Resumo
Considerando as problemáticas sociais, econômicas e demográficas, viver na cidade implica condições inadequadas de moradia, exclusão social, iniquidades e outros agravos à população. Simultaneamente, a cidade também é cenário das produções culturais, sociais e afetivas. Cresceu, então, a necessidade de refletir sobre o direito à cidade e a relação com a promoção da saúde de seus habitantes. Para contribuir, agendas urbanas foram construídas pensando nesta ambiguidade da cidade. Objetiva-se analisar quatro destas agendas à luz do referencial da Promoção da Saúde. Foi realizada uma pesquisa documental de abordagem qualitativa de agendas urbanas propostas por organismos internacionais e adotadas em contexto brasileiro: Cidades Saudáveis, Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes e Cidades Educadoras. Os resultados mostram que há empenho, em maior ou menor grau, por parte das agendas analisadas, em assumir a participação social, a intersetorialidade e o território como fundamentais no enfrentamento das exclusões e iniquidades, mas há falta de debates aprofundados sobre cada um destes conceitos. Conclui-se que as agendas urbanas podem ser importante aporte na consolidação do direito à cidade, desde que haja a compreensão crítica dos conceitos que as sustentam.
Palavras-chave Planejamento de cidades; Promoção da saúde; Equidade; Políticas públicas; Cidades saudáveis
Abstract
Considering social, economic and demographic issues, living in the city implies inadequate living conditions, social exclusion, inequities and other problems to the population. At the same time, the city is a setting of cultural, social and affective production. As a result, there is a need to reflect on the right to the city and its relationship with promoting the health of its inhabitants. To that effect, urban agendas have been developed to address the city's ambiguity. This paper aims to analyze four of these agendas through the lenses of Health Promotion. A qualitative document review approach was conducted on urban agendas proposed by international organizations and applied to the Brazilian context: Healthy Cities, Sustainable Cities, Smart Cities and Educating Cities. Results indicate some level of effort by the analyzed agendas to assume social participation, intersectoriality and the territory as central to addressing exclusion and inequities. However, more in-depth discussions are required on each of these concepts. We conclude that urban agendas can contribute greatly toward consolidating the right to the city, provided that their underpinning concepts are critically comprehended.
Key words City planning; Health promotion; Equity; Public policies; Healthy cities
Introdução
A vida nas cidades tem sido alvo de intensos debates nas últimas décadas. Tendências globais apontam problemáticas demográficas, ambientais, sociais e econômicas, que são exacerbadas pela forma de organização e produção da vida nas cidades. Ao mesmo tempo, as cidades são reconhecidas como centros culturais, intelectuais, tecnológicos, produtivos e organizativos; servem também como motores de desenvolvimento humano e social.
Iniquidade e exclusão são temas críticos no desenvolvimento das cidades, porém são as questões mais comumente ignoradas ou abordadas superficialmente1. O conceito de direito à cidade incita um novo olhar às agendas e políticas urbanas, ao destacar que todos, em especial os grupos vulneráveis e marginalizados, têm direito à cidade em si, e direito de moldá-la e transformá-la. O planejamento das cidades tem o potencial de tratar problemas complexos de forma integrada, e oferece uma porta de entrada para a construção de novos modelos de desenvolvimento e experimentação de novas políticas e intervenções. O foco no urbano traz a reflexão sobre o contexto (território, tempo, espaço), que se reflete na organização social e política da cidade e possibilita pensar em como influenciar as decisões políticas e ações que ocorrem na e para a cidade.
Fernandes e Meirinhos2 entendem que, diante do dilema entre o “ideal de cidade” e as “cidades reais”, as cidades ideais servem de dispositivos teóricos para pensar os problemas das cidades reais. Já Rodrigues3 destaca que:
A cidade como direito tem como base a vida real, o espaço concreto e o tempo presente. Ao contrário, no ideário da cidade ideal, o espaço e o tempo são abstrações. Reflete o pensamento de planejadores, gestores e tomadores de decisão. Os problemas são considerados desvios do modelo, solucionáveis com novo tipo de planejamento e uso de novas tecnologias. Os avanços da tecnologia articulam formas e conteúdos da e na cidade, mas não ‘produzem’ a cidade ideal, embora provoquem transformações na cidade real.
A partir dessa proposição e do efeito que as agendas urbanas podem ter sobre a cidade “real”, o artigo examina como certas agendas urbanas se aproximam de elementos chave ao conceito de direito à cidade: equidade, inclusão social, participação social e o foco no território.
O Direito à cidade
A cidade, compreendida como cenário de construção social da vida humana, leva àquilo que Lefebvre chamou de “direito à cidade”4. A vida urbana pressupõe convivência de diferenças ideológicas, políticas e de modos de vidas. Porém, a estrutura capitalista, tendo o consumo como prioridade, expulsa o proletariado da cidade e forma subúrbios. A noção de habitat como local de vida social se perde, afastando também sua capacidade criadora5. Para Lefebve, a discussão do direito à cidade propicia uma abertura do pensamento e de novos horizontes4.
Para Rolnik e Klink6, as cidades são desafiadas pelas dinâmicas econômicas do território. O crescimento urbano baseado no discurso econômico gera disparidades sócio espaciais, degradação do ambiente e ineficiência. Além da expansão da infraestrutura urbana, é necessário discutir as relações entre a dinâmica econômica e as condições de urbanização.
No campo do direito a questão principal é a garantia do direito à cidade para todos, sem exclusão ou segregação. Para Mello7, o direito à cidade é uma temática nova no campo jurídico, como uma espécie de direito coletivo ou comunitário, composto por um conteúdo normativo complexo, que demanda a compreensão de direito por uma cidade justa. Cabe ao campo jurídico explorar este direito para a consolidação do ideal de vida urbana digna para todos.
A jovialidade da temática “direito à cidade” gera necessidade de estudos para seu melhor uso, especialmente após a utilização do termo pela ONU na conferência HABITAT III, em discussões com significados diversos, o que pode levar ao enfraquecimento da proposta8.
O afastamento do sujeito dos cenários sociais, leva a discussão de direito à cidade ao conceito de exclusão. Para Lopes e Fabris9, o avanço do discurso econômico, em prejuízo da noção de direitos sociais, colocou a diferença do lado de fora: o que difere é excluído em prol de uma cultura hegemônica idealizada.
Outro conceito central é o da equidade, que tem como analogia as noções de justiça social e de direitos de cidadania. Como ferramenta, o referencial da Promoção da saúde destaca a participação social, a intersetorialidade, o olhar diferenciado para grupos marginalizados e vulneráveis, e o foco nos sujeitos e territórios. Diante da conectividade entre as discussões sobre Direito à Cidade e a promoção da saúde, é significativo entender como estes elementos chave e transversais estão incorporados em agendas urbanas.
As agendas urbanas
Planejar a cidade requer olhar para as crescentes tensões sociais, económicas e ambientais. Atentar à construção de agendas urbanas disputam espaços institucionais e políticos, ganha relevância, considerando seu potencial para influir no pensamento dos tomadores de decisão e no planejamento da vida nas cidades.
Agendas urbanas podem influenciar as cidades, por exemplo, ao promover a inserção de enfoques estratégicos em lógicas de planejamento e gestão, influenciar a forma como políticos e tomadores de decisão pensam a cidade e seus processos, dar impulso político e legitimidade a temas considerados prioritários, ou direcionar as capacidades das cidades para lograr objetivos como o desenvolvimento sustentável.
Por outro lado, as agendas urbanas podem refletir a natureza fragmentada das administrações públicas e tratar de segmentos do urbano (saúde, habitação, transporte, etc.). Apesar de reconhecerem problemas críticos, como a iniquidade e a desigualdade, nem sempre apontam a propostas metodológicas para sua abordagem. Vários modelos são propostos por organizações internacionais, e há que considerar sua relevância ao nível local. São também atravessados por interesses de agências financiadoras ou pela opinião de especialistas. Há também que compreender seus pressupostos: que modelo de desenvolvimento humano e social, e que concepção de sujeito e cidadania consideram?
Metodologia
O artigo apresenta uma revisão descritiva e exploratória de agendas urbanas propostas por organismos internacionais e adotadas em contextos brasileiros. É um trabalho de abordagem qualitativa, com uso de procedimentos de pesquisa documental. Não é uma revisão exaustiva de todas as agendas urbanas e sim de uma seleção, para apontar caminhos para construir um marco de análise de agendas urbanas no contexto do direito à cidade. No Brasil, as agendas foram implementadas em algumas cidades; porém, não foi o foco do trabalho revisar ou avaliar essas experiências.
A identificação de agendas se deu entre junho e agosto de 2017, por buscas livres na Internet e no site de organizações internacionais. Os critérios de inclusão foram:
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Ser proposta ou liderada por instituições internacionais;
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Propor um marco teórico e metodológico para o desenvolvimento da cidade;
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Propor agenda de desenvolvimento da cidade como um todo, não enfocada em populações específicas;
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Ter experiências, implementadas no período da pesquisa, no Brasil;
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Ter documentos orientadores das instituições gestoras disponíveis na web.
A busca livre na web identificou 12 agendas (Quadro 1). Quatro agendas cumpriram os critérios definidos: Cidades Saudáveis, Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes e Cidades Educadoras.
Uma limitação metodológica foi não realizar uma revisão de bibliografia e de outros materiais sobre cada agenda, o que poderia revelar mais informações sobre diferentes abordagens no interior das mesmas.
Definidas as agendas, selecionamos uma ou duas instituições envolvidas na sua promoção e revisamos os materiais elaborados por elas. Consideramos materiais de caráter oficial (cartas, declarações) e informações do site da organização proponente, a partir da pergunta: como a agenda considera os princípios de intersetorialidade, equidade, participação social, inclusão social e relação com o território?
Resuldados
Cidades Inteligentes
O movimento de “Smart Cities” (“Cidades Inteligentes”) ganhou força nos últimos anos. Apesar de divergências sobre seu conceito, as definições têm em comum o uso da tecnologia e da inovação para o planejamento e gestão da cidade, o desenvolvimento de infraestrutura urbana, o crescimento económico sustentável e a melhoria da qualidade de vida. Aludem ao potencial de cidades modernas, criativas, dinâmicas, conectadas, prósperas e eficientes. A tecnologia seria o motor da transformação da sociedade e ferramenta chave para atender às necessidades da população. Cidades no Brasil que realizam ações de Cidades Inteligentes incluem Rio de Janeiro, Vitória e Florianópolis10.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) coordena a iniciativa “Cidades Emergentes e Sustentáveis”, que promove projetos de Cidades Inteligentes em 10 cidades, entre elas, o Rio de Janeiro. O Banco Mundial criou um grupo de trabalho sobre Cidades Inteligentes para orientar governos e outros atores no desenvolvimento de Cidades Inteligentes11. Examinamos a publicação do BID, “Caminho para as smart cities: da gestão tradicional para a cidade inteligente”10, e materiais do sítio web do Grupo de Trabalho sobre Cidades Inteligentes11.
O BID define a Cidade Inteligente como “aquela que coloca as pessoas no centro do desenvolvimento e as tecnologias de informação e comunicação na gestão urbana, e utiliza estes elementos como ferramentas para estimular o desenho de um governo efetivo que inclui o planejamento colaborativo e a participação cidadã. Ao promover o desenvolvimento integrado e sustentável, as Cidades Inteligentes se tornam mais inovadoras, competitivas, atraentes e resilientes, dessa forma, melhorando vidas”10.
Para o Banco Mundial as Cidades Inteligentes “utilizam informação e tecnologias inovadoras para melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos, reduzir a pobreza e impulsionar a prosperidade de seus cidadãos, e para aumentar a eficiência e transparência de suas operações e serviços urbanos”. Destaca como áreas de desenvolvimento urbano: energia, transporte, água e gestão de resíduos, moradia, social e governo, finanças12.
Ambas propostas ressaltam a colaboração e a multisetorialidade como elementos fundamentais da gestão e do planejamento a longo prazo de Cidades Inteligentes. Atores citados incluem setor público e privado, academia, cidadãos, sociedade civil, empreendedores e profissionais especializados. Ressaltam o intercâmbio de experiências, a aprendizagem mútua e enfatizam o estabelecimento de parcerias público-privadas como a base para a inovação e desenvolvimento de infraestrutura e dos serviços urbanos. Se destaca a liderança dos governos locais, porém com um papel importante da iniciativa privada e do empreendedorismo para a busca e implementação de soluções tecnológicas.
Há pouco destaque às questões de equidade, justiça social, desigualdades e inclusão social como base ou valor central para a construção de uma Cidade Inteligente. A proposta do BID, se refere à implementação de estratégias de gestão urbana e governança que melhorem a vida de “todas as classes sociais”10. Pessoas são identificadas como “beneficiárias e participantes nas transformações da cidade”10. A inclusão social estaria associada à inclusão digital que “permitiria aos cidadãos participar ativamente através do uso de equipamentos eletrônicos e aplicativos que permitiriam um monitoramento e colaboração nas ações transformadoras realizadas pelos líderes e governantes da cidade”10. A diminuição da desigualdade se daria pela criação de empregos associados à tecnologia. O Banco Mundial enfatiza intervenções com foco da redução da pobreza e na promoção da prosperidade.
As estratégias propostas pelo Banco Mundial enfocam em medidas tecnológicas que otimizem o tempo e custo dos serviços urbanos, para famílias e empresas, e com foco especial em como esses afetam os mais pobres11. Propõe o “empoderamento de cidadãos e stakeholders” através da tecnologia que permita participação ativa no planejamento e definição de soluções a partir da transparência e de devolutivas sobre a qualidade dos serviços.
Participação social é citada em ambos materiais como essencial na definição de problemas e busca de soluções. Os mecanismos utilizados como exemplo estão relacionados com o uso de aplicativos e da inclusão digital.
Cidades Educadoras
Sendo cidades espaços estratégicos para a promoção da saúde e produção de vidas, a agenda de “Cidades Educadoras” propõe ações tendo a educação como motor do desenvolvimento pessoal e coletivo e de melhoria da convivência e da coesão social.
A proposta baseia-se no princípio de que a tarefa de educar é responsabilidade da sociedade; uma Cidade Educadora se define como aquela que apreende e explora o potencial do território, transformando-o em capital educativo. São regidas por princípios de ações formadoras para o desenvolvimento integral de todos os cidadãos em um processo educativo ao longo da vida e a partir da relação com os espaços e indivíduos do município.
A Carta de Cidades Educadoras e a consequente Declaração de Barcelona (1990), nasceram no 1° Congresso Internacional das Cidades Educadoras13,14. A proposta de Cidades Educadoras é coordenada pela Asociación Internacional de Ciudades Educadoras (AICE)15. Foi a partir desta lista que 470 cidades de 36 países assinaram a Carta de Princípios. No Brasil há 14 Cidades Educadoras: Belo Horizonte, Caxias do Sul, Guarulhos, Horizonte, Mauá, Porto Alegre, Santiago, Santo André, Santos, São Bernardo do Campo, São Carlos, São Paulo, Sorocaba, Vitória. A Associação Cidade Escola Aprendiz apoia as ações estratégicas desenvolvidas no Brasil16.
De acordo com a Associação, para ser considerada uma Cidade Educadora é necessário o compromisso com os princípios e premissas estabelecidos pela Carta: a participação cidadã; o fortalecimento do sentido de pertencimento e preservação da harmonia cultural; o uso do espaço público; e a atenção integral às pessoas e a promoção de práticas sustentáveis no ambiente escolar e seu entorno, de forma a contribuir para o desenvolvimento do estudante, de familiares, comunidades e da cidade16.
Aspectos a serem abarcados pelos municípios incluem: o território como cenário de construção e de experimentação para os sujeitos; integração de conhecimentos entre indivíduos, formação, promoção e desenvolvimento; condições para a plena igualdade; direito ao acesso às tecnologias da informação e comunicação; congregação entre instituições educativas formais, não-formais e informais para a colaboração no ensino e aprendizagem de todos; cooperação com instituições e projetos de estudo e pesquisa; planejamento urbano; desenvolvimento das potencialidades educativas da cidade; valorização da diversidade de saberes, da cultura e do resgate da memória local; e concepção da educação como um bem social dinâmico, construído coletivamente.
A Carta de Cidades Educadoras reforça a preocupação com os mecanismos de exclusão e marginalização que afetam as cidades. Propõe a construção de cidades inclusivas, justas e participativas, e destaca a criação de mecanismos que permitam às crianças e adolescentes vivenciarem plenamente sua cidadania. Compreende que a educação integral, que enfrente desigualdades no ambiente escolar e promova melhor qualidade da educação dos sujeitos, com prioridade a comunidades com maior vulnerabilidade, aponte para uma política educacional de qualidade, com equidade.
Cidades Saudáveis
A agenda de Cidades Saudáveis baseia-se na corrente da promoção da saúde que prioriza ações sociopolíticas com atores além do setor saúde, experiências integradas, multisetorias e diálogo. Enfatiza que transversalizar a promoção da saúde nos espaços onde as pessoas vivem, requer pensar a cidade onde estas circulam. A agenda é apoiada na Carta de Ottawa17, e suas ações estratégicas: estabelecimento de políticas públicas saudáveis; criação de ambientes e entornos saudáveis; empoderamento e ação comunitária; desenvolvimento de habilidades pessoais e reorientação dos serviços de saúde.
Como estratégia da Organização Mundial da Saúde (OMS), a agenda de Cidades Saudáveis nasceu nos anos de 1990, na Europa. A partir da Conferência de Bogotá, em 1992, as iniquidades da América Latina se destacaram no ideário da promoção da saúde, e a estratégia foi renomeada “Municípios e Comunidades Saudáveis”, possibilitando maior abrangência e singularidade ao processo no contexto latino-americano18.
Em 2004, a Organização Panamericana da Saúde (OPAS) lançou o documento “Municípios e Comunidades Saudáveis: Guia dos Prefeitos para Promover Qualidade de Vida”19. Nele, um município saudável é aquele que alcança um pacto social entre sociedade civil, gestão pública e outras instituições em prol da promoção da saúde da população, o que requer mudanças nas políticas, legislações e serviços que geralmente o município provê.
O Guia orienta a implantação de MCS a partir de elementos essenciais: compromisso público entre gestão, poder legislativo, ongs, setor privado e comunidade em prol de MCS; fortalecimento da participação social em todas as fases do processo; planejamento estratégico, indicando a necessidade de mobilização de recursos, apoio e cooperação; construção de consensos e formação de parcerias; estimulação à participação de outros setores sociais, para além do setor saúde; formulação de políticas públicas saudáveis no nível local, regional e nacional, com oportunidades de participar de processos de tomada de decisão, e o monitoramento e avaliação dos processos19.
Países do continente americano se apropriaram deste Guia, o adaptaram e desenvolveram seus próprios materiais orientadores. Estes materiais apontam a diferentes concepções sobre a promoção da saúde e seus elementos, porém não foi o propósito desse trabalho revisar estes materiais.
Em 2015, a OPAS, passou a investir na revitalização da estratégia de MCS. O objetivo é atualizá-la a partir da experiência dos países nas últimas décadas e mobilizar gestores e autoridades locais para sua implementação. Realizou-se, em 2016, o fórum “Caminho à Shangai”, com a participação de 12 países da América Latina, que culminou na Declaração de Santiago20. A Declaração, que buscou dar impulso político e legislativo ao movimento de MCS, foi apresentada na 9a Conferência Mundial de Promoção da Saúde de Shangai, China, em 2016.
A Declaração reconhece a saúde como um direito fundamental, relacionada ao desenvolvimento social, econômico, humano, sustentável das cidades comunidades e territórios. Para enfrentamento das iniquidades enfatiza a participação da gestão e de diversos setores, e a participação e o empoderamento das comunidades. Reforça também que a gestão local está mais próxima do território, assumindo a necessidade da regionalização. A saúde é entendida como fator indispensável para uma sociedade equitativa e sustentável. Assume ainda a necessidade de construção de entornos saudáveis, que sejam propícios para o desenvolvimento social, físico e subjetivo, possibilitando a todos alcançar seu potencial de saúde e bem-estar20.
Este enfoque de MCS, de acordo com a Declaração de Santiago, proporciona um marco prático e adaptável para fomentar a saúde em todos os níveis da gestão local. Para isso é preciso compreender cada cidade como única e distinta, capaz de determinar as áreas de ação importantes para a sua realidade. Finalmente, reconhece que o potencial transformador da estratégia só é alcançável se construído através de esforços conjuntos dos diferentes atores no território, dependendo assim da disponibilidade e capacidade de aproveitar oportunidades de melhorar a saúde das gerações atuais e futuras20.
Cidades Sustentáveis
A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, aprovada em 20 1 521, é uma ambiciosa iniciativa global para promover o desenvolvimento sustentável a partir de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
No Brasil, o Programa Cidades Sustentáveis (PCS), busca promover a agenda de desenvolvimento sustentável entre municípios brasileiros22. O Programa é implementado desde 2011 e recentemente incorporou na sua agenda o logro dos ODS e dos compromissos assumidos na COP-21. É realizado pela Rede Nossa São Paulo, Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis e pelo Instituto Ethos, e conta com parceiros do setor público, privado e organizações da sociedade civil. Revisamos o material disponibilizado na web do Programa.
O PCS promove ações para a “transição para um desenvolvimento sustentável, que integre as dimensões social, ambiental e ética, baseado em uma economia que seja includente, verde e responsável”22. Propõe uma lista de 260 indicadores organizados em 12 eixos temáticos. A proposta está direcionada para centros urbanos e busca influenciar agendas públicas e a ação de representantes eleitos na direção da “agenda da sustentabilidade”. No momento da pesquisa, a Plataforma listava 199 cidades participantes no Brasil.
Os municípios se comprometem a realizar um diagnóstico municipal a partir de uma seleção da lista de indicadores e utilizar este diagnóstico para consolidar seu Plano de Metas. Periodicamente, os municípios atualizam informações de seus indicadores na plataforma do PCS. A adesão ao Programa se dá através da assinatura de uma carta de compromisso pelo prefeito; há uma versão que pode ser firmada por vereadores para o seu legislativo.
Os eixos temáticos e indicadores associados são amplos e consideram questões centrais ao desenvolvimento sustentável: governança, equidade, justiça social, economia local, sustentabilidade ambiental, etc. Os indicadores são de processos e resultados, apontando à construção de mecanismos sustentáveis para lograr os impactos desejados.
O PCS busca influenciar e direcionar a agenda local, porém deixa a cargo do município definir mecanismos, políticas e estratégias para avançar no logro dos indicadores. Assim, possibilita que as ações serão adaptadas e contextualizadas ao território.
Sobre a intersetorialidade, se menciona a importância da consulta e colaboração com outros setores na construção do Plano de Metas (de fato, a elaboração do Plano de Metas já é um processo intersetorial).
A participação social é enfatizada nos eixos temáticos e na construção dos indicadores, como um valor transversal. Se menciona a importância de consultas com a sociedade sobre o Plano de Metas a partir de audiências públicas, ampla divulgação e mobilização de setores. Se reforça que as sugestões dos participantes sejam incorporadas ao Plano de Metas.
O PCS reconhece que o enfrentam ento da questão da desigualdade é chave na abordagem da sustentabilidade e propõe a implementação de ações para abordá-la, como a ocupação dos territórios com equipamentos e serviços públicos de qualidade. Há um eixo de atuação específico sobre o tema: “Equidade, Justiça Social e Cultura da Paz”. Os indicadores relacionados abordam uma ampla gama de temas: gênero, violência, renda, impactos ambientais, etc., porém, diferentemente da participação social, a promoção da equidade não é integrada na agenda como algo transversal.
Análise
As agendas apontam a uma diversidade de modelos e compreensões sobre os problemas, potencialidades e produção da vida e dos espaços da cidade.
Intersetorialidade
Com relação à intersetorialidade, todas as propostas citam a importância de articular setores e atores, em etapas diversas. Todas ressaltam a liderança do governo local no processo, o que desde uma perspectiva do direito à cidade é também essencial. No caso de Cidades Sustentáveis, o papel da intersetorialidade se identifica no momento do planejamento do Plano de Metas e não fica claro qual o posicionamento sobre o tema nas etapas anteriores (definição de indicadores e diagnóstico). Indica uma compreensão da intersetorialidade como uma ferramenta pontual nos processos e não como um princípio transversal na construção da agenda. No caso de Cidades Inteligentes se enfatiza o papel do setor privado e de parcerias público-privada, apontando a uma influência de lógicas de mercado e de modelos neoliberais de desenvolvimento. Pode-se refletir sobre que efeitos agendas com essa abordagem poderiam ter na terceirização ou privatização de serviços públicos e no papel do Estado na garantia do bem-estar da população.
Cidades Educadoras enfatiza a troca de experiências e saberes em diferentes níveis de gestão e, principalmente, entre educação formal e informal, com referências sobre a necessidade de articulação entre os diferentes setores do governo e da sociedade em um pacto pelo desenvolvimento humano.
Na agenda de Cidades Saudáveis a intersetorialidade é pilar fundante e reafirma os referenciais da Carta de Ottawa. Tem como proposta atrair outros setores e atores relevantes para a elaboração, planejamento, implantação, monitoramento e avaliação das ações.
Equidade
Uma questão importante com relação à equidade, que aparece na leitura dos materiais, é a diversidade de compreensões sobre seu conceito, causas e modelos para abordá-la. A produção de equidade em saúde diz respeito ao investimento em torno das populações vulneráveis ou das problemáticas sanitárias consideradas negligenciadas. No campo da educação, o investimento é no acesso aos serviços educacionais de qualidade. Nas Cidades Educadoras, a preocupação é como enfrentar desigualdades, discutindo o acesso à educação de qualidade em diferentes camadas sociais; já em Cidades Saudáveis, pelo compromisso com os determinantes sociais de saúde, a busca pela equidade supõe analisar questões socioeconômicas que afetam a qualidade de vida das populações.
Na concepção de Cidades Inteligentes, a equidade está relacionada com a implementação de ações para o crescimento econômico e a redução da pobreza. Aqui caberia refletir sobre os modelos de desenvolvimento que compõem a base da agenda: o de que o desenvolvimento econômico levará automaticamente ao desenvolvimento humano. Essa questão é controversa; se por um lado o crescimento econômico pode levar à melhoria da renda das famílias, de acesso a bens e serviços e a uma melhoria na qualidade de vida, o mesmo crescimento econômico, com seus padrões excludentes, pode levar ao aumento das iniquidades e da concentração de renda, se não vier acompanhado de políticas públicas sociais que atenuem esses efeitos e melhor distribuam os resultados do crescimento econômico gerado23. Medidas de redução da pobreza podem ser um elemento fundamental para o desenvolvimento urbano equitativo24. Porém, a interface entre o crescimento econômico e a prosperidade, a melhoria da qualidade de vida e o desenvolvimento (econômico e humano), e o papel das políticas públicas sociais não está claro nos modelos analisados.
O modelo de Cidades Inteligentes propõe como medidas para enfrentar as desigualdades, as intervenções para melhoria de acesso e qualidade dos serviços públicos, a inclusão digital e a criação de empregos associados à tecnologia. A proposta não faz conexões com outros fatores envolvidos na produção de desigualdades urbanas como o acesso a serviços básicos (saneamento, saúde, educação), a concentração de renda nas camadas mais ricas da população, entre outros. Existem estudos que relacionam a melhoria do acesso e da qualidade dos serviços de saúde com a redução de desigualdades raciais25. Seria interessante entender o potencial da tecnologia, em um marco de Cidades Inteligentes, para fortalecer o acesso e a qualidade dos serviços tendo em vista a redução de iniquidades sociais. Com relação à inclusão social a partir da inclusão digital, considerando a falta de acesso à tecnologia que ainda afeta boa parte da população mundial, uma ampla gama de aplicativos e plataformas estaria disponível apenas para uma parcela da população, potencialmente ampliando desigualdades dentro e entre cidades. Essa aparente contradição não é abordada nos materiais revisados.
No caso de Cidades Sustentáveis, não se identifica a equidade como uma questão transversal, e sim como parte de eixos e indicadores. Por exemplo, não se enfatiza a identificação de iniquidades no diagnóstico, dando maior visibilidade a grupos marginalizados ou vulneráveis na construção do plano de metas. Não é enfatizada a questão da equidade na participação social, por exemplo, ressaltando-se que esta inclua os grupos marginalizados, ou os mais vulneráveis. Uma vez que o PCS atua a partir do monitoramento de indicadores e não da construção das estratégias adotados, uma análise de experiências poderia apontar como municípios estão considerando essa questão.
Participação social
A participação social está pautada em todas as agendas, porém de diferentes formas. Em Cida des Sustentáveis a participação é proposta como aspecto transversal nos eixos e indicadores, porém o processo participativo é enfatizado a partir do momento em que uma proposta do Plano de Metas já esteja elaborada. Levanta-se aqui a questão da participação nas etapas prévias: definição de indicadores e diagnóstico municipal. Uma revisão de experiências poderia elucidar se os municípios participantes estão tendo este cuidado.
Nos materiais de Cidades Inteligentes, a participação é colocada a partir de uma base de valores já definidos como “desejáveis”: eficiência, conectividade, “inteligência”, empreendedorismo. No olhar da promoção da saúde e do direito à cidade, se ressaltam valores como a solidariedade, o fortalecimento de sujeitos e coletivos, o respeito à diversidade, a justiça social, entre outros. Essa disputa de valores precisaria ser melhor problematizada. Seriam os valores da Cidade Inteligente aqueles desejados por seus habitantes? Esses foram determinados com base em que modelo de desenvolvimento?
Cabe questionar que lugar é dado na Cidade Inteligente às relações e interações entre cidadãos, tomadores de decisão e outros atores, se tudo passa a ser intermediado pela tecnologia. Que lugar tem nessa construção as experiências concretas do cotidiano dos sujeitos e coletivos?
Murgante e Borruso26 criticam a definição de “inteligência” no que se refere à cidade, e questionam porque esta ideia está ligada à questão tecnológica. Segundo tais autores, o principal papel das Cidades Inteligentes seria apoiar um melhor planejamento urbano e harmonizar os diferentes atores, em um processo facilitado pela tecnologia. Ou seja, a tecnologia seria o instrumento capaz de conectar, facilitar as relações e interações, não substituí-las. A Cidade Inteligente “habilitaria uma plataforma para as atividades que seus cidadãos queiram desenvolver, vinculando os espaços do passado com aqueles possíveis no futuro, desta maneira não sendo enfocados apenas nas aplicações, mas na possibilidade dos cidadãos realizá-las”26.
As agendas de Cidades Educadoras e Saudáveis afirmam a necessidade de aumentar a capacidade das comunidades para reconhecer e responder aos problemas da cidade. O fomento à participação social é entendido como a possibilidade e oportunidade da comunidade apropriar-se de suas problemáticas e exercer algum controle sobre elas. Porém, não fica claro em nenhuma das agendas como refletir junto com a comunidade sobre sua capacidade de intervenção e não discutem como alcançar as diferentes esferas envolvidas.
Relação com o territorio
As agendas que discutem sobre o território são Cidades Educadoras, Sustentáveis e Saudáveis. Estas assumem a preocupação com que os sujeitos sejam parte do processo, considerando sua cultura, suas experiências e saberes, respeitando sua diversidade. Porém não é clara a compreensão de cada agenda ao conceito; na educação são os cenários educativos, na saúde é o território ampliado. É necessário melhor compreender esta abrangência.
O Programa Cidades Sustentáveis compartilha valores centrais da promoção da saúde. Trata-se, porém, de uma agenda baseada no logro de indicadores pré-determinados e caberia entender o efeito da sobreposição de prioridades globais e locais. A predeterminação de temas para o diagnóstico e Planos de Metas, se por um lado pode dar visibilidade a temas centrais para o desenvolvimento urbano sustentável, por outro pode deslocar foco de questões que emanem dos sujeitos e dos territórios. Que efeito, se algum, a implementação dessa agenda teria na capacidade do território de identificar suas próprias prioridades?
Os indicadores definidos são relevantes e abrangentes; não fica claro, porém, como se dá a seleção de indicadores por parte da gestão municipal no momento da adesão ao Programa: quem define e com base em que critérios? Esta seria uma questão chave desde uma perspectiva de direito à cidade, considerando que é o ponto de partida para a construção da agenda e intervenções no território; seria essencial garantir que esse processo fosse participativo e relevante aos habitantes do território desde o princípio.
A agenda de Cidades Educadores reforça a importância do território na consolidação de ações. A educação como centralidade traz consigo a intenção de conscientização das pessoas quanto à opressão que vivem. Abarca então o risco de priorizar valores dominantes pré-concebidos, além do risco de pressupor que os sujeitos a quem são remetidas as ações educativas sejam desprovidos de saber e que a partir da educação serão livres.
Inclusão
Todas as agendas discutem a importância da inclusão social. Como tratam-se de agendas internacionais, não fica claro se é para a inclusão da diversidade do território ou para convencer os sujeitos a pensarem e atuarem em formatos previamente estabelecidos. Na segunda hipótese, com propósitos de inclusão podemos estar trabalhando para a normatização das condutas dos sujeitos. Uma reflexão seria: as agendas caminham para o ajustamento em um modelo de cidade ideal ou trabalham em prol da equidade e respeito à diversidade, sendo assim mediadoras do processo?
Conclusão
O objetivo do estudo foi analisar como temas chave para os referenciais do Direito à Cidade e da Promoção da Saúde estão contemplados em quatro agendas urbanas internacionais atuantes nos contextos brasileiros. Se baseou na ideia de que essas agendas influenciam agendas públicas, a definição de prioridades, mecanismos e estratégias e, assim, o desenvolvimento das cidades e a vida de seus habitantes. É importante entender como essas agendas se alinham com os preceitos de direito à cidade, esperando que sejam modelos confluentes e que reforcem um processo transformador, participativo e em prol da equidade e diversidade.
Considerando a quantidade de municípios no Brasil, há poucas experiências acontecendo ou sendo publicadas. Cabe discutir em trabalhos futuros quais são e qual a abrangência das agendas. Para pensar nas contribuições da promoção da saúde na consolidação do direito à cidade, é importante realizar pesquisas avaliativas e entender o alcance das agendas no território.
A discussão permite dizer que as quatro agendas urbanas dão pistas de como produzir saúde no âmbito da cidade. Entretanto, são necessárias ponderações para que elas possam melhor influenciar o direito à cidade: ter uma definição comum de direito à cidade; construir homogeneidade entre as diversas compreensões dos conceitos utilizados; e construir de espaços de pactuações entre as agendas, considerando suas semelhanças e fortalecendo a potência da proposta de direito à cidade.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Dez 2017
Histórico
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Recebido
30 Ago 2017 -
Revisado
04 Set 2017 -
Aceito
03 Out 2017