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Governos, administração e justiça no Império português (séculos XVII-XVIII) (apresentação)

Governance, administration and justice in the Portuguese empire (17th-18th centuries) (presentation)

Resumo:

Este dossiê articula as formas de atuação dos agentes régios e dos demais representantes coloniais no contexto dos governos administrativos e da justiça colonial nos diversos pontos do Império ultramarino português da época moderna. Nessa lógica, ao lançar um olhar para o quadro mais amplo dos diversos territórios ultramarinos, a Coroa acabou inserindo-se em dinâmicas multifacetadas, ampliando e assumindo diferentes papéis, ora como protagonista das ações, ora de mera coadjuvante, ora, de certa forma, com neutralidade político-administrativa. Uma das estratégias da monarquia lusitana foi nomear/inserir oficiais para assegurar as prerrogativas régias em âmbito local, sendo que, por intermédio destes mesmos oficiais, buscava manter o controle dos espaços político-administrativos, através das prerrogativas reais e de uma protoburocracia nascente, ou passava a convergir junto aos interesses locais por meio de acordos e negociações

Palavras-chave:
Governos; Administração; Justiça

Abstract:

This special issue articulates the action of royal agents and other colonial authorities in the context of governance and justice administration in the various regions of the early modern Portuguese Empire. In this logic, by opening up to the broader scale, the Crown engaged in multifaceted dynamics, assuming different roles, as a protagonist, as a supporting partner, or even of political-administrative neutrality. One of the strategies of the Portuguese monarchy was to appoint/insert officers to ensure the royal prerogatives in the local level, and, through these same officers, sought to maintain control of those political-administrative spaces through state bureaucracy, or sought to converge with local interests through agreements and negotiations.

Keywords:
Governance; Administration; Justice

Introdução

O carácter difuso e fortemente interligado da experiência imperial portuguesa foi identificado há bastante tempo, sobretudo pelos historiadores que se debruçaram sobre a história económica (Godinho, 1981GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa: Presença, 1981-1983. 4v.-1983; Boxer 1969BOXER, Charles R. The Portuguese Seaborne Empire (1415-1825). New York: Knopf, 1969.). Identificaram-se redes mercantis e políticas de criação de entrepostos que as sustentavam e coordenavam. Propostas em torno da ideia de constelação de poderes e da diversidade jurisdicional foram também aplicadas ao governo dos territórios ultramarinos sob domínio português (Hespanha, 2001HESPANHA, António Manuel. Estruturas político-administrativas do Império português. In: RODRIGUES, Ana Maria; BRITO, Joaquim Soeiro de. Um outro mundo novo vimos. Lisboa: CNCDP, 2001. p. 23-39.). O conceito de rede foi, mais recentemente, aplicado também à administração política do império, no sentido da identificação de redes clientelares que orientariam a nomeação de indivíduos para lugares-chave da administração colonial (Fragoso, Gouvêa, 2010FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima(org.). Na trama das redes: política e negócio no Império português (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2010.). Trabalhos sobre a magistratura portuguesa na época moderna sublinharam a existência de uma intensa circulação de agentes de administração no âmbito do Império português (Camarinhas, 2010CAMARINHAS, Nuno. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime: Portugal e o império colonial (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação Para Ciência e Tecnologia, 2010.).

A historiografia das duas últimas décadas sobre governos, administração e justiça colonial, aponta para questões bastante relevantes acerca da administração e organização da estrutura institucional jurídica da Coroa portuguesa e dos territórios sob a sua administração direta e donatarial.1 1 Ver: Hespanha (1994); Subtil (1996); Monteiro, Cardim, Cunha (2005); Salgado (1985); Wehling e Wehling (2004); Schwartz (1979); Souza (2006); Lara, Mendonça (2006). Sob influência dos trabalhos de António Hespanha, Bartolomé Clavero ou Pietro Costa, uma perspectiva analítica buscou relativizar o controle dos poderes concorrentes privilegiando a posição periférica da América portuguesa, com base no antagonismo entre interesses localmente constituídos e as determinações metropolitanas (Fragoso, Bicalho, Gouvêa, 2001FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima(org.). Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2001.).

Em grande parte, esses estudos que analisam as relações entre o poder político e administração da justiça e os poderes metropolitanos fundamentam-se na perspectiva de uma arquitetura imperial do “pluralismo administrativo”, que foi “adaptada à manutenção de um conjunto vastíssimo e disperso de territórios, ligados por meio de viagens longas e perigosas a um centro político metropolitano pequeno e cada vez mais exaurido” (Hespanha, Santos, 1998HESPANHA, António Manuel; SANTOS, Catarina Madeira. Os poderes num império oceânico. In: MATTOSO, José(org.); HESPANHA, António Manuel(coord.). História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1998. p. 351-365., p. 354).

Nessa perspectiva, inúmeros estudos têm sido produzidos nos últimos anos pelos programas de pós-graduação no Brasil, tendo como base a abordagem teórica do pluralismo administrativo, ancorando a concepção da categoria de análise da “cultura política” e demonstrando o interesse generalizado na análise das tecnologias de administração da Coroa portuguesa, da sua adaptação aos territórios ultramarinos da América portuguesa, dos conflitos que essa adaptação suscitou, mas também do uso que a sociedade colonial fez das possibilidades que essas tecnologias lhes abriam (Pegoraro, 2007PEGORARO, Jonas Wilson. Ouvidores régios e centralização jurídico-administrativa na América portuguesa: a comarca de Paranaguá (1723-1812). Curitiba: Editora da UFPR, 2007.; Oliveira Filho, 2009OLIVEIRA FILHO, Roque Felipe de. Crimes e perdões na ordem jurídica colonial: Bahia (1750/1808). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009.; Atallah, 2010ATALLAH, Claudia Cristina Azeredo. Da justiça em nome d’El Rey: ouvidores e inconfidentes na Capitania de Minas Gerais (Sabará, 1720-1777). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2010.; Mello, 2010MELLO, Isabele de Matos Pereira de. Poder, administração e justiça: os ouvidores gerais no Rio de Janeiro (1624-1696). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2010., 2013; Souza, 2012SOUZA, Maria Eliza de Campos. Ouvidores de comarcas na Capitania de Minas Gerais no século XVIII (1711-1808): origens sociais, remuneração de serviços, trajetórias e mobilidade social pelo “caminho das letras”. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.). Essa categoria centralizou, num primeiro momento, a sua análise nas trajetórias de vida de determinados indivíduos, que passaram a se constituir como agentes de mudança histórica a partir das “representações, experiências e ações dos atores históricos, ou seja, da cultura política e dos padrões sociais de homens e mulheres que vivenciaram o processo de colonização nos tempos modernos” (Bicalho, 2007BICALHO, Maria Fernanda. Dos “Estados nacionais” ao “sentido da colonização”: história moderna e historiografia do Brasil colonial. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 67-87.). Rapidamente, a inserção dessas estruturas administrativas nas dinâmicas locais de poder da sociedade colonial trouxe um novo fôlego aos estudos (Nogueira, 2010NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império: prática de nobilitação e hierarquia social das elites camarária na Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação (Mestrado em História Social), Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2010.; Silva, 2010SILVA, Rafael Ricarte da. Formação da elite colonial no sertão de Mombaça: terra, família e poder (século XVIII). Dissertação (Mestrado em História Social), Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2010.; Rolim, 2012ROLIM, Leonardo Cândido. “Tempos das carnes” no Siará Grande: dinâmica social, produção e comercio de carnes secas na vila de Santa Cruz do Aracati (c.1680-c.1802). Dissertação (Mestrado em História Regional), Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012.; Carvalho, 2015CARVALHO, Reinaldo Forte. Governanças das terras: poder local e administração da justiça na Capitania do Ceará (1699-1748). Tese (Doutorado em História), História da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2015.). Mais recentemente, as atenções têm sido encaminhadas para as questões da formalização e da territorialização das estruturas administrativas e para o tema das jurisdições, pela encruzilhada de poderes que a análise dos seus conflitos permite surpreender e analisar (Lara, 2006LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes(org.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.; Cunha, 2016CUNHA, Mafalda Soares da; NUNES, António Castro. Territorialização e poder na América portuguesa: a criação de comarcas (séculos XVI-XVIII). Tempo, v. 22, n. 39, p. 1-30, 2016.; Valim, 2018VALIM, Patrícia. O Tribunal da Relação da Bahia no final do século XVIII: politização da justiça e cultura jurídica na Conjuração Baiana de 1798. Tempo, v. 24, n. 1, p. 116-139, 2018.; Paiva, 2020PAIVA, Yamê Galdino de. Justiça e poder na América portuguesa: ouvidores e a administração da justiça na Comarca da Paraíba (c. 1687-c. 1799). Tese (Doutorado em História), Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2020.; Fonseca, 2022FONSECA, Marcos Arthur Vianna da. Os governos das Capitanias do Norte: poder, jurisdição e conflitos (1645-1750). Tese (Doutorado em História), Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2022.). O deslocamento do foco para a forma como as populações não europeias foram sendo (ou não) enquadradas por essas estruturas também tem produzido trabalhos relevantes (Jesus, 2006JESUS, Nauk Maria de. Na trama dos conflitos: a administração na fronteira Oeste da América portuguesa (1719-1778). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2006.; Martins, 2010MARTINS, Guilherme Saraiva. Entre o forte e a aldeia: estratégias de contato, negociação e conflito entre europeus e indígenas no Ceará holandês (1630-1654). Dissertação (Mestrado em História Social), Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2010.). Outra via de exploração, assente nas dinâmicas da intensa interconexão e circularidade no interior do aparelho judicial (Camarinhas, 2018CAMARINHAS, Nuno. Lugares ultramarinos: a construção do aparelho judicial no ultramar português da época moderna. Análise Social, v. 53, n. 226, p. 136-160, 2018.) e da integração deste nas estruturas de administração mais alargadas da Coroa portuguesa, procura demonstrar o interesse do estudo da comunicação política no seio do corpo judicial presente nos territórios ultramarinos (Cunha et al., 2017CUNHA, Mafalda Soares da Cunha et al. Corregedores, ouvidores-gerais e ouvidores na comunicação política. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo; FRAGOSO, João(ed.). Um reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2017. p. 335-370.).

Governos pluricontinentais no Império português

Em Portugal, verifica-se uma burocratização precoce do aparelho de governação da Coroa, sobretudo no domínio da justiça. Desde meados do século XVI, existe um mundo de funcionários com critérios endógenos de promoção - o “mérito”, embora numa aceção fortemente corporativa e autorreferencial - que permitia o estabelecimento de laços profissionais e pessoais sobre os quais se constituiu uma esfera de comunicação (jurídica, política e administrativa) forte, eficiente e espacialmente estendida (Camarinhas, 2010CAMARINHAS, Nuno. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime: Portugal e o império colonial (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação Para Ciência e Tecnologia, 2010.; 2018CAMARINHAS, Nuno. Lugares ultramarinos: a construção do aparelho judicial no ultramar português da época moderna. Análise Social, v. 53, n. 226, p. 136-160, 2018.).

A precocidade da burocratização cria uma originalidade da expansão portuguesa, sem paralelo noutras experiências imperiais europeias: a da construção, ao longo da Época Moderna, de um aparelho pluricontinental no interior do qual se verifica uma intensa circulação de agentes. Os outros impérios europeus conhecem um tipo de realidade distinta, com a venda de ofícios e uma maior fixação dos agentes nos seus locais de serviço, a título vitalício.

A especificidade portuguesa está relacionada com a importância da justiça letrada, como grupo menos patrimonializado do oficialato, culturalmente muito homogêneo e forçado a circular, construindo uma rede à escala global. Para além dos agentes, viajam também livros e papéis (processos e memoriais), que contribuem para o estabelecimento dessa rede que, neste sentido, também é uma rede de comunicação. Outra característica da administração colonial é o fato de formar um contínuo com a administração metropolitana, e os agentes que vão servir nas colônias intercalam ofícios no ultramar com ofícios no reino.

Esses agentes, no contexto colonial, vão inserir-se em sociedades complexas, com poderes instalados de diversas naturezas (política, econômica, militar, religiosa), que seguem matrizes tradicionais europeias, mas que, ao mesmo tempo, desenvolvem características locais nos diferentes contextos ultramarinos, quer na América, na África ou no Estado da Índia. Essa inserção é muitas vezes conflituosa e precária, dada a constante dificuldade logística da Coroa em manter no terreno um aparelho administrativo custoso em meios financeiros, institucionais e humanos.

Partindo dessa premissa, se faz necessário refletir sobre as diversas formas de poderes que atuavam nos mais distantes espaços geográficos do Império português. Diante disso, torna-se relevante a discussão acerca da atuação dos representantes de todas as esferas em relação à administração colonial nas diversas possessões do Império português, buscando entender de que forma os dispositivos de poder eram colocados em prática nos espaços colônias do ultramar em contrapartida às normas do Estado lusitano. Essa concepção, que surge de um universo de contradições, precisa ser analisada em relação à atuação dos inúmeros representantes régios, que exerceram funções relevantes na montagem e funcionamento das diversas atividades da administração colonial. Percebe-se, por meio da ação desses agentes régios, em contrapartida aos grupos de elites, administradores, camarários, colonos indígenas e escravos, grande surgimento de conflitos, fissuras e rupturas nas inúmeras relações, sejam políticas, econômicas, administrativas existentes entre os poderes coloniais e as instituições metropolitanas.

Entretanto, nessas relações existiam não só os embates, mas também as aproximações e fusões dos agentes régios com as redes de conexões clientelares com as quais esses indivíduos estavam envolvidos. Portanto, entender como se caracterizavam as práticas político-administrativas desses representantes no contexto do Império português é adentrar nos espaços de negociação, embates e conflitos presentes nas diversas formas desses indivíduos exercitarem suas funções e no bom governar.

Diante desse quadro, faz-se necessário analisar as dinâmicas criadas pela atuação dos agentes e instituições de administração, que, na Época Moderna, se confundem frequentemente com os agentes judiciais, mas que podem incluir outras áreas da governação dos séculos XVII e XVIII, dada a dimensão pluricontinental da experiência imperial portuguesa nos diferentes contextos geográficos (África ocidental, África oriental, Estado da Índia) e sua relação com a América portuguesa como território ultramarino mais dinâmico.

Ao mesmo tempo, por procurar aprofundar a análise da inserção dessas estruturas institucionais no contexto colonial, é necessário dar especial atenção para as formas de governação da justiça, que incorporam em suas práticas as diversas populações que compõem a sociedade colonial - nomeadamente a população escravizada e indígena. Esse enfoque procura contribuir para o debate em torno da questão colonial, na identificação dos agentes e dos objetos dos mecanismos de dominação numa perspectiva igualmente atenta às limitações desses mecanismos.

Novas perspectivas sobre a governação da justiça no Império

A historiografia mais recente permite-nos ter um quadro bastante completo sobre as estruturas institucionais da justiça presentes no contexto da América portuguesa, bem como dos agentes que as serviram. Este dossiê visa integrar esse conhecimento numa abertura de fronteiras. Fronteiras internas, ao buscar incorporar na pesquisa grupos sociais e populações que têm sido pouco estudadas, e que importa compreender como eram enquadradas/marginalizadas por esses aparelhos de administração; e fronteiras externas, ao tentar articular a atuação dessas estruturas com realidades equivalentes de outros contextos geográficos, com os quais existiam ligações mais ou menos fortes. O resultado que esperamos é um conjunto de trabalhos que aprofunda o conhecimento sobre as questões dos poderes e governos coloniais e aponta novos rumos de pesquisa.

Este dossiê “Governos, administração e justiça no Império português (XVII-XVIII)” reúne um conjunto de cinco artigos que nos apresentam novos caminhos no estudo das relações entre as estruturas de administração e a sociedade que vai se formando no contexto da colônia, expressando, de forma bastante enfática, o carácter complexo desses encontros entre diferentes normatividades, diferentes agentes, diferentes âmbitos de administração, em territórios que se encontram em longos processos de construção.

O primeiro texto, de Yamê Paiva e Arthur Curvelo, propõe alargar o foco da análise da ação jurisdicional a outras instâncias não judiciais, a outros agentes da governação que não são habitualmente considerados, na historiografia, como agentes coadjutores da justiça. O texto nos mostra como vice-reis, governadores-gerais e governadores de capitanias podiam interagir, de forma cooperativa, com os agentes da justiça, utilizando o conceito de “governo da justiça”. Com isso, os autores conseguem, de forma bastante atraente, demonstrar o carácter fluido dos limites entre governo e justiça e as possibilidades de ação consertada de esferas de poder tradicionalmente entendidas como antagônicas.

O texto de Paulo Fillipy de Souza Conti recupera as possibilidades do estudo de caso, centrado em um indivíduo, para a análise de um período de transição de paradigma administrativo (das justiças de carácter tradicional, de raiz tardo-medieval ibérica, para as intendências, devedoras dos novos ideais de administração ilustrada, voltadas para os princípios da eficiência e da œconomia). Por meio da trajetória do desembargador João Bernardo Gonzaga, o autor demonstra os princípios de uma protoburocratização que se distingue, ainda, do modelo weberiano, pelo carácter difuso dos centros de poder da estrutura administrativa em que se insere.

O terceiro artigo, de Marcos Arthur Vianna da Fonseca, aprofunda o tema da jurisdição como cerne da análise do efeito das múltiplas normatividades que confluem no território colonial. No caso que nos apresenta, o autor analisa a questão da delegação de jurisdição a governadores e a capitães-mores para as questões de paz e de guerra. Mais uma vez, é uma análise que nos permite entender como a possibilidade de “dizer o direito” poderia encontrar-se, na sociedade da Época Moderna, em polos de poder muito diversos. A questão é tanto mais interessante quanto se apresenta em um contexto de territórios fluídos e plásticos como aqueles que estavam a ser disputados às populações indígenas (Ceará, Rio Grande e Pernambuco), questionando-se sobre quem teria a capacidade de estabelecer plataformas de entendimento ou de as romper em contexto de guerra.

O texto de Breno Almeida Vaz Lisboa propõe uma instigante prosopografia do fracasso. Nele, o autor apresenta uma forma alternativa de compreender as lógicas de seleção para os ofícios da sociedade portuguesa da Época Moderna por intermédio de um negativo de um retrato coletivo: o dos que não foram selecionados para provimento no cargo de governador da capitania. Dessa forma, por meio da análise dos seus perfis, dos seus percursos e dos seus estatutos, alcançamos uma visão inovadora sobre a forma como essas estruturas administrativas promoveram a seleção, mas também a exclusão.

Finalmente, o trabalho de Fábio Kühn aborda a ideia de como os conflitos jurisdicionais em uma sociedade marcada pelo pluralismo jurídico e pela multinormatividade se constituem como verdadeiro “modo de governar”. Para o fazer, seu trabalho explora a devassa ordenada, em 1771, pelo vice-rei à atuação do governador da capitania do Rio Grande de São Pedro, José Marcelino de Figueiredo. Esse caso permite observar como uma série de instâncias (vice-rei, Câmara, Provedoria da Fazenda Real), decorrentes de diferentes ordens do direito e em um contexto policêntrico, procuram firmar suas posições num campo de constante desequilíbrio, de permanente conflito, no qual a tutela régia exercia uma função moderadora e os direitos locais vão prevalecendo como fonte de autoridade.

Pensamos que este dossiê demonstra a variedade de possibilidades que a pesquisa sobre governo e administração da justiça em contexto colonial ainda apresentam. Seus artigos abrem o campo da administração da Justiça a outras dimensões da sociedade colonial porque compreendem que “fazer justiça” era indissociável do ato de governar e que o poder dependia intrinsecamente da capacidade de estabelecer o direito. Ao mesmo tempo, ao introduzirem a adaptação aos contextos coloniais, com o carácter fluido do seu território e das populações que o ocupam, a mudança de paradigma administrativo que se começa a verificar a partir das primeiras décadas do século XVIII e a centralidade do conceito de jurisdição, cremos que demonstram a vitalidade desse objeto e o potencial de pesquisa que conserva para trabalhos futuros.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2024
  • Aceito
    29 Ago 2024
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