Open-access DIÁLOGOS ENTRE C. G. JUNG E WILLIAM JAMES: AS PESQUISAS PSÍQUICAS

DIÁLOGOS ENTRE C. G. JUNG Y WILLIAM JAMES: LAS INVESTIGACIONES PSÍQUICAS

RESUMO.

C. G. Jung e William James compartilhavam uma série de interesses de pesquisa. Por ocasião da Conferência realizada na Universidade de Clark, no ano de 1909, os dois autores tiveram a oportunidade de se encontrar e conversar. Os debates abordaram temas que não estavam na pauta da conferência, especialmente pesquisas psíquicas, também chamadas modernamente de experiências anomalísticas ou relacionadas à ‘psi’. Desde seu período como estudante de medicina, Jung se interessou pelos fenômenos anômalos da consciência, tendo pesquisado os principais autores associados ao espiritualismo dos séculos XVIII e XIX. William James foi pesquisador reconhecido dos chamados fenômenos psíquicos, tendo participado de sociedades como a Society for Psychical Research e a American Society for Psychical Research. Através de seus estudos, James e Jung buscavam contribuir para a psicologia dinâmica, também chamada de psicologia profunda. O objetivo deste artigo foi ampliar os diálogos estabelecidos na universidade de Clark, resgatando informações importantes acerca da teoria dos dois autores.

Palavras-chave: C. G. Jung; William James; pesquisas psíquicas

RESUMEN.

C. G. Jung y William James compartían una serie de intereses de investigación. En la conferencia celebrada en la Universidad de Clark, en 1909, los dos autores tuvieron la oportunidad de encontrarse y conversar. Los debates se centraron en temas que no estaban en la agenda de la conferencia, especialmente en la investigación psíquica, también llamada en la actualidad experiencia anomalística o relacionada con la psi. Jung de su tiempo como estudiante de medicina se interesó por fenómenos anómalos de conciencia, después de habiendo investigado los autores principales asociados con el espiritualismo de los siglos XVIII y XIX. William James era conocido investigador de los llamados fenómenos psíquicos, y participó en las sociedades como la Society for Psychical Research y la American Society for Psychical Research. James y Jung a través de sus estudios trataron de contribuir a la psicología dinámica, también llamada psicología profunda. El propósito de este artículo es ampliar el diálogo establecido en la Universidad de Clark, rescatando la información importante acerca de la teoría de los dos autores.

Palabras clave: C. G. Jung; William James; investigaciones psíquicas

ABSTRACT.

C.G. Jung and William James shared several research interests. At the conference held at Clark University in 1909, the two authors could meet and talk. The debates were especially on topics regarding psychical research, contemporarily also called anomalistic or psi-related experiences, which were not considered on the conference schedule. Since his period as a medical student, Jung has been interested in anomalous phenomena of consciousness, having researched the prominent authors associated with the spiritualism of the 18th and 19th centuries. William James was a recognized researcher of the so-called psychic phenomena, participating in societies such as Society for Psychical Research and the American Society for Psychical Research. Through their studies, James and Jung aspired to contribute to dynamic psychology, also called depth psychology. This article aimed to broaden the dialogues established at Clark University, rescuing important information about the theory of the two authors.

Keywords: C.G. Jung; William James; psychical research

Introdução

Em 1909, a Universidade de Clark, nos Estados Unidos, sediou uma conferência que contou com a presença de importantes nomes da ciência, pesquisadores como Franz Boas (1858-1942), Ernest Rutherford (1871-1937) e Albert Abraham Michelson (1852-1931). A psicologia estava representada por William James (1842-1910), Sigmund Freud (1856-1939) e Carl Gustav Jung (1875-1961). Era a primeira vez que uma comitiva psicanalítica vinha para a América. Além de Freud e Jung, participaram do evento, Sándor Ferenczi (1873-1933), Ernest Jones (1879-1958) e Abraham Arden Brill (1874-1948). A conferência sediada em Worcester, Massachusetts, foi organizada por Granville Stanley Hall (1844-1924), presidente da instituição, com o objetivo de desenvolver o debate entre as principais áreas de estudo da universidade. William James, na época, já era considerado um dos mais importantes filósofos e psicólogos americanos e, a convite de Hall, compareceu a uma das palestras de Freud e também passou algum tempo com Jung. O pensador americano acreditava que as ideias defendidas pela psicanálise poderiam trazer importantes esclarecimentos sobre a natureza humana, no entanto, se incomodou com as críticas de Freud à religião3 (Barzun, 1983; James, 1920).

Em relação a Jung, James se mostrou bastante impressionado, pois os dois autores concordavam sobre a importância do fenômeno religioso para a psique humana. Conversaram durante algum tempo na casa de Hall, tendo como temas a parapsicologia, as curas pela fé, o espiritualismo e a psicologia da religião. Jung estava particularmente interessado nas pesquisas de James sobre os chamados fenômenos parapsíquicos, especialmente os estudos do autor sobre a médium Leonora Piper (1857-1950). Esses assuntos já ocupavam as pesquisas de James havia algum tempo e foram desenvolvidos em suas conferências no Instituto Lowell em 1896 (Taylor, 1983) e em suas Gifford lectures de 1901-1902, The varieties of religious experience (James, 2010). As impressões de Jung foram da mesma forma positivas: em suas Cartas, afirma que James foi uma das figuras mais impressionantes que conheceu em sua vida e demonstra admiração pela sua abertura de visão e pela maneira como, em suas pesquisas, deixava que os fenômenos se apresentassem espontaneamente, sem forçar uma interpretação para uma determinada direção. Jung ainda afirma que conseguiu conversar de uma maneira descomplicada somente com dois teóricos: Flournoy e James (Jung, 2003).

Para Bair (2003), o evento em Clark marca o início de um processo que levará Jung a se afastar do movimento psicanalítico e buscar novas fontes teóricas, entre elas a teoria jameseana. Por algum tempo após seu rompimento com Freud, o estudo acerca da religião e a teoria pragmática do filósofo americano serão os norteadores de Jung (Innamorati, 2013; Shamdasani, 2012).

Nosso foco neste trabalho será, portanto, a ampliação do tema dos diálogos iniciados em Clark, a partir dos interesses em comum de James e Jung, experiências religiosas e espiritualismo, fenômenos designados genericamente pelo nome de psíquicos, parapsíquicos ou anômalos.

Na ocasião da Conferência na Universidade de Clark, em 1909, Jung ficou hospedado na casa de G. Stanley Hall. Foi nesse contexto que o psiquiatra suíço estabeleceu seu primeiro contato com William James. O encontro com o ilustre filósofo americano se deu após um jantar. Hall havia pedido a James que apresentasse alguns dos resultados de suas pesquisas sobre percepção extrassensorial com Mrs. Piper. James, então, entrega ao presidente da Clark um conjunto de papéis sobre o tema, e Jung se mostra extremamente interessado. Após esse evento, Jung ainda teria conversado com James na noite seguinte. “Eles se encontraram duas vezes e o assunto foi o mesmo nas duas ocasiões: parapsicologia, espiritualismo, curas pela fé e outras aplicações não medicinais da psicologia” (Bair, 2003, p. 222). Jung se expressa sobre essas conversas nos seguintes termos:

Além da impressão pessoal que dele tive, devo muito a seus livros. Conversamos principalmente sobre seus experimentos com Mrs. Piper, que já são conhecidos, e nada falamos de sua filosofia. Eu estava particularmente interessado em conhecer a opinião dele sobre os chamados ‘fenômenos ocultos’. Admirei a cultura européia dele e a abertura de sua natureza. Era uma personalidade distinta e a conversa com ele foi sumamente agradável [...] De qualquer forma, foi o único espírito ilustre, além de Th. Flournoy, com o qual pude manter uma conversação descomplicada. Cultuo, pois, sua memória e sempre que possível me lembrarei do exemplo que ele me deu (Jung, 2003, p. 164, grifo do autor).

Como pode ser verificado pelas afirmações de Jung, não somente o tema espiritualista pesquisado por James despertou sua atenção, mas também a obra jameseana se tornou importante para ele. Sobre o tema dos debates em questão, o psiquiatra suíço já demonstrava interesse pelo assunto muito tempo antes do referido encontro. Bair (2003, p. 69) afirma que a escolha de Jung pela psiquiatria foi motivada pela possibilidade de prosseguir “[...] com seus interesses principais: espiritualismo e teoria religiosa”. Na época de Jung, a psiquiatria ainda estava se fundamentando como ramo da medicina, e foram muitos os médicos que iniciaram seus estudos sobre a mente a partir de análises de fenômenos anômalos da consciência, como o transe, a dupla personalidade e o sonambulismo. Um campo no qual a ciência e a religião ainda estavam, de certa forma, mescladas.

O interesse de C. G. Jung pelas pesquisas psíquicas

Desde os tempos de seu curso de medicina em Basel, Jung se interessou pelos chamados fenômenos ocultos. Nessa época, participou de uma sociedade para estudantes, chamada Zofingia, a mesma da qual seu pai, Paul Jung, havia participado. Frequentemente, proferia palestras na sociedade, que tinham como tema seus estudos sobre os fenômenos parapsíquicos. O próprio Jung (1975a) afirma que, constantemente, tentava convencer seus amigos e colegas acerca da veracidade das propostas espiritualistas. Em 1900, opta por trabalhar no Hospital Burghölzli, local de referência em tratamento psiquiátrico. Por incentivo de Bleuler, diretor do hospital, seu trabalho de conclusão do curso de medicina foi sobre sua prima Helene Preiswerk, que, em sessões espíritas organizadas pela família, dizia entrar em contato com os parentes falecidos. Posteriormente, esse estudo foi publicado por Jung como parte do primeiro volume de suas Obras completas, com o título Sobre a psicologia e patologia dos fenômenos chamados ocultos (1902).

Para Bair (2003), independentemente da explicação dada aos fenômenos parapsíquicos, esses eventos já eram experienciados dentro da família de Jung. A autora faz referência a dois eventos curiosos. No primeiro deles, o jovem Jung estava em seu quarto em uma tarde de verão quando escuta um disparo como o barulho de uma pistola vindo da cozinha, ele vai até a sala de jantar e encontra a mesa de nogueira, com setenta anos de idade, quebrada do centro até a beirada, de uma forma que nada tinha a ver com o veio natural da madeira. O tempo quente e úmido não favorecia o acidente, que seria mais provável em um clima seco de inverno. Em um segundo evento, Jung chega em sua casa e encontra a mãe, a irmã e a empregada bastante apreensivas, outro barulho acontecera, dessa vez em um armário lateral da cozinha, ele vasculha o armário e encontra uma faca, de metal muito resistente, partida em vários pedaços. Jung leva a faca a um cuteleiro, que afirma que o objeto não teria se partido daquela forma de modo natural, somente através de um ato intencional. A faca em questão foi guardada desde o incidente. Os fenômenos parapsíquicos seriam interessantes para o psicólogo sob vários aspectos:

[...] informam sobre as coisas de que a mente do leigo nem suspeita, como a exteriorização de processos inconscientes, seu conteúdo e as possíveis fontes de fenômenos parapsicológicos. Estes relatos são de especial importância para a pesquisa da localização do inconsciente e dos fenômenos de sincronicidade, que indicam uma relativização psíquica de espaço e tempo, e assim também da matéria (Jung, 2012a, p. 338).

O interesse de Jung pela temática não se limitou à vivência e descrição de experiências, o espiritualismo ressoará em um número maior de elementos nas obras do autor suíço. Especialmente o caso da jovem médium Helene, analisado no trabalho Sobre a psicologia e patologia dos fenômenos chamados ocultos (Jung, 2011).

A princípio Jung avaliou o caso sob uma perspectiva clínica e patologizante. Os alegados espíritos manifestantes seriam conteúdos do psiquismo de Helene, dissociados de sua personalidade primária, o que Jung definiria como complexos, “[...] noção que se baseia em uma refutação de ideias monolíticas da personalidade” (Samuels, 1986, p. 22). Em sua definição tardia, um complexo seria uma “[...] reunião de imagens e ideias, conglomeradas em torno de um núcleo derivado de um ou mais arquétipos, e caracterizadas por uma tonalidade emocional comum” (Samuels, 1986, p. 22). Essa mesma perspectiva interpretativa acerca de manifestações de espíritos será apresentada em 1919, na palestra proferida por Jung na Society for Psychical Research (SPR) de Londres. Na referida apresentação Jung afirma:

Antes de analisarmos mais detalhadamente os fundamentos psicológicos da crença nas almas, eu gostaria de recordar brevemente os fatos acima mencionados. Destaquei particularmente três fontes que constituem, por assim dizer, a verdadeira base da crença nos espíritos: a aparição de espíritos, os sonhos e os distúrbios patológicos (Jung, 1975b, p. 579).

Jung destaca que o ponto comum entre essas três fontes é que a psique não é um todo indivisível, mas passível de se fragmentar. Esses fragmentos poderiam se relacionar com o ‘eu cotidiano’, mas alguns possuíam independência ao ponto de se apresentarem como personalidades autônomas. Nas palavras do próprio Jung: “A estas partes da alma chamei complexos autônomos e fundei minha teoria dos complexos da psique sobre a sua existência” (Jung, 1975b, p. 582).

Por mais que essas experiências acerca da mediunidade tenham auxiliado o autor suíço na construção de uma interpretação psicológica, Jung não estava satisfeito com essa explicação para a definição da totalidade dos fenômenos parapsicológicos. Em nota posterior à sua apresentação na SPR ele afirma:

Depois de coletar experiências psicológicas de muitas pessoas e em muitos países, durante cinquenta anos, já não me sinto tão seguro, como em 1919, quando escrevi essa afirmação. Para ser franco, duvido que uma abordagem exclusivamente psicológica possa fazer justiça aos fenômenos em questão. Não apenas os achados da parapsicologia, mas minhas próprias reflexões teóricas, delineadas em On the Nature of the Psyche, conduziram a certos postulados que se aproximam do domínio das concepções da física nuclear, isto é, do contínuo espaço-tempo. Isso abre toda a questão da realidade transpsíquica imediatamente subjacente à psique (Jung, 1975c, p. 600, nota 15, grifo do autor).

Mais tarde, Jung também nomearia esses eventos como sincronicidade, nos quais uma experiência pessoal poderia superar as leis de espaço, tempo e causalidade (Jung, 2013a). A sincronicidade é formulada por Jung a partir de dois fatores: 1) inicialmente “[...] uma imagem inconsciente alcança a consciência de maneira direta (literalmente) ou indireta (simbolizada ou sugerida), sob a forma de sonho, associação ou ‘premonição’; 2) uma situação objetiva coincide com este conteúdo” (Jung, 1975d, p. 858, grifo nosso). Portanto, a sincronicidade seria a conexão entre um fator subjetivo e um evento externo objetivo.

A partir do conjunto de suas experiências pessoais, vivências de seus pacientes e seus estudos sobre o campo anômalo, Jung produziu dois ensaios sobre o tema: On synchronicity, uma palestra apresentada nas Conferências de Eranos em 1951, e The interpretation of nature and the psyche de 1952, escrito em parceria com o físico Wolfgang Pauli (Main, 1997). Essas duas obras foram integradas na publicação expandida Synchronicity an acausal connecting principle, de 1952.

Para Charet (1993), Jung tem histórico antigo com a temática espiritualista, enraizada como crença comum entre alguns de seus parentes mais próximos e exaustivamente pesquisada pelo autor suíço desde sua juventude. Sobre essas pesquisas teóricas descreveremos a seguir alguns trabalhos que, em nosso entendimento, contribuíram para o entendimento do autor suíço sobre a temática parapsíquica.

Um dos primeiros livros que Jung teria consultado foi Dreams of a spirit-seer (Kant, 1900), escrito por Immanuel Kant (1724-1804), no qual o filósofo descreve as experiências do visionário sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772). Na obra, Kant faz uma leitura crítica das visões de Swedenborg e analisa a crença de muitos indivíduos na existência de espíritos. De modo geral, a visão de Kant no livro é racionalista, definindo muitas das experiências como fantasiosas, mas, em carta a Fraülein Charlottevon Knobloch, ele afirma que há algum tempo se interessava e buscava conhecer mais sobre Swedenborg (Jung, 2012a). Para Charet (1993, p. 101, grifo do autor), “[...] isso indica que, oito anos antes da carta a von Knoblock, Kant estava especulando sobre as coisas nelas mesmas, que ele chamaria mais tarde de ‘noumena’ na sua Crítica da razão pura”.

A partir de então, Jung passa a ler diversos autores associados ao espiritualismo dos séculos XVIII e XIX, como Friedrich Zöllner (1834-1882), professor de física e astronomia da Universidade de Leipzig. Dentre as principais obras de Zöllner, destaca-se Transcendental physics (1880), na qual ele coordena uma equipe de pesquisadores na investigação dos fenômenos apresentados pelo médium norte americano Henry Slade (1835-1905). De acordo com Treitel (2004), a equipe de Zöllner era composta por Wilhelm Weber (1804-1891), Gustav Fechner (1801-1887) e Wilhelm Wundt (1832-1920). Este último travou diversos debates com a equipe por não aceitar as propostas espiritualistas de Zöllner (Sommer, 2013).

Henry Slade havia sido julgado no tribunal Bow Street de Londres por acusação de fraude. A denúncia partiu do professor Edwin Ray Lankester (1847-1929), que também havia realizado pesquisas sobre os fenômenos apresentados por Slade. Inicialmente, o médium foi condenado, sendo a sentença apelada. Por fim, o processo foi anulado por erro insanável. Slade dizia se comunicar com espíritos, conseguindo materializar frases espontaneamente sobre uma ardósia4. Zöllner descreve diversas experiências dessa espécie e atesta a sinceridade de Slade, apesar de todas as acusações apontadas anteriormente contra o médium (Zöllner, 1901).

Também são desse período as leituras de Jung sobre William Crookes (1832-1919), químico britânico que pesquisou médiuns, como o escocês Daniel Dunglas Home (1833-1886) e a jovem inglesa Florence Cook (1856-1904). As primeiras experiências de Crookes sobre o tema, nos anos de 1870 a 1873, foram publicadas no Quaterly Journal of Science de janeiro de 1874 e provocaram grande polêmica no meio científico, pois o pesquisador britânico, membro da Royal Society de Londres, afirmava ter presenciado a aparição de fenômenos luminosos e figuras humanas, manifestações de sons e ruídos, e movimentação espontânea de objetos, tudo isso em um ambiente rigorosamente controlado (Crookes, 1927).

Crookes não era, inicialmente, um partidário de ideias espíritas. Em seu livro Researches in the phenomena of the spiritualism (1874), ele afirma que aplicaria a seu objeto de pesquisa o mesmo rigor que havia apreendido em anos de labor científico, e que as explicações dos espiritualistas careciam de consistência, como pode ser verificado na seguinte passagem:

O pseudo-cientista espiritualista professa saber tudo: nenhum problema de cálculo aflige sua serenidade, não há experiências difíceis, não há leituras longas e laboriosas; nenhuma tentativa de deixar claro em palavras o que alegra o coração e eleva a mente. Ele fala fluentemente de todas as ciências e artes, sobrecarregando o inquiridor com termos como ‘eletro-biologia’, ‘psicologia’, ‘magnetismo animal’, etc. - Um mero jogo de palavras, mostrando ignorância em vez de compreensão. Ciência popular como esta é pouco capaz de guiar ao descobrimento apressando um futuro desconhecido; e os verdadeiros trabalhadores da ciência devem ser extremamente cuidadosos para não permitir que as rédeas caiam em mãos impróprias e incompetentes (Crookes, 1927, p. 5, grifo do autor).

O livro em questão apresenta a descrição dos diversos experimentos aplicados por Crookes aos médiuns, assim como os esquemas e precauções montados para evitar fraudes. Em muitos dos experimentos estavam presentes outros pesquisadores e assistentes. Ao longo da descrição, Crookes vai adquirindo um tom de convencimento dos fenômenos que presenciava. Sobre Florence, a jovem pesquisada, ele afirma a sua total honestidade: “[...] a perfeita verdade e honestidade de Miss Cook” (Crookes, 1927, p. 104). Ao longo de cada uma das séries de experimentos, o cientista levava a público o seu parecer, em geral favorável à causa espiritualista. Personalidades da comunidade científica, assim como o público em geral, se dividiam: uma parte apoiava e outros rejeitavam as conclusões de Crookes.

Jung (1975a, p. 96) afirma que por mais “[...] estranhas e suspeitas que pareçam as observações dos espíritas, nem por isso deixavam de constituir os primeiros relatos dos fenômenos psíquicos objetivos”. Zöllner e Crookes eram leituras constantes de Jung, que leu praticamente todos os livros referentes a esses pesquisadores, os via como “[...] mártires da ciência, e incorporou as descobertas desses autores a seus argumentos” (Bair, 2003, p. 70). No entanto, espantava-se com a negação dos colegas, que ansiosamente recusavam qualquer explicação que não fosse o já estabelecido, e questionava-se porque era algo simplesmente definido como impossível. Preferia o termo possibilidade, que para ele representava algo extremamente interessante e atraente. A condição humana ganhava em profundidade e complexidade através desses estudos, que exploravam certas capacidades da mente humana e abriam, ainda, a perspectiva e a possibilidade de uma continuidade da consciência para além da vida material.

Outro autor relacionado ao tema que Jung referencia em sua obra é Justinus Kerner (1786-1862), médico e poeta alemão pertencente à escola Romântica. Kerner é mais conhecido por seu livro The seeress of Prevorst (1829), no qual ele descreve o contato com a paciente Friederike Hauffe (1801-1829), seus estados sonambúlicos, suas visões proféticas e as curas que Hauffe teria efetuado. Jung não considerava Kerner um cientista propriamente dito, muitas de suas interpretações acerca dos fenômenos apresentados pela chamada vidente de Prevorst são consideradas ingênuas. Hauffe nasceu em 1801, no vilarejo de Prevorst, próximo à cidade de Löwenstein, estado de Baden-Württemberg, na Alemanha. A menina teve uma infância normal e a única estranheza eram seus sonhos, que a criança descrevia aos parentes e amigos de forma muito vívida e que, normalmente, concretizavam-se. Também, desde a infância, Hauffe alegava ver espíritos que, segundo suas afirmações, despertavam-lhe os mais diversos sentimentos e sensações, algumas das visões lhe deixavam aflita e extremamente angustiada, enquanto em outras encontrava paz e conforto.

Após seu casamento, Hauffe passa por uma série de alterações físicas. A morte de um religioso, por quem era apaixonada, ocasiona uma depressão de sete anos. A partir de então, apresenta estados de sonambulismos frequentes, todos os dias às 17 horas, o horário correspondente ao funeral do religioso. Na época, consultou vários médicos, mas nenhum conseguiu determinar uma cura para seus ataques convulsivos e febres, que também eram constantes. Foi, então, encaminhada para tratamento na casa do médico Justinus Kerner, na cidade de Weinsberg. Kerner passa a investigar os estranhos fenômenos apresentados pela jovem. Seu interesse pelos fenômenos ocultos, no entanto, eram anteriores ao seu encontro com a vidente de Prevorst, pois já havia escrito um livro sobre o assunto, chamado História de duas sonâmbulas. A partir da experiência com Hauffe escreveu A visionária de Prevorst, mais tarde escreveu História de alguns possessos de nossa época, Fenômenos do domínio noturno e Da possessão, mal demoníaco magnético. O livro de 1829 era o primeiro trabalho psiquiátrico devotado a uma única paciente e se tornou um best seller (Kerner, 2012; Shamdasani, 2012).

Para Jung (1960), as histórias de Kerner não provavam nada acerca da existência post mortem, mas revelavam aspectos importantes da fenomenologia psicológica, nas relações estabelecidas entre o consciente e o inconsciente. Segundo o autor suíço, no caso de Hauffe, certos processos de pensamento se encontravam no nível inconsciente, de tal forma que ela não os reconhecia como seus, exteriorizando-os em visões de formas e aparições. Kerner, no entanto, não tinha dúvidas sobre a vidente, uma vez que ele já estava convencido dos fatos apresentados por ela. Em relação ao trabalho de Justinus Kerner, apesar de suas conclusões contrárias à causa espiritualista, Jung não patologiza os fenômenos descritos por ele. Em seus seminários de 1933, intitulados Modern psychology, Jung reserva algumas palestras para a análise da obra The seeress of Prevorst, deixando espaço para a possibilidade da existência de percepções supranormais.

Segundo Shamdasani (2012), a leitura da referida obra em 1897 causou efeito significativo no trabalho subsequente de Jung, sendo que suas interpretações pessoais acerca do tema eram de caráter mais favorável do que ele expressava em suas palestras. De acordo com Zumstein-Preiswerk (1975), Jung presenteou sua prima Helene com uma cópia do livro The seeress of Prevorst quando iniciou sua participação nas sessões espíritas organizadas por sua família. A forma de seu relato escrito acerca das sessões seguia o mesmo estilo de Kerner. Mais tarde, esses escritos seriam o trabalho de conclusão do curso de medicina do psiquiatra suíço (Jung, 2011).

Outro livro cuja temática central é a avaliação do fenômeno espiritualista é From India to the planet Mars: a study of a case of sonambulism with glossolalia (1900). Essa obra teve importante influência na psicologia analítica de Jung. Em 1900, o livro rapidamente se tornou um best seller. O autor, Theodore Flournoy, médico e filósofo, havia estudado com Wilhelm Wundt. Em 1891, Flournoy se tornou professor da Universidade de Genebra, onde fundou um laboratório de psicologia experimental. Do final de 1894 até 1899, ele acompanhou as sessões organizadas em torno da médium Élise Catherine Müller (1861-1929). Os fenômenos apresentados por essa mulher despertaram o interesse de Flournoy em uma avaliação psicológica do caso, que mais tarde se transformou na obra citada. No livro, a jovem é nomeada pelo pseudônimo Hélène Smith. Suas histórias relatadas em estado de transe são descritas e agrupadas em três conjuntos que o autor chamou de ciclos, respectivamente: ciclo hindu, ciclo real e ciclo marciano.

A partir de uma descrição elaborada, Hélène manifesta em estado de transe as personalidades de suas histórias. Na primeira delas, ela é a princesa Simandini no reinado do príncipe Sivruka na Índia. Na segunda, ela dá vida à Maria Antonieta, rainha do período da revolução francesa. Por fim, o terceiro ciclo diz respeito às revelações de Hélène sobre a vida em Marte, descrevendo, inclusive, a língua que seria falada no planeta. Com relação ao último ciclo, Flournoy (2012, p. 2) afirma: “É neste sonambulismo astronômico que o fenômeno da glossolalia aparece, que consiste na fabricação e uso de uma língua desconhecida, e que é um dos principais objetos deste estudo”.

A parte inicial do livro é dedicada à análise de Hélène Smith. Ela é descrita como uma jovem mulher, de cerca de 30 anos, de saúde vigorosa, diretora de um casa comercial, muito diferente do tipo doentio e perturbado que, de acordo com Flournoy (2012), é erroneamente associado aos médiuns. Em seguida, o livro traz a avaliação de uma das personalidades manifestadas pela médium, Leopold, descrito por ela como seu guia espiritual. Em seus transes, a jovem dava vida a Leopold, que afirmava ser Giuseppe Balsamo, o conde Gagliostro, alquimista e aventureiro italiano, figura mais conhecida pela obra de Alexandre Dumas Memórias de um médico. Posteriormente, o autor passa para a análise dos ciclos de histórias.

Para Flournoy (2012), os romances de Hélène apresentavam a mesma linguagem dos sonhos, ou seja, eram frutos de sua imaginação subliminal. As histórias seriam em parte criptomnésias, ou seja, lembranças esquecidas das leituras da médium armazenadas em seu subconsciente. As manifestações de Hélène, apesar de serem extremamente elaboradas e cheias de elementos históricos, seriam fruto de uma potente imaginação subconsciente. No entanto, com exceção do ciclo marciano, que se apresenta como o mais fantasioso, muitos dos eventos relatados intrigaram o filósofo de Genebra5. Essas fantasias teriam uma dupla função: por um lado, compensatória, ou seja, uma reação diante das dificuldades da vida; e, por outro, teleológica, definida por Flournoy (2012) como o papel que as fantasias e os sonhos exerceriam no desenvolvimento psicológico futuro do indivíduo.

Jung se mostra extremamente interessado pelo livro de Flournoy e escreve ao autor oferecendo-se para traduzir a obra para o alemão. No entanto, um tradutor já havia sido designado. Desde sua leitura de From India to the planet Mars, Jung passa a adotar a abordagem de Flournoy acerca da interpretação dos fenômenos anômalos da consciência, nos quais se incluem a fantasia, o sonho e os transes. Na mesma época em que se correspondia com Freud, o psiquiatra suíço se aproximou de Flournoy, tendo visitado o filósofo em Genebra. Seu livro Metamorfoses e símbolos da libido (1912), reescrito posteriormente com o título Símbolos da transformação (Jung, 2012d)6 foi norteado pela concepção de Flournoy de imaginação criadora, na qual a capacidade criativa do inconsciente é considerada superior à da consciência. Em Memórias, sonhos e reflexões, há um capítulo dedicado a Theodore Flournoy, no qual Jung afirma que o apoio do filósofo foi fundamental para seu rompimento teórico com a psicanálise. Assim como William James, Flournoy contribuiu para que Jung investisse na continuação de seus estudos acerca da psicologia da religião e, no campo da filosofia, examinasse o pragmatismo (Jung, 1975a).

Além dos autores citados, a lista de menções de Jung sobre a temática espiritualista inclui Franz Xaver Von Baader, Jakob Böhme, Carl DuPrel, Adam Karl August von Eschenmayer, Joseph Ennemoser, Joseph von Görres, Johann Karl Passavant, Emanuel Swedenborg, entre outros que o psiquiatra suíço considerava precursores da moderna psicologia (Ellenberger, 1970; Crabtree, 1993; Jung, 2012b; Jung, 2012b ; Kerner, 2012). Esses autores formam uma ponte entre seus interesses e as pesquisas desenvolvidas por William James.

William James e as pesquisas psíquicas

Ao longo de sua carreira como filósofo e psicólogo, James buscou avaliar os fenômenos anômalos da consciência, sendo uma referência no tema. Foi participante ativo de sociedades na América e na Europa, como a Society for Psychical Research e a American Society for Psychical Research, que tinham como proposta estudar os estados excepcionais da mente. As sociedades das quais fez parte tinham o objetivo de avaliar tais estados através do método científico, isso significava saber se telepatia, poltergeist, assombrações e mensagens de espíritos eram fatos ou fraudes.

Esses eventos eram foco de discussão na segunda metade do século XIX, reportados na imprensa e referenciados na literatura. Diante da atenção despertada pelos fenômenos, a ciência não poderia se manter afastada, deveria investigar. Segundo Ellenberger (1970), uma farta bibliografia do período também foi produzida por psicólogos, além de William James: autores como Frederic Myers (1843-1901) e Pierre Janet (1859-1947) estudaram eventos como a escrita automática e o transe como formas de manifestação do subconsciente. Barzun (1983, p. 239) destaca a afirmação de James: “Se o transe hipnótico tinha se tornado genuíno após um longo ceticismo e denúncia, era racional supor que outras coisas impossíveis no léxico do cientificismo poderiam ser provadas factualmente [...]”, demonstrando novamente a indiferença de James pela definição do que pode ou não ser pesquisado.

Os experimentos de James refletem muito do contexto em que ele vivia. Boston era emblemática, pois entre sua população encontravam-se muitos frenologistas, herbalistas, curandeiros, seguidores do mesmerismo e médiuns, que ofereciam conselhos e tratamentos de saúde. A disputa com a medicina oficial levou à tentativa de implantação de um projeto de lei no estado de Massachusetts com o intuito de banir as práticas de saúde pouco ortodoxas dos médiuns e curandeiros. James se posicionou a favor de todas as práticas religiosas, seu argumento era a eficácia do hipnotismo que, na Europa, chegou a ser considerado técnica anticientífica (Murphy & Ballou, 1973; Sech, Araujo, & Moreira-Almeida, 2013).

Figuras importantes de Harvard chegaram a organizar um grupo de pesquisa para avaliar os fenômenos apresentados por esses indivíduos. Benjamim Peirce (1809-1880), Louis Agassiz (1807-1873) e Eben Norton Horsford (1818-1893) avaliaram diversos casos. Entre eles, personalidades do contexto espiritualista, como os irmãos Ira Erastus Davenport (1811-1839) e William Henry Davenport (1841-1877) e as jovens da família Fox: Katherine (1837-1892), Leah (1814-1890) e Margaret (1833-1893). No entanto, os resultados foram considerados inconclusivos. Na Universidade da Pennsylvania, igualmente, formaram-se comissões de investigação sobre a escrita automática e comunicações com espíritos. Acadêmicos como George Stuart Fullerton (1859-1925), William Pepper (1843-1898) e Silas Weir Mitchell (1829-1914) investigaram uma série de médiuns, mas se lamentaram, pois na maior parte dos casos tratava-se de amadores em busca de autopromoção (Taylor, 1999).

As dificuldades, no entanto, em pesquisar os fenômenos parapsíquicos eram muitas. Na condução dos experimentos, se por um lado alguns médiuns se resguardavam, impondo diversas condições, por outro, não raro, os pesquisadores já assumiam posicionamentos a favor ou contra por antecipação. James era contra indivíduos que tinham certezas de antemão, assim como considerava o sectarismo científico tedioso e afastado da racionalidade. Para o filósofo, o que mais faltava às pesquisas era crítica e cautela. O assunto deveria ser tratado com a seriedade que merece, afastado do mero entretenimento. Para Taylor (1983), esses estudos acrescentaram importantes elementos à psicologia de James, pois demonstravam que a mente consciente não era a única detentora de sentimentos, pensamentos e imagens.

A pesquisa sistemática do fenômeno só foi inaugurada nos Estados Unidos com a fundação da American Society for Psychical Research em 1885 na cidade de Boston, tendo por membros o presidente de Harvard, Charles William Eliot (1834-1926), e muitos professores da instituição, como Henry Pickering Bowditch (1840-1911), James Jackson Putnam (1846-1918), Charles Sanders Peirce (1839-1914), Richard Hodgson (1855-1905), William James, entre outros, dos campos da medicina, filosofia e ciências (Taylor, 1999).

Em 1886, James atuava como oficial da American Society for Psychical Research e liderava o comitê de estudos sobre o hipnotismo. James devotou muitos anos e fez diversas viagens para cumprir as solicitações das sociedades de que participou, investigando vários casos. Entre os casos que acompanhou, o mais famoso é o da médium Leonora Evelina Piper. De acordo com Taylor (1999), Piper levava uma vida normal até 1883, quando apresentou um problema de saúde. Familiares indicaram que ela se consultasse com J. R. Cocke, médium reconhecido por fenômenos de cura. Cocke era um homem cego, que em consultas pessoais entrava em transe e indicava tratamentos: para aqueles que não podiam ir até ele, era possível enviar cartas com mechas de cabelo do paciente, ele segurava as mechas nas mãos e dessa forma conseguiria determinar a doença e o tratamento. Piper experimentou seus primeiros estados alterados de consciência na presença de Cocke. Em uma sessão, através da escrita automática, ela entrega uma carta a um dos presentes. O homem em questão reconhece a mensagem como sendo de seu filho falecido. Após esse evento, Piper participa de diversas sessões. Assim que James a conhece, ele a conduz à American Society of Psychical Research, apresentando a médium a outros pesquisadores, como James Hervey Hyslop (1854-1920) e Hogson, que escreveram sobre suas faculdades.

Com o consentimento de Piper, James a submetia ao estado hipnótico. Em alguns experimentos, a médium chegava a estados em que sua consciência se apagava por completo, sendo possível espetá-la com uma agulha sem que ela manifestasse qualquer reação. Taylor (1999) ainda descreve experimentos nos quais a médium, em estado de transe e olhos cerrados, imitava os movimentos de James, se ele levava a mão ao nariz ela repetia o gesto, e assim por diante. Em outro momento, James fez uma pequena incisão no braço de Piper em estado de transe, sem que o corte sangrasse. Esse estado poderia ser mantido por algum tempo, assim que ela era retirada do estado hipnótico, ocorria o sangramento. Em outra experiência sob hipnose, Piper era consultada sobre os números e naipes de um baralho afastado de seu campo de visão. Após as respostas, James separava em pilhas os acertos e erros, destacando a rapidez das réplicas e a preponderância de acertos.

Em nenhum momento James encontrou suspeitas sobre o caráter e a honestidade de Piper. Diferentemente de outros médiuns da época, que faziam espetáculos, suas capacidades se limitavam a uma facilidade de se mover entre diferentes estados de consciência. Em estado hipnótico, ou através da escrita automática, era capaz de fornecer informações detalhadas acerca de pessoas e fatos, ou sobre o que lhe fosse perguntado. A médium ainda manifestava uma personalidade chamada de Reactor7 cuja capacidade de discernimento superava a de seu próprio estado de vigília, dando conselhos prolongados que satisfaziam as mentes mais críticas. Piper era chamada por James de seu corvo branco, uma metáfora retirada de um silogismo lógico, representada pela seguinte questão: para quebrar a lei da universalidade que todos os corvos são negros, basta um único corvo branco. A mesma lógica se aplicaria a mediunidade, independentemente de sua causa ou origem, para a designação do fenômeno como autêntico basta um único médium não fraudulento.

Segundo Murphy e Ballou (1973), Leonora Piper se tornou a médium mais estudada da história. Esses experimentos teriam importância para a ciência psicológica, pois demonstravam as intrincadas relações entre o psíquico e o biológico. O estado hipnótico provocava alterações significativas em certos processos involuntários do organismo, interferindo inclusive em aspectos desconhecidos da percepção, memória, atenção e cognição. Sobre os fenômenos estudados, James teria afirmado: “Permanecem incertas e aguardam mais fatos, fatos que podem não apontar claramente para uma conclusão em cinquenta ou cem anos” (Barzun, 1983, p. 239). Em nenhum momento o filósofo se posiciona como crente espiritualista, sua posição é a do pesquisador que reconhece um fenômeno e busca seu sentido. Ao longo de seu trabalho, James compreende porque as performances dos médiuns são sujeitas a fraudes, mas acrescenta que, observando as manifestações, elas possuem semelhanças, independentemente da parte do mundo em que ocorram e das diferentes épocas: isso deveria corresponder a resíduos de fatos.

As impressões de James sobre as experiências psíquicas, alguns meses antes de sua morte, reforçam sua posição de que o subconsciente estava envolvido nesses processos, o que levava ao entendimento de que sentimentos, pensamentos e imagens não se encontravam em sua totalidade na consciência de vigília. A mente deveria ser avaliada em sua totalidade, não somente o que flutuava na superfície, mas também o submerso. O exame atento do tema deveria ter por norte o subliminar. Essa afirmação deixa em suspenso a negação ou a afirmação acerca das realidades espiritualistas, atesta apenas que os eventos tinham seu surgimento e desenvolvimento pela via subconsciente (Taylor, 1999).

Apesar de as Sociedades não terem descoberto evidências incontestáveis da realidade da vida após a morte, elas contribuíram significativamente para a moderna psicologia dinâmica do inconsciente ou psicologia profunda. As experiências com médiuns sugeriam a existência de uma parcela da mente não acessível à consciência de vigília, mas que sob certas condições, como choque, fadiga, distúrbios físicos, entre outros, poderiam invadir a consciência, demonstrando sua existência inequívoca (Taylor, 1999). James considerava suas experiências com Piper como a superação do reducionismo científico. Muitos estudiosos consideravam a mediunidade como um sintoma de doenças nervosas, o que não se aplicava ao caso em questão, uma dona de casa saudável, mãe de dois filhos, mas que possuía a característica marcante de conseguir transitar por diferentes estados de consciência. A mente, nessa perspectiva, não seria uma unidade monolítica, mas um agregado de fluxos de pensamentos, emoções, memórias etc., que se desenvolveriam na consciência normal de vigília e também no nível subliminar (Ellenberger 1970).

Considerações finais

Ellenberger (1970) destaca a importância do movimento espiritualista para a nascente teoria psicológica do século XIX. Apesar da existência de pesquisas sobre estados alterados de consciência em décadas anteriores, é somente entre os anos de 1840 e 1850 que o movimento espírita se expande pelos Estados Unidos e pela Europa. A partir desse período, um número maior de cientistas passou a se interessar pelos fenômenos apresentados pelos médiuns. Esses estudos, por mais controversos que possam parecer, trouxeram importantes contribuições para a teoria do inconsciente. “O advento do Espiritismo foi um acontecimento de grande importância na história, porque indiretamente forneceu psicólogos e psicopatologistas com novas abordagens para a mente” (Ellenberger, 1970, p. 85). A escrita automática e a manifestação do transe mediúnico, introduzidos pelos espiritualistas, foram utilizados pelos pesquisadores como ferramentas de exploração do inconsciente.

Desde seu período de estudante de medicina, Jung esteve interessado pela literatura espiritualista, tendo pesquisado diversos autores. Segundo seu parecer, teóricos como Kerner, Zöllner e Crookes foram os primeiros a relatar fenômenos parapsíquicos objetivos (Jung, 1975a). Em sua análise, o autor suíço afirma que muitos dos acontecimentos relacionados ao espiritismo poderiam ser explicados pela existência de percepções inconscientes. “Com esta hipótese não se pretende explicar todos os fenômenos espíritas, mas no máximo uma certa categoria deles”. Destacando ainda que: “Nosso inconsciente possui poderes de percepção e reconstrução muito mais sutis do que a consciência” (Jung, 2012a, p. 346).

Os fenômenos anômalos da consciência, que foram apresentados neste trabalho, perpassam as teorizações posteriores do autor. Dentre os diversos temas pesquisados por Jung, podemos destacar a relação entre consciente e inconsciente, seu conceito de complexo e sua proposta da sincronicidade como diretamente ligados a essas pesquisas (Jung, 2013a). Para além dos diálogos estabelecidos entre Jung e James, dos autores referenciados destacamos o trabalho de Theodore Flournoy. Ao estudar as diferentes personalidades manifestadas por Hélène Smith, com pensamentos e sentimentos diversos da personalidade de vigília, o pesquisador de Genebra abre espaço para a compreensão do psiquismo como um campo plural, com agregados de ideias subconscientes de certa independência. Jung (2013c) utilizará essa proposta para sua teoria dos complexos. Da mesma forma, Flournoy destaca a existência de processos psíquicos prospectivos. Jung (2013d), em sua obra, avaliará a existência de duas possibilidades de análise dos fenômenos psíquicos. Em uma delas, nomeada de analítico redutiva, tem-se a necessidade de um estudo causal, que busca as origens de transtornos e neuroses. Em outra via de análise, nomeada de construtiva ou compreensão prospectiva, tem-se a avaliação dos processos psíquicos em desenvolvimento, indicando um caminho futuro a ser percorrido pelo indivíduo. A partir dessas avaliações, destacamos a necessidade de maiores estudos acerca da relação entre os trabalhos de Jung e Flournoy.

Em relação aos diálogos entre Jung e James, o evento de 1909 na Universidade de Clark representa um marco histórico. A partir do encontro entre os dois autores, inicia-se o processo de formação do que seria posteriormente conhecido como psicologia analítica. Os interesses de pesquisa do psiquiatra suíço não encontravam ressonância em Freud. Ao encontrar suporte teórico e apoio pessoal em William James, Jung vislumbra a possibilidade de traçar seu próprio caminho. A importância de Freud para Jung é inegável, sendo o autor vienense referenciado objetivamente em suas Obras completas, especialmente nos trabalhos reunidos no volume Freud e a psicanálise. No entanto, compreender os efeitos teóricos de outros autores representativos torna-se fundamental para a apreensão da teoria analítica. Em suas Obras completas, Jung referencia William James em vários momentos e associado a diversos temas, como: pesquisas psiquiátricas, avaliação do inconsciente, pluralismo, tipologia e pragmatismo, as diferenças entre o que o autor suíço nomeou pensamento lógico e pensamento fantasia, teoria das emoções e experiência religiosa.

Neste trabalho, nos concentramos nos temas dos diálogos ocorridos na Conferência de Clark. Nosso objetivo foi ampliar a discussão, apontando os principais estudos desenvolvidos por Jung acerca do assunto antes de seu encontro com James e as principais pesquisas psíquicas desenvolvidas pelo pensador americano. Para James, esses estudos tiveram como perspectiva, mais do que confirmar as afirmações religiosas acerca do fenômeno, trazer contribuições à psicologia do subliminar. Para Jung, o encontro com James foi a oportunidade de compartilhar seus interesses e encontrar estímulo para suas pesquisas. O filósofo americano passa a ser um modelo para o psiquiatra suíço, com sua abertura de visão e coragem de avaliar os eventos mais controversos.

Referências

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  • 3
    Em entrevista a Albert Albrecht para o Boston Evening Transcript, em 11 de setembro de 1909, Freud criticou as formas de terapia religiosa praticadas nos Estados Unidos, definindo-as como anticientíficas e perigosas. James (1920), em carta a Flournoy, discorda dessa posição. Segundo Bair (2003), o filósofo americano apoiava o aconselhamento pastoral e as curas pela fé, especialmente as práticas desenvolvidas pelo Movimento ‘Emanuel’ de Boston, como formas de psicoterapia não médica.
  • 4
    No verbete ‘instrumentos de escrita’ do Glossário Ceale, encontramos a informação que a ardósia era um instrumento comum no ensino no século XIX, espécie de quadro negro que exigia o uso de um giz de pedra ou lápis de ardósia para a escrita (http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale).
  • 5
    Sobre os eventos descritos no ciclo hindu, Flournoy relata em seu livro a grande dificuldade de encontrar referências históricas. O filósofo escreveu a professores que estudavam história da Índia: dos três inicialmente consultados, nenhum foi capaz de confirmar os nomes e os eventos relatados por Hélène, somente mais tarde ele encontrou um livro de autoria de De Marlès, General history of India, ancient and modern from the year 2000 B. C. to our own times, que confirmava os nomes e os fatos mencionados. Em Genebra, Flournoy encontrou somente dois exemplares (Flournoy, 2012).
  • 6
    Frank Miller, a mulher cujas fantasias são avaliadas na obra Símbolos da transformação, inicialmente era um caso estudado por Flournoy (Jung, 2013a).
  • 7
    Em sua obra O segredo da flor de ouro, Jung (2013b) afirma que as personalidades masculinas manifestadas por Piper representam o elemento masculino de sua psique inconsciente, nomeada em sua teoria como animus.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2019
  • Aceito
    26 Mar 2021
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