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O primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929): as discussões em torno da eugenia no Brasil

The first Brazilian Eugenics Congress (1929): discussions around eugenics in Brazil

Resumo:

A eugenia exerceu grande influência e fascínio sobre os intelectuais brasileiros, das mais variadas áreas do conhecimento, vindo a conformar projetos de leis enviados às Câmaras nos anos de 1920 e 1930. A preocupação em torno da viabilidade do país, frente o alto número de mestiços e negros, considerados inferiores e incapazes, tornou a eugenia atraente, sendo ela tomada como capaz de resolver os problemas nacionais atrelados à categoria de raça. Com este artigo, busca-se compreender a eugenia, com destaque a sua recepção no Brasil, enfatizando o primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929), sua organização, propostas, discussões e resultados. Para isso, serão utilizados artigos e livros relacionados ao assunto e os trabalhos presentes nos Anais do evento.

Palavras-chave:
Eugenia; História; Raça

Abstract:

Eugenics exerted great influence and fascination on Brazilian intellectuals, from the most varied areas of knowledge, conforming bills sent to the Chambers in the 1920s and 1930s. The concern about the country’s viability, given the high number of mestizos and blacks, considered inferior and incapable, made eugenics attractive, being able to solve the national problems linked to the category of race. With this article, we seek to understand the eugenic, especially its reception in Brazil, emphasizing the first Brazilian Congress of Eugenia, its organization, proposals, discussions and results. For that, articles and books related to the subject and the works present in the Annals of the event will be used.

Keywords:
Eugenic; History; Race

A eugenia e a preservação das boas gerações

Com a publicação de Hereditary genius, em 1869, o inglês Francis Galton defendeu as suas teses acerca do controle da reprodução humana, por meio da seleção artificial que preservasse as boas gerações. A ideia central era impedir a procriação dos considerados inferiores e incentivar a dos reputados superiores. A intervenção humana faria o que a seleção natural não estava conseguindo fazer: aniquilar os julgados indivíduos fracos. Nascia, então, a eugenia. Como avaliou Carvalho (2014CARVALHO, Leonardo. A eugenia no humor da “Revista Ilustrada Careta”: raça e cor no Governo Provisório (1930-1934). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2014., p. 58), “a criação do termo parecia uma ânsia por buscar uma palavra que sintetizasse suas ideias que vinham sendo formuladas há quase duas décadas”. Todavia, há de se ressaltar que a preocupação em torno da reprodução de indivíduos saudáveis e fortes antecedia a Galton, bem como as ideias de eliminação dos classificados inadequados.

Já havia uma (vaga) ideia sobre a hereditariedade, no entanto, faltava compreendê-la à luz da ciência e da comprovação para que se ultrapassasse o âmbito da especulação. A maneira como a transmissão dos caracteres era processada ainda gerava discussões, dúvidas, controvérsias e embates religiosos, teóricos e morais.

A eugenia foi angariando simpatizantes, defensores e críticos em uma abrangência mundial. Sua divulgação ocorreu por intermédio do próprio Galton e seus pares nas conferências proferidas; da instalação feita por ele de um laboratório de biometria na Exposição Internacional ocorrida em Londres (1886); da publicação da revista Biometrika (1901), edificada e comandada por Galton, Pearson e Weldon; da realização de eventos, a exemplo do primeiro Congresso Internacional de Eugenia, ocorrido em 1912, em Londres; e por meio das obras publicadas. O entusiasmo pela eugenia foi largo, tendo sido abraçada por outros países, e o surgimento das sociedades eugênicas evidencia esta assertiva: Sociedade Alemã para a Higiene Racial (1905, Alemanha); Sociedade para Educação sobre Eugenia (1907, Inglaterra); Escritório de Registros de Eugenia (1910, Estados Unidos); Sociedade Eugênica Francesa (1912, França); Sociedade Eugênica de São Paulo (1918), dentre outras. De acordo com Stepan (2005STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005., p. 36), algumas destas sociedades objetivaram a realização de pesquisas genéticas, ao passo que outras tencionaram discutir e promover políticas e leis para aplicação de medidas eugênicas.

A eugenia exerceu uma influência bastante significativa entre os estudiosos e interessados por suas ideias no Brasil. As leituras sobre a sua definição variaram, a depender de quem as liam e conforme os interesses que se tinham. Não houve um pensamento homogêneo em torno dessa doutrina no país e este é nosso argumento central neste artigo: a heterogeneidade das discussões e utilizações da eugenia no Brasil. A recepção, compreensão, críticas, usos e refutações foram múltiplas. E, nesse sentido, o Congresso de Eugenia representou claramente esta assertiva, tendo sido marcado por debates calorosos com concordâncias e divergências acerca de um mesmo tema. Como afirmou Engel (2012ENGEL, Magali. Os intelectuais e a Liga de Defesa Nacional: entre a eugenia e o sanitarismo? (RJ, 1916-1933). Revista Intellèctus, Rio de Janeiro, n. 1, p. 1-30, 2012., p. 10), seria “mais adequado pensarmos a pluralidade e complexidade das recriações e ressignificações das ideias eugênicas produzidas e difundidas pelos diversos segmentos intelectuais brasileiros”.

Entre nós, a sua emergência se deu no início do século XX. Neste período, a raça ainda era um marcador de diferença de grande relevância no e para o país e nas discussões a respeito de sua viabilidade. Em virtude de teorias que afirmavam a incapacidade, degeneração e inferioridade dos mestiços e negros, uma hierarquia biológica foi edificada com estes ocupando a base de uma pirâmide que os inferiorizava biológica e intelectualmente. O Brasil era composto majoritariamente por uma população mestiça; e sendo a mestiçagem condenada por grande parcela dos intelectuais europeus e norte-americanos e por suas teorias de cunho racial, pairava a preocupação do que fazer com o país, como torná-lo viável em direção ao progresso e à modernidade.

Autointitulados paladinos do povo, os intelectuais tomaram para si a responsabilidade de pensar e projetar saídas ao problema instaurado. E nesse processo era preciso trabalhar com teorias que condenavam a mestiçagem, tidas como científicas. Portanto, era necessário negociar com tais teorias, relendo-as e interpretando-as de forma a conectá-las à realidade local, vislumbrando saídas. Nesse sentido, a eugenia foi avistada como uma via possível para solucionar as mazelas nacionais, uma vez que permitiria uma regeneração racial. Pensar um Brasil civilizado e moderno significava pensá-lo em termos de raça. Mas é preciso ampliar o campo de visão e entender que a eugenia foi articulada a um projeto que era também social.

Os debates em torno da eugenia no Brasil variaram entre os que a leram na condição de um programa de educação sanitária e aqueles que aceitaram a sua versão mais invasiva - esterilizações compulsórias, abortos, segregação racial etc. - como a mais apropriada para ser aplicada. O consenso nunca existiu, e ambas as vertentes foram debatidas, defendidas e criticadas em solo nacional. Agremiações, a exemplo da Liga Brasileira de Higiene Mental (1923); publicações, tal qual o Boletim de Eugenia (1929); e os eventos, como o aqui discutido - primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929) -, conformaram espaços e momentos para tais debates heterogêneos acerca da temática.

O intuito com este artigo é pensar a eugenia no Brasil enquanto chave para a melhora racial e implementação de políticas que envolviam questões sociais, tomando como base as discussões ocorridas no primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Por intermédio deste evento, podemos compreender as divergências e convergências dos pontos de vista acerca daquela doutrina; as vertentes do método eugênico, os intuitos com a sua aplicação no país; e a pressão política para que seus postulados fossem legalizados e aceitos.

A eugenia no Brasil

Já no início da República, os conflitos com a oligarquia se fizeram presentes no território nacional, cuja crise começou a ganhar contorno em 1919, com o embate entre Nilo Peçanha e Arthur Bernardes pela presidência, e o consequente nascimento do movimento tenentista. A década de 1920 foi marcada também pelas manifestações populares que traziam para o debate as suas insatisfações com as condições de trabalho, a precarização das moradias, a ausência de uma política eficaz de saúde pública, a carestia da vida. O descontentamento atingia também os militares e os políticos que se viam escanteados da vida política nacional. Ademais, o período vinha na sequência de uma guerra mundial, com todas as consequências derivadas do conflito armado: recessão, alta inflação, problemas sociais etc.

Foi igualmente neste período que as preocupações em torno da educação e saúde ganharam maior projeção entre os intelectuais, com cobranças aos políticos e ao governo central de que assumissem suas responsabilidades para com estas searas. Um compromisso a ser assumido em âmbito nacional, para além dos espaços privilegiados das grandes urbes, contemplando as populações interioranas. A criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930, evidencia o intercurso de propostas entre a díade. A presença de médicos na administração educacional igualmente ratifica a sua importância ante o binômio saúde-educação.

No campo da medicina, a medicina social angariava espaço e passava a entender como sendo de sua alçada responsabilidades da geografia, economia, arquitetura, engenharia ou geologia, por exemplo. Ela as incorporou em nome da saúde, e com esse brado se organizou como poder e projeto político. Para atuar com eficácia, ela precisava do apoio do Estado, exigindo, assim, o exercício da chamada polícia médica (Benchimol, 1992BENCHIMOL, Jaime. Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1992.; Costa, 1979COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.; Machado et al., 1978MACHADO, Roberto et al. Da(n)ação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.). Ao lado da medicina social, a mente passava a ser cada vez mais escrutinada na busca por possíveis patologias, com a higiene mental e seu ideal de prevenção a definir ações em detrimento da cura. A psiquiatria ampliava seu raio de interferência e a psique era esquadrinhada em todas as suas dimensões.

Foi em meio a esse contexto que a eugenia ganhou projeção entre os brasileiros. O debate em torno dela, como afirmado acima, congregou um número grande e heterogêneo de entusiastas, incluindo médicos, juristas, políticos, educadores, literatos, jornalistas, entre outros. As agremiações fundadas no país objetivavam congregar membros para debater assuntos que se impunham importantes para o Brasil, tais como saúde, educação, raça, alcoolismo, higiene, imigração, eugenia. Muitos dos seus integrantes circularam entre elas, fato que demonstra a fluidez e o intercâmbio entre as propostas, projetos e ideias operantes na época. Juliano Moreira, Renato Kehl e Afrânio Peixoto, por exemplo, foram tanto membros da Liga Pró-Saneamento como da Liga Brasileira de Higiene Mental. Belisário Penna configurou outro caso, uma vez que integrou a Liga Pró-Saneamento, a Associação Brasileira de Educação e a Sociedade Eugênica de São Paulo. Os exemplos se multiplicam.

Renato Kehl foi uma das personalidades mais representativas da eugenia no Brasil. Médico e farmacêutico, interessou-se pela eugenia ainda na Faculdade de Medicina, vindo a se alinhar, inicialmente, à eugenia preventiva (voltada para a higiene e profilaxia das doenças) e à eugenia positiva (focada na educação higiênica, moral e sexual). No final da década de 1920, seu pensamento e posicionamento com relação à ciência galtoniana passaram por mudanças, estando voltados para as medidas eugênicas mais radicais. Conforme Souza (2006SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A política biológica como projeto: a “Eugenia Negativa” e a construção da nacionalidade na trajetória de Renato Kehl (1917-1932). Dissertação (Mestrado em História), Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2006., p. 119), pelo menos até 1927, Kehl circunstancialmente defendeu ações eugênicas mais radicais, a exemplo do controle da natalidade e da esterilização dos “grandes criminosos”. Foi a partir de 1928 que, de fato, passou a abraçar os pressupostos da consagrada vertente negativa da eugenia, que defendia a realização de esterilizações compulsórias, abortos, segregação racial, impedimento de casamentos inter-raciais e seleções de imigrantes pautadas na raça do indivíduo.

Junto aos sanitaristas e entusiastas das prerrogativas defendidas pelo movimento sanitarista, o médico paulista entendia que, ao lado do sanitarismo e da medicina social, a eugenia funcionaria como um instrumento capaz de salvar o país. Associados aos ideais eugênicos, defendia que o combate ao álcool, as reformas sanitárias, a instrução popular, os cuidados com a infância e a educação sexual seriam caminhos possíveis para se regenerar a nação. A sua crença na capacidade da eugenia em salvar o país não estava pautada em um idealismo ingênuo. Fazia parte de um imaginário amplo, no qual a ciência tinha essa premissa salvacionista, e os cientistas, a visão de si como responsáveis por tamanha missão.

O empenho com a divulgação da ciência galtoniana ocupou a agenda de trabalho de Kehl de maneira marcante desde o momento em que se interessou pelo assunto. Assim, realizou tal empreitada por meio da publicação de livros, cartilhas e panfletos; das palestras proferidas; dos artigos que assinou em jornais e revistas; da instauração da Comissão Central Brasileira de Eugenia. Em vista disso, criou ainda o Boletim de Eugenia, em 1929, então composto por pequenos artigos, notas, publicidade, resenhas, indicações bibliográficas e informações gerais relativas ao assunto (no Brasil e no mundo), tudo numa linguagem simples e clara, como enfatizava seu diretor e proprietário.

O propósito do Boletim era “auxiliar a campanha em prol da Eugenia entre os elementos cultos e entre os elementos que, embora de mediana cultura, desejam, também, orientar-se sobre o momentoso assunto” (Kehl, 1929aKEHL, Renato. Boletim de Eugenia e “Medicamenta”. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano I, n. 6-7, 1929a., p. 1). O mesmo se deu anos antes com a fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo, em 1918, que consistia em congregar “médicos, advogados e outros interessados no estudo e difusão das questões biológicas e sociais em benefício da nacionalidade” (Kehl, 1929bKEHL, Renato. A eugenia no Brasil. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 45-61, 1929b., p. 53).

Contudo, outros estudiosos, anteriores a Kehl, já estavam familiarizados com o assunto, pesquisando-o e divulgando os resultados de suas elucubrações, a exemplo de Souza Lima, ao proferir a conferência “Exame pré-nupcial”, na Academia Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, em 1897; a conferência de Alfredo Ferreira de Magalhães, “Pró-eugenismo”, em Salvador, 1913; Alexandre Tepedino, com sua tese Eugenia, defendida na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1914; dentre outros.

No Brasil, a eugenia foi confundida com higiene, operando no ideário de alguns políticos e estudiosos como seu sinônimo, estando atrelada à medicina social. Mas tal compreensão e leitura não se deu por um engano, o que configuraria uma justificativa simplória. As discussões e trabalhos na esfera sanitária já estavam consolidados no país, e, como declarou Stepan (2005STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005., p. 10), nas duas primeiras décadas do século XX, o Brasil era líder em ciências biomédicas e saneamento na América Latina. Assim, a eugenia “encontrou-se como mais uma vértebra para toda discussão que se desencadeava de traçar um projeto nacional” (Carvalho, 2014CARVALHO, Leonardo. A eugenia no humor da “Revista Ilustrada Careta”: raça e cor no Governo Provisório (1930-1934). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2014., p. 109).

Belisário Penna foi um dos médicos sanitaristas que vinha defendendo a pauta sanitária desde os anos 1910 junto ao movimento sanitarista do qual foi um dos seus mais emblemáticos representantes. Em publicação estampada no Boletim de Eugenia, em 1929, “Eugenia e eugenismo”, buscou validar as práticas higiênicas e a educação como indispensáveis para a boa qualidade das gerações futuras. Defendia que “antes da aplicação dos preceitos da eugenia (era) indispensável praticar o eugenismo, isto é, preparar o ambiente e o indivíduo para a boa geração, para a procriação de filhos física e psiquicamente hígidos” (Penna, 1929aKEHL, Renato. Boletim de Eugenia e “Medicamenta”. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano I, n. 6-7, 1929a., p. 1). Em vista disso, o saneamento, a higiene, a medicina social e a educação higiênica seriam os alicerces da eugenia, sem os quais ela pouco alcançaria. Os fatores sociais foram reputados por Penna (1929aKEHL, Renato. Boletim de Eugenia e “Medicamenta”. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano I, n. 6-7, 1929a., p. 1) como de grande relevância, creditando a eles “maior influência na mentalidade e nos costumes do povo, produzindo saúde, vitalidade e bem estar, ou doenças, vícios e decadência, do que a raça e as condições naturais de salubridade ou insalubridade regional”.

No momento em que as discussões em torno de uma política de saúde pública adquiriam força, os preceitos eugênicos eram, igualmente, debatidos no país como uma via de entender e modificar a situação racial, social, econômica e civilizacional do Brasil. Nesse encontro entre a eugenia e o sanitarismo, houve a apropriação de referenciais eugênicos por parte deste último, fato que rendeu críticas dos eugenistas, a exemplo de Renato Kehl e Roquette Pinto.

Dois meses antes da publicação do artigo assinado por Penna no Boletim, Kehl havia escrito um texto com o mesmo título que veio a público no mesmo jornal. Nesse escrito, buscou desfazer a confusão que se fazia entre eugenia e eugenismo. Assumindo um mea-culpa, afirmou que no início da divulgação da eugenia no país não foi muito claro quanto as suas delimitações e propósitos. Desse modo, foi dito que “educar era eugenizar” e “sanear era eugenizar”.

O diretor do Boletim entendia que era preciso melhor esclarecer o que era a eugenia, distinguindo-a do eugenismo para evitar as confusões e generalizações até então estabelecidas. A eugenia propunha a melhoria e proteção da espécie, garantidas pela preservação e favorecimento das boas disposições hereditárias. Tudo aquilo que pudesse auxiliar a prática eugênica, seria o eugenismo: “aplicação prática, social e individual das medidas que concorrem para o melhoramento humano” (Kehl, 1929cKEHL, Renato. Eugenia e eugenismo. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, n. 8, p. 1, 1929c., p. 1). Nesse campo estavam incluídas a educação, o saneamento, a higiene, o esporte. Vale destacar que nesse ano ele estava distanciado ou distanciando-se da eugenia preventiva e positiva.

Assim como Kehl, o antropólogo carioca Roquette-Pinto buscava dissociar eugenia de higiene. Para ambos, à primeira estava consagrado o aperfeiçoamento das futuras gerações por meio da proteção da herança biológica; ao passo que a segunda estava dirigida para o melhoramento das condições ambientais que eram essenciais, mas que não incidiam sobre os caracteres hereditários. Com relação à definição da eugenia, estavam de acordo que ela estava restrita à transmissão da herança biológica conforme as leis da genética mendeliana.

A estes se juntava o agrônomo Octávio Domingues e o geneticista André Dreyfus. O primeiro (Domingues, 1929DREYFUS, André. O estado atual do problema de hereditariedade. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.87-97, 1929., p. 139) criticava a visão de alguns eugenistas brasileiros que estavam “lavrando um ponto de vista errado” ao confundir eugenia com “higiene individual e social, com a ginástica, o desenvolvimento físico individual, pelo esporte, etc. - assuntos que se ligam a ciência de Galton, mas que não são bem da eugenia”. O segundo (Dreyfus, 1929DREYFUS, André. O estado atual do problema de hereditariedade. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.87-97, 1929., p. 96), partícipe do Congresso de Eugenia, assim como Kehl e Roquette-Pinto, lamentava a crença de certos eugenistas de que “um meio favorável, boa alimentação, instrução desenvolvida, poderiam influir sobre o patrimônio hereditário”, afirmando a necessidade de que tal convicção fosse abandonada.

Apesar de acordados nestas questões, as duas maiores autoridades sobre eugenia no país divergiam em muitos outros aspectos relacionados ao assunto. Roquette-Pinto era um opositor enérgico das defesas de Kehl quanto à necessidade de inserir no país uma eugenia pautada na ideologia racial. Ele não depositava sobre a miscigenação um caráter degenerativo e não advogava a inferioridade racial dos mestiços brasileiros. Entendia que os problemas de ordem social - acesso à saúde, educação, boa nutrição, saneamento básico, moradia de qualidade, enfim - era o que impedia um maior desenvolvimento nacional, cujo “atraso” era depositado erroneamente sobre a raça. Sustentara esta tese ao se referenciar aos trabalhadores brasileiros, então considerados inaptos por sua constituição racial e escassos a ponto de tornar urgente a contratação de mão de obra imigrante.

Do ponto de vista de Roquette-Pinto, eram as subcondições humanas a que estavam sujeitos que os impediam de ser mais produtivos. Portanto, assim como pleiteavam os integrantes e simpatizantes do movimento sanitarista, o antropólogo cobrava dos governos e políticos ações efetivas para melhorar as condições de vida dos brasileiros em todo o país. As suas preocupações estavam voltadas para o estudo das populações, valorizando, segundo Souza (2011SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Tese (Doutorado em História), Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2011., p. 314), o seu estudo “como subsídios fundamentais para a compreensão da realidade brasileira e para a proposição de projetos de reforma nacional”.

Percepções distintas quanto à eugenia foram uma realidade para os interessados na temática, incluindo-se críticas não apenas aos trabalhos elaborados, mas também aos seus autores de maneiras bem subjetivas. Em meio ao Congresso de Eugenia, o antropólogo Fróes da Fonseca não poupou críticas a Renato Kehl e ao seu livro Lições de eugenia, recém-publicado, alcunhando o eugenista paulista de aproveitador do momento que torcia e ajeitava a eugenia usando da força de seu prestígio (Fonseca, F., 1929FONSECA, Fróes da. Os grandes problemas da antropologia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.63-86, 1929., p. 78).

Nessa diversidade de compreensões e embates abertos, usavam e abusavam do termo científico e de seu status não apenas para demarcar suas falas como também para acusar um ao outro de erros, uma vez que seus argumentos não tinham fundamentos científicos. Se, por um lado, Roquette-Pinto e Fróes da Fonseca apresentavam os trabalhos de Franz Boas ou os desenvolvidos pela antropologia física para contestar as teorias e os defensores da inferioridade dos não brancos e da condenação da mestiçagem; por outro, Kehl trazia para a discussão, a fim de legitimar cientificamente seus argumentos, as pesquisas alemãs que validavam esterilizações e segregações na certeza da criação de um tipo ariano que correspondia bem à política biológica daquele país naquele contexto.

Assim, percebe-se que embora a vertente conhecida como mais branda da eugenia tenha tido uma recepção mais positiva no Brasil com relação a mais extrema, esta última se fez presente nos debates e publicações nacionais, angariando defensores. Algumas medidas que influíam diretamente na vida íntima das pessoas, como a obrigatoriedade do exame pré-nupcial, foram discutidas e levadas à Câmara, a fim de que se tornassem leis. Uma interferência motivada e justificada pela julgada necessidade de que os casais fossem formados por pessoas capazes de procriar indivíduos sãos, psíquica e fisicamente, de forma a contribuir para o futuro da nação.

Em “A esterilização dos grandes degenerados e criminosos”, Kehl (1925KEHL, Renato. A esterilização os grandes degenerados. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 2, p. 69-74, 1925., p. 69) defendeu a obrigatoriedade do exame pré-nupcial tal como “as medidas sanitárias para evitar a incursão de epidemias mortíferas”, uma vez que era uma medida familiar e racial ultraprofilática. Outros pares também partilhavam o mesmo pensamento quanto à obrigatoriedade, a exemplo de Levi Carneiro (1929CARNEIRO, Levi. Educação e eugenia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 107-116, 1929., p. 113), que considerou a possibilidade do exame reduzir os casos de divórcio, uma vez que, para este educador, a lei do divórcio era altamente “danosa à criação e à educação da prole”, por ser um fator disgênico; e Gustavo Riedel (1929RIEDEL, Gustavo. O dispensário psiquiátrico como elemento de educação eugênica. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 305-307, 1929., p. 306), ao saudar “o movimento esboçado da exigência do certificado pré-nupcial”, que tramitava no Parlamento Nacional, representando “o primeiro esforço da eugenia humana organizada”.

O delegado do Chile, Sr. Coutts (1929COUTTS. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 114), então presente no Congresso de Eugenia e cuja fala foi transposta por Carneiro em seu texto, excluía a possibilidade de qualquer litígio, caso o fundamento fosse a alegação de doença venérea do cônjuge, quando não se houvesse exigido o atestado médico. Não obstante, havia os que discordavam da obrigatoriedade por entenderem que a legalização não era a forma capaz de resolver a questão, caso de Octávio Domingues e do médico Oscar Fontenelle que acreditavam ser a instrução a maneira realmente eficaz (Castañeda, 2003CASTAÑEDA, Luzia. Eugenia e casamento. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 901-930, set./dez. 2003., p. 921). Na condução de suas argumentações junto à política, esses homens (majoritariamente) de ciências e letras punham em relevo o estudo empírico, a pesquisa literária e o conhecimento científico na condição de validação de suas propostas.

Tanto a vertente neolamarckista quanto a mendeliana tiveram espaço nos debates ocorridos no país. A primeira considerava a influência do ambiente na transmissão das características adquiridas para as proles, com a gradual modificação do organismo adaptando-se ao ambiente. Havia, com isso, uma expectativa de que reformas sociais pudessem resultar em um melhoramento genético; e isso respondia bem à tradição sanitária e ambientalista existente no país. Tal expectativa era oposta à crença dos mendelianos.

Todavia, é válido sublinhar que havia certas dúvidas por parte destes últimos quanto à possibilidade dos venenos externos (álcool, entorpecentes, nicotina, doenças venéreas) provocarem alterações permanentes no plasma germinativo, como sustentou Stepan (2005STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005., p. 84). A autora se reportou à pesquisa feita pelo médico William Sadler a alguns mendelianos, cujo resultado revelou que 60% dos 200 entrevistados acreditavam que tais venenos pudessem ter efeitos persistentes ao longo das gerações. E, se estamos demonstrando a existência de incertezas por parte dos mendelianos, o mesmo se pode aplicar aos neolamarckistas como apresentado pela mesma autora, ao afirmar que estes frequentemente aceitavam as leis mendelianas da hereditariedade, porém, deixando espaço para a possibilidade de alteração no plasma germinativo de maneira permanente a partir da influência do meio ambiente (Stepan, 2005STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005., p. 91). Dessa maneira, buscamos enfatizar que opiniões diferentes e dúvidas existiam mesmo dentro de uma corrente de pensamento. É preciso não perder de vista que esses indivíduos estavam refletindo sobre temas caros e delicados que tinham ligação direta com seus países e o futuro de suas nações, estando inseridos nas dinâmicas sociais de seu tempo. Ademais, operavam com conceitos e teorias que estavam sendo testadas, refutadas, questionadas, aprimoradas, enfim, estavam sendo desenvolvidas.

Os alinhados à vertente mendeliana argumentavam que somente o que estava no código genético era transmitido. Assim, a hereditariedade se sobressaía ao ambiente e, por tal razão, somente uma política destinada à reprodução seria eugênica. Essa percepção era utilizada por seus partidários para dissociar eugenia de higiene. Os estudos mendelianos no país estavam representados no Congresso de Eugenia na figura dos já citados Renato Kehl, Roquette-Pinto, Fróes da Fonseca e Andre Dreyfus. Estes homens tinham contato com pesquisas, pesquisadores e obras de mendelianos na Europa e nos Estados Unidos e já os apresentavam em seus escritos anteriores ao evento. No caso de Kehl e Roquette-Pinto, a comunicação direta com estudiosos que trabalhavam com a linha mendeliana - estadunidenses, alemães, britânicos e suecos -, como demonstrou Souza, correspondia a uma relação mediada por trocas de correspondências, bem como trabalhos e referências bibliográficas; pelas traduções realizadas para o português e consequente divulgação de livros, ideias e ideais; ou pela realização de cursos referentes às teorias e obras dos pesquisadores estrangeiros no Brasil (Souza, 2016SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A eugenia brasileira e suas conexões internacionais: uma análise a partir das controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, 1920-1930. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, supl. 1, p. 93-110, 2016., p. 98).

Vale destacar que, na querela entre as linhas neolamarckista e mendeliana, não estavam em jogo somente pontos de vista distintos ou egos inflamados pela detenção da insígnia da ciência. Ela representava também projetos políticos e sociais que envolviam certos profissionais, como médicos, educadores e juristas, e governos. Focando o Brasil, refutar a interferência do ambiente na hereditariedade tinha significados maiores, uma vez que o neolamarckismo mantinha uma ligação direta e estreita com as reformas sanitárias e sociais que vinham sendo realizadas com maior organização e interesse por parte dos governos desde os anos iniciais da República.

Não se pode perder de vista que na década de 1920 o Brasil vivia o entusiasmo semeado pelo movimento sanitarista, que trazia o otimismo de reverter o quadro social e racial por meio da profilaxia das doenças, com o impulso da bacteriologia e da microbiologia; e pelas reformas no plano educacional que estavam sendo realizadas em alguns estados da federação. Outrossim, envolvia algumas agremiações, desde os motivos de suas fundações aos trabalhos realizados, exemplo da Liga Brasileira de Higiene Mental e suas campanhas antialcoólicas. O discurso neolamarckista casava bem com os argumentos em torno da medicina social, da higiene, puericultura e assim legitimava os esforços humanos em torno de ações práticas que teriam consequências duradouras do ponto de vista hereditário das futuras gerações de brasileiros. Para os eugenistas mendelianos mais radicais, essa interferência humana somente atrapalhava a seleção natural na eliminação dos inaptos, já que tais melhorias ofertavam aos inferiores uma longevidade que, pior do que não os eliminar, podia resultar em sua reprodução.

O reconhecimento, por parte de alguns estudiosos, de que a educação não era transmissível hereditariamente para as proles não significava a sua concordância de que ela seria dispensável ao indivíduo, caso de Dreyfus e de Octávio Domingues. Para este último (1929DREYFUS, André. O estado atual do problema de hereditariedade. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.87-97, 1929., p. 124), ela era uma via poderosa para “melhorar tendências e desenvolver inteligências medíocres”. Se a educação somente conseguiria despertar aquilo que era herdado, esse mesmo autor afiançou seu maior aproveitamento quando aplicada aos indivíduos com maiores aptidões intelectual, moral e física. Para Domingues (1929DREYFUS, André. O estado atual do problema de hereditariedade. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.87-97, 1929., p. 143), no âmbito da prática das medidas eugênicas, a educação tinha uma função “das mais necessárias e primordiais”, que era o convencimento, no caso, realizado pelo educador. Esse convencimento poderia ser alcançado ao ensinar “a todos os humanos a beleza das uniões eugênicas, e pregar o horror à reprodução entre os tipos cuja herança biológica claudicante [fosse] uma ameaça total à descendência” (Domingues, 1929DREYFUS, André. O estado atual do problema de hereditariedade. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.87-97, 1929., p. 144).

Levi Carneiro foi outro partícipe do Congresso a tecer considerações com relação à educação, trabalhando o assunto em seu texto “Educação e eugenia”, publicado nos Anais. Defendia que, mesmo que os caracteres por ela obtidos não fossem transmitidos hereditariamente, não acreditava ser “amesquinhada a influência social da educação” (Carneiro, 1929CARNEIRO, Levi. Educação e eugenia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 107-116, 1929., p. 109). Ao interferir na vida individual do homem e “tendendo a corrigir, ou a refrear, ao menos no indivíduo os vícios ou defeitos hereditários”, ela teria, na concepção do autor (Carneiro, 1929CARNEIRO, Levi. Educação e eugenia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 107-116, 1929., p. 110), que lhes ser ofertada desde os primeiros anos de vida até a fase adulta. Por esse motivo, julgava ser um dever do Estado proporcionar, ou facilitar, a educação integral.

No contexto brasileiro, a leitura da eugenia foi feita pelo viés da regeneração. Sobre ela foi depositada a esperança e a certeza de um melhoramento racial relacionado à possibilidade de encaminhar o país à modernidade. Uma raça degenerada não poderia conduzir uma nação ao progresso e, nesse sentido, os brasileiros eram considerados incapazes e inviáveis. Como trabalhar, então, com a eugenia em meio a um contexto tão específico, determinando como proceder a sua aplicação e que tipo de vertente seguir foram questionamentos que estiveram em discussão, ganhando espaços na mídia, na política, nos centros acadêmicos, nas agremiações. Os eventos foram outras vias para veicular o debate e unir estudiosos do assunto ou simpatizantes da causa. O primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia foi um desses encontros criados para pensar e projetar planos referentes à eugenia no Brasil.

Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia

Diante da importância que a eugenia foi adquirindo nos debates acadêmicos, políticos e jurídicos, a Academia Nacional de Medicina resolveu incluir o evento - primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia - no escopo das comemorações de seu centenário, após a proposta feita por seu presidente, o médico Miguel Couto. Ser realizado pela Academia conferia ao assunto uma importância ímpar, haja vista a credibilidade desta instituição. Por isso, como salientou Souza (2009SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional: fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 763-777, 2009., p. 767), tal fato “contribuiria tanto para reafirmar o interesse e a consolidação da eugenia como um dos principais temas tratados pelos intelectuais brasileiros, quanto para definir os novos rumos que o movimento eugênico seguiria na década de 1930”.

Afora o congresso em análise, estavam incluídos nas comemorações os seguintes eventos: a quarta Conferência Panamericana de Higiene, Microbiologia e Patologia; o segundo Congresso Panamericano de Tuberculose; e o décimo Congresso Brasileiro de Medicina. Os eventos ocorreram entre os dias 30 de junho e 7 de julho de 1929. Foi criada uma comissão central, representada pela mesa da Academia, e outras referentes a cada um dos eventos citados, com os seus presidentes compondo o Conselho Deliberativo, que tinha poderes para resolver os casos omissos no regimento. Este último era comum a todos os congressos, e a inscrição em um deles conferia o direito à participação nos demais (Anais..., 1929ANAIS do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 8-10).

Os eventos estavam abertos aos médicos, farmacêuticos, químicos, sociólogos, educadores, biologistas, aos alunos das escolas superiores da República e associações congêneres. Era necessária a devida inscrição (nome, título e endereço) que era gratuita, com a ressalva do pagamento de 30 mil réis para aqueles que quisessem ter seus textos publicados, participarem do banquete oficial e receberem a medalha comemorativa. O convite se estendia aos estrangeiros, residentes no país ou não.

A todos os membros dos congressos estava permitida a apresentação de comunicações, com o condicionante de não excederam trinta páginas datilografadas, com o tempo estipulado de vinte minutos para as leituras de seus trabalhos e a inclusão de dez minutos para a discussão. Os participantes que não pudessem comparecer ao evento teriam os seus textos lidos pelos secretários das respectivas seções. Aos chefes de cada delegação, no momento da sessão inaugural, caberiam dez minutos para proferir suas considerações gerais. No Regimento Interno dos Anais (1929ANAIS do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929.) informa-se que, durante os congressos, haveria excursões, recepções e visitas às organizações científicas e sanitárias do Rio de Janeiro. Todos os referidos congressos foram sediados na cidade do Rio de Janeiro, nas dependências da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, local no qual foram realizadas as sessões; e no Instituto dos Advogados, onde foram proferidas as conferências oficiais.

O primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia teve a sua Comissão Diretora constituída pelo presidente do Congresso, Prof. Dr. Roquette-Pinto; um secretário-geral, Dr. Renato Kehl; e três seções específicas, cada qual com um presidente e um secretário-geral. A primeira seção era a de Antropologia e estava presidida pelo professor Dr. Fróes da Fonseca e pelo secretário professor Fernando R. da Silveira; a segunda seção era a de Genética, com o professor Dr. Álvaro Osório de Almeida na condição de seu presidente e do Dr. O. B. Couto Silva na qualidade de secretário; e, por último, a terceira seção designada à Educação e Legislação, sob a presidência do Dr. Levi Carneiro e da secretária Senhora D. Celina Padilha. Conforme consta no “Inventário Analítico do Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional” (Santos; Silva, 2006SANTOS, Ricardo; SILVA, Maria Celina(orgs.). Inventário analítico do Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2006.), havia outra seção, Heredologia, que não foi mencionada nos Anais publicados em 1929.

O evento contou com mais de cem participantes, e os palestrantes e/ou ouvintes possuíam as mais diversas formações e ocupações, evidenciando a assertiva do amplo interesse pela temática. Os assuntos debatidos foram igualmente variados, porém, todos conectados à eugenia: imigração, educação, antropologia, genética, casamento, educação física, dentre outros. As discussões foram intensas e em algumas ocasiões bem acaloradas, como a ocorrida com a apresentação do trabalho do jornalista Azevedo Amaral sobre imigração.

Segundo Souza (2009SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional: fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 763-777, 2009., p. 767), houve a apresentação de mais de 75 trabalhos. Na publicação dos Anais há a impressão volume I, porém esse foi o único, já que outros não chegaram a público. Do total de trabalhos, nem todos foram contemplados com a citada publicação, somente as cinco conferências, as atas do Congresso e vinte dos trabalhos que foram apresentados. Os originais do evento, incluindo-se as atas, regulamento, regimento interno, programação, relação dos trabalhos encaminhados e apresentados, fichas de inscrição, relação dos inscritos, correspondências, conclusões de trabalhos, monções e relatos, trabalhos e resumos, conferências, dentre outros materiais, faziam parte do arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional (Santos; Silva, 2006SANTOS, Ricardo; SILVA, Maria Celina(orgs.). Inventário analítico do Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2006.).

As atas das reuniões são os primeiros materiais a serem apresentados nos Anais. Na Ata da Seção Inaugural, Roquette-Pinto foi o presidente e, como consta na publicação, o secretário foi a Profª. Drª. D. Celina Padilha, que assina a Ata. Esta foi a única mulher presente, no que consta nos Anais, na condição de participante da comissão do evento. Na reunião, Roquette-Pinto (1929ROQUETTE-PINTO, Edgard. Nota sobre os tipos antropológicos do Brasil. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 119-147, 1929., p. 12) enfatizou a importância da eugenia e de seu estudo, vindo a saudar a Academia por sua compreensão ao demonstrar que, ao lado da medicina e da higiene, havia aquela ciência com muitos pontos de contato com as duas primeiras. Nessa fala de abertura do evento, fica evidente a dissociação que o antropólogo busca fazer entre eugenia e higiene.

Ao total foram redigidas oito atas, em consequentes oito reuniões, datadas do dia primeiro ao sexto dia do mês de julho. Todas foram assinadas por D. Celina Padilha, mesmo aquelas secretariadas por Fernando Silveira. Cinco foram presididas por Levi Carneiro, duas por Fróes da Fonseca e uma, a de encerramento, por Roquette-Pinto. Os trabalhos foram distribuídos conforme a semelhança dos assuntos, e suas conclusões, após serem aprovadas, deveriam ser submetidas à Mesa, que teria a incumbência de redigi-las de modo a conciliá-las. Após a leitura dos trabalhos, as suas conclusões, considerando os que as apresentavam, eram discutidas.

Dentre os trabalhos apresentados e publicados nos Anais do evento esteve o de Azevedo Amaral concernente à imigração. Das conclusões apresentadas, a décima foi a que gerou maior discussão entre os presentes. Com esta conclusão, Amaral aconselhava a exclusão de todas as correntes imigratórias que não fossem de raça branca para o Brasil. Em linhas gerais, o texto defendia o exame individual rigoroso do imigrante, considerando “inadmissível que consentíssemos a entrada de imigrantes da raça negra”, uma vez que a finalidade nacional era construir uma civilização do tipo europeia (Amaral, 1929AMARAL, Azevedo. O problema eugênico da imigração. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 327-340, 1929., p. 336). Vale ressaltar que as discussões ocorridas no evento em torno da questão da imigração e, mais especificamente, aquelas concernentes à exclusão de determinadas raças consideradas inferiores, eram igualmente realizadas em outros espaços institucionais e acadêmicos, dada a relevância da temática. Os Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, revista oficial da Liga Brasileira de Higiene Mental, por exemplo, contêm vários trabalhos a respeito da questão, ao longo de seus mais de trinta números publicados.

Foi a preocupação com a raça e a crença, não totalmente compartilhada pelos intelectuais brasileiros, da inferioridade dos negros que fez da imigração um tema delicado e bastante debatido em solo nacional. Houve vozes dissonantes com relação à inferioridade dos negros e à negativa da imigração destes. Juliano Moreira foi um exemplo. Para o eminente médico baiano (Moreira, 1925MOREIRA, Juliano. Noticiário: A contribuição da higiene mental no 2° Congresso Brasileiro de Higiene. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1, p. 196-197, 1925., p. 109), o Brasil precisava pensar e pôr em prática uma política migratória, de forma a não conceder a entrada no país aos indesejados sob o ponto de vista mental. Ele não endossava os discursos que cobravam uma regulação legal imigratória com base na raça do indivíduo.

O médico Xavier de Oliveira foi outro partícipe do evento a abordar a imigração, defendendo a tese da inferioridade física do nordestino que estaria em via de desaparecimento. Chegou a duas conclusões: a primeira, que veio a ser aprovada por unanimidade, estabelecia que o Congresso aconselhasse o governo a encaminhar imigrantes de origem europeia para o Nordeste, de preferência os colonos agricultores europeus latinos e anglo-saxões; e a segunda, que ao menos para o Nordeste fossem tomadas medidas restritivas para que não se intensificasse a imigração asiática (Oliveira, 1929OLIVEIRA, Xavier de. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia(Rio de Janeiro). v. 1, 1929., p. 23). Esta última veio a ser rejeitada, tendo em vista a rejeição de conclusão similar anteriormente votada.

As preocupações em torno da imigração vinham na emergência de branquear a população, de povoar as terras “vazias” e na condição de mão de obra a ser utilizada nas atividades agrícolas, enfaticamente. Respondia, assim, a interesses raciais, econômicos, geográficos e sociais, envolvendo por isso mesmo a política e diplomacia. A tese do branqueamento, embora tenha sido intensificada nesse período, não era uma novidade daqueles tempos. Como afirmou Seyferth (2002SEYFERTH, Giralda. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 117-149, 2002., p. 118 e 129), “a questão racial estava subjacente aos projetos imigrantistas desde 1818, antes da palavra raça fazer parte do vocabulário científico brasileiro e das preocupações com a formação nacional”. Segundo esta autora, o discurso racial esteve presente, sobretudo, nas discussões acerca da imigração articulada com o povoamento e nas questões referentes à assimilação.

A assimilação significava o interesse do imigrante em se adequar à formação católica do país, fundir-se à população local a fim de permitir o processo do branqueamento e de estar imerso na cultura brasileira. Os que não estavam dispostos a aceitar estas prerrogativas logo eram alocados na lista dos imigrantes indesejáveis, exemplo dos japoneses e alemães. Com o Estado Novo (1937-1945), houve uma intensificação da nacionalização do ensino, que era uma preocupação estatal anterior ao período: unificar o ensino de forma a liquidar as escolas construídas pelos imigrantes no país. A nacionalização do ensino passava por três aspectos, segundo Schwartzman (Schwartzman, Bomeny, Costa 2000SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena; COSTA, Vanda. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; FGV, 2000., p. 157): o primeiro seria estabelecer e difundir um conteúdo nacional à educação, com a prevalência da língua portuguesa. O segundo seria a padronização do ensino, com um currículo mínimo obrigatório, livros didáticos preestabelecidos e de uso uniformizado. E o terceiro seria a aniquilação das minorias étnicas, linguísticas e culturais existentes no país. Vale destacar que esse projeto de nacionalização incluía as escolas e também a imprensa em língua estrangeira.

Mas retornemos a 1929, ao Congresso de Eugenia e aos significados dos debates ocorridos em torno da imigração nos anos 1930. Já se sabe que as discussões sobre a temática eram anteriores ao evento. Neste, ficaram latentes as preocupações do público participante que, vale (re)lembrar, incluía médicos, educadores, geneticistas, biólogos, antropólogos que ocupavam cargos em instituições públicas e mesmo na política. Estudiosos das leis eugênicas levaram ao púlpito as suas pesquisas e conclusões, a fim de legitimarem seus discursos e colocá-las à disposição do governo para pautar a legislação imigratória que deveria reger a entrada de imigrantes no país.

Um ponto de comum acordo entre os participantes era a urgente e necessária seleção do imigrante. Porém, em quais princípios ela deveria estar baseada era uma outra questão que angariou em torno de si muitas querelas e disputas. Basicamente, houve a ala dos adeptos a uma seleção racial do imigrante e a dos contrários a esta prerrogativa. Para a maioria destes últimos, a seleção deveria se pautar no indivíduo, sendo regulada por seu quadro de saúde física e mental. Problemas com vícios, criminalidade e vadiagem eram vistos como empecilhos para ambos os grupos, cuja permissão de entrada no país configuraria, nas palavras de Roquette-Pinto, “um crime de lesa pátria” (apud Souza, 2011SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Tese (Doutorado em História), Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2011., p. 323).

O já citado partícipe Azevedo Amaral apresentou no evento um trabalho destinado à imigração, cuja conclusão acirrou os ânimos entre os que a apoiavam e os que a repudiavam. Além de Amaral, Xavier de Oliveira, Oscar Fontenelle e Miguel Couto endossavam a necessidade de uma seleção com base racial. Para Couto (1929aCOUTO, Miguel. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929a., p. 7), saltava aos olhos “a importância do problema imigratório, capaz só ele de frustrar por contaminação todas as conquistas obtidas pelo esforço e a ciência em prol da raça que habita o nosso solo”. Na visão de Oscar Fontenelle (1929FONTENELLE, Oscar. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 20), o país não deveria se deixar arrastar por sentimentalismo, uma vez que já vinha sofrendo bastante pela questão de raça, chegando a conclusão de que o cruzamento com raças diversas era um mal. As réplicas vieram nas vozes de Roquette-Pinto, Fróes da Fonseca, Fernando de Magalhães e Fernando da Silveira. Todos eram contrários à existência de raças superiores e inferiores, e à degenerescência do mestiço, com a fala de Magalhães (1929MAGALHÃES, Fernando de. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 20) a lembrar os presentes do suicídio que seria a aprovação de uma seleção imigratória por um corte racial, uma vez que eram mestiços e assim estariam se excluindo.

Estas discussões também estiveram presentes na Assembleia Constituinte de 1933, e se o tópico gerou debates acalorados no Congresso de Eugenia, o mesmo ocorreu em meio à Constituinte, com as apresentações de emendas e propostas a figurarem na Constituição a ser promulgada. Conforme Geraldo (2009GERALDO, Endrica. A “lei de cotas” de 1934: controle de estrangeiros no Brasil. Caderno AEL, Campinas, v. 15, n. 27, p. 173-209, 2009., p. 180), na tentativa de fixar no texto constitucional a proibição ou restrição aos imigrantes indesejáveis, alguns deputados apresentaram emendas para tal fim. Na lista dos indesejáveis constavam os analfabetos, africanos, árabes, asiáticos, criminosos, doentes mentais e outros. Após debates, análises e acirradas disputas, a emenda n. 1619 de 25 de abril de 1934 foi aprovada, vindo a regular e entrada de imigrantes no território nacional, instaurando a lei de cotas. Segundo esta, ficava fixado um percentual limite de 2% do fluxo de entrada de cada nacionalidade nos últimos cinquenta anos.

Conforme Geraldo (2009GERALDO, Endrica. A “lei de cotas” de 1934: controle de estrangeiros no Brasil. Caderno AEL, Campinas, v. 15, n. 27, p. 173-209, 2009., p. 204), até o início da Constituinte, a atenção de Vargas e do Ministério do Trabalho estava direcionada para o combate ao desemprego por meio do controle imigratório. Porém, com os trabalhos desenvolvidos na Assembleia, a questão passou a ser associada às discussões raciais e eugênicas. Isso somente evidencia o quanto o discurso eugênico estava em pauta e influenciando a política nacional. Aliás, como veremos logo a seguir, o envio de propostas às Câmaras tinha esse objetivo: influir nas decisões políticas no que concernia à constituição do brasileiro eugênico.

A ciência estaria, assim, voltada para os interesses do país e os intelectuais brasileiros exercendo a sua missão. Esse era o tom da fala de Roquette-Pinto (apud Souza, 2011SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Tese (Doutorado em História), Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2011., p. 330) ao declarar que o Congresso dirigiria “ao presidente da República, às casas do Congresso Nacional e aos governadores dos Estados, um apelo em que serão postos em foco os gravíssimos perigos da imigração promíscua, sob o ponto de vista dos interesses da raça e da segurança política e social da República”. Com o acréscimo de que ‘Se o Brasil não tiver mais tarde uma boa lei de imigração - redigida à luz de ótimos preceitos antropológicos e eugênicos - não será culpa do Congresso de Eugenia”. Ou seja, o evento estava dedicando um espaço privilegiado a uma temática central para o futuro da nação, a partir das pesquisas de eminentes estudiosos e dos debates realizados. Restaria ao governo e aos governantes utilizá-las. Caso prevalecesse a negativa, a responsabilidade seria inteiramente deles.

Por conseguinte, os estudiosos da eugenia enviavam propostas de estudos, cursos, eventos, publicações ou projetos que ansiavam se tornarem leis na Câmara. Durante o Congresso, tal assertiva ficou evidente em vários momentos e textos. A primeira conclusão de Xavier de Oliveira, acima referenciada, é um exemplo ao pôr em relevo que o evento aconselhasse o governo nos encaminhamentos relativos à imigração. Nesse campo, Belisário Penna (1929PENNA, Belisário. Eugenia e eugenismo. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, n. 10, p. 3, 1929.b, p. 18) considerava caber aos governos regular a questão da imigração, trazendo em sua fala a sua experiência no Rio Grande do Sul, ao verificar que as colônias italianas e alemãs não se fundiam com as nacionais. Ainda que este não fosse um problema de cunho eugênico, era mais uma observação direcionada aos poderes públicos.

Todavia, pode-se ampliar os pedidos (ou exigências) para outras searas, tais quais a já citada obrigatoriedade do exame pré-nupcial, o combate ao alcoolismo, a proibição dos casamentos consanguíneos ou a efetivação de cursos de higiene. De maneira geral, o empenho dos eugenistas não surtiu o efeito desejado, pois suas proposições não foram incluídas na Constituição de 1934. Uma hipótese para o não êxito das propostas da vertente negativa da eugenia na conformação legal do país pode ser levantada: a positivação da mestiçagem e do mestiço nos anos 1930. O desconforto em aceitar postulados com ênfase sobre a raça em um país cuja população era majoritariamente mestiça e em meio a um contexto que buscava fundamentar na mistura racial a identidade nacional se tornava chave para a não inclusão das matérias eugênicas mais radicais. O que, de maneira alguma, significa a ausência do racismo na sociedade brasileira. Era uma realidade na qual o racismo dividia espaço com um projeto assimilacionista física e culturalmente falando.

O alcoolismo foi outro exemplo de um mal social julgado pelos eugenistas como passível de proibição legal. Para Oscar Fontenelle, apoiado pelo também médico Ernani Lopes, o governo não poderia se eximir de sua responsabilidade em opor-se ao consumo do álcool. O álcool e o alcoolismo foram temáticas bem discutidas na época, para muito além do evento em análise. A Liga Brasileira de Higiene Mental, por exemplo, tinha uma seção específica para tal tema e, em todos os volumes de sua revista Arquivos, sempre havia pelo menos um artigo sobre o assunto (Tamano, 2022TAMANO, Luana. A campanha antialcoólica da Liga Brasileira de Higiene Mental. Revista História, São Paulo, n. 181, p. 1-33, 2022.). Ernani Lopes, membro da Liga e autor de matérias referentes ao tema, foi um grande entusiasta do encarecimento das bebidas alcoólicas por meio de impostos progressivamente crescentes, considerando ser a medida mais eficaz no Brasil do que a lei seca já instituída nos Estados Unidos. Mesmo ponto acordado por Leitão Cunha (1929LEITÃO, Mello. [sem título] In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., n. 1, 15) e Miguel Couto (1929bCOUTO, Miguel. [sem título] Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1, 1929b., n.1, p. 14), ao entenderem a “necessidade de começar por medidas de transição”. A taxação já estava sendo praticada em solo nacional, a exemplo do Recife, com os valores das taxas sendo revertidos para a Liga Pernambucana contra a mortalidade infantil, como afirmou o Dr. Arthur de Sá (1929SÁ, Arthur de. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 26).

Segundo Mirandolino Caldas, médico, diretor da Clínica de Eufrenia da Liga e membro desta agremiação, havia um projeto elaborado pelo deputado Plínio Marques que se encontrava na Câmara dos Deputados e estava à espera de se tornar lei. Esse projeto propunha “taxar proibitivamente o álcool-bebida e proibir a venda dos inebriantes nos domingos e feriados” (Caldas, 1929CALDAS, Mirandolino. As nossas campanhas. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 2, p. 57-60, nov. 1929., n. 2, p. 58-59). No tocante à proibição da venda do álcool, havia um entrave grande e bastante forte para a derrota dos eugenistas: ela contrariava os interesses econômicos, indo de encontro às ideias de livre comércio. A venda da bebida nos períodos festivos foi fortemente combatida, haja vista o temor frente ao aumento no número de alcoolizados a perambular pela cidade causando distúrbios à ordem pública, práticas condenadas não somente pela Liga.

No entanto, vale ressaltar que o combate ao álcool enquanto um elemento degenerativo não era unanimidade entre os estudiosos e interessados pelo assunto. Um destes foi Octávio Domingues. Para Domingues (1929DOMINGUES, Octávio. A hereditariedade em face da educação. São Paulo: Biblioteca de Educação, 1929.), se apenas o que estava no plasma germinativo era herdado, e se as condições do meio só exerciam influência sobre aptidões herdadas, era um erro supor que o combate ao alcoolismo significaria a ausência desse mal na prole. Para o médico alagoano Arthur Ramos, o seu uso estava ligado ao meio, às frustrações, aos conflitos íntimos do homem. O álcool seria, segundo Ramos (1955RAMOS, Arthur. Saúde do espírito. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/Serviço Nacional de Educação Sanitária, 1955., p. 30-31), um derivativo para as “decepções, lutas, problemas de ordem afetiva e econômica” vivenciadas pelo indivíduo. Era uma fuga da realidade. Com relação às campanhas antialcoólicas, afirmou pouco adiantar listar os males do álcool e os seus perigos, “em campanhas cheias de pateticismo”, se as suas causas não fossem estudadas: “conflitos sentimentais, pauperismo, subalimentação” (Ramos, 1955RAMOS, Arthur. Saúde do espírito. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/Serviço Nacional de Educação Sanitária, 1955., p. 30-31). Portanto, vê-se que esse tema, assim como outros, suscitou olhares múltiplos.

Ainda concernente ao envio de propostas e pedidos aos governos, houve no Congresso as considerações do médico Mello Leitão (1929LEITÃO, Mello. [sem título] In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 32) quanto ao envio de um voto a ser feito pelo Congresso ao governo, solicitando a gratuidade dos registros de nascimento. O pedido vinha na necessidade de torná-los exequíveis em todas as classes, excluindo-se a exigência de certas declarações de paternidade que poderiam prejudicá-los. Com relação aos recém-nascidos, o prof. Dr. Affonso Taunay (1929TAUNAY, Afonso. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 26) pedia que o Congresso requeresse dos poderes públicos a realização de fichas mais completas a fim de que estas pudessem fornecer dados mais elucidativos acerca de seus ancestrais. O Dr. Emilio Pimentel (1929PIMENTEL, Emílio. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 34) pedira ao Congresso que sugerisse ao governo medidas extensivas a todas as gestantes, a proteção legal conferida às funcionárias públicas, como às operárias em fábricas, no que dizia respeito à questão da lei especial referente ao abandono da mulher grávida pelo marido.

Um dos pontos mais debatidos pelos eugenistas, não tendo sido diferente em meio ao evento, foi a obrigatoriedade da realização do exame pré-nupcial. Em sua conferência intitulada “A eugenia no Brasil”, Renato Kehl (1929) destacou o seu posicionamento em relação ao exame pré-nupcial, saudando a iniciativa do colega Amaury de Medeiros, que havia apresentado à Câmara um projeto de lei no qual estabelecia o exame pré-nupcial facultativo, num primeiro momento, e dispondo de certas exigências para a realização do casamento. Na visão de Oscar Fontenelle (1929FONTENELLE, Oscar. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 13), tal faculdade não deveria existir, pois não era possível deixar “aos indivíduos a faculdade de lesar ou não a sociedade”.

Como afirmamos, os envios de propostas à Câmara e as cobranças feitas aos poderes públicos advinham da certeza destes estudiosos de que seria um dever dispor a ciência a favor da pátria. Isso também fica perceptível na fala de Kehl (1929, p. 50) ao sentenciar que os médicos não deveriam se afastar da política. Não foi o único. No âmbito da educação, afirmou Levi Carneiro (1929CARNEIRO, Levi. Educação e eugenia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 107-116, 1929., p. 115) que “o Estado precisa contrabalançar toda a sua própria influência nefasta, consagrando em lei, erigindo em dogmas imperativos, os ditames dos eugenistas, fixando, sob a orientação deles, a sua organização educacional”. Para Xavier de Oliveira (1932OLIVEIRA, Xavier de. Da profilaxia mental dos imigrantes. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1, p. 16-38, jan./set. 1932., p. 30), um número grande e crescente de imigrantes lotava os hospitais e manicômios do país, isto ocorrendo em decorrência da falta de seleção por parte do governo nacional. Este problema progredia “com a cumplicidade de um governo de homens cultos e patriotas, mas que, embora estadistas, desconhecem as conquistas da ciência moderna e não ouvem os conselhos dos seus cultores maiores”. Da mesma maneira, o médico Pacheco e Silva (1925SILVA, Pacheco e. Imigração e higiene mental. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 2, p. 27-35, 1925., p. 35) realçou a necessidade de os políticos ouvirem a ciência quando esta determinava a seleção legal dos imigrantes. Alertou que caso o seu protesto “não fo[sse] ouvido pelos legisladores, ninguém poder[ia] dizer, mais tarde, [...] que os psiquiatras brasileiros se descuidaram do assunto e que a Liga Brasileira de Higiene Mental não cumpriu o seu programa”.

Outros temas caros ao país estiveram na agenda do Congresso. Um dos mais centrais dizia respeito à miscigenação. Era amplo o julgamento de que a prática da mestiçagem resultava em seres degenerados que, por tal razão, deveria ser impedida. Uma tese que era justificada pelas teorias raciais e que determinava, segundo alguns, a exemplo de Arthur de Gobineau, o fim de povos e nações. Na mesma linha discursiva estava o pensamento do naturalista Louis Agassiz (Agassiz, Agassiz, 2000AGASSIZ, Louis; AGASSIZ, Elizabeth. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Tradução de Edgar Süssekind de Mendonça. Brasília: Senado Federal, 2000.). Tal percepção acerca da mestiçagem atravessou o século e nos anos 1920 ainda angariava adeptos, mas também críticos.

Oscar Fontenelle (1929FONTENELLE, Oscar. [sem título]. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929., p. 20) era um dos que considerava o cruzamento inter-racial um mal. Roquette-Pinto (1929, p. 20) tinha um pensamento e discurso oposto a tal assertiva, pondo em relevo que “todo o progresso do Brasil foi feito por essa gente proveniente de cruzamentos, ora taxados de inferiores”. E, se a produção anual nacional era inferior à da Argentina, como sustentava Fontenelle, ligando tal inferioridade ao povo mestiço brasileiro, declarava o antropólogo carioca não ser a raça e sim as doenças as responsáveis pela inferioridade na produção.

Ao abordar a superioridade racial, o antropólogo Fróes da Fonseca evidenciava a sua falácia, fundamentando-se em Franz Boas. Com relação aos mestiços, discordava dos discursos que afirmavam a sua degeneração física, destacando a confusão que se fazia, inconsciente ou intencionalmente, entre mestiços que viviam em condições saudáveis e àqueles que não viviam em tais condições, mas em uma realidade marcada pela falta de higiene, educação, com suscetibilidade ao álcool, às doenças como a sífilis ou a malária (Fonseca, F., 1929FONSECA, Fróes da. Os grandes problemas da antropologia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.63-86, 1929., p. 77). O antropólogo corroborava com o pensamento de Roquette-Pinto no que concernia aos mestiços serem totalmente capazes de desenvolver a nação quando em boas condições de saúde. Assim, considerava que os “aspectos de inegável tristeza” que apresentavam podiam ser removidos com o trabalho profilático e os cuidados voltados para a saúde da população brasileira que vinham sendo exigidos pelos médicos sanitaristas (Fonseca, F., 1929FONSECA, Fróes da. Os grandes problemas da antropologia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.63-86, 1929., p. 78). Dessa forma, a mestiçagem, então criticada e vista como um empecilho para o país, não era assim vista pelo estudioso (Fonseca, F., 1929FONSECA, Fróes da. Os grandes problemas da antropologia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.63-86, 1929., p. 78) que considerava tais crenças como “fantasias dos pregoeiros do sangue ariano”. Ademais, afirmava que a mestiçagem não criava entre os brasileiros nenhuma condição de inferioridade.

Se a intervenção direta do homem sobre a procriação de indivíduos eugenicamente bons e a consequente eliminação dos considerados degenerados, por meio de uma seleção artificial, era uma certeza para muitos eugenistas, assim não o era para Fróes da Fonseca. Este não acreditava haver vantagem em tal intervenção que levasse, gradativamente, à formação de um tipo humano padrão que se repetisse ao longo das gerações. Com isso, sublinhava não crer que a eugenização da população brasileira fosse um problema racial. O problema era, sobremaneira, de âmbito higiênico e educacional. Dessa forma, aqui também endossava a perspectiva de Roquette-Pinto, nesse plano, e a de Juliano Moreira, no que se referia à seleção do imigrante que deveria estar pautada sobre o indivíduo e não sobre a raça (Fonseca, F., 1929FONSECA, Fróes da. Os grandes problemas da antropologia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p.63-86, 1929., p. 79).

Outra maneira aventada para se pensar a preservação das boas qualidades e a extinção da proliferação dos degenerados era por meio do casamento. Um julgamento sustentado por Galton que, em consequência disto, defendia a seleção dos indivíduos que deveriam se unir por matrimônio e procriar como uma ação necessária. Nesse sentido, a escolha do(a) parceiro(a) não poderia estar sob a responsabilidade única e exclusiva dos futuros cônjuges. Argumentava-se a favor da intervenção do Estado, que não chegava a ser considerada “uma intromissão nas decisões ou preferências individuais”, como afiançou Del Cont (2008DEL CONT, Valdeir. Francis Galton: eugenia e hereditariedade. Scientiae Studia, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 201-218, jun. 2008., p. 209), “mas uma necessidade do ponto de vista da distribuição estatística das características encontradas na média populacional”. A ideia primordial era orientar eugenicamente o matrimônio. Para auxiliar os noivos na escolha correta, considerando que as uniões matrimoniais configuravam um dever social de cada cidadão, Kehl publicou Como escolher um bom marido (1923) e Como escolher uma boa esposa (1924).

Relativos ao assunto houve no Congresso de Eugenia a apresentação dos trabalhos de Joaquim da Fonseca, “A eugenia e o casamento” e de Leonídio Ribeiro, “A idade e o casamento”. O segundo, apesar de possuir outro título e autor, consiste praticamente na mesma escrita do primeiro. Ambos criticavam a lei então vigente que estabelecia a idade mínima de 18 anos para os homens e de 16 anos para as mulheres para o casamento. Para Joaquim da Fonseca (1929, p. 299), nesta idade, muitas mulheres não estavam com o perfeito desenvolvimento de seus órgãos genitais, sendo, por essa razão, ainda incapazes “de realizar uma prole válida”. O casamento precoce acarretaria, nas palavras do autor, inconvenientes para os cônjuges, para a prole e para a raça. Assim, era eugenicamente ruim.

Contudo, se o casamento precoce consistia em um problema, o mesmo ocorria com relação aos tardios. Com a idade de não mais poderem procriar ou a apresentação de problemas que viessem a dificultar a gravidez, “não (seria) mais do interesse coletivo a sua união que (poderia) ter as mais desastrosas consequências” (Fonseca, J., 1929FONSECA, Joaquim da. Casamento e eugenia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 299-304, 1929., p. 303). Mesmo com relação aos homens, após os 60 anos, já não eram mais, do ponto de vista eugênico, os melhores elementos para a reprodução. Concluiu o autor (Fonseca, J., 1929FONSECA, Joaquim da. Casamento e eugenia. In: Atas e trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 299-304, 1929., p. 304) que o exame pré-nupcial poderia cogitar também adiar a união dos indivíduos que, embora tendo atingido a idade legal, não estivessem ainda em condições de gerar uma descendência eugênica.

Afora os pontos aqui destacados, houve outros assuntos debatidos no evento. Considerando os textos presentes nos Anais, constaram os relativos ao feminismo, educação física, mortalidade infantil, maternidade, doenças mentais, consanguinidade, doenças venéreas, genética vegetal. O que buscamos evidenciar neste artigo é que os debates ocorridos ao longo dos sete dias do evento traziam consigo as angústias e apreensões de homens e mulheres brasileiras em torno do futuro nacional. Pensava-se sobre o país e o seu contingente populacional mestiço; sobre aqueles que poderiam adentrar no Brasil e aqui estabelecer raízes; acerca dos que estariam (ou não) aptos a se casar e procriar; a respeito da urgência das medidas sanitárias e educativas; do combate ao álcool e outros tóxicos; da edificação de uma nação forte e sã para, hígida, construir o país, desenvolvê-lo e colocá-lo no concerto das nações modernas. Inquietações que já se desenhavam desde o Império e ganharam força com a República.

Ao final do sétimo dia de evento, fixou-se a ideia de um segundo congresso a acontecer no futuro. Por decisão da comissão organizadora, ficou consagrada à Academia Nacional de Medicina a atribuição de determinar local e data para a sua realização. Caberia à Mesa que serviu ao Primeiro Congresso a organização do regulamento para o segundo. Ainda na sessão de encerramento, ficou aprovada a constituição de apenas duas seções e que estas viessem a funcionar conjuntamente, de modo que todos pudessem estar presentes em ambas.

Considerações finais

Em meio à necessidade de se pensar o país e o seu povo - mestiço - a eugenia foi recepcionada no Brasil com o propósito de que melhorasse a raça e, assim atuando, inserisse a nação na tão propalada modernidade. Mas o entusiasmo pela eugenia ia além do âmbito racial, adentrando em questões sociais, como buscamos evidenciar. Foi em torno desse objetivo que assuntos correlatos à melhoria racial entraram na agenda dos intelectuais brasileiros. Estes, por sua vez, forçaram os políticos a pensar sobre medidas reguladoras e/ou seletivas no que dizia respeito à imigração ou ao casamento, por exemplo; ou ainda no que tangia às medidas sanitárias e higiênicas.

As ações mais invasivas foram pensadas, discutidas e benquistas por uma parcela significativa da intelectualidade e da política nacional. Isso evidencia que a apreensão da eugenia não se fez apenas pelo viés mais brando, como ficou consagrado na historiografia a partir dos trabalhos de Stepan, ainda que as propostas mais radicais não tenham obtido os êxitos esperados no plano legal. A esterilização compulsória dos considerados degenerados (surdos, mudos, doentes mentais, criminosos etc.) foi defendida por muitos médicos, a exemplo de Renato Kehl, Pacheco e Silva, Ernani Lopes, Leonídio Ribeiro, Cunha Lopes, Oscar Fontenelle. Mas tal defesa, bem como as relacionadas ao exame pré-nupcial e ao controle matrimonial, nem sempre era feita de maneira aberta, principalmente em decorrência do catolicismo e de seus princípios seculares (Wegler; Souza, 2013; Mota; Schraiber, 2013MOTA, André; SCHRAIBER, Lilia. Medicina católica e eugenismo no Brasil 1930-1950. In: MOTA, André; MARINHO, Gabriela(orgs.). Eugenia e história: ciência, educação e regionalidades. São Paulo; UFABC: Faculdade de Medicina; CDG Casa de Soluções e Editora, 2013. p. 99-114.). Na contramão da efetivação das esterilizações involuntárias estavam tantos outros estudiosos do assunto, caso de Juliano Moreira, Roquette-Pinto e Arthur Ramos. Mesmo a Liga Brasileira de Higiene Mental mantinha um cuidado apurado com relação às defesas da eugenia radical, destacando que a fala de determinados autores que publicavam em seus Arquivos não representava a opinião da revista ou da Liga (Arquivos..., n. 2, 1934ARQUIVOS Brasileiros de Higiene Mental, ano VII, n. 2, 1934.).

As divergências de pontos de vista e interpretações acerca da eugenia e sua aplicação no Brasil ficaram à vista pública em meio ao Congresso de Eugenia. Como exemplificamos ao longo do texto, discordâncias e concordâncias mostraram como o assunto não era operado em uma única linha e como a realidade local conformou adaptações ou reestruturações nos princípios mais centrais da eugenia pensada e disseminada por Galton. Foi nesse escopo que pensá-la por uma via higiênica, casando-a com as discussões sanitárias e educacionais já em andamento, foi uma das maneiras pela qual se implementou entre os brasileiros.

Como ficou destacado, o primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia congregou um número considerável de pessoas, de variados campos do conhecimento e de atuação profissional. Temáticas delicadas, importantes, indigestas e cruciais em um momento no qual as julgadas raças inferiores e a prática da mestiçagem continuavam a ser responsabilizadas pelos problemas do país. Buscar saídas, vislumbrar soluções, repensar, negociar, traduzir e adaptar teorias foram operações realizadas pelos homens e pelas poucas mulheres que fizeram parte do evento analisado, mas que em uma abrangência maior - no tempo e espaço - foram igualmente efetivadas.

A eugenia carregava consigo o status científico e simbolizava também o progresso tão almejado para o Brasil. Como afirmaram Wegner e Souza (2013WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei. Eugenia ­‘negativa’, psiquiatria e catolicismo: embates em ­torno da esterilização eugênica no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 263-288, 2013., p. 264), ela era assimilada “como conhecimento científico que expressava muito do que havia de mais ‘atualizado’ na ciência moderna”. Pensada em termos de regeneração, ela permitiria a regeneração no aspecto biológico e psíquico. Por tal razão, parecia um código de leis perfeito que vinha a responder aos questionamentos já seculares da elite brasileira e a atender correções que se mostravam urgentes e de longa duração.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2021
  • Aceito
    30 Abr 2021
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