Resumo
O estudo compara os desafios no trabalho em serviços de emergência de hospitais universitários públicos na Argélia, Brasil e França. A descrição e a análise estão organizadas em três eixos: contexto e trajetória dos sistemas, hospitais e serviços de emergência, e os desafios enfrentados. Nos serviços foram feitas entrevistas, questionários, observação e “groupes de rencontre du travail”/GRT. Para o processo analítico utilizou-se técnicas do “participatory appraisal” complementadas com triangulação de fontes e dados. Os principais desafios referidos foram: déficit da força de trabalho; falta de leitos nos serviços de internação; déficit de infraestrutura e materiais; excesso de atividades cronofágicas; transição geracional; violência pelos usuários e familiares. Medidas de racionalização e contenção de gastos repercutem de modo mais intenso na Argélia e no Brasil onde há um baixo patamar de financiamento público. Nota-se que a gestão hospitalar não pode estar dissociada do planejamento da rede de atenção, tendo em vista as crescentes pressões do complexo produtivo, da transição demográfica e epidemiológica. A médio prazo, medidas que possam atenuar atividades cronofágicas, o deficit de materiais e a violência devem ser consideradas na melhoria do trabalho em emergências.
Sistemas de saúde; Hospitais universitários; Emergências; Pessoal de saúde; Força de trabalho
Abstract
This study compares the challenges for work in emergency services of publicuniversity hospitals in Algeria, Brazil and France. The description and analysis are organized in three topics: context and trajectory of the health systems; hospitals and emergency services; and the challenges that are faced. The research carried out interviews, surveys, observation and “groupes de rencontre du travail” / GRT. The data analysis was done using participatory appraisal techniques associated to triangulation of sources and data. The main challenges found were: workforce deficit; lack of hospitals beds in inpatient units; deficit of infrastructure and materials; excess of “chronophagic activities”; generational transition; and violence by patients and families.Despite their particularities, the countries coincide regarding the challenges. Measures to rationalize and restrain spending have a greater impact on Algeria and Brazil due to the low level of public funding, but they also occur in France. The hospital management cannot be dissociated from healthcare system planningconsidering the increasing pressures of the demographic and epidemiological transition. In medium term, measures that may mitigate “chronophagic activities”, materials deficit and the violence should be considered to improve work in emergencies.
Health systems; Hospitals university; Emergencies; Health personnel; Labor force
Introdução
No debate sobre a construção de sistemas de saúde torna-se relevante compreender e propor caminhos para organizar processos de trabalho, de gestão e de formação. A escassez de estudos sobre o trabalho coletivo no interior dos hospitais públicos de ensino11. Araújo KM, Leta J. Os hospitais universitários federais e suas missões institucionais no passado e no presente. Hist Cienc Saúde 2014; 21(4):161-181., associados ao valor epistemológico de se compreender o trabalho das profissões nesse espaço estão na origem deste estudo.
Hospitais de ensino são estabelecimentos estratégicos por realizarem, ao mesmo tempo, assistência, gestão, ensino e pesquisa22. Chioro RAA, Cecílio LCO. A política de reestruturação dos hospitais de ensino: notas preliminares sobre os seus impactos na micropolítica da organização hospitalar. Saúde Debate 2009; 33(81):88-97.. Essa singularidade traz desafios relacionados, entre outros, com a organização, gestão do processo de trabalho, proteção e produção da saúde do trabalhador, e com a formação dos profissionais. Refletir sobre essa problemática em diferentes contextos pode contribuir para a identificação de problemas comuns e para a troca de conhecimentos sobre como enfrentá-los.
Na construção do direito de acesso à saúde estão presentes tensões entre o sistema de poder, de financiamento e a demanda ampliada aos serviços, além daquelas relacionadas ao modo de trabalhar. O estudo teve como objetivo comparar desafios no trabalho de profissionais que atuam em serviços de emergência em hospitais de ensino na Argélia, Brasil e França, utilizando recursos da démarche ergologique desenvolvida por Yves Schwartz33. Schwartz Y. L’inconfort Intellectuel ou comment penser les activités humaines ? In: Schwartz Y. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse: Octares; 2000. p. 585-633..
Segundo esse referencial, trabalhar é gerir a distância entre as normas heterodeterminadas provenientes dos espaços macro (sociais, políticas, econômicas) e dos espaços meso e micro do trabalho (modelos de gestão, protocolos) e aquilo que a situação exige como intervenção. O meio pode favorecer ou dificultar essas gestões33. Schwartz Y. L’inconfort Intellectuel ou comment penser les activités humaines ? In: Schwartz Y. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse: Octares; 2000. p. 585-633.. Por essa razão, pretende-se compreender o trabalho em hospitais universitários estabelecendo uma relação entre o contexto dos sistemas com suas sucessivas transformações, e o hospitalar, com suas repercussões no trabalho dos profissionais.
Método
Trata-se de um estudo comparado multicêntrico, realizado de 2014 a 2016 nos Hospitais da Universidade de Brasília (HuB) e da Universidade Federal de Santa Catarina (HuUFSC) no Brasil, no Hospital Universitário de Tlemcen na Argélia, e no Hospital Timone da Assistência Pública de Marseille na França. A escolha desses países e hospitais caracteriza uma amostra de conveniência em função de parceria em pesquisa já existente e pelo acesso às instituições por estudos anteriores no campo da ergologia. Também corresponde aos critérios sugeridos por Yin44. Yin RK. Estudo de Caso: planejamento e métodos. 8ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2015. para seleção de casos, os quais tanto podem ter contextos similares como contrastantes. Esta é a situação dos países estudados, que apresentam desenvolvimento econômico e social e características culturais distintas. Achados similares nesses casos seriam revestidos de uma maior validade. Nos hospitais foram intencionalmente definidos os serviços de emergência de adultos por serem comuns e prioritários em qualquer sistema.
A descrição dos sistemas usou revisão de literatura e dados secundários, com um relatório elaborado por país a partir de roteiro adaptado do European Observatory on Health Systems and Policies55. European Observatory on Health Systems and Policies. Health Systems in Transition (HiT) series. [cited 2017 Nov 14]. Available from: http://www.euro.who.int/en/about-us/partners/observatory/publications/health-system-reviews-hits.
http://www.euro.who.int/en/about-us/part...
. A caracterização dos hospitais e das emergências priorizou a estrutura assistencial, o financiamento, a governança e a força de trabalho. A coleta de dados foi feita por meio de análise documental e entrevistas com informantes-chave, e para conhecer o trabalho utilizou-se observação, entrevistas e questionários. Foram entrevistados 12 informantes chave em postos de direção (2 na UFSC, 3 no HuB, 3 na Argélia e 4 na França). Nos serviços de emergência foram feitas entrevistas (95 profissionais no Brasil e França), questionários (89 na Argélia), observação (mínimo de 35 horas em todas as instituições) e Groupes de Rencontres du Travail (GRT )66. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, EdUFF; 2007. na França e na Argélia. No HuUFSC esses grupos não se realizaram em função do deficit de pessoal e no HuB por absenteísmo. Questionários são os instrumentos priorizados para coleta de dados nos estudos realizados pela equipe da Argélia. Por essa razão, foram inseridas perguntas abertas neste instrumento, de modo a que coincidissem com aquelas das entrevistas feitas nos demais países. Os pesquisadores seguiram um roteiro com categorias comuns em todas as etapas da coleta de informações.
A composição final da amostra foi de 184 trabalhadores, tendo sido estabelecido no mínimo 20% de cada categoria profissional, conforme a composição da força de trabalho em cada serviço. A inclusão dos participantes aconteceu segundo disponibilidade durante o trabalho, o que gerou diferenças na composição da amostra, implicando num viés e num limite a pesquisa que deve ser considerado. No Brasil predominaram técnicos de enfermagem e enfermeiros; na Argélia médicos, enfermeiros e técnicos diversos; na França cadre infirmier (enfermeiro com função gerencial e formação específica para tal), enfermeiros e aides-soignantes. Na França e Argélia não existe técnico de enfermagem sendo os cuidados realizados pelos enfermeiros (os aides-soignantes não realizam atenção aos pacientes).
A análise comparada dos sistemas foi estruturada segundo as principais conjunturas que marcaram as reformas dos serviços, de modo a identificar elementos do contexto macrossocial que pudessem contribuir para compreensão das práticas e do trabalho dos profissionais. Os resultados preliminares dos dados de hospitais, serviços e sobre o trabalho nas emergências foram apresentados em Oficina de trabalho (2016), sendo sistematizados em três dimensões: organizacional, material e relacional. Em uma nova Oficina (2017), esses achados foram confirmados a partir de um processo analítico com técnicas do participatory appraisal. Este recurso advém da metodologia desenvolvida por Chambers77. Chambers R. The origins and practice of participatory rural appraisal. World Development 1994; 22(7):953-1102., inicialmente usada para projetos de intervenção em países em desenvolvimento. A sua principal característica é privilegiar a produção conjunta do conhecimento com o uso de abordagens qualitativas, dinâmicas de grupo e recursos visuais. Após a apresentação dos principais resultados pelos pesquisadores de cada equipe, foi solicitado que cada um redigisse uma lista das semelhanças e diferenças no trabalho nas emergências dos hospitais estudados, justificando-a. A lista final acordada entre os participantes, que sintetiza os principais desafios comuns aos três países, foi objeto de novo aprofundamento através de triangulação de fontes e dados.
O projeto foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília.
Resultados
O contexto dos sistemas de saúde
Em 2015, a Argélia possuía uma população de 39 milhões, um Produto Interno Bruto (PIB) de 12.750 dólares per capita (2012) e um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) considerado alto (0.745)88. World Health Organization. Global Health Observatory (GHO) data repository. Genève: WHO; 2017. [cited 2018 Jan 30]. Available from: http://www.who.int/gho/database/en/
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,99. Programme des Nations Unies pour le développement (PNUD). Rapport sur le développement humain 2016. Le développement humain pour tous. [cited 2018 Jan 30]. Available from: http://www.dz.undp.org/content/dam/algeria/docs/rdh/R%C3%A9sum%C3%A9%20du%20RDH2016.pdf
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. Em 2014, a participação da saúde no gasto governamental era da ordem de 9.9%, com um valor per capita de US$ 932 (73% público)88. World Health Organization. Global Health Observatory (GHO) data repository. Genève: WHO; 2017. [cited 2018 Jan 30]. Available from: http://www.who.int/gho/database/en/
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. O acesso é segmentado e constituído por três subsetores: beneficiários da Caisse Nationale de Securité Sociale, setor público e setor privado.
Segundo as mesmas fontes e anos de referência, o Brasil contava com uma população de 207 milhões, um PIB/hab. de 14.350 dólares e um IDH de 0.754, também considerado elevado. Em 2014, a participação da saúde nos gastos governamentais era de 6.7%, com um per capita de US$ 1.318, sendo 46% advindos de fontes públicas. O direito a saúde foi garantido constitucionalmente desde 1988, com a organização de um sistema universal denominado Sistema Único de Saúde (SUS).
A França possuía em 2015 uma população de 64 milhões, um PIB/hab. de 36.69066. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, EdUFF; 2007. e um IDH considerado muito alto (0.897)99. Programme des Nations Unies pour le développement (PNUD). Rapport sur le développement humain 2016. Le développement humain pour tous. [cited 2018 Jan 30]. Available from: http://www.dz.undp.org/content/dam/algeria/docs/rdh/R%C3%A9sum%C3%A9%20du%20RDH2016.pdf
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. Em 2014, a participação da saúde nos gastos governamentais equivalia a 16%, com um per capita de US$ 4.508 (78% de fontes públicas). A maior parte da população contribui para a Caisse Nationale d´Assurance Maladie (Securité Sociale) e uma lei, promulgada no ano de 2000, estendeu os benefícios deste seguro para a pequena parcela da população que ainda dependia da assistência pública. O Quadro 1 sintetiza os principais indicadores demográficos, socioeconômicos, de recursos e epidemiológicos dos três países.
Iniciando-se no contexto do pós-guerra, de 1950 a 1970, há uma expansão de direitos, cobertura e do complexo médico industrial. Na França, surge a Securité Social e ocorre a criação em 1958 dos Centres Hospitaliers Universitaires (CHUs)1010. Conill EM. Sistemas Comparados de Saúde. In: Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Hucitec, Fiocruz; 2006. p. 563-614.. A Argélia vive o fim da guerra para independência com a reconstrução do país e predomínio de programas verticais de saúde pública1111. Abdelhak S. Le système de santé publique en Algérie: analyse et perspectives. gestions hospitalières. Alber: ENA; 2006.
12. Benmansour S. Financement des systems de santé dans les pays du Maghreb. Cas de l’Algérie, Maroc et Tunisie [mémoire]. Tizi-Ouzou: Université Mouloud Mammeri; 2012.
13. Ipemed. Les systèmes de santé en Algérie, Maroc et Tunisie. Défis nationaux et enjeux partagés. Etudes et analyses 2012; 13.-1414. Institut National de Santé Publique. Enquête Nationale Santé: Transition épidémiologique et système de santé Projet TAHINA. Argel: Institut National de Santé Publique; 2007. [Contrat n° ICA3-CT-2002-10011].. No Brasil começa a expansão da atenção curativa através da medicina previdenciária, com programas verticais para doenças infecciosas e endêmicas no âmbito da saúde pública1515. Escorel S, História das políticas de saúde no Brasil de 1964 a 1990: do golpe militar à reforma sanitária. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 323-363..
A partir de 1970, os gastos de um modelo hospitalocêntrico começam a aparecer com o surgimento de reformas para racionalização dos cuidados (territorialização, hierarquização), incluindo a atenção primária de saúde (APS). A Argélia passa por um período de desenvolvimento impulsionado pela nacionalização do petróleo, votando-se a gratuidade da atenção e estabelecendo-se uma oferta planejada e hierarquizada de serviços1111. Abdelhak S. Le système de santé publique en Algérie: analyse et perspectives. gestions hospitalières. Alber: ENA; 2006.
12. Benmansour S. Financement des systems de santé dans les pays du Maghreb. Cas de l’Algérie, Maroc et Tunisie [mémoire]. Tizi-Ouzou: Université Mouloud Mammeri; 2012.
13. Ipemed. Les systèmes de santé en Algérie, Maroc et Tunisie. Défis nationaux et enjeux partagés. Etudes et analyses 2012; 13.-1414. Institut National de Santé Publique. Enquête Nationale Santé: Transition épidémiologique et système de santé Projet TAHINA. Argel: Institut National de Santé Publique; 2007. [Contrat n° ICA3-CT-2002-10011].. No Brasil, tais propostas se restringem a alguns municípios e a projetos experimentais, que irão difundir princípios orientando a organização de um sistema público de serviços integrados e descentralizados, o que ocorrerá a partir de 19881515. Escorel S, História das políticas de saúde no Brasil de 1964 a 1990: do golpe militar à reforma sanitária. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 323-363..
Mas as décadas de 1980-1990, contexto de implementação do SUS no Brasil, já correspondem a uma conjuntura internacional e nacional de ajustes macroeconômicos. Estimula-se uma ação subsidiária do Estado com expansão do mercado privado e contenção de políticas sociais1010. Conill EM. Sistemas Comparados de Saúde. In: Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Hucitec, Fiocruz; 2006. p. 563-614.. A ausência de um financiamento compatível levará a um gradativo sucateamento da oferta especializada e da rede pública, incluindo os hospitais universitários. Na Argélia, o CHUs são criados em 1986, num contexto de significativa expansão da oferta. Mas a recessão (crise do petróleo) também incide no país com cortes nas políticas sociais, crescimento do setor privado e do gasto direto das famílias1212. Benmansour S. Financement des systems de santé dans les pays du Maghreb. Cas de l’Algérie, Maroc et Tunisie [mémoire]. Tizi-Ouzou: Université Mouloud Mammeri; 2012..
Medidas de racionalização foram gradativamente introduzidas na França: médècin traitant para coordenação do cuidado, mudanças no financiamento de hospitais com introdução da tarification à l´activité (T2A), lei Hôpital, patients, santé, territorie-HSPT, além da criação de Agências Regionais de Saúde para integração dos serviços88. World Health Organization. Global Health Observatory (GHO) data repository. Genève: WHO; 2017. [cited 2018 Jan 30]. Available from: http://www.who.int/gho/database/en/
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. Mudanças na governança hospitalar levaram a uma subordinação importante dos profissionais as novas regras da gestão, com estabelecimento dos pôles d´activité. Esses polos são definidos como unités médico-économiques e funcionam com objetivos contratuais que pretendem associar qualidade e eficiência1616. Gheorghiu MD, Moatty F. L´hôpital en mouvent – changement organisationnels et conditions de travail. Paris: Editions Liaisons; 2013..
Embora na França o papel do clínico geral seja histórica e socialmente reconhecido, as políticas de APS nunca tiveram penetração e a importância dos hospitais, principalmente dos CHUs, permanece forte. O mesmo padrão é observado na Argélia. Mas, ao contrário do que ocorreu neste país e no Brasil, as medidas de racionalização do sistema francês não cortaram gastos públicos de modo significativo, nem levaram a um aumento de seguros privados, apesar de ter ocorrido uma diminuição de leitos para pacientes agudos1010. Conill EM. Sistemas Comparados de Saúde. In: Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Hucitec, Fiocruz; 2006. p. 563-614..
No Brasil, a atenção ambulatorial foi sendo expandida e orientada por princípios da APS e pela Estratégia de Saúde da Família-ESF que está presente na maioria dos municípios1717. Departamento de Atenção Básica. Histórico de Cobertura da Saúde da Família. [acessado 2015 Set 16]; 21(4):161-181. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/dab/historico_cobertura_sf/historico_cobertura_sf_relatorio.php
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, e que devem funcionar como ordenadora do cuidado. Apesar do aumento de leitos públicos, houve um incremento de hospitais com baixa densidade tecnológica1818. Braga Neto FC, Barbosa PR, Santos IS, Oliveira CMF. Atenção hospitalar: evolução histórica e tendências. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 577-633.. Essa situação contribui para a demora no atendimento e na obtenção de exames especializados, levando a uma procura excessiva, muitas vezes inadequada, dos serviços de emergência.
A partir de 2008, o funcionamento do sistema de saúde da Argélia modificou-se (Decreto 07-140 de 19 de maio de 2007) com supressão dos setores sanitários e criação de Établissements publics hospitaliers (EPH) e Établissements publics de santé de proximité (E.P.S.P), que tem gestão separada. Essa medida agravou as dificuldades de coordenação dos serviços que também sobrecarregam os cuidados especializados nesse país, incluindo os CHUs1111. Abdelhak S. Le système de santé publique en Algérie: analyse et perspectives. gestions hospitalières. Alber: ENA; 2006.
12. Benmansour S. Financement des systems de santé dans les pays du Maghreb. Cas de l’Algérie, Maroc et Tunisie [mémoire]. Tizi-Ouzou: Université Mouloud Mammeri; 2012.
13. Ipemed. Les systèmes de santé en Algérie, Maroc et Tunisie. Défis nationaux et enjeux partagés. Etudes et analyses 2012; 13.-1414. Institut National de Santé Publique. Enquête Nationale Santé: Transition épidémiologique et système de santé Projet TAHINA. Argel: Institut National de Santé Publique; 2007. [Contrat n° ICA3-CT-2002-10011].. A Figura 1 compara a trajetória dos três países destacando as principais políticas e o marco legal em cada conjuntura.
Trajetória comparada dos sistemas de saúde Argélia, Brasil, França: principais políticas e normas segundo conjunturas e país.
As características dos Hospitais Universitários e dos Serviços de Emergência
Os hospitais têm financiamento público e atendem ao conjunto da população, sendo referência para a média e a alta complexidade. Quanto às características estruturais são hospitais de grande porte na França e Argélia e de médio porte no Brasil. Em 2015, o HuB contava com 229 leitos, o HuUFSC com 319, o Tlemcen com 646 e o Timone com 1070, com taxa de ocupação de 47,28%, 78,85%, superior a 100%, e 85% respectivamente.
Vinculam-se administrativamente aos Ministérios da Saúde (França e Argélia) e da Educação (Brasil), mas em todos os países há articulação entre os setores da saúde e educação, pelo financiamento ou pela certificação. Possuem direção colegiada composta principalmente pela categoria médica na França e na Argélia, e no Brasil há participação de outras categorias profissionais. França e Brasil preveem participação de usuários em instâncias deliberativas e de controle.
A forma de admissão nos três países é por concurso público. Há diferenças na jornada de trabalho, principalmente dos médicos: França e Argélia cerca de 40 horas/semanais; Brasil de 20 a 40 horas. Em relação as demais categorias, na Argélia é de 40 horas, na França em torno de 35 horas e no Brasil varia entre 30 e 40 horas semanais.
No Brasil, em 2011 foi criada uma empresa pública ligada ao Ministério da Educação para administrar os Hospitais Universitários, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). O HuB firmou contrato com a EBSERH em 2013 e o HuUFSC no final de 2015. A operacionalização desse contrato ocorreu em 2014 e 2017 respectivamente, portanto após a realização da coleta de dados na UFSC.
Todos possuem serviços de emergência para atendimento de adultos (clínico e cirúrgico), pediátrico e obstétrico, sendo que a França possui emergência psiquiátrica. Atendem a uma demanda que gira em torno de 230/pacientes dia na França e HuUFSC, sendo maior na Argélia (350/dia) e menor no HuB (em torno de 90/dia). Destaca-se que França, Argélia e HuUFSC tem “porta aberta”, ou seja, há atendimento a demanda espontânea. No caso do HuB o serviço de emergência é referenciado.
Brasil e Argélia tem um tempo de permanência nos serviços de emergência que varia de dois a cinco dias, já a França tem um tempo médio de quatro a cinco horas. Em relação ao número de leitos, França possui 38 leitos, Argélia 27, HuUFSC 13 leitos e 07 macas e HuB 12 leitos. O Quadro 2 sintetiza indicadores dos hospitais e dos serviços de emergência.
Desafios do trabalho em emergência de hospitais universitários
Deficit da força de trabalho
Os três países convivem com deficit de trabalhadores, relacionado à rotatividade e absenteísmo e, na França há insuficiência estrutural de médicos, o que resulta em sobrecarga e insatisfação. Há diferença na prática dos profissionais de enfermagem entre os países: na França e Argélia os enfermeiros realizam atividades assistenciais e os auxiliares as ações de higiene e conforto; no Brasil os cuidados são realizados pelos enfermeiros e pelos técnicos de enfermagem sob supervisão do enfermeiro.
Na Argélia essa situação se expressa em grandes problemas. Primeiro, reforça o papel dos familiares como cuidadores, o que tem contribuído para reduzir as cargas de trabalho dos enfermeiros, por outro lado, atender os familiares se constitui numa nova tarefa que os distancia dos pacientes. Segundo, gera um desvio de função com a realização pelos auxiliares de tarefas reservadas aos enfermeiros, gerando queixas e sanções legais. Profissionais inexperientes e com pouca segurança no trabalho é o terceiro problema, associado ao da rotatividade.
Os dois hospitais brasileiros sofrem com absenteísmo e rotatividade, mas no HuUFSC essa situação é agravada pelo grande volume de atendimento de pacientes graves num contexto de precariedade de estrutura e materiais.
Em ambos, o deficit de trabalhadores gera conflitos por dificuldades na organização da escala, influencia o modo de trabalhar e, prejudica atividades de ensino. Os residentes e os acadêmicos passam a assumir uma demanda que não seria de sua atribuição.
No HuUFSC a prescrição dos cuidados integrais (um trabalhador realiza todos os cuidados de um número de pacientes) é mantida no turno diurno, mas renormalizada no noturno quando realizam o cuidado por tarefas, com a justificativa de um quantitativo menor de pessoal.
Na França, desde o fim de 2014, o serviço de emergência é fruto da fusão dos serviços de dois hospitais para economia de escala. Houve aumento de leitos e pacientes com o mesmo número de profissionais resultando em jornadas exaustivas. Das enfermeiras e dos auxiliares de enfermagem é de 12 horas/dia, com média semanal de 35 horas, que objetiva evitar as trocas no meio do dia, consideradas geradoras de perdas de informação e da continuidade no atendimento. Essa organização, segundo os trabalhadores, torna o trabalho penoso e impacta na qualidade (nervosismo, menos vigilância, menor domínio técnico, desmotivação, restrição do tempo de passagem de plantão). Os 25 médicos urgentistas que deveriam ter 33 horas, fazem jornada semanal de 48 horas, com 90% deles ultrapassando essa carga horária com horas extras. Transferem muitas das atividades para os residentes e relatam a sensação de trabalhar rápido demais, com receio de cometer erros, além de dificuldades para conciliar trabalho e vida pessoal.
Falta de leitos nos serviços de internação
A falta de leitos é um problema comum nos quatro hospitais impactando em superlotação na emergência. Na Argélia há congestionamento nos serviços de internação e, os trabalhadores têm dificuldades de lidar com o fluxo de pacientes e com esse déficit, o que gera sentimentos de desmoralização e impotência.
No Brasil, a falta de leitos para internação bloqueia os da emergência. No HuB, como muitos pacientes são da oncologia, os leitos ficam ocupados por falta de Unidade de Cuidados Paliativos; no HuUFSC, muitos pacientes ficam internados na emergência até a alta, comprometendo a porta de entrada. Esse conjunto de elementos dificulta o respeito às normas de biossegurança e sobrecarrega os profissionais.
Na França, com a falta de vagas nos serviços de internação devido ao grande volume de internações programadas, por dia 6 pacientes são redirecionados para hospitais privados e 50% dos pedidos de internação não são atendidos. Há saturação permanente, especialmente na unidade de internação de curta duração (em média, 8 internações indevidas por dia para 19 leitos), o que tende a aumentar o tempo de espera na recepção.
Deficit de infraestrutura e materiais
A inadequação do espaço físico, reduzido e sem privacidade para realizar atendimentos, assim como a insuficiência ou a precariedade de materiais são problemas para os hospitais do Brasil e da Argélia.
Na Argélia falta uma unidade de triagem e a estrutura não obedece ao previsto na normativa ministerial, sendo os espaços apertados, congestionados com leitos, macas no chão e intenso fluxo de pacientes e familiares. A situação se assemelha a do HuUFSC, onde há pacientes internados em macas e cadeiras, atendidos nos corredores em leitos provisórios que se tornam permanentes. Num contexto de desorganização completa das emergências, estes fatores se articulam tornando o trabalho hospitalar especialmente difícil de vivenciar e levando ao afastamento da atividade fim junto aos pacientes.
Os espaços para tratamento e internação não garantem privacidade, inclusive em instituições que tiveram sua estrutura renovada, como é o caso dos hospitais no Brasil. Com exceção da França, nos demais hospitais os materiais e equipamentos são em quantidade e qualidade inadequadas, fazendo com que os trabalhadores busquem empréstimos e façam adaptações. A França vive situação distinta com o serviço em locais novos e espaçosos, a falta de infraestrutura e materiais não aparece como problema. Todavia, os profissionais quase não se encontram em virtude da extensa superfície do serviço, o que representa fonte de cansaço e dificuldades de comunicação em função das distâncias.
Excesso de atividades cronofágicas
Nos hospitais brasileiros e na França os profissionais, sobretudo médicos e enfermeiros, se queixam do excesso de atividades “cronofágicas” ou “comedoras de tempo”, aspecto que incide sobre a qualidade do cuidado.
No Brasil, as atividades administrativas ocupam boa parte do tempo, e estariam relacionadas à falta de técnicos administrativos. Os trabalhadores apontaram que registros e busca de materiais geram desgaste e tempo duplicado. Há sistemas informatizados com prontuários eletrônicos e intranet para comunicação entre os setores do hospital, mas muitas vezes, em função do ritmo acelerado no cuidado ao paciente, os profissionais fazem rascunhos a beira do leito para, posteriormente, passar para um formulário em papel e na sequência para o computador.
Os entrevistados aludem à incorporação do telefone celular como ferramenta de trabalho. A comunicação entre as equipes e os gestores é muitas vezes realizada via aplicativo WhatsApp®, o que facilita o contato, mas sobrecarrega exigindo constante atenção que se soma ao cuidado dos pacientes.
Na França, em função da tarification a l´activité (T2A), todos os procedimentos devem ser registrados para serem faturados. As digitações e consultas informatizadas são frequentes, havendo computadores nos boxes e nos quartos, atividades que colocam o profissional de costas para o paciente consumindo tempo em detrimento da assistência, o que tende a desumanizar o trabalho. O problema se agrava porque os equipamentos de informática são complexos e sujeitos a falhas recorrentes. Segundo os profissionais, esse tempo utilizado no computador deveria ser levado em conta no cálculo do efetivo necessário ao bom funcionamento do serviço.
Também consomem o tempo de trabalho na França a busca por leitos para internação, deslocamentos, telefonemas, além da rotina de uma reunião diária entre os membros da equipe. Essas atividades são identificadas como redutoras da atenção aos pacientes, especialmente pelos médicos.
Transição geracional
Na Argélia, houve uma saída em massa de pessoal que acumulou experiência em emergência, substituídos por mais jovens. Essa situação está relacionada às aposentadorias ou transferências de médicos para outros serviços, à rotatividade de residentes e à saída de vários profissionais não médicos que conseguem trocar de serviço. Com isso, residentes de primeiro ano assumem os cuidados.
No Brasil, com a gestão da EBSERH, o efetivo do serviço de emergência do HuB foi renovado a partir de 2014, passando a ter maioria de trabalhadores contratados pela empresa em regime de trabalho semelhante ao do setor privado, com jornadas distintas dos antigos funcionários que permanecem no hospital. A maioria recém-admitida é jovem com pouca experiência, eles mencionam a falta de protocolos e de capacitação.
Violência por parte dos usuários e familiares
Na Argélia e França destaca-se a violência decorrente da relação direta com pacientes e familiares gerando sobrecarga psíquica para os trabalhadores. Essa situação aponta para a necessidade de espaços de diálogo, principalmente entre equipes e gestores na busca de soluções.
Na Argélia, a falta de triagem pelos enfermeiros, deficit de recursos, falta de formação do pessoal de apoio, dificuldades de internação e transferência, esperas intermináveis, “congestionamento” pela presença intensa de familiares e a saturação da capacidade da recepção, geram violência direcionada aos trabalhadores.
Os profissionais, principalmente os médicos, apontam que cada vez mais não recebem apoio da hierarquia, nem dos colegas, quando são confrontados com essa situação. Sentem-se entregues a si próprios, com o sentimento de terem sido enganados, pois a origem do problema está, segundo eles, nas falhas toleradas pela hierarquia.
São os clínicos gerais, principalmente os recém-formados, que enfrentam as maiores dificuldades por serem expostos às pressões psicológicas e organizacionais. Esses riscos estão ligados não apenas à exposição a uma infinidade de fatores – sobrecarga de trabalho, prescrições imprecisas, variadas e crescentes, mas também ao fato de que atuam num ambiente, segundo eles, de isolamento profissional marcado pela solidão, pela insegurança e pelo medo frente ao descontentamento das famílias e às suas reações. Eles vivenciam um sentimento de depreciação em relação a seus colegas especialistas, à desvalorização dos plantões e ao paradoxo entre a necessidade de agir rapidamente e sem falha, e a conscientização de seus próprios limites. Os profissionais lamentam não haver mais espaço de diálogo para discutir com a administração a respeito do trabalho e das dificuldades profissionais.
Na França, os profissionais constatam a falta crescente de “civilidade” e o aumento da impaciência por parte dos pacientes e famílias, que desconsideram as prioridades em função das patologias. Referem estarem expostos a gritos e ameaças, sendo que a maioria diz ter sofrido violência. O grande fluxo de pacientes potencializa o problema e os enfermeiros consideram que os pacientes e suas famílias estão sendo demasiadamente exigentes e agressivos. Para enfrentar essa situação foi criada a função de “mediador” que atua nas áreas da recepção, o que possibilitou redução das tensões, porém o conjunto dos problemas nos serviços impõe limites a essa iniciativa. As chefias têm procurado resolver algumas dessas questões com reuniões regulares, trocas de ideias e grupos de trabalho sobre vários assuntos. Todavia, o número de gerentes foi recentemente reduzido e está cada vez mais difícil tratar de maneira eficiente o conjunto dos problemas.
Discussão e Conclusão
Apesar de graus de desenvolvimento e aspectos culturais distintos, os três países apresentam semelhanças quanto aos desafios para o trabalho. As crescentes medidas de racionalização e contenção de gastos repercutem de modo mais intenso na Argélia e no Brasil onde há um baixo patamar de financiamento público, mas também ocorrem na França.
Na França, a diminuição de leitos para pacientes com problemas agudos associado ao envelhecimento populacional e ao crescimento de comorbidades torna problemática a continuidade da atenção. Esse aspecto mostra que o planejamento da oferta e a gestão hospitalar não podem estar dissociados das características epidemiológicas e da rede de atenção. Na Argélia os indicadores adversos de mortalidade materna e infantil apontam para a importância da ampliação da APS que poderia atenuar a sobrecarga na emergência. No Brasil, há ausência de investimentos e elevados tempos de espera para atenção especializada1919. Gadelha CAG, Machado CV, Lima LD, Baptista TWF. Saúde e territorialização na perspectiva do desenvolvimento. Cien Saude Colet 2011; 16(6):3003-3016..
Os hospitais têm sido questionados sobre o seu papel nos sistemas de saúde, mas continuam centrais na prestação de cuidados. Concentram saberes e tecnologias especializadas, representam cerca de metade dos gastos e são percebidos como o lugar privilegiado de exercício da atenção à saúde1818. Braga Neto FC, Barbosa PR, Santos IS, Oliveira CMF. Atenção hospitalar: evolução histórica e tendências. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 577-633.. Em contextos de restrições orçamentárias têm sido introduzidas medidas administrativo-organizacionais, economia com custos da força de trabalho e diversas inovações tecnológicas2020. Buchan J, O`May F, Dussault G. Nursing workforce policy and the economic crisis: a global overview. J Nurs Scholarsh 2013; 45(3):298-307.,2121. Pires D, Trindade LL, Matos E, Azambuja EP, Borges AMF, Forte ECN. Inovações tecnológicas no setor saúde e aumento das cargas de trabalho. Tempus 2012; 6(2):45-59..
A tendência da nova gestão pública é otimizar recursos humanos sem medir consequências nas relações de trabalho, condições de vida ou saúde dos profissionais, e os impactos negativos sobre a qualidade do cuidado33. Schwartz Y. L’inconfort Intellectuel ou comment penser les activités humaines ? In: Schwartz Y. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse: Octares; 2000. p. 585-633.,1616. Gheorghiu MD, Moatty F. L´hôpital en mouvent – changement organisationnels et conditions de travail. Paris: Editions Liaisons; 2013.. No caso dos hospitais estudados, o déficit da força de trabalho, expressos não apenas pelo quantitativo insuficiente de trabalhadores, mas também pela rotatividade e absenteísmo, associados ao excesso de atividades cronofágicas, parece ser um sintoma desses nossos tempos. Condições objetivas, como contingente numérico de força de trabalho, infraestrutura material e tecnologias de informação e comunicação disponíveis, influenciam a realização do trabalho. Mas a atividade humana é sempre mutável, os sujeitos decidem como agir considerando valores, objetivos pessoais e institucionais66. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, EdUFF; 2007..
Os resultados mostram que o conjunto dos desafios tem relação com a natureza dos serviços de emergência: relação intensa com todos os setores do hospital e com o ambiente externo, acesso irrestrito, diversidade, gravidade e imprevisibilidade da demanda. Corroboram estudos que evidenciam os problemas da superlotação, da insuficiência de médicos, predomínio de jovens profissionais, falta de privacidade, jornadas desgastantes, multiplicidade de funções, escassez de recursos e insuficiência de leitos de internação1616. Gheorghiu MD, Moatty F. L´hôpital en mouvent – changement organisationnels et conditions de travail. Paris: Editions Liaisons; 2013.,2222. Souza RB, Silva MJP, Nori A. Pronto-Socorro: uma visão sobre a interação entre profissionais de enfermagem e pacientes. Rev Gauch Enferm 2007; 28(2):242-249.. Nesse cenário os trabalhadores são chamados a agir11. Araújo KM, Leta J. Os hospitais universitários federais e suas missões institucionais no passado e no presente. Hist Cienc Saúde 2014; 21(4):161-181.,66. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, EdUFF; 2007. e podem adotar diferentes formas de enfrentar os desafios buscando atender as necessidades dos usuários, como por exemplo, delegando atividades a outros trabalhadores sem atribuição para tal ou para familiares, o que pode gerar novas demandas ou aumento de cargas de trabalho, com consequências negativas para profissionais e usuários.
Relacionados à natureza dos serviços e ao deficit de materiais, a rotatividade e o absenteísmo fazem com que as urgências sejam “um lugar de passagem, de triagem e de classificação não apenas para os pacientes, mas também para os profissionais”1616. Gheorghiu MD, Moatty F. L´hôpital en mouvent – changement organisationnels et conditions de travail. Paris: Editions Liaisons; 2013., o que pode provocar perda de competências coletivas com as múltiplas mudanças, que associado à juventude do efetivo, com pouca experiência, impacta no trabalho em equipe, dificultando a construção do vínculo e da confiança, com prejuízos à cooperação, e exige investimentos constantes em formação.
Estudo na França associa a rotatividade dos médicos urgentistas ao fato de perceberem que trabalham mais, porém não tem o mesmo status de outras especialidades caracterizando falta de capital simbólico. Esses profissionais, assim como as enfermeiras, buscam lugares mais estáveis e autônomos1818. Braga Neto FC, Barbosa PR, Santos IS, Oliveira CMF. Atenção hospitalar: evolução histórica e tendências. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 577-633..
A transição geracional é um fenômeno a ser acompanhado, que alerta não apenas para a questão das competências, mas guarda estreita relação com o absenteísmo. Quando a força de trabalho é predominantemente jovem e feminina há afastamentos relacionados com essa condição (licença maternidade, filhos doentes, entre outros) e, no caso dos mais antigos, doenças por desgaste físico e psicológico, agravadas em precárias condições de trabalho. Somam-se a isso as reformas recentes relativas às aposentadorias, que prolongam o tempo de vida no trabalho, trazendo novos desafios à gestão hospitalar, de como gerir esse envelhecimento que limita a execução de certas tarefas1414. Institut National de Santé Publique. Enquête Nationale Santé: Transition épidémiologique et système de santé Projet TAHINA. Argel: Institut National de Santé Publique; 2007. [Contrat n° ICA3-CT-2002-10011].. A relação entre idade e trabalho é complexa, difícil de precisar, pois envolve tanto questões internas e externas aos hospitais como individuais e sociais2323. Giless M, Savereux S. Gestion des âges: un enjeu de convergence des regards sur le travail. Paris: Octarès Editions; 2005. [Collection le travail en débats. Série Séminaire].. Schwartz e Durrive66. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, EdUFF; 2007. referem que a intensificação do trabalho é uma questão da atualidade, assim como múltiplas tarefas demandam múltiplas competências. Absenteísmo e afastamentos reduzem a força de trabalho disponível e requerem novas contratações ou substituições, assim como o prolongamento do tempo para a aposentadoria gera mudanças na forma de realização das atividades. Como este fenômeno será manejado pelos trabalhadores e instituições vai interferir positiva ou negativamente na força de trabalho66. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, EdUFF; 2007..
Ao revelar o excesso de atividades cronofágicas, este estudo tira da invisibilidade um conjunto de tarefas que concorrem com as assistenciais, muitas delas resultantes da gestão cotidiana que os trabalhadores fazem da distância entre o que está prescrito e aquilo que o meio oferece como possibilidade para serem eficazes66. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, EdUFF; 2007.. Ao mesmo tempo, constata-se, com a informatização e o uso de whatsApp®, novas tarefas se instituindo. O tempo despendido no conjunto de tarefas cronofágicas não é contabilizado no dimensionamento de pessoal.
A informatização pode ser vista pela ótica do faturamento, mas também pelos benefícios que traz para profissionais e gestores pela rapidez da informação, além de proteger o profissional no caso de judicialização. Entretanto, os profissionais vivenciam essa mudança no modo de trabalhar como um “roubo administrativo do trabalho”, corroborando com o estudo de Gheorghiu e Moatty1616. Gheorghiu MD, Moatty F. L´hôpital en mouvent – changement organisationnels et conditions de travail. Paris: Editions Liaisons; 2013.em que os médicos relataram sentimentos de humilhação e degradação. O fato dos profissionais não usarem os dados dos registros para análises e pesquisas pode ser um elemento que dificulta construir sentido no trabalho.
A violência, presente nos serviços de emergência da França e da Argélia, pode estar relacionada às características do local de trabalho e dos profissionais e a forma como se dá a comunicação com usuários e seus familiares. Essa problemática ocorre de modo crescente em outros países. Treinamentos específicos sobre identificação precoce, estratégias de relacionamento e técnicas de solução de conflitos, a exemplo da figura do mediador criada na França, assim como o apoio da gerência, podem ajudar em seu enfrentamento2424. Cannavò M, Fusaro N, Colaiuda F, Rescigno G, Fioravanti M. Violence on health care workers. Clin Ter 2017; 168(2):e99-e112.,2525. Irinyi T, Németh A. Violent acts against health care providers. Orv Hetil 2016; 157(28):1105-1109..
Há no trabalho em emergências um processo de instituição de novas modalidades de ação não prescritas, nem sempre visíveis, que exigem a regulação pelo trabalhador, que se vê diante de exigências difíceis de conciliar, a da qualidade e a da eficiência. Eles se deparam com os seguintes dilemas: o que faço? O que deixo de fazer? De quem eu cuido, quem eu mando embora?
Nesse contexto, os profissionais de emergências de hospitais públicos universitários parecem confrontados com dificuldades crescentes para exercer suas profissões. O absenteísmo elevado, a rotatividade e a violência são sinais de alerta da exposição desses trabalhadores aos riscos psicossociais como ansiedade, estresse, esgotamento profissional, interrogando a gestão de recursos humanos e a atividade humana no hospital.
Corroborando com Schwartz33. Schwartz Y. L’inconfort Intellectuel ou comment penser les activités humaines ? In: Schwartz Y. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse: Octares; 2000. p. 585-633., o estudo evidencia como as normas racionalizadoras no nível macro dos sistemas de saúde vão imprimir pressões para maior eficiência no nível meso, com a introdução de novas modalidades de gestão, tendendo a reduzir o trabalho no micro a mero ato técnico sem levar em conta a variabilidade e as particularidades do ato de cuidar. A médio prazo, a implementação de medidas que possam atenuar atividades cronofágicas, o déficit de materiais e a violência devem ser consideradas na melhoria desta situação.
Agradecimentos
Pela participação no processo da pesquisa: Laurence Bellies, Yves Schwartz e Sabine Cauvin (França); Julieta Oro, Rayane Campos Lacourt, Maria da Gloria Lima, Muna Odeh, Virgínia de Faria Sousa, Lusmair Martins de Brito, Andreia de Oliveira, Rafael Gomes dos Santos, Natália Regina Martins, Laenny Monteiro, Rafael Oliveira Gonçalves e Antônio José Costa Cardoso (Brasil); Linda Bouhacinda e Samira Sekkal (Argélia).
Ao CNPq pelo financiamento e à FAP/DF pela bolsa de Pós-Doutorado Sênior Exterior concedida à MDA Scherer.
Referências
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3Schwartz Y. L’inconfort Intellectuel ou comment penser les activités humaines ? In: Schwartz Y. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe Toulouse: Octares; 2000. p. 585-633.
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4Yin RK. Estudo de Caso: planejamento e métodos 8ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2015.
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6Schwartz Y, Durrive L. Trabalho & Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, EdUFF; 2007.
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16Gheorghiu MD, Moatty F. L´hôpital en mouvent – changement organisationnels et conditions de travail. Paris: Editions Liaisons; 2013.
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17Departamento de Atenção Básica. Histórico de Cobertura da Saúde da Família. [acessado 2015 Set 16]; 21(4):161-181. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/dab/historico_cobertura_sf/historico_cobertura_sf_relatorio.php
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18Braga Neto FC, Barbosa PR, Santos IS, Oliveira CMF. Atenção hospitalar: evolução histórica e tendências. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 577-633.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul 2018
Histórico
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Recebido
20 Fev 2018 -
Aceito
12 Mar 2018 -
Revisado
02 Abr 2018