Open-access Financiamento, descentralização e regionalização: transferências federais e as redes de atenção em Minas Gerais, Brasil

Resumo

A Portaria 4279/10 e o Decreto 7508/11 normatizaram o funcionamento político-institucional do sistema, com impactos no financiamento da Média e Alta Complexidade Hospitalar e Ambulatorial (MAC). Para verificar as consequências das diretrizes na consolidação das redes de atenção em Minas Gerais, realizou-se estudo analítico-descritivo do custeio federal do Bloco MAC nos anos de 2006 a 2014. Observa-se descentralização de responsabilidades, aporte de recursos e novos critérios de financiamento, com expansão do modelo de rede. Os repasses de recursos pré-definidos pelo governo federal sugerem redução a autonomia e limitação de soluções loco-regionais.

Financiamento da assistência à saúde; Regionalização; Descentralização

Abstract

The Decrees 4279/10 and 7508/11 established norms to guide health politics, with impacts on funding of the Middle and High Complexity Hospital and Outpatient. To verify the effects on the consolidation of care networks in Minas Gerais, we performed an analytical-descriptive study of the National Health Fund from 2006 to 2014. We observed decentralization of responsibilities, accompanied of resources and innovative financing mechanisms, resulting expansion of the network care model. The federal government definitions suggest reduction of the autonomy and limitation of regional solutions.

Healthcare financing; Regional health planning; Decentralization

Introdução

Marco de uma nova ordem social no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) representa a superação de um modelo assistencial contributivo e centralizado, por outro de caráter redistributivo, universalista e igualitário. A plena materialização desses direitos sociais constitucionais demanda a configuração de uma complexa estrutura institucional capaz de concretizar a cidadania. Nesse sentido, tem-se como um dos grandes desafios a construção de um sistema nacional de saúde capaz de, simultaneamente, abordar a heterogeneidade das necessidades regionais e reduzir as desigualdades existentes1.

Estratégias de financiamento, descentralização e regionalização formam uma tríade de análise que conduzem reflexões acerca dos avanços na consolidação do SUS. Descentralização porque, em um contexto federalista, as repercussões acerca das definições de responsabilidades e dos mecanismos de articulação entre os entes são cruciais para a operacionalização das políticas. Financiamento, pois não existem garantias de que a descentralização de responsabilidades, por si, promova, de maneira eficiente e responsável, o acesso universal a patamares equitativos de atenção à saúde, demandando a consolidação de um arranjo institucional que, respeitando as diferentes capacidades de arrecadação dos entes, seja capaz de viabilizar o compromisso tripartite de financiamento do sistema. E, regionalização, porque o financiamento, ainda que em níveis satisfatórios e em proporções justas entre entes, se não for pautado por critérios de alocação redistributivos e por um planejamento com ordenamento territorial de base regional, não é capaz de superar as barreiras inerentes às profundas desigualdades que marcam o caso brasileiro.

Há uma relação sinérgica entre essa tríade e as configurações normativa e institucional do SUS. A Constituição Federal estabelece que as ações e os serviços públicos de saúde devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único, descentralizado e financiado pelas três esferas federadas. Preceitos esses explorados na Lei n. 8.080/90 e, posteriormente, nas Normas Operacionais Básicas e nas Normas Operacionais de Assistência à Saúde, demonstrando o esforço normativo de elaboração de uma proposta nacional de regionalização da assistência, com definição das responsabilidades descentralizadas e instrumentos compartilhados de planejamento, gestão e financiamento. Contudo, dado ao seu distanciamento político-institucional, estrutural, conjuntural das realidades subnacionais, e, dada à sua incapacidade de realocação de recursos e de indução do aumento dos gastos públicos em saúde, essa proposta limitou o projeto regional à lógica da oferta, das habilitações e dos fluxos assistenciais e financeiros, reforçando as desigualdades em saúde e a competitividade entre os entes federados2.

Em 2006, com objetivo de fortalecer a gestão descentralizada do SUS e as relações intergovernamentais cooperativas, foi estabelecido o Pacto pela Saúde, que inovou ao reconhecer a concepção política da regionalização e da descentralização e propor a pactuação e a articulação entre gestores na busca por maior coerência na organização, financiamento e gestão do sistema. Todavia, por não ter alterado significativamente os instrumentos de planejamento, à exceção dos blocos de financiamento e dos indicadores de monitoramento e avaliação, o Pacto não logrou os avanços esperados na gestão compartilhada do SUS2.

Entre as tentativas mais recentes para superar a intensa fragmentação aperfeiçoar o funcionamento político-institucional do SUS, estão a publicação da Portaria Ministerial nº 4.279/10 e o Decreto nº 7.508/11. A primeira define as diretrizes para a estruturação da Rede de Atenção à Saúde (RAS), que tem como objetivo promover a integração sistêmica das ações e serviços de saúde, garantindo a provisão de uma atenção contínua, integral, responsável, humanizada e de qualidade3. Já o Decreto dispõe sobre a organização do sistema, o planejamento em saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa4. Ambos destacam a necessidade de consolidação da região de saúde como recorte privilegiado para a indução e a integração das políticas, da expansão do financiamento intergovernamental cooperativo e da estruturação das redes temáticas objetivando a garantia da integralidade no acesso ao sistema.

Este trabalho discute a tríade financiamento, descentralização e regionalização, com base nas diretrizes para o processo de implantação da RAS, tendo como referência o estudo de caso de Minas Gerais. Pretende-se verificar se as modalidades de repasses financeiros estabelecidas pelo governo federal para as instâncias subnacionais voltadas para o custeio da média e alta complexidade hospitalar e ambulatorial (MAC) têm avançado em relação às diretrizes propostas pela Portaria n. 4.279/10 e o Decreto n. 7.508/11.

Métodos

Trata-se de um estudo analítico-descritivo, desenvolvido a partir dos dados das transferências federais para custeio da média e alta complexidade hospitalar e ambulatorial do SUS de Minas Gerais (SUS/MG) no período de 2006 a 2014, considerando a Portaria nº 4.279/10, como um marco para a elaboração de novos mecanismos de financiamento com vistas à operacionalização das RAS.

Os dados referentes às transferências federais realizadas para o SUS/MG foram coletados no sítio eletrônico do Fundo Nacional de Saúde (FNS). Foram feitas consultas detalhadas por ação/serviço/estratégia do Bloco de MAC para os 853 munícipios do Estado, para os nove anos em análise, conforme regime de caixa. Os arquivos foram consolidados em um banco de dados único, e os valores anuais, após conferidos com os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde no sítio eletrônico da Sala de Apoio à Gestão Estratégica, foram organizados conforme as Regiões Ampliadas de Saúde de Minas Gerais, estabelecidas pela versão mais recente do PDR-SUS/MG5. Esse instrumento de planejamento organiza o território mineiro em três níveis: municipal, microrregional e macrorregional. Nesse último nível, tem-se, no polo, com a solidariedade dos demais municípios de abrangência, a oferta/organização dos elencos de alta e de média complexidade especial, sendo, portanto, a configuração na qual se alcança a integralidade da assistência e, por isso, foco deste trabalho. Quando da adequação do PDR-SUS/MG aos termos do Decreto n. 7.508/11, os territórios macrorregionais passaram a ser denominados de Região Ampliada de Saúde.

O primeiro passo da análise compreendeu a caracterização das Regiões Ampliadas. Foram coletados dados pertinentes à extensão territorial e ao número de municípios de abrangência, disponibilizados pelo PDR-SUS/MG5; dados populacionais, conforme estimativas fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); número de estabelecimentos conforme tipo de prestador, de acordo com Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES); dados da Resolubilidade no Elenco da Atenção Terciária, indicador calculado pela Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG), que mede o percentual da capacidade de atendimento ambulatorial e/ou hospitalar da população na região ampliada de residência em relação ao elenco de serviços esperados para este nível de atenção; e, dados da tipologia nacional das regiões de saúde com base nas Comissões Intergestores Regionais (CIR), disponibilizados no sítio eletrônico da pesquisa Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil6.

Em seguida, partiu-se para a análise do comportamento das transferências federais realizadas no âmbito do Bloco MAC. Nessa etapa, os valores coletados foram corrigidos para dezembro de 2015 pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA/IBGE), tendo como base o número índice acumulado a partir do mês de transferência do recurso. As análises consideraram tanto a gestão do recurso – estadual e municipal –, como o componente de transferência, Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC) e Limite Financeiro da Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (MAC), que foi organizado em duas categorias, conforme ação/serviço/estratégia, tendo em vista o enfoque do trabalho:

. Limite MAC, que compreende os recursos que remuneram a produção, conforme lógica da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS; os incentivos hospitalares diversos, tais como 100% SUS, Incentivo à Qualificação da Gestão Hospitalar, IntegraSUS, entre outros, e os programas e pagamentos diversos, como ações judiciais de medicamentos, ações contingenciais para enfrentamento da epidemia de dengue, etc.

. Recursos de Redes, composto por incentivos especificamente voltados às redes prioritárias, tais como Urgência e Emergência, Saúde Mental, Cegonha, entre outras.

Por fim, para conhecer o comportamento das transferências federais em relação às diretrizes estabelecidas na Portaria n. 4.279/10 e no Decreto n. 7.508/11, desenvolveu-se uma análise detalhada dos recursos de redes nas Regiões Ampliadas de Saúde. Para essa etapa, o primeiro passo foi compreender a política de financiamento de cada rede prioritária, identificando os tipos de incentivos estabelecidos, o quantitativo de portarias ministeriais que incorporam recursos para cada rede no estado e o montante repassado. Em seguida, a partir do exemplo da Rede de Urgência e Emergência, estudou-se a alocação efetiva do recurso transferido no território. Em Minas Gerais, a maioria dos municípios não detém a gestão de seus prestadores, consequentemente, parcela expressiva do recurso federal é transferida para o Fundo Estadual de Saúde (FES/MG), sem discriminação objetiva do beneficiário. Assim, foram consultadas no Sistema de Controle de Limite Financeiro da Média e Alta Complexidade – SISMAC todas as portarias que incorporam recursos a essa rede, e verificadas na Programação Pactuada Integrada de Minas Gerais (PPI-MG), sua efetiva alocação, de forma que os valores sob gestão estadual tivessem seus credores identificados.

Resultados e discussão

O PDR-SUS/MG5 organiza os 853 municípios do estado em 77 Regiões de Saúde, que, por sua vez, formam 13 Regiões Ampliadas de Saúde. A Tabela 1 aborda alguns aspectos-chave para compreender a realidade dessas regiões.

Tabela 1
Caracterização das Regiões Ampliadas de Saúde, conforme população, extensão territorial, condições socioeconômicas e de saúde, tipo de prestador dos estabelecimentos de saúde e resolubilidade - Minas Gerais.

A Região Ampliada Centro, apesar de corresponder a menos de 10% do território mineiro, compreende o segundo maior número de municípios (103), concentrando 31,3% da população do estado e a maior densidade demográfica (111,5 hab./Km2). A Região Jequitinhonha, apesar de abranger o menor número de municípios (23) e apresentar a menor população residente, apenas 1,4%, fica atrás da Região Noroeste em termos de densidade populacional (8,7 hab./km2). Esses dados evidenciam um aspecto interessante do processo de regionalização do estado. O PDR/SUS-MG tem como pilares quatro princípios fundamentais: integralidade, economia de escala e escopo, acessibilidade e contiguidade geográfica. Dada as reconhecidas desigualdades regionais, esse instrumento define que, em caso de conflito entre acesso e escala, esse último princípio deve prevalecer. Por meio do cruzamento de indicadores que compõem as dimensões Situação Socioeconômica e Oferta e Complexidade dos Serviços de Saúde, a tipologia nacional classifica em cinco categorias as Regiões de Saúde, sendo o Grupo 1 caracterizado pelo baixo desenvolvimento socioeconômico e baixa oferta de serviços e o Grupo 5 pelo alto desenvolvimento socioeconômico e alta oferta de serviços6. Nota-se que em Minas, as Regiões Ampliadas são marcadas pela diversidade de cenários e predominância de médio desenvolvimento socioeconômico e média oferta de serviços (Grupo 3). Enquanto nove das 13 Regiões Ampliadas abrangem pelo menos uma região no Grupo 1, apenas cinco compreendem regiões classificadas na categoria de melhor desempenho.

Em relação aos estabelecimentos de saúde, observa-se que a região Centro concentra quase um terço do total de estabelecimentos do estado (35.670), o que reflete seu papel de referência. A análise segundo tipo de prestador, aponta que o Jequitinhonha, juntamente com as regiões Oeste e Norte, apresentam os maiores percentuais de prestadores públicos, respectivamente, 53%, 59% e 48%. Regiões essas que, historicamente, sofrem maiores intervenções por parte do estado, tendo em vista sua menor capacidade de oferta de serviços, dificuldade de fixação de profissionais, menor desenvolvimento socioeconômico, e/ou dificuldades de gestão da rede de serviços. As regiões Centro e Triângulo do Norte, figuram no outro extremo, com mais de 80% de prestadores privados. Em relação aos hospitais filantrópicos, observou-se que em todos os casos, o percentual de estabelecimentos cadastrados com esse tipo de prestador foi praticamente o mesmo, variando entre 1% e 2%.

Sobre essa relação entre público e privado, os achados de Viana et al.7 reforçam a importância da análise a partir da tríade proposta, tendo em vista que a descentralização promovida pela política de saúde brasileira, sem integração regional e com fragilidades na oferta pública de serviços de maior complexidade, com a presença de grandes vazios assistenciais, possibilitou o crescimento da oferta privada, financiada tanto pelo Estado na forma de renúncia fiscal, como por meio de pagamentos de planos e seguros.

Já a resolubilidade no elenco terciário confirma a discrepância regional também em termos de resultados em saúde. Novamente, Jequitinhonha se destaca com o pior desempenho. Menos da metade da demanda terciária dos residentes foi atendida na própria Região Ampliada, no ano de 2014. Esse resultado não surpreende, tendo em vista a baixa estruturação da oferta já observada. Desempenho semelhante ocorreu na Oeste, que apresenta problemas na oferta e no gerenciamento da rede. O cenário sugere que apenas mecanismos de transferências de recursos na lógica de remuneração por produção, tendo como limites financeiro os parâmetros populacionais construídos a partir de série histórica, modelo adotado desde a década de 1980 e coexistente até os dias atuais não serão suficientes para transformar a situação nessas regiões.

Compreendendo a regionalização como um processo de natureza técnico-político, condicionado pela capacidade de oferta, pelo financiamento da atenção à saúde, pela distribuição de poder e pelas relações estabelecidas entre os diversos atores nos vários territórios8, observa-se que a Portaria n. 4.279/10 e o Decreto n. 7.508/11, deparam-se em Minas com grandes desafios frente a diversas realidades regionais.

O estudo do comportamento das transferências federais, tendo em vista a hegemonia fiscal da União e seu importante papel redistributivo no sistema, revela-se fundamental para sinalizar alternativas capazes de promover uma organização mais equilibrada do SUS, reduzindo as desigualdades regionais vigentes.

A análise do financiamento federal do Bloco MAC do SUS/MG revela que no período de 2006 a 2014 foram realizadas 75.803 transferências bancárias do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estadual e Municipais do estado, sendo que 372 (0,5%) foram canceladas devido à domicílio bancário inexistente (96%), favorecido incompatível (2,2%), saque não realizado em 7 dias por ausência de relação (1,6%) e pelo gestor após remessa ao banco (0,2%). Em valores brutos atualizados para dezembro de 2015, as transferências efetivadas no período totalizaram R$ 36.921.676.203,27. Desse montante R$ 4.975.898.811,61 (13,5%), foram descontados na fonte pelo FNS em decorrência de empréstimos consignados, Termo de Cessão de Crédito, Hospitais Universitários/Ebserh, PROSUS, CONASS, CONASEMS, entre outros. Assim, a quantia líquida repassada para custeio da média e alta complexidade no estado foi de R$ 31.945.777.391,01 (86,5%).

O Gráfico 1 apresenta o comportamento das transferências federais para o Bloco MAC no âmbito do SUS/MG nos nove anos em questão, conforme gestão dos recursos e categoria de componente.

Gráfico 1
Comportamento do financiamento federal do Bloco MAC no âmbito do SUS/MG por gestão do recurso e categoria de componente – Minas Gerais – 2006 – 2014.

Nota-se uma tendência de aumento dos recursos para custeio da média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar, à exceção do ano de 2013, com queda em relação ao exercício anterior, apesar dos valores nominais indicarem aumento de R$ 186.065.730,72 em relação a 2012. Como afirma Ugá et al.9, apesar dos valores constantes, isto é, deflacionados, indicarem um aumento dos gastos federais em saúde, a fração em relação ao PIB evidencia tendência de estabilização ou redução da contribuição da União. Essa queda da participação federal no financiamento da saúde é expressiva ao longo do processo de consolidação do SUS, passando de 72% do gasto público em saúde na década de 1980, para pouco mais de 45% em 2010, o que é preocupante dada a forte dependência das esferas subnacionais no contexto de descentralização.

Do ponto de vista da descentralização dos recursos, o arcabouço institucional do SUS define duas modalidades de gestão para os municípios: gestão plena da atenção básica, na qual cabe ao estado assumir a gestão dos prestadores de média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar; e, gestão plena do sistema, que confere ao gestor municipal autonomia para gerir as ações relativas à promoção, proteção e recuperação da saúde em seu território, sendo os recursos transferidos diretamente do Fundo Nacional de Saúde para o Fundo Municipal de Saúde9.

Sobre esse aspecto, observa-se que 71,8% do montante repassado no período foram descentralizados diretamente para os municípios, com decorrente aumento da autonomia municipal, passando de 70% em 2006, para 75,1% em 2014. Destaca-se que, em 2006, apenas 59 municípios geriam os prestadores, passando para 84 em dezembro de 2014. Atualmente, 122 municípios mantém gestão plena do sistema, o que significa que a esfera estadual ainda é responsável pela gestão de prestadores de 86% dos municípios mineiros, acumulando as responsabilidades de coordenador do sistema no seu território, condutor do processo de regionalização, copartícipe do financiamento e executor dos recursos transferidos pela União.

Quanto à análise por componente, observa-se que o Limite MAC concentrou o maior volume de recursos em todos os anos, compreendendo 78,97% do total repassado no período. O nível de recursos destinados ao FAEC manteve-se estável, variando de 13% a 19% do total anual. Os recursos destinados ao financiamento das redes de atenção sugerem a adoção, no âmbito do governo federal, de medidas para adequar o financiamento da média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar aos preceitos da Portaria nº 4.279/10 e do Decreto nº 7.508/11. Em 2010, ano de publicação da portaria, os recursos identificados pelo FNS como específicos para redes temáticas, estavam na ordem de 1,4% do total anual, patamar bem semelhante ao dos quatro anos anteriores da normativa. Em 2011, esse percentual se manteve (1,3%), o que pode indicar um período de elaboração de novos mecanismos/critérios de alocação de recursos alinhados às diretrizes da RAS e, em 2012, esse percentual passou para 7,5%, mais que dobrando em 2013 (16,5%) e chegando a quase 20% dos recursos totais do Bloco em 2014, indicando que esses mecanismos evoluíram durante o processo de maturação do modelo na política nacional de saúde.

Esses achados confirmam os esforços de superação do modelo de remuneração por procedimentos, estabelecido na década de 1980 e vigente até os dias atuais, sabidamente indutor de uma produção fragmentada e pouco eficiente do cuidado. As opções encontradas apontam para adoção de dois principais tipos de mecanismos de alocação: incentivos financeiros, que têm como característica a busca por melhoria da qualidade da atenção prestada ao usuário, estando o repasse atrelado a metas e seu pagamento feito de maneira pré-fixada; e, orçamentação global de serviços, caracterizada por repasses periódicos de um valor anual de recursos definido por meio de programação orçamentária, que embora formalmente calculado com base em uma produção esperada para o período em questão, dando, portanto, maior previsibilidade do gasto para o gestor e da receita para o prestador, não está vinculado à efetiva produção dos serviços esperados10.

Tais resultados reforçam também a visão de Santos e Luiz11, que defendem que os repasses federais têm sido utilizados pelo Ministério da Saúde para induzir políticas, entre elas o processo de estruturação das redes, e esclarecem que o montante repassado não tem se revelado suficiente para a implantação das RAS em todas as unidades federadas, o que além de comprometer a política nacional, tem sobrecarregado estados e municípios, sobretudo a partir de 2014, com o cenário de restrições orçamentárias, seja por falta de reajuste dos valores de custeio, seja pela falta de repasses a serviços já previstos em planos de ação.

Fazendo a interface da realidade brasileira com os achados internacionais, Cashin et al.12 destacam que os mecanismos de alocação e as formas de repasse aos prestadores, em especial os de média e alta complexidade hospitalar e ambulatorial, têm um impacto importante no volume e na qualidade dos serviços ofertados. Nesse sentido, tem sido observado um crescimento do número de critérios e mecanismos de repasses que buscam alinhar o pagamento de incentivos com os objetivos dos sistemas de saúde. Os autores destacam que essas iniciativas, que têm sua origem remontada a experiências adotadas na iniciativa privada nos Estados Unidos no início da década de 1990, vêm sendo desenvolvidas em uma grande variedade de países, citando não apenas o Brasil, como Reino Unido, Alemanha, China, Índia e até países de baixa renda como Ruanda.

A Tabela 2 categoriza os recursos por componente e Região Ampliada de Saúde, conforme valores descentralizados para os municípios de abrangência, para os anos de 2006, 2010 e 2014. Os recursos transferidos para o FES/MG, constam em linhas específicas.

Tabela 2
Valores transferidos por Região Ampliada de Saúde por componente por ano, em milhões de reais - Minas Gerais - 2006, 2010, 2014.

A Região Ampliada Centro concentra a maioria dos recursos, independente do componente. No SUS/MG, foi deliberado que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e os Laboratórios Regionais de Prótese Dentária (LRPD), por serem financiados na lógica da orçamentação global, têm gestão descentralizada para o município, ainda que este não detenha a gestão plena do sistema. Assim, no estado, o componente redes, por si, já apresenta um caráter mais descentralizado, o que explica o fato do Jequitinhonha apresentar a maior variação de recursos descentralizados no período pós Portaria nº 4.279/10 (1017%), ainda que não tenha nenhum município pleno à época.

A fim de compreender melhor os mecanismos e os critérios de alocação específicos do componente MAC, foram analisadas as portarias ministeriais que alocam recursos para redes prioritárias no SUS/MG. A Tabela 3 apresenta características dessas redes, como o quantitativo de portarias que incorporam recursos, tipos de incentivos estabelecidos para cada rede, valores totais transferidos e o número de regiões ampliadas beneficiadas nos anos de 2006, 2010 e 2014. Os recursos destinados à Rede de Controle do Câncer não foram contemplados no detalhamento, pois as três portarias que incorporam recursos, o fazem na lógica de pagamento por procedimentos, sendo programados na PPI/MG não como incentivo, mas como valores acrescidos nos tetos de produção hospitalar e ambulatorial.

Tabela 3
Recursos federais transferidos, quantitativo de portarias ministeriais, e tipos de incentivos, por rede - Minas Gerais - 2006, 2010 e 2014.

Do ponto de vista da gestão, dois aspectos chamam a atenção. Primeiro, o grande quantitativo de portarias de incorporação de recursos (262), o que indica que o processo de financiamento das redes e sua expansão no território se deu gradativamente, o que é confirmado na análise do número de Regiões Ampliadas contempladas por ano.

O segundo aspecto relaciona-se à multiplicidade de incentivos estabelecidos nas diferentes redes. Esses incentivos, por apresentarem lógicas de financiamento distintas e por muitas vezes o seu repasse estar condicionado ao desempenho apurado em um rol de indicadores específico para cada rede, demandam a formalização de diversos instrumentos contratuais, tornando mais complexa a relação entre gestores e prestadores.

A variedade de incentivos também remete à outra questão importante. Os repasses de recursos com destino pré-definido pelo governo federal tendem a ter como consequência o comprometimento da autonomia das instâncias subnacionais, uma vez que não permitem a aplicação conforme as necessidades locorregionais. Assim, embora os mecanismos de financiamento estabelecidos a partir do advento da Portaria nº 4.279/2010 tenham caminhado para a superação dos critérios populacionais de repasse, a forma como o processo tem sido conduzido pode vir a reduzir o princípio da descentralização à mera desconcentração de recursos.

Ainda sobre esse aspecto, há de se ponderar que sendo os recursos federais fontes cruciais para o financiamento do SUS, seu volume não apenas deveria ser elevado, como deveria haver um equilíbrio na sua alocação, capaz de abarcar uma proposta global de redistribuição, orientada por critérios gerais de definição de prioridades, coerentes com o modelo de atenção pretendido, sendo operacionalizada por meio de transferências automáticas não vinculadas a programas estabelecidos13, o que poderia reduzir o embate entre arrecadação, autonomia e cooperação.

Em relação ao volume de recursos, 61,5% foi destinado à Rede de Urgência e Emergência (RUE), percentual bem superior ao da Rede de Saúde Mental, que foi a segunda que mais recebeu recursos descentralizados (12,2%). A Rede de Cuidados à Pessoa Portadora de Deficiência foi a que menos recebeu, apenas 2% do total de recursos descentralizados nos nove anos em análise.

A fim de verificar se os critérios adotados pela política nacional de implantação de redes tem contribuído para a redução das desigualdades regionais, foi desenvolvido um estudo de caso da Rede de Urgências e Emergências - RUE, no qual, a partir da análise das portarias ministeriais e deliberações CIB-SUS/MG, identificou-se os destinatários finais dos recursos transferidos para o FES/MG no âmbito dessa rede para os anos de 2006, 2010 e 2014.

A Figura 1 ilustra a evolução dos repasses pertinentes à RUE por Região Ampliada de Saúde, considerando a destinação final do recurso, independente da gestão do mesmo, sendo destacado os valores per capita em reais. Do total de recursos repassados para a rede, apenas 0,5% não tiveram destinação identificada, seja por ainda estarem macroalocados na PPI/MG, ou por não ter sido possível identificar a qual portaria ministerial a transferência realizada se referia.

Figura 1
Evolução dos repasses pertinentes à RUE por Região Ampliada de Saúde – Minas Gerais – 2006, 2010 e 2014.

Os mapas evidenciam o processo de expansão e consolidação da RUE no território mineiro. Em 2006, enquanto ainda não se tinha estruturada a proposta da política de rede, apenas seis Regiões Ampliadas receberam incentivos destinados à atenção às urgências, especificamente para o custeio dos SAMU. Em 2010, essa política de incentivo para estruturação do SAMU alcançava nove regiões. Com a publicação da Portaria nº 2.395/11, que estabelece as diretrizes para a RUE, começa-se a observar a diversificação dos tipos de incentivos a partir de 2012, chegando, em 2014, com 100% das Regiões Ampliadas recebendo algum tipo de incentivo.

Nota-se também a evolução do quantitativo de recursos repassados para a implantação da RUE no estado. Enquanto em 2006 foram transferidos R$ 25.700.585,36, sendo 61,7% destinados à região Centro, em 2010, o valor repassado passou para R$ 37.691.911,21, já com uma divisão mais desconcentrada no território, sendo 38% alocados na região Centro, 35% na Norte, que apresentou o maior valor per capita (R$8,44), e o restante variando entre 7% e 2% nas sete outras Regiões Ampliadas contempladas, sendo o menor per capita observado na região Sul (R$ 0,44). Em 2014, o total transferido foi R$ 437.843.480,79, mais de onze vezes maior do que no ano do advento da Portaria nº 4.279/10, sendo que todos os valores per capita apresentaram um aumento em relação à 2010, refletindo a decisão do governo federal em operacionalizar as diretrizes propostas na normativa. Ainda nesse ano, observa-se que apesar de todas as Regiões Ampliadas terem recebido incentivos da RUE, novamente houve concentração de recursos na região Centro (64%), ficando a Norte, com 10% e os outros 26% divididos entre as outras 11.

Entre as considerações finais do estudo de caso de Minas Gerais, tem-se que a Portaria 4.279/10 e o Decreto 7.508/11 conseguiram viabilizar tanto um aporte significativo de recursos, quanto mecanismos inovadores de financiamento, o que tem contribuído para a expansão da implantação do modelo de rede de atenção nas várias regiões do estado. À luz da tríade financiamento, descentralização e regionalização, conclui-se que gestores municipais gradativamente vêm assumindo um conjunto de novas responsabilidades, seja na contratualização de serviços, na pactuação de indicadores, na execução de recursos ou na mediação de conflitos dos diversos atores envolvidos no processo de consolidação das RAS. Contudo, apesar do aumento de autonomia, ainda são evidentes as imposições por parte do governo federal em relação ao acesso aos recursos financeiros que permitem incrementar o financiamento da média e alta complexidade hospitalar e ambulatorial. O aumento do volume de repasses feitos mediante incentivos múltiplos e predefinidos pelo Ministério da Saúde, tende a preocupar na medida em que torna mais complexo o papel das esferas subnacionais e limita a sua possibilidade de alocação conforme as especificidades locorregionais. Debates sobre os mecanismos de alocação de recursos devem ser expandidos, trazendo à tona não apenas critérios quantitativos de repasse, mas questões pertinentes aos dilemas presentes na dinâmica do SUS, tais como autonomia versus responsabilidades versus capacidade de arrecadação versus capacidade de operacionalização.

Nesse contexto, fica evidente que os resultados esperados para cada Região Ampliada de Saúde só poderão ser alcançados, se houver um fortalecimento e um amadurecimento dessas relações interfederativas, de forma a haver uma convergência de esforços para redução das desigualdades e efetiva garantia dos direitos constitucionais.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2016
  • Revisado
    04 Ago 2016
  • Aceito
    13 Out 2016
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