RESENHAS BOOK REVIEW
Marcelo Eduardo Pfeiffer CastellanosI; Nelson Filice de BarrosII; Júlia Casulari MottaIII
ILaboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp
IILaboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp
IIILaboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp
Canesqui AM. Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec/Fapesp; 2007. 149 p.
Trata-se de um pequeno e consistente livro, que introduz o leitor a problemas, conceitos e análises das ciências sociais sobre as doenças crônicas. Organizado por Ana Maria Canesqui, esse livro é composto por cinco capítulos, resultantes de três revisões bibliográficas e duas pesquisas empíricas, que apresentam, de forma clara e sucinta, a longa tradição de estudos sociológicos e antropológicos sobre as doenças crônicas, assim como dois bons exemplos de análises de dados qualitativos. Desse modo, destina-se tanto àqueles que iniciam seus estudos sobre o tema quanto aos pesquisadores que já desenvolvem pesquisas sobre doenças crônicas na perspectiva das ciências humanas e sociais.
Os autores partem do princípio de que a cronicidade é um conceito biomédico utilizado para designar problemas de saúde incuráveis (ou de longa duração), responsável por impor limites orgânicos (para o indivíduo doente) e técnicos (para os profissionais da saúde). Recuperando a clássica distinção entre disease (doença biomedicamente definida) e illness (experiência de adoecimento), procuram explorar a experiência de adoecimento como uma construção social em relação à e para além da perspectiva tradicionalmente sustentada pelos profissionais de saúde.
Canesqui assina o primeiro capitulo, no qual apresenta um panorama dos principais quadros teóricos a partir dos quais as ciências sociais abordaram as doenças crônicas, com especial ênfase aos estudos norte-americanos e ingleses. O texto resultou de uma revisão bibliográfica de estudos sobre doenças crônicas, publicados no período de 1980 a 2005, em sete revistas de grande relevância internacional na área das ciências sociais em saúde. A autora conclui que as ciências sociais, desde a década de 1950, tomam as doenças crônicas como objeto de pesquisa, com vasto predomínio dos estudos sociológicos (especialmente dos norte-americanos, seguidos dos ingleses e, em número muito menor, dos franceses). Nesses estudos, realizou-se uma abordagem qualitativa das doenças crônicas a partir de diferentes quadros teórico-metodológicos, interessados na experiência de adoecimento crônico.
Ao avaliar o tipo de enfoque dado pelos estudos, Canesqui conclui que os norte-americanos, após um predomínio inicial do quadro funcionalista, adotaram um enfoque "internalista" sobre essa experiência. A partir desse enfoque, as concepções do doente são tomadas como resultado de idiossincrasias pessoais e de subculturas presentes em seus grupos de convívio. Em contrapartida, os estudos franceses têm um maior interesse pelas concepções "eruditas" (discurso científico) sobre as doenças, analisadas a partir das estruturas e determinações externas aos sujeitos, perfazendo assim um enfoque "externalista" sobre a experiência de adoecimento. Os estudos ingleses seriam responsáveis pela articulação entre esses dois enfoques. Nessa esteira, a análise da narrativa tem suscitado grande interesse entre os estudiosos das doenças crônicas, especialmente por meio do novo fôlego que a fenomenologia e a hermenêutica tomaram em estudos recentes realizados na área da saúde.
O segundo capítulo, escrito por Reni Barsaglini, investiga a construção da experiência com diabetes, a partir de entrevistas realizadas com uma paciente de meia idade, negra e com oito anos de diagnóstico. Especial atenção é dada à visão da paciente sobre o diagnóstico, à etiologia e aos cuidados necessários ao controle da doença. A autora parte do princípio de que essa visão apropria-se de elementos disponíveis no contexto sociocultural, dimensionando-os de modo específico em sua trajetória pessoal (biografia). Mostra-se claramente como a perspectiva biomédica sobre o diabetes é ressignificada nas concepções que essa paciente possui a respeito de sua doença e de seu corpo.
O capítulo três, também assinado por Canesqui, sintetiza as principais questões e conceitos presentes nos estudos socioantropológicos de uma seleção de estudos brasileiros e estrangeiros sobre hipertensão arterial, em que se coloca em perspectiva o olhar do adoecido. A autora chama a atenção, por um lado, para a pequena produção nacional existente sobre o assunto, especialmente na vertente antropológica, e, por outro, para a grande diversidade metodológica dos estudos nacionais. As investigações mostram que, designada popularmente como "pressão alta", a hipertensão é considerada como um problema de saúde que se origina e se expressa em conflitos, preocupações e dificuldades cotidianas, aproximando-se da categoria "nervoso", já vastamente estudada pelas ciências sociais em saúde.
O capítulo quatro, assinado por Nair Yoshino, enfrenta um paradoxo bastante atual no campo da alimentação: a coexistência do vertiginoso aumento da prevalência populacional de sobrepeso e de obesidade em todas as faixas etárias e de renda, por um lado, e da valorização do corpo magro, por outro. A autora recupera a discussão clássica nas ciências sociais a respeito dos processos socializadores para compreender diferentes dimensões do paradoxo; além disso, ela nos lembra que o corpo é a realidade primeira de todos nós, a partir da qual nos relacionamos conosco e com o mundo, sendo produzido simbolicamente nas práticas sociais. Lembra, ainda, que vivemos em uma sociedade extremamente consumista, que valoriza o excesso e o descartável (fast food), ao mesmo tempo em que busca controlar os efeitos corporais dessa valorização por meio da medicalização do corpo (remédios emagrecedores, dietas, cirurgias, etc.). Por fim, nesse cenário, a autora aponta alguns limites das intervenções sobre a obesidade, advogando que não se trata de um problema individual, devendo ser considerados contextos socioculturais mais amplos.
O capítulo cinco, assinado por Edemilson Campos, apresenta uma análise sobre o "modelo terapêutico" dos Alcoólicos Anônimos (AA), atuante na construção da identidade de seus integrantes ("doentes alcoólicos em recuperação") e no processo de superação de seu problema de saúde. O autor analisa o funcionamento desse modelo a partir de um olhar "de dentro" de suas práticas, buscando compreender como seus integrantes se reconhecem como pertencentes ao grupo, ao mesmo tempo em que assimilam seus valores. Seu texto resulta de uma longa incursão no campo de pesquisa, utilizando-se tanto de observação direta quanto de entrevistas com integrantes de um grupo específico de AA, sediado em São Paulo.
O autor considera que o conceito de "dependência orgânica" atua no AA como uma idéia reguladora responsável por retirar a culpa individual pelo alcoolismo, ao mesmo tempo em que procura responsabilizá-lo pela sua contenção e superação. Para isso, os AA lançam mão de processos rituais (encontros), da construção de uma linguagem da doença (nosografia) e do estabelecimento de um código de conduta (inclusive, instituído documentalmente em uma espécie de estatuto interno). Conclui o autor que a eficácia terapêutica desse modelo assenta-se na palavra como fonte constitutiva de uma memória coletiva, (re)atualizada a cada novo relato de experiência dentro do grupo.
Os autores nos fazem lembrar que as enfermidades crônicas implicam um trabalho "que cada um de nós realiza sobre nós mesmos", em relação aos aspectos pragmáticos, emocionais, filosóficos e (porque não?) espirituais do adoecimento. Segundo Canesqui, "trata-se de dar atenção aos aspectos privados, à vida cotidiana, às rupturas das rotinas, ao gerenciamento da doença e à própria vida dos adoecidos, cujos cuidados não se restringem aos serviços de saúde e ao contato com os profissionais".
Vale ressaltar que os estudos das doenças crônicas, segundo Gerhardt1, lançaram as bases da abordagem qualitativa nas ciências sociais, a partir da segunda metade do século XX. Ressalta-se, também, que para dentro do campo da saúde (formulando análises aprofundadas sobre a experiência de adoecimento como um fenômeno sociocultural), ou para "fora" desse campo específico, em direção às bases teórico-metodológicas das ciências sociais, a investigação dos problemas crônicos de saúde tem desenvolvido análises teoricamente consistentes sobre as significações da condição crônica e da complexidade do real.
Por fim, a leitura desse livro deixa ver como os estudos socioantropológicos sobre as doenças crônicas perpassam questões e dilemas clássicos enfrentados pelas ciências sociais, tais como: ação e determinação, sujeito e estrutura, ciência e senso comum, dentre outros, sobretudo porque, como assinala Canesqui, abordar a dimensão sociocultural das enfermidades de longa duração significa olhar para o sujeito (con)vivendo com uma condição que o acompanha a todos os lugares e cuja forma de entendê-la, explicá-la, representá-la e lidar com ela decorre de um constante movimento em que interpretação e ação se realimentam reciprocamente, balizadas pelo contexto sociocultural imediato e mais amplo no qual se inserem.
- 1. Gerhardt U. Qualitative research on chronic illness: the issue and the story. Social Science and Medicine 1990;30(11):1140-1159.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Nov 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2008