2010Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I(2a ed., H. Burigo, trad.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG., p. 135).
Os exemplos retratados no início deste texto, extraídos de declarações públicas feitas por entes estatais e de uma decisão editorial do jornal Extra, oferecem-nos o indicativo de que pensar o contemporâneo tendo por ferramenta teórica a análise foucaultiana, somada às contribuições - neste trabalho, pontuais - de Giorgio Agamben, não só faz sentido como nos é de extrema importância.
A morte, em nome da vida dos cidadãos (por aqui, diz-se de ‘bem’), paira como regra na periferia do capitalismo e tem raízes que podem ser localizadas, no contexto do Rio de Janeiro, no período da formação da República, na passagem do século XIX para o século XX. Desde então, formas repressivas de controle social foram adotadas sob o imperativo da ‘lei’ e da ‘ordem’, com a produção de estigmas e forte carga discriminatória em relação às populações marginalizadas na então capital da República. Ações higienistas, com ecos e influência de Benedict-Augustin Morel e seu Tratado das degenerescências na espécie humana (1857/2008), defendidas em solo brasileiro por Gustavo Riede, fundador da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), de orientação claramente eugenista e xenófoba, são exemplo da construção histórica, conforme Coimbra (2001Coimbra, C. (2001). Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro, RJ: Oficina do Autor.), das ‘classes perigosas’ contra as quais são necessárias ações específicas do Estado.
Em nome da qualificação da raça e da prevenção das doenças mentais, a LBHM pregava que tanto os doentes e os dependentes de álcool e outras drogas quanto os descendentes de origem africana ou oriental, assim como muitos outros tipos de imigrantes estrangeiros, não pudessem casar, ou que fossem esterelizados para que não procriassem, dentre muitas outras medidas restritivas da liberdade e da cidadania (Brasil, 2003Brasil. Ministério da saúde. (2003). Saúde mental: políticas e instituições. Rio de Janeiro, RJ: Fiotec., p. 36).
A escolha por uma gestão urbana centrada em formas repressivas de controle social não representa, portanto, uma ruptura do modelo de modernização que vem sendo engendrado desde o início do século XX. Da administração de Pereira Passos, em nível municipal, aos governos de Sérgio Cabral e Michel Temer, nas esferas estadual e federal, respectivamente, passando por interventores nomeados durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), os espaços populares, como favelas e periferias, são representados historicamente como territórios inimigos. Esse outro que deve ser combatido é o que vai legitimar soluções de força, como o processo de remoções, a higienização do espaço público, a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e, mais recentemente, o decreto nº 9.288 de intervenção militar na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Em muitas comunidades, o estado de excepcionalidade não é percebido como atributo exclusivo de regimes ditatoriais. O sentido é de opressão cotidiana, contínua, mesmo em períodos democráticos.
Se Agamben (2010Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I(2a ed., H. Burigo, trad.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.) nos adverte para a importância de reconhecer o campo − neste caso, o campo de concentração numa analogia aos amplos e diversificados processos de segregação atuais - por meio de todas as suas metamorfoses, podemos constatar a coexistência de dois Estados nas metrópoles ocidentais: um, jurídico formal para indivíduos detentores de direitos e incluídos no mercado de consumo; e outro, militarizado e gerador de um tipo de violência depuradora contra o outro indesejado, representado pelos “[...] corpos carentes e excluídos” (Agamben, 2010Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I(2a ed., H. Burigo, trad.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG., p. 173). As mortes decorrentes nestes territórios dos denominados autos de resistência7 7 Mecanismo jurídico, previsto no Código Penal, que autoriza os agentes públicos a utilizar os meios necessários para atuar contra pessoas que resistam à prisão em flagrante ou determinada por ordem judicial. O art. 284 prevê que “[...] não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. Movimentos de direitos humanos denunciam que os autos de resistência, criados no período da ditadura civil-militar, têm servido para encobrir execuções sumárias de policiais contra jovens negros moradores de favelas e periferias. , tributários de técnicas e procedimentos que datam do período militar, materializam a ideia de ‘vida nua’ de que fala Agamben (2010Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I(2a ed., H. Burigo, trad.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.). Deste modo, opera-se um corte valorativo entre “[...] a vida digna de ser vivida” e “[...] a vida que não merece ser vivida” (Agamben, 2010, p. 133) expondo uma fratura no corpo social cuja sutura parece impossível.
Tudo advém, portanto, como se aquilo a que chamamos povo fosse, na realidade, não um sujeito unitário, mas uma oscilação dialética entre dois polos opostos: de um lado, o conjunto Povo como corpo político integral, de outro, o subconjunto povo como multiplicidade fragmentária dos corpos carentes e excluídos; lá, uma inclusão que se pretende sem ruídos, aqui, uma exclusão que se sabe sem esperança; em um extremo, o estado total dos cidadãos integrados e soberanos, no outro, a escória [...] dos miseráveis, dos oprimidos, dos vencidos. Um referente único e compacto do termo ‘povo’ não existe, neste sentido, em parte alguma (Agamben, 2010Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I(2a ed., H. Burigo, trad.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG., p. 173, grifo do autor).
Em argumento lançado no livro Indignos de vida, o delegado da polícia civil do Estado do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone (2015Zaccone, O. (2015). Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: Revan., p. 23), sustenta que “[...] existe uma política pública, na forma de razões de Estado, a ensejar os altos índices de letalidade do sistema penal brasileiro, com destaque para aqueles praticados rotineiramente nas favelas cariocas pelas mãos da polícia militar”. Entretanto, ressalta Zaccone: “[...] a polícia mata, mas não mata sozinha” (2015, p. 23).
Importa destacar que a ação letal do Estado vem sendo legitimada por amplos segmentos da sociedade civil, como a mídia comercial, que tem se constituído em apoio estratégico sem o qual as soluções de caráter bélico não se sustentariam na longa duração. São emblemáticas, nesse sentido, as narrativas de estigmatização das favelas8 8 Durante um protesto em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 17 de junho de 2013, a declaração do então ‘comentarista de segurança’ do Grupo Globo, Rodrigo Pimentel, ex-policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope), ilustra bem esse raciocínio. Ao criticar o uso de fuzis por parte de policiais para dispersar os manifestantes, Pimentel destacou que “[...] é uma arma de guerra, uma arma de operação policial em comunidades e favelas; não é uma arma para ser usada em ambiente urbano”. Nesse raciocínio, as favelas são territórios de guerra, portanto não fazem parte da área urbana, e abusos, truculência e arbitrariedades são toleráveis. e as coberturas orientadas pela produção do medo em que se reforça o pensamento dominante sobre a necessidade de formas mais repressivas de controle social.
Mais sintomática dessa conjuntura, entretanto, é a chancela pelo voto popular de uma plataforma política com traços biológico-racistas centrada na promessa de ‘abate de criminosos’ com retaguarda jurídica para o policial “[...] mirar na cabecinha e [...] fogo”9
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Ações defendidas em entrevista pelo governador eleito do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, do Partido Social Cristão (PSC) no pleito de 2018, que apresenta como estratégia para esse fim o uso de snipers (atiradores de elite) e drones capazes de atirar remotamente.
(Witzel, 2018Witzel, W. (2018, 01 de novembro). A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo [Entrevista concedida a Roberta Pennafort]. O Estado de São Paulo. Recuperado de: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo-diz-novo-governador-do-rio,7000257810
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). A sensação de segurança do ‘cidadão de bem’, como assim se define uma parcela da população brasileira que apoia com votos e aplausos o recrudescimento das ações de segurança pública, a militarização do cotidiano e o ‘abate de criminosos’, é regada a medo e sangue, e engendra a produção de uma subjetividade securitária em que as demandas por segurança aparecem como imperativo. Nesse sentido, a relação com o outro se torna mero artefato social posto que, na ordem do desejo, esse outro aparece como pura ameaça. A construção do Eu já não pressupõe o outro como constituinte, com suas diferenças e demandas, mas, ao contrário, comporta como condição de possibilidade a eliminação desse outro que carrega como índice um perigo que ameaça. Ameaça, sobretudo, a sua dominação.
Considerações finais
A política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro há muito diagnosticou a doença da qual o corpo social precisa se livrar: o inimigo que porta a violência. A defesa da sociedade passa pela identificação deste inimigo interno, as ‘classes perigosas’, localizáveis nas favelas e guetos da cidade, e as estratégias para se livrar dessa ‘metástase’, metáfora usada pelo ex-presidente Temer, são as mais variadas possíveis: desde a legalização do aborto como política pública para redução da violência, como defendido pelo então governador Sergio Cabral, evitando, deste modo, que se nasça uma massa de indesejáveis, até o recrudescimento das ações de segurança face a criminalidade, em que a eliminação do outro intolerável parece ser modus operandi do Estado, cuja missão é cumprida à risca pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).
A partir do exposto, temos esquadrinhado um jogo político em que a violência estatal é assumida como arma estratégica no combate ao inimigo interno que invade e conflagra o corpo social. A biopolítica, que visa garantir o bem-estar e saúde da população, cruza com um poder de outra ordem, a ‘tanatopolítica’10 10 Uma segunda distinção importante entre Foucault e Agamben se faz necessária: se o filósofo francês enxerga na biopolítica, bem como em todas as formas de poder, uma dimensão produtiva, ‘o poder produz’, em Agamben a biopolítica transcreve-se sempre num poder de morte, de modo que a biopolítica será “[...] acima de tudo tanatopolítica” (Lemke, 2018, p. 87), e, por conseguinte, um recurso, ou em todo caso, um efeito da soberania. Em sua crítica à leitura de biopolítica empreendida por Agamben, Thomas Lemke destaca que o autor estava mais interessando na nudez da vida que na própria vida. Quanto às diferenças conceituais de biopolítica entre Foucault e Agamben cf. Lemke (2018) e Duarte (2013). (Agamben, 2010Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I(2a ed., H. Burigo, trad.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.), que lança mão do monopólio da violência contra uma parcela bem específica da população, produzindo, em nome da vida, mortes incontáveis.
A justificativa que sustenta, costura e perpassa todas essas ações em nome do Estado, em defesa da sociedade, já foi desenhada pelo jornal Extra e pela fala do ex-presidente: estamos em guerra.
Referências
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- Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I(2a ed., H. Burigo, trad.). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.
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- Coimbra, C. (2001). Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública Rio de Janeiro, RJ: Oficina do Autor.
- Duarte, A. (2013). Poder soberano, terrorismo de Estado e biopolítica: fronteiras cinzentasIn G. Castelo Branco (Org.), Terrorismo de Estado Belo Horizonte, MG: Autêntica.
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Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), na modalidade bolsa de pós-graduação.
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Foucault mostra como o discurso histórico-político, nas sucessivas transformações que sofreu ao longo do tempo, começou a ser usado pelo discurso revolucionário, vez que aquele modo de saber operava o resgate da história dos oprimidos, recolocava no jogo das palavras os massacres efetuados pelo poder e buscava trazer ao visível a guerra real e seus horrores. Pois bem, nesse intento, o discurso histórico-político, operado pelo discurso revolucionário, passou a transcrever a luta de raças em luta de classes. Foucault (2010, p. 67) cita o trecho de uma carta escrita por Karl Marx a Friedrich Engels, em 1882: “Mas, nossa luta de classes, tu sabes bem onde a encontramos: nós a encontramos nos historiadores franceses quando eles narravam a luta das raças”. Uma contra-história revolucionária. Neste momento, diz-nos Foucault, há uma reação, uma contra-história da contra-história revolucionária que se formava, a qual investirá o saber histórico-político em uma perspectiva biológico-médica, solapando a dimensão histórica desse discurso e constituindo o núcleo duro do que, posteriormente, será o racismo de Estado.
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Optamos, neste artigo, por fazer uso dos termos biopolítica e biopoder como sinônimos, já que no curso objeto da nossa análise, Em defesa da sociedade, Foucault (2010, p. 204) os usa de modo indistinto, inclusive quando marca o nascimento do biopoder, contrapondo-o ao poder disciplinar: “[...] de que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que está se instalando?”. Alguns estudiosos de Foucault explicitam as ambiguidades e indiscernibilidades entre biopoder e biopolítico; é o caso de Thomas Lemke (2018). Já Judith Revel (2005)Revel, J. (2005). Foucault: conceitos essenciais (M. R. Gregolin, M. Milanez, C. Piovesani, trad.). São Carlos, SP: Claraluz. e Edgar de Castro (2016)Castro, E. (2016). Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores(2a ed., I. M. Xavier, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica. marcam uma distinção entre tais conceitos, apontando a biopolítica como a tomada, pela política, dos fatores biológicos concernentes a uma massa de indivíduos que constituem uma população, enquanto o biopoder englobaria tanto a biopolítica quanto o poder disciplinar. Nesse sentido, o biopoder seria a integração da anátomo-política do corpo com a biopolítica da população.
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Mecanismo jurídico, previsto no Código Penal, que autoriza os agentes públicos a utilizar os meios necessários para atuar contra pessoas que resistam à prisão em flagrante ou determinada por ordem judicial. O art. 284 prevê que “[...] não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. Movimentos de direitos humanos denunciam que os autos de resistência, criados no período da ditadura civil-militar, têm servido para encobrir execuções sumárias de policiais contra jovens negros moradores de favelas e periferias.
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Durante um protesto em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 17 de junho de 2013, a declaração do então ‘comentarista de segurança’ do Grupo Globo, Rodrigo Pimentel, ex-policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope), ilustra bem esse raciocínio. Ao criticar o uso de fuzis por parte de policiais para dispersar os manifestantes, Pimentel destacou que “[...] é uma arma de guerra, uma arma de operação policial em comunidades e favelas; não é uma arma para ser usada em ambiente urbano”. Nesse raciocínio, as favelas são territórios de guerra, portanto não fazem parte da área urbana, e abusos, truculência e arbitrariedades são toleráveis.
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Ações defendidas em entrevista pelo governador eleito do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, do Partido Social Cristão (PSC) no pleito de 2018, que apresenta como estratégia para esse fim o uso de snipers (atiradores de elite) e drones capazes de atirar remotamente.
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Uma segunda distinção importante entre Foucault e Agamben se faz necessária: se o filósofo francês enxerga na biopolítica, bem como em todas as formas de poder, uma dimensão produtiva, ‘o poder produz’, em Agamben a biopolítica transcreve-se sempre num poder de morte, de modo que a biopolítica será “[...] acima de tudo tanatopolítica” (Lemke, 2018, p. 87), e, por conseguinte, um recurso, ou em todo caso, um efeito da soberania. Em sua crítica à leitura de biopolítica empreendida por Agamben, Thomas Lemke destaca que o autor estava mais interessando na nudez da vida que na própria vida. Quanto às diferenças conceituais de biopolítica entre Foucault e Agamben cf. Lemke (2018) e Duarte (2013)Duarte, A. (2013). Poder soberano, terrorismo de Estado e biopolítica: fronteiras cinzentasIn G. Castelo Branco (Org.), Terrorismo de Estado. Belo Horizonte, MG: Autêntica..
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Maio 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
20 Nov 2018 -
Aceito
05 Jul 2019