Resumos
Os objetivos foram estimar a prevalência de perpetração de violência física e psicológica entre adolescentes namorados de Recife, identificar fatores associados e a coocorrência de ambos os tipos de violência. Participaram do estudo 302 adolescentes de escolas públicas e particulares, com idade entre 15 e 19 anos, que tiveram algum relacionamento amoroso no último ano e esses preencheram o questionário. Foram realizadas análise univariada e regressão logística e todas as análises estatísticas incorporaram o peso amostral e o desenho da amostra complexa. A prevalência de violência física foi de 19,9%, de 82,8% para violência psicológica e de 18,9% para a coocorrência de violência física e psicológica. Os adolescentes que vivenciaram violência na comunidade e em relacionamentos de mais de um ano de duração apresentaram maiores chances de perpetrar violência psicológica. Enquanto, sofrer violência física do pai, entre irmãos e em namoros anteriores, além de ter perpetrado violência verbal em relacionamentos anteriores, foram variáveis que aumentaram a chance de perpetração de violência física e psicológica no namoro. Conclui-se que a violência psicológica e a coocorrência de violência física e psicológica possuem uma dinâmica distinta da violência física no namoro.
Adolescentes; Violência; Fatores de risco
The scope of this study was to assess the prevalence of physical and psychological violence among dating adolescents from Recife, Brazil, to identify associated factors and the co-occurrence of both types of violence. 302 adolescents aged between 15 and 19 years in public and private schools who were in a relationship in the last year filled out the questionnaire. Univariate and multivariate logistic regression statistical analysis were performed and the sample weight and the complex sample design were entered. The prevalence was 19.9% of physical violence 82.8% of psychological violence and 18.9% for the co-occurrence of both. Adolescents who have experienced violence in the community and who were in dating relationships of more than one year duration were more likely to perpetrate psychological violence. For the co-occurrence of physical and psychological violence, the variables that increased the chance of perpetration were suffering physical violence from the father, violence among siblings, physical violence and the perpetration of verbal violence in previous relationships. The conclusion reached is that psychological violence and the co-occurrence of physical and psychological violence have a distinct dynamics from physical violence in dating relationships.
Adolescents; Violence; Risk factors
ARTIGO ARTICLE
Coocorrência de violência física e psicológica entre adolescentes namorados do recife, Brasil: prevalência e fatores associados
Co-occurrence of physical and psychological violence among dating adolescents in Recife, Brazil: prevalence and associated factors
Alice Kelly BarreiraI; Maria Luiza Carvalho de LimaI; Joviana Quintes AvanciII
INúcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Centro de pesquisas Aggeu Magalhães, Fiocruz. Rua Prof. Moraes Rego s/n, Cidade Universitária. 50670-420 Recife PE
IIDepartamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz
RESUMO
Os objetivos foram estimar a prevalência de perpetração de violência física e psicológica entre adolescentes namorados de Recife, identificar fatores associados e a coocorrência de ambos os tipos de violência. Participaram do estudo 302 adolescentes de escolas públicas e particulares, com idade entre 15 e 19 anos, que tiveram algum relacionamento amoroso no último ano e esses preencheram o questionário. Foram realizadas análise univariada e regressão logística e todas as análises estatísticas incorporaram o peso amostral e o desenho da amostra complexa. A prevalência de violência física foi de 19,9%, de 82,8% para violência psicológica e de 18,9% para a coocorrência de violência física e psicológica. Os adolescentes que vivenciaram violência na comunidade e em relacionamentos de mais de um ano de duração apresentaram maiores chances de perpetrar violência psicológica. Enquanto, sofrer violência física do pai, entre irmãos e em namoros anteriores, além de ter perpetrado violência verbal em relacionamentos anteriores, foram variáveis que aumentaram a chance de perpetração de violência física e psicológica no namoro. Conclui-se que a violência psicológica e a coocorrência de violência física e psicológica possuem uma dinâmica distinta da violência física no namoro.
Palavras-chave: Adolescentes, Violência, Fatores de risco
ABSTRACT
The scope of this study was to assess the prevalence of physical and psychological violence among dating adolescents from Recife, Brazil, to identify associated factors and the co-occurrence of both types of violence. 302 adolescents aged between 15 and 19 years in public and private schools who were in a relationship in the last year filled out the questionnaire. Univariate and multivariate logistic regression statistical analysis were performed and the sample weight and the complex sample design were entered. The prevalence was 19.9% of physical violence 82.8% of psychological violence and 18.9% for the co-occurrence of both. Adolescents who have experienced violence in the community and who were in dating relationships of more than one year duration were more likely to perpetrate psychological violence. For the co-occurrence of physical and psychological violence, the variables that increased the chance of perpetration were suffering physical violence from the father, violence among siblings, physical violence and the perpetration of verbal violence in previous relationships. The conclusion reached is that psychological violence and the co-occurrence of physical and psychological violence have a distinct dynamics from physical violence in dating relationships.
Key words: Adolescents, Violence, Risk factors
Introdução
O estudo da violência nas relações afetivo-sexuais de jovens e adolescentes (namoro, ficar) deriva das pesquisas sobre a violência contra a mulher nas relações entre parceiros íntimos na vida adulta, que tiveram início a partir do esforço do movimento feminista em denunciar a violência doméstica na década de 1970. Atualmente, sabe-se que a violência nas relações afetivo-sexuais de jovens e adolescentes, além de representar um potencial precursor da violência entre parceiros íntimos na fase adulta1, tem especificidades próprias da faixa etária e é tão grave quanto essa, em termos de prevalência, lesões e danos psicológicos à vítima; e, portanto, deve ser estudada independentemente2.
Usualmente denominada violência no namoro (dating violence, courtship violence, violence amoureuse), a violência nas relações íntimas de adolescentes inclui agressão física, abuso psicológico e sexual. Jovens e adolescentes de ambos os sexos podem ser vítimas e/ou perpetradores da violência, mas, geralmente têm dificuldade em reconhecer a violência como tal3 e raramente procuram ajuda4,5.
As pesquisas que abordam as relações de namoro de adolescentes apontam sempre altas prevalências de violência, mas que apresentam ampla variação, em torno de: 10%6, 15%7,8, 20%9, 40%10,11, 80%12,13. A disparidade nos dados de prevalência é frequentemente atribuída à utilização de diferentes metodologias e à ausência de um padrão conceitual14. Em pesquisa realizada em jovens universitários de 32 nações, incluindo o Brasil, 17% a 49% deles relataram ter agredido fisicamente o parceiro no último ano, com média de 29%. A prevalência de agressões físicas mais severas, como esmurrar, estrangular e agredir com armas foi em média 10%15.
Na maioria dos estudos o foco tem sido principalmente para a violência física, enquanto há uma atenção muito limitada à agressão psicológica ou sexual16. Mesmo quando variadas formas de violência são avaliadas, essas têm sido abordadas isoladamente uma das outras, ou então são estudadas como uma questão única. Dessa forma, pouca visibilidade é dada ao fenômeno denominado de polivitimização ou coocorrência da violência, entendido pela existência de vitimização ou de perpetração, respectivamente, simultânea de mais de um tipo de violência física, psicológica ou sexual17,18.
Os poucos estudos que abordaram violência física e psicológica no namoro sugeriram sua associação19,20, onde a violência psicológica pode ser um indicador de violência física simultânea ou longitudinalmente20. Sears et al.18 avaliaram a coocorrência de violência física, psicológica e sexual, e observaram que 19% dos garotos e 26% das garotas relataram ter feito uso de pelo menos duas formas de violência.
O conhecimento dos fatores de risco para a violência no namoro é primordial para a interrupção do ciclo de violência por meio de intervenções e tratamentos efetivos. Infelizmente, a dificuldade de encontrar consenso na literatura sobre violência no namoro também é válida para o estudo dos fatores de risco. Os trabalhos compartilham poucas variáveis comuns na investigação sobre fatores de risco ou proteção21. Além disso, avaliam poucos fatores de cada vez e, geralmente, na ausência de modelos teóricos explicativos. Para Foshee et al.22, muitas das associações observadas podem ter sido confundidas por outras variáveis associadas tanto com o fator estudado como com a violência no namoro e que não foram incluídas nas pesquisas.
Embora exista uma vasta literatura internacional sobre a violência no namoro, no Brasil apenas recentemente o tema tem despertado o interesse da comunidade científica23,24. A pouquíssima produção nacional sobre o assunto e a inadequação em utilizar dados de outros países e de diferentes culturas alertam para a necessidade de estudos que investiguem a prevalência, os fatores associados e as especificidades da violência no namoro em adolescentes e jovens brasileiros.
O presente estudo teve como objetivos estimar a prevalência de violência física e psicológica entre namorados adolescentes de Recife, assim como identificar seus fatores associados e a coocorrência de ambos os tipos de violência investigados.
Método
Esta pesquisa é um recorte de um projeto de delineamento transversal, realizado em 10 capitais do Brasil no ano de 2008, do qual neste trabalho somente os dados referentes à cidade do Recife serão apresentados24. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Autorização para a pesquisa também foi dada por escrito pela Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco. A direção das escolas envolvidas e os alunos que participaram da investigação assinaram um termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme preconizado na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que normaliza as pesquisas com seres humanos25.
Foi alvo desse estudo a população de adolescentes matriculados no segundo ano de ensino médio de escolas públicas (estaduais) e particulares, com idade entre 15 e 19 anos, da cidade do Recife.
O recorte de alunos no segundo ano foi tomado devido à maior facilidade desse grupo em responder a temas mais delicados como o da sexualidade, e por não estarem ainda no último ano, etapa em que as escolas têm mais dificuldade em permitir a liberação de período para pesquisa. Só participaram alunos do curso diurno (7 às 19 horas), pois os alunos do curso noturno são mais velhos e apresentam características muito distintas.
O plano amostral definiu dois estratos, em função da natureza da instituição: pública e particular, para garantir a representatividade segundo estratos socioeconômicos. Adotou-se a amostragem pelas proporções de cada estrato, com uma amostra aleatória simples. A seleção se deu em múltiplos estágios. Na 1ª etapa foram selecionadas as escolas com probabilidade de seleção proporcional à quantidade de alunos do 2° ano; e na 2ª etapa uma turma foi selecionada aleatoriamente, dentro da escola, para a aplicação do questionário com todos os alunos. O plano amostral foi assim delineado com o objetivo de encontrar menor tamanho amostral com maior precisão e poder de inferência para a população das cidades envolvidas26.
O tamanho amostral estimado para a cidade de Recife foi de 320 alunos da 2ª série do ensino médio distribuído igualmente pelos estratos de natureza da escola, ao nível de 99% de confiança, erro relativo de 5% e prevalência de 70% para violência (prevalência encontrada na amostra de Manaus, primeira cidade a ser pesquisada e que serviu de referência para todo o estudo). Os dados utilizados para o cálculo se referem ao número de matrículas no 2º ano do ensino médio do curso diurno no ano de 2006 fornecido pela Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco.
Não houve nenhuma recusa de aluno em participar da pesquisa. A amostra obtida foi de 355 adolescentes, sendo que 53 foram excluídos de acordo com os critérios: idade não informada e nunca ter "ficado" ou namorado. De forma que a amostra final para análise foi de 302 adolescentes, sendo 133 da rede de ensino público e 169 do ensino privado.
O instrumento, elaborado pela equipe de pesquisadores do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), consistiu de um questionário fechado de autopreenchimento, que foi pré-testado.
Utilizou-se o Conflict in Adolescent Dating Relationship Inventory Cadri8 para avaliar a violência nos relacionamentos afetivos dos adolescentes (independentemente da idade do parceiro/a), por ser uma escala criada especificamente para o universo de adolescentes e adaptada para língua portuguesa24. É uma escala com 70 itens, dos quais 25 aferem violência sofrida, 25 referem-se à violência perpetrada e 20 são itens que distraem o jovem da ênfase no tema da violência, não fazendo parte da análise da escala. A Cadri afere cinco formas de violência presentes no relacionamento amoroso entre adolescentes: a) física; b) sexual; c) psicológica, discriminada em três subtipos: ameaças, verbal/emocional e relacional. Neste trabalho, os itens da escala que aferem violência sexual não foram utilizados.
Na escala Cadri adaptada para a língua portuguesa24, os índices de correlação intraclasse (ICC) encontrados para a violência perpetrada indicam estabilidade teste-reteste satisfatória, segundo critério descrito por Szklo e Nieto27, com valores acima de 0.4: 0,497 (IC 95% 0,422-0,566) para violência física, 0,459 (IC 95% 0,381-0,531) para ameaças, 0,497 (IC 95% 0,421-0,566) para violência relacional e 0,701 (IC 95% 0,637-0,754) para violência verbal. A análise do Alpha de Cronbach na amostra revelou boa consistência interna para a maioria das violências, com exceção da violência relacional que apresenta uma consistência interna mais reduzida. Vale destacar que apenas 3 itens compõem a violência relacional, o que pode influir nos resultados obtidos: 0,819 para violência física perpetrada; 0,691 para ameaça perpetrada; 0,539 para violência relacional perpetrada; 0,844 para violência verbal emocional perpetrada.
As variáveis perpetração de violência psicológica e perpetração de violência física e psicológica concomitantemente, chamada de coocorrência foram consideradas dependentes no estudo. A presença de violência foi considerada quando existiram um ou mais itens afirmativos de perpetração de violência.
Como variáveis independentes, outras questões foram aferidas para contextualizar as relações de violência nas relações íntimas de adolescentes. As questões foram agrupadas segundo as dimensões do modelo bioecológico de Bronfrebrenner28, listadas a seguir.
a) Fatores de processo: violência na escola e violência na comunidade29; ter sofrido violência verbal e física da mãe, ter sofrido violência verbal e física do pai (Conflict Tactics Scale30); já ter brigado com irmãos a ponto de se machucarem; ter sofrido violência verbal, física e sexual em relacionamentos anteriores; monitoramento dos pais; e importância atribuída ao namorado(a).
b) Fatores pessoais: sexo; cor da pele; religião; uso de álcool; uso de drogas; autoestima (escala de Rosenberg, 1989 adaptada por Avanci et al.31); desempenho escolar; aceitação da violência feminina no namoro; aceitação da violência masculina no namoro.
c) Fatores de contexto: arranjo familiar; extrato socioeconômico (escala ABEP32); escolaridade da mãe; testemunho de violência na comunidade; testemunho de violência psicológica entre os pais; testemunho de violência física entre os pais.
d) Fatores relacionados ao tempo: duração do relacionamento; idade que começou a ficar, namorar e transar; ter praticado violência verbal nos relacionamentos anteriores; ter praticado violência física nos relacionamentos anteriores.
Todas as análises estatísticas incorporaram: o peso amostral, a fim de que fossem corrigidas as estimativas pontuais (como, por exemplo, os percentuais) e o desenho amostral, visando corrigir as estimativas de variância. Essa opção deveu-se à menor estimativa de variância, característica dos desenhos amostrais conglomerados, em comparação com os testes estatísticos normalmente utilizados em amostra aleatória simples. As análises foram feitas com o pacote de análise para amostra complexa do software SPSS 17.0.
Os dados foram analisados através da estatística descritiva (frequência absoluta e relativa de violência física, psicológica e coocorrência, segundo o sexo). Para identificar a associação entre as variáveis independentes e violência psicológica e coocorrência, foi realizada a análise univariada. Foi utilizado o teste do qui-quadrado, quando indicado, com nível de significância de 20% para selecionar as variáveis para o modelo multivariado de regressão logística. A seleção de variáveis dentro da análise multivariada foi realizada utilizando o algorítimo Forward Stepwise, com probabilidade de entrada no modelo de 5%.
Resultados
Do total de 302 adolescentes que participaram do estudo, 56,3% eram do sexo feminino e a maioria se considerava de cor branca (41,7%) ou parda (37,3%). A maior parte da amostra foi composta de estudantes da rede de ensino privado (56,0%) e representantes dos extratos sociais A e B (54,1%). Com relação à escolaridade de pai e mãe, observou-se um percentual mínimo de analfabetismo (0,7% e 2,4%, respectivamente), com 45,6% dos pais e 39,7% das mães tendo cursado o ensino médio. A maioria dos adolescentes (74,0%) afirmou praticar alguma religião.
Sessenta adolescentes (19,9%) relataram perpetrar violência física contra os seus parceiros, sendo 37 meninas (21,8%) e 23 meninos (17,4%). Para violência psicológica, a prevalência de perpetração foi de 82,8%, sendo 80,6% no sexo feminino e 85,6% no sexo masculino. A prevalência de coocorrência de violência física e psicológica foi de 18,9%, com 20,6% para o sexo feminino e 16,7% para o sexo masculino. Para todas as prevalências, a diferença entre os sexos não foi significante, com p > 0,05.
As Tabelas 1 a 4 apresentam os resultados da associação entre violência (psicológica e coocorrência de física e psicológica) com variáveis independentes na análise univariada, segundo as dimensões do modelo bioecológico. As variáveis que apresentaram associação com violência psicológica, com p < 0,20, foram: violência na escola, violência na comunidade, ter sofrido violência verbal da mãe, ter sofrido violência verbal do pai, ter sofrido violência física do pai, ter sofrido violência verbal em relacionamentos anteriores, importância atribuída ao namorado(a), uso de álcool, aceitação da violência masculina no namoro, escolaridade da mãe, testemunho de violência na comunidade, duração do relacionamento, idade que começou a ficar, e ter praticado violência verbal nos relacionamentos anteriores.
Para identificar a associação entre coocorrência e as variáveis independentes, foram selecionadas (p < 0,20): violência na escola, violência na comunidade, ter sofrido violência verbal da mãe, ter sofrido violência física da mãe, ter sofrido violência verbal do pai, ter sofrido violência física do pai, violência entre irmãos, ter sofrido violência verbal em relacionamento anterior, ter sofrido violência física em relacionamento anterior, monitoramento dos pais (Tabela 1), aceitação da violência feminina no namoro, aceitação da violência masculina no namoro (Tabela 2), arranjo familiar, extrato socioeconômico, escolaridade da mãe, testemunho de violência física entre os pais (Tabela 3), ter perpetrado violência verbal em relacionamento anterior e ter perpetrado violência física em relacionamento anterior (Tabela 4).
No modelo final, após o ajuste com todas as variáveis selecionadas na etapa anterior, observou-se que adolescentes namorados que vivenciam violência na comunidade apresentaram 3,99 mais chances de perpetrar violência psicológica, e que em relacionamentos com mais de um ano de duração as chances dessa violência são maiores quando comparadas com relacionamentos com menos de um mês de duração (Tabela 5).
Ter sofrido violência física em relacionamentos anteriores mostrou forte associação (ORajustado = 12,55) com a coocorrência de violência física e psicológica no namoro. Também, ter perpetrado de violência verbal em relacionamentos anteriores, ter sofrido violência física do pai, e violência entre irmãos apresentaram associação com a coocorrência (Tabela 5).
Discussão
No presente estudo, observou-se que 19,9% dos adolescentes que tiveram relacionamentos amorosos no último ano perpetraram algum ato de violência física e 82,8% de violência psicológica. Esse achado corrobora os dados encontrados na literatura, na qual a violência psicológica tende a ser muito mais prevalente do que a violência física entre namorados adolescentes, podendo atingir prevalências de 50%8, a 80% 10,11,13, enquanto a violência física apresenta prevalência em torno de 10% a 20%15.
Um aspecto fundamental, que perpassa o problema de definição da violência e sua mensuração, refere-se ao tipo ou tipos de violência avaliados em uma dada pesquisa. Os estudos sobre violência no namoro são mais frequentes para agressão física e, portanto, adotam o conceito mais estreito de violência. As consequências de excluir os outros tipos de violência, como psicológica e sexual, é que os dados disponíveis na literatura podem estar subestimando consideravelmente a extensão do fenômeno16. Recentemente, mais pesquisas têm incluído outros tipos de violência além da física e, portanto, apresentam taxas mais elevadas de violência no namoro entre adolescentes12,13,33,34.
Na amostra estudada, dentre os 60 adolescentes que afirmaram perpetrar violência física no namoro, 57 também perpetram a violência psicológica, o que representa uma prevalência de 18,9% de coocorrência e evidencia que a violência física raramente ocorre na ausência da psicológica. Outros estudos também concluíram que os atos de agressão física estão quase sempre acompanhados da agressão psicológica concomitante11,20, exemplificada por abuso verbal, relacional e ameaças.
Pesquisa realizada nos Estados Unidos com 633 adolescentes escolares observou que 6% dos meninos e 23% das meninas afirmaram ter usado violência física e psicológica no namoro ao mesmo tempo18. A maior prevalência de perpetração, seja de violência física e/ou psicológica, para as adolescentes do sexo feminino é um achado comum na literatura sobre violência no namoro, entretanto, nos resultados aqui apresentados essa diferença não foi significante, provavelmente devido ao limitado tamanho da amostra.
Existem poucos trabalhos na literatura que estudaram os fatores associados à violência psicológica, e menos ainda à coocorrência de violência física e psicológica. Por isso, foi investigada a literatura em geral sobre violência no namoro, principalmente sobre violência física, para identificar os possíveis fatores de risco a serem incluídos na análise. Também por esse motivo, a discussão a seguir sobre os fatores associados não possui dados específicos sobre violência psicológica ou sobre coocorrência para serem confrontados.
Por outro lado, os resultados da presente pesquisa sugerem que a violência psicológica e a coocorrência de violência física e psicológica possuem uma dinâmica distinta da violência física no namoro, uma vez que fatores de risco frequentemente destacados nos estudos sobre agressão física, como uso de álcool e drogas22,33,35-37, autoestima6,36, aceitação da violência36-39 e testemunho de violência entre os pais9,36,38,40, não mostraram associação com os tipos de violência aqui estudados.
Foi observado que adolescentes que vivenciam violência na comunidade apresentaram quase quatro vezes mais chances de perpetrar violência psicológica no namoro. Em outros estudos, a exposição à violência na comunidade também tem sido associada à perpetração de violência no namoro entre adolescentes de ambos os sexos36,41. Para O'Keefe14 tal associação ocorre pelo aumento da aceitação da violência em indivíduos expostos à violência na comunidade. Garbarino42 também alerta para a influência de ambientes violentos no comportamento agressivo de adolescentes.
A duração do relacionamento também mostrou associação com violência psicológica, com aumento de chances de 5,81 em relacionamentos com duração maior que um ano. As pesquisas têm constatado que quanto mais envolvidos36 e comprometidos40 os namorados maior o risco de violência no namoro, o que está relacionado com o a duração deste.
Para a coocorrência de violência física e psicológica, a associação com a variável "ter sofrido violência física em relacionamentos anteriores" teve ORajustado de 12,55, enquanto ter perpetrado violência verbal em relacionamentos anteriores teve ORajustado de 4,69. Sears et al.18 também investigaram a experiência passada de violência no namoro, como vítima ou perpetrador, como fator de risco para perpetração de violência no namoro atual de adolescentes e verificaram que ter sido vítima ou perpetrador de violência física ou psicológica em relacionamentos anteriores é fator de risco para a perpetração de violência física ou psicológica no namoro, tanto para homens como para mulheres.
Outros fatores associados com a coocorrência de violência física e psicológica foram sofrer violência física do pai (ORajustado de 3,49) e violência física entre irmãos (ORajustado de 2,60). Rivera-Rivera et al.34, em um estudo com 7.960 adolescentes mexicanos, concluíram que o resultado mais importante foi o risco observado até 2 vezes maior de perpetração (e vitimização) de violência no namoro entre os adolescentes que sofreram violência familiar, principalmente se a violência intrafamiliar foi severa. Outros estudos corroboram esse resultado38,39,43. Méndez e Hernández44 também observaram que a violência física perpetrada pelo pai é a mais determinante.
O estudo apresenta limitações com relação ao tamanho da amostra que foi calculada pelo parâmetro de prevalência. Outra limitação diz respeito ao desenho transversal do estudo que não permite fazer inferências de causalidade.
Entretanto, a alta prevalência de violência no namoro observada no Recife se insere em um contexto de extrema violência urbana que a cidade apresenta45 e, dessa forma, esses resultados podem colaborar com a reflexão do tema em outras cidades brasileiras que partilham das mesmas características socioeconômicas e culturais.
Por fim, destaca-se a importância do estudo da violência no namoro com outros enfoques além da violência física, e sugere-se que mais pesquisas busquem identificar os principais fatores de risco e esclarecer a dinâmica da violência nesse contexto que parece ter início com a agressão psicológica, pela magnitude apresentada, e evoluir para a violência física, já que essa última raramente ocorre isoladamente.
Colaboradores
AK Barreira, MLC de Lima e JQ Avanci trabalharam na pesquisa e na redação do trabalho.
Artigo apresentado em 05/05/2011
Aprovado em 28/08/2011
Versão final apresentada em 28/10/2011
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Abr 2013 -
Data do Fascículo
Jan 2013
Histórico
-
Recebido
05 Maio 2011 -
Aceito
28 Ago 2011