Open-access Avaliação da satisfação com a assistência odontológica na perspectiva de usuários brasileiros adultos: análise multinível

Evaluation of satisfaction with dental care from the standpoint of adult Brazilian users: a multilevel analysis

Resumo

Objetivou-se avaliar a satisfação quanto aos serviços de assistência odontológica e identificar associação entre a insatisfação e as variáveis contextuais/individuais. Estudo transversal multinível de dados secundários de uma amostra representativa de 8.943 adultos de 177 municípios. Encontravam-se insatisfeitos 14,9% dos adultos. Registrou-se maior chance de insatisfação com os serviços odontológicos entre adultos que residiam em municípios com maior desigualdade social (OR:1,53;IC95%:1,31-1,81) e com menor proporção de dentistas por habitante (OR:1,17;IC95%: 1,00-1,37); amarelos/negros/pardos/indígenas (OR:1,12; IC95%: 0,99-1,27); menor escolaridade (OR:1,14; IC95%: 0,98-1,33); consulta por motivo de problemas bucais (OR:1,23; IC95%: 1,04-1,44); insatisfeitos com os dentes e boca (OR:2,60;IC95%:2,53-3,02) e com impacto das desordens bucais no desempenho diário (OR:1,48;IC95%:1,30-1,69). A implementação ou adequação de políticas públicas com o intuito de melhorar a satisfação com os serviços odontológicos deve priorizar os municípios com maior desigualdade social e com menos dentistas e usuários socialmente desfavorecidos, que autopercebem problemas bucais, insatisfeitos com sua saúde bucal e com impactos decorrentes dos problemas bucais.

Satisfação do paciente; Serviços de saúde; Qualidade da assistência à saúde; Odontologia em saúde pública; Epidemiologia

Abstract

The scope of this paper was to evaluate the satisfaction regarding dental care services and to identify the association between dissatisfaction and contextual/individual variables. It involved a cross-sectional study of a representative sample of 8,943 adults from 177 municipalities, in which 14.9% of adults were dissatisfied. In the multiple analysis there was a greater chance of dissatisfaction with dental services among adults residing in cities with greater social inequality (OR: 1.53, 95% CI: 1.31-1.81) and with a lower proportion of dentists per inhabitant (OR: 1.17; 95% CI: 1.00-1.37); yellow/black/brown/indigenous (OR: 1.12; 95% CI: 0.99-1.27); lower schooling (OR: 1.14; 95% CI: 0.98-1.33); consultation due to oral problems (OR: 1.23; 95% CI: 1.04-1.44); (OR: 2.60; 95% CI: 2.53-3.02) and impact of oral disorders on daily performance (OR: 1.48; 95% CI: 1.30-1.69). The implementation or adequacy of public policies with the aim of improving satisfaction with dental services should prioritize those municipalities with greater social inequality and with fewer dentists and socially disadvantaged users, who self-perceive oral problems, are dissatisfied with their oral health and suffer impacts resulting from oral problems.

Patient satisfaction; Health services; Quality of health care; Public health dentistry; Epidemiology

Introdução

Pesquisas que avaliam os serviços de saúde podem promover, indiretamente, impacto positivo na condição de saúde da população, por meio de seus indicadores. A satisfação com serviços odontológicos pode ser avaliada tanto na perspectiva dos profissionais, gestores e usuários, sendo que a perspectiva dos usuários tem sido bem valorizada1, pois pode direcionar tais serviços ao atendimento das demandas da população2. Dentre os diversos modos de se avaliar a satisfação com os serviços de saúde, o modelo teórico proposto por Donabedian recomenda a tríade estrutura, processo e resultado. Estrutura refere-se aos instrumentos e recursos utilizados, assim como às condições físicas dos ambientes e organização dos serviços. Processo refere-se à execução do serviço e a relação entre profissional e usuário. A dimensão Resultados é o desfecho do serviço prestado e tem a satisfação como um de seus componentes3.

Já o modelo teórico de Andersen e Davidson4 coloca a satisfação do usuário com os serviços odontológicos como resultado de um processo dinâmico, em que cada variável que o compõe é importante, influenciando e sendo influenciada pelas demais. Nesse modelo, a satisfação do usuário é resultado de variáveis exógenas (grupos étnicos e corte etário); determinantes primários de saúde bucal (ambiente externo, saúde geral relatada, sistemas de atenção à saúde bucal e características pessoais), comportamentos de saúde bucal (práticas pessoais e uso formal de serviços) e condições de saúde bucal (condição de saúde bucal, percepção da condição de saúde bucal)4. Assim, a satisfação com os serviços na perspectiva dos usuários ultrapassa o limite das características dos indivíduos, sofrendo influência dos contextos onde os serviços estão inseridos. É importante ressaltar que os usuários se sentem mais confortáveis para relatar insatisfação com serviços prestados fora do espaço assistencial5, entretanto não foram identificados estudos prévios que avaliaram a insatisfação com a assistência odontológica em inquéritos domiciliares que consideraram variáveis contextuais e individuais.

A insatisfação dos usuários com os serviços odontológicos abriga aspectos a serem desvelados, já que carrega particularidades dos contextos6. Diante disso, este estudo avaliou, a partir de modelagem multinível, os fatores contextuais e individuais associados à insatisfação com os serviços odontológicos dos adultos brasileiros através do relato dessa insatisfação feito fora do espaço assistencial5, tendo como foco a melhoria do atendimento prestado.

Métodos

Estudo transversal multinível, uma vez que utilizou variáveis contextuais e individuais. A abordagem multinível utiliza o contexto para explicar o desfecho estudado em nível individual. Foram utilizados dados secundários, sendo que as variáveis contextuais foram obtidas em nível municipal, em diversas bases de dados públicas e as individuais foram coletadas nos domicílios dos participantes.

Em nível contextual, os dados foram coletados de bases de dados públicas e oficiais: do Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)7; do Atlas Brasil, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUD8; da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico do IBGE do Data/SUS/MS9, que é um órgão pertencente à Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, cujo funcionamento relaciona-se diretamente à ação produtora, receptora, ordenadora e disseminadora de informações. Atlas Brasil e a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico são bases de dados geradas do censo demográfico de 2010, cuja coleta de dados foi realizada entre 1º de agosto e 30 de outubro de 2010, utilizando a base territorial que se constituiu de 316 574 setores censitários7. Uma variável alusiva ao município, ser de capital ou interior, foi obtida do Projeto SBBrasil 201010.

Em nível individual, foi utilizado o banco de dados da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal, o Projeto SBBrasil 2010. A metodologia foi delineada a partir das recomendações propostas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Trata-se de uma amostra composta por 9779 indivíduos, representativa dos adultos (35-44 anos), oriunda de 177 municípios, incluindo as 26 capitais dos estados brasileiros e o Distrito Federal. A seleção dos municípios deu-se por amostragem probabilística por conglomerados, em múltiplos estágios com um efeito de desenho (deff) igual a 2. Sortearam-se os municípios e setores censitários atendendo a técnica de probabilidade proporcional ao tamanho. Foram conduzidas entrevistas e exames intrabucais, sob luz natural, por cirurgiões-dentistas treinados e calibrados (Kappa ≥ 0,65), com auxílio de computadores de mão para registro das informações11. Apenas os adultos que utilizaram os serviços odontológicos alguma vez na vida e que responderam à pergunta relativa à variável dependente foram incluídos na análise.

Variável dependente

A variável dependente “satisfação com os serviços odontológicos” foi obtida a partir da pergunta “Como você avaliaria a sua última consulta?”. As opções de resposta “muito bom” e “bom” foram agrupadas no grupo dos satisfeitos e “regular”, “ruim” e “péssimo” foram alocadas para o grupo dos insatisfeitos.

Variáveis independentes

As variáveis independentes seguiram o modelo teórico de Andersen e Davidson4, adaptado por Oliveira12, sendo: Variáveis de Contexto (ambiente, condição social/econômica, sistema de saúde, indicadores de assistência); Determinantes Primários Individuais (características pessoais imutáveis, e mutáveis); Comportamento (uso formal de serviços, motivo do uso, tipo de serviço utilizado); e Desfecho (condição de saúde bucal normativa/objetiva, condição de saúde bucal subjetiva, satisfação com os serviços odontológicos). Ressalta-se que um dos desfechos deste modelo é a variável dependente desse estudo.

Variáveis independentes contextuais

Quanto às Variáveis de Contexto, a organização no subgrupo ambiente foi: “localização geográfica do município” (capital; interior)10, “população com acesso ao banheiro e água encanada” (maior ou igual à média nacional; menor que a média nacional, de 90,81%), “população com acesso à coleta de lixo” (maior ou igual à média nacional; menor que a média nacional, de 83,03%) e “fluoretação da água distribuída” (sim; não)7. O ponto de corte das variáveis “população com acesso ao banheiro e água encanada” e “população com acesso à coleta de lixo” foi obtido através da média das prevalências identificadas para cada município, considerando os municípios abordados neste estudo.

No subgrupo condição social/econômica as variáveis foram: índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM) que é categorizado em muito baixo (de 0 a 0,49), baixo (entre 0,50 e 0,59), médio (entre 0,60 e 0,69), alto (entre 0,70 e 0,79) e muito alto (entre 0,80 e 1,0), esse indicador é um agregado de informações sobre renda, nível de instrução e longevidade em cada cidade13, portanto optou-se categorizar no presente estudo em “alto/muito alto” e “muito baixo/baixo/médio”. O Coeficiente de Gini, que tem como objetivo mensurar a desigualdade na distribuição de renda, a partir da curva de Lorenz, esse indicador varia entre 0 (completa igualdade) e 1 (completa desigualdade), e foi dicotomizada conforme a média nacional em 2010 (0,59), em maior desigualdade (menor ou igual a média) e menor desigualdade (maior que a média)7.

No subgrupo sistema de saúde as variáveis foram: financiamento per capita da população (discreta); proporção de dentistas por 1000 habitantes, proporção de dentistas no SUS por 1000 habitantes, cobertura de equipes de saúde bucal e presença de Centro de Especialidades Odontológicas no município. Essas informações foram coletadas no site DATA/SUS e na sala de gestão estratégica do Ministério da Saúde. O cálculo do número de dentistas é a razão entre o número de cirurgiões-dentistas, atuantes ou não no SUS, no município por 1000 habitantes do município, e foi categorizado em maior ou igual à média nacional e menor que a média nacional, sendo que a média para proporção de dentistas por 1000 habitantes foi de 0,66 e proporção de dentistas do SUS por 1000 habitantes foi de 0,41 e levou-se em conta apenas os municípios investigados. O cálculo da cobertura de equipes de saúde bucal na atenção primária foi agregado em maior ou igual à meta nacional e menor que a meta nacional, sendo que a meta para o ano de 2010 foi de 40,0%14. A variável que informa a presença dos centros de especialidades nos municípios participantes do inquérito foi coletada considerando o ano 2010 e categorizada em presença e ausência.

No subgrupo indicadores de assistência as variáveis foram: média de escovação supervisionada no ano que foi dicotomizada em maior ou igual à meta nacional e menor que a meta nacional, sendo que a meta para o ano de 2010 foi de 3,0%14.

Variáveis independentes individuais

No grupo Determinantes Primários Individuais foram incluídas no subgrupo características pessoais imutáveis as seguintes variáveis: sexo (feminino; masculino), idade em anos (35-39; 40-44) e cor da pele autodeclarada (brancos e amarelos/negros/pardos/indígenas). Para o subgrupo características pessoais mutáveis: anos de estudo (acima de 5 anos; analfabeto/entre 1 a 4 anos) e renda média familiar (maior ou igual à R$1500,00; menor que R$1500,00).

No grupo Comportamento foram incluídas no subgrupo uso formal de serviços a seguinte variável: tempo desde a última consulta (há menos de 1 ano; há mais de um ano). No subgrupo tipo de serviço utilizado: (SUS; outros).

Do grupo desfecho proposto no modelo de Andersen e Davidson4 foram incluídas as variáveis do grupo condição de saúde bucal no subgrupo normativa/objetiva: uso de prótese (não; sim) necessidade de prótese (não; sim) e dor de dente (não; sim). No subgrupo subjetiva: autopercepção da necessidade de tratamento (sim; não), autopercepção da necessidade de prótese (sim; não), satisfação com dentes e boca (satisfeitos; insatisfeitos) e o índice de impacto das desordens bucais no desempenho diário (OIDP) que foi calculado a partir da soma de todas as nove atividades diárias e foi dicotomizado em sem impacto (nenhuma atividade com impacto) e com impacto (uma ou mais atividade com impacto).

Análise estatística

Os dados referentes às variáveis contextuais e individuais foram organizados no software Statistical Package for the Social Sciences® (SPSS 19.0). Nas análises descritivas das variáveis individuais, considerou-se o efeito do desenho amostral complexo, fazendo uso do comando Complex Samples do referido software. Para as variáveis contextuais, utilizou-se o banco com dados dos municípios e não dos sujeitos para análise descritiva. Com o intuito de complementar as informações deste estudo, as proporções de insatisfação foram agrupadas pelas cinco macrorregiões geopolíticas brasileiras (Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro Oeste). Sendo assim, elaborou-se um mapa com a proporção de insatisfação nos municípios do interior divididas nas macrorregiões (desconsiderando a proporção nas capitais) e a proporção de insatisfação nas capitais. Utilizou-se o software livre “Quantum Gis” que possibilita o georreferenciamento, edição e análise de dados.

Em um segundo momento realizou-se análises bivariadas (somente com as variáveis individuais), a partir do Teste Qui-quadrado. Somente as variáveis individuais que se mostraram relacionadas à variável dependente, considerando um nível de significância (α) igual ou inferior a 0,20, foram incluídas nas análises múltiplas.

Em um terceiro momento, os dados foram exportados para o programa STATA® v 14.0 com o objetivo de determinar o modelo múltiplo multinível por meio de Regressão Logística Binária (utilizando dados contextuais e individuais), foi conduzida modelagem manual do tipo step backward. Foram mantidas no modelo final ajustado apenas as variáveis com p ≤ 0,10. Para verificação do ajuste do modelo, utilizou-se o pseudo R square (R2) com o intuito de analisar a capacidade do modelo final ajustado em explicar a variação da variável dependente. A escolha do modelo final deu-se por meio do Log Likelihood, ou seja, o valor estimado do modelo vazio é multiplicado por (-2) e compara-se com o modelo pretendido, essa diferença deve ser a maior possível15.

Para estimação do ajuste entre desfecho (satisfação com os serviços odontológicos) e variáveis explicativas de primeiro (contextuais) e segundo (individuais) níveis de análise, utilizou-se o esquema de efeitos mistos e intersecção randômica16. A priori considerou-se um modelo vazio (somente com intercepto aleatório e a variável dependente, sem as demais variáveis). Posteriormente, incluíram-se as variáveis do primeiro nível, seguidas pelas variáveis do segundo nível, com os coeficientes mistos com função logit para obtenção das medidas de odds ratios (OR) e IC 95%. Observou-se redução na variabilidade do efeito aleatório, pela comparação com o modelo anterior. Compararam-se as funções de verossimilhança do modelo com e sem as variáveis da pessoa, usando o teste Qui-quadrado. Mantiveram-se no modelo somente as variáveis estatisticamente significantes (p ≤ 0,10).

Obteve-se autorização para realização do Projeto SBBrasil 2010 através do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde. Todos os participantes do Projeto SBBrasil 2010 assinaram o Termo de Consentimento, no qual foram esclarecidas as características do exame bucal a ser realizado, o sigilo dos dados obtidos e a livre decisão de participação do sujeito11.

Resultados

Dos 9.779 adultos entrevistados foram excluídos 836 por não terem utilizado os serviços odontológicos e/ou respondido à pergunta relacionada à variável dependente em análise, sendo assim, participaram desse estudo 8943 adultos, destes 14,9% (n = 1.426) mostraram-se insatisfeitos com os serviços odontológicos. A proporção de insatisfeitos com os serviços odontológicos nas capitais e nas cidades do interior, pelas regiões brasileiras, foram mais altas na Região Norte (15,3%), e menores na região Sul (10,0%) (Figura 1).

Figura 01
Proporção de indivíduos insatisfeitos com os serviços odontológicos utilizados, nas regiões brasileiras (municípios do interior) e nas capitais. Adultos participantes do Projeto SBBrasil 2010 (n=8943).

A análise descritiva das variáveis contextuais das bases de dados públicas relativa aos 177 municípios está apresentada na Tabela 1 e os dados descritivos individuais estão apresentados na Tabela 2. Identificou-se predomínio dos que se autodeclararam brancos; com maior escolaridade; que usaram serviços por motivo de problemas bucais; que estavam insatisfeitos com dentes e boca e daqueles com impacto das desordens bucais no desempenho diário.

Tabela 1
Análise descritiva das variáveis contextuais das bases de dados públicas n=177 (municípios).
Tabela 2
Análise descritiva e bivariada dos fatores associados à insatisfação com os serviços odontológicos entre adultos, Projeto SB BRASIL, 2010, n=8943.

Na análise bivariada (Tabela 2) observou-se que a maioria das variáveis individuais mostram-se associadas à insatisfação com os serviços odontológicos, exceto sexo, idade e uso de prótese.

No modelo múltiplo multinível ajustado, a chance de insatisfação com os serviços odontológicos foi maior para adultos que residiam em municípios com maior desigualdade social medida pelo coeficiente de Gini e com menor proporção de dentistas por habitante (variáveis contextuais). Entre as variáveis individuais, a insatisfação foi maior entre que se autodeclararam amarelos/negros/pardos/indígenas, entre os com menor escolaridade, os que consultaram-se por motivo de problemas bucais, entre os que estavam insatisfeitos com os dentes e boca e entre os que apresentaram impacto das desordens bucais no desempenho diário (Tabela 3).

Tabela 3
Análise múltipla multinível dos fatores associados à insatisfação com os serviços odontológicos entre adultos, Projeto SB BRASIL, 2010, n=8943.

Discussão

Esse estudo revelou que contextos de desigualdade social e menor relação dentista habitante apresentaram-se associados à maior insatisfação com os serviços odontológicos, o que merece destaque. Já no que tange às variáveis individuais, verificou-se maior chance de insatisfação entre os que se autodeclararam amarelos/negros/pardos/indígenas, os com menor escolaridade, os que se consultaram por problemas bucais, os que estavam insatisfeitos com os dentes e boca e os que apresentaram impacto bucal no desempenho diário.

A prevalência de 14,9% de insatisfação com serviços odontológicos para adultos brasileiros registrada nesse estudo merece atenção, ao se considerar menores prevalências em pesquisas prévias conduzidas entre brasileiros: entre idosos (3,7%)17 e (9,5%)18; entre pessoas com idade igual ou superior a 18 anos (9,0%)19; entre adultos da mesma faixa etária no Norte de Minas (10,8%)6. Sugere-se que as diferenças encontradas podem ser explicadas pelas faixas etárias estudadas e/ou regiões em que foram desenvolvidos os respectivos estudos. Entre adultos brasileiros participantes do SBBrasil 2003, verificou-se prevalência similar à de 2010 (14,3%)20. No panorama internacional, verificaram-se prevalências de insatisfação de 11% entre adultos do Reino Unido21; 11% na África do Sul22 e 19% entre adultos, por inquérito telefônico, na China23. Altas proporções de satisfação com os serviços odontológicos podem ser fruto do fenômeno conhecido como efeito de “elevação” das taxas de satisfação, reportado mesmo quando as experiências são negativas18.

A insatisfação com os serviços odontológicos apresentou distribuição que variou com o nível de desenvolvimento das regiões brasileiras, com menores proporções de insatisfação registradas nas regiões mais desenvolvidas: 10,0% no Sul e 10,2% no Centro-Oeste. Inversamente, as maiores proporções de insatisfação foram identificadas nas regiões menos desenvolvidas: 15,3% no Norte e 14,1% no Nordeste. Chama atenção a proporção de insatisfação entre residentes da região Sudeste, que apesar de contar com estados desenvolvidos, teve proporção de 14,4% de insatisfação. Apesar de ter encontrado associação com índice de Gini e insatisfação, quando verificada a insatisfação nos municípios do interior, verifica-se variações entre regiões menos e mais desenvolvidas.

Identificou-se maior chance de insatisfação com os serviços odontológicos entre adultos residentes em municípios com maior desigualdade social, pesquisa multinível antecedente, entre usuários do SUS de 62 municípios brasileiros, identificou que pessoas de municípios com menor renda per capita estavam mais insatisfeitas com os serviços de saúde24. Resultado esse que contradiz pesquisa prévia, que ao abordar considerações teórico-conceituais acerca de 56 estudos publicados na literatura nacional sobre satisfação, identificou associação entre maior grau de pobreza e maior satisfação25. Por outro lado, pesquisa anterior que utilizou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2003 e 2008, identificou que pessoas com melhores condições econômicas avaliaram o serviço odontológico como “muito/bom” e “bom”, tanto em 2003 quanto em 200826. Apesar do índice de Gini não medir renda e sim desigualdade de renda, verifica-se que no Brasil ocorreu queda significativa deste indicador na última década. Esse fenômeno pode ser explicado pela redução do desemprego, aliada ao aumento de rendimento dos trabalhadores e à política de incentivo à formalização7.

Averiguou-se maior chance de insatisfação com os serviços odontológicos entre adultos residentes em municípios com menor proporção de dentistas/habitantes, mesmo após controle pelas demais variáveis. A menor proporção de dentista na população, sugere menor oferta de assistência odontológica, o que pode resultar em menor acesso. A dificuldade de acesso pode gerar maior insatisfação na população como um todo. No Brasil, a oferta dos serviços é ainda bastante heterogênea, com maior concentração de profissionais nas regiões mais ricas11, atendendo mais as leis de mercado do que ao perfil das necessidades. Verificou-se, nesse estudo, que a proporção de dentistas por habitante foi significativamente menor em regiões em que a insatisfação foi maior (dados não mostrados), no caso Norte (20,1% de insatisfação e 0,38 dentistas/1000habitantes) e Nordeste (16,5% de insatisfação e 0,55 dentistas/1000habitantes), quando comparados com as regiões Sul (11,7% de insatisfação e 0,87 dentistas/1000habitantes) e Sudeste (15,5% de insatisfação e 0,90 dentistas/1000habitantes). A organização e ordenação dos recursos deve proporcionar oferta equânime do serviço pelo país, uma vez que apesar de ter uma grande proporção de dentistas no país, esses profissionais estão concentrados em regiões como Sul e Sudeste11. Assim, espera-se que a oferta de serviços odontológicos siga o perfil das necessidades da população, o que contribuirá com maior equidade na oferta de assistência à saúde bucal e, possivelmente, com o aumento das proporções de indivíduos satisfeitos com tais serviços.

Quanto aos determinantes primários individuais, esse estudo identificou que adultos que se autodeclararam amarelos/negros/pardos/indígena tiveram chance 12% maior de estarem insatisfeitos com os serviços odontológicos enquanto adultos menos escolarizados tiveram chance 14% maior. Devido à grande exclusão social ocorrida historicamente, pretos e pardos apresentam indicadores sociais desfavoráveis, o que gera diferenças significativas no acesso aos direitos básicos de educação e saúde, menor utilização dos serviços de saúde bucal27, além de piores condições normativas de saúde bucal já evidenciadas na literatura28. Dados da Pesquisa Mundial de Saúde (2003), conduzida em 21 países Europeus, identificou correlação positiva entre escolaridade e insatisfação29. Por outro lado, estudo prévio conduzido entre idosos participantes do Projeto SBBrasil 2003, identificou associação entre insatisfação e maior escolaridade17, resultado esse que diverge ao encontrado no presente estudo. Possivelmente essa situação seja mais frequente entre idosos do que entre adultos. Talvez menor grau de escolaridade pode gerar maior dificuldade no entendimento dos fatores relacionados ao serviço utilizado. Também pode haver falta de entendimento do tratamento realizado, bem como comunicação difícil entre usuário e profissional, que por sua vez, podem gerar maior insatisfação19. Resultado similar ao do presente estudo foi encontrado em uma pesquisa de base populacional, com amostra 781 usuários maiores de idade do interior de Minas Gerais, em que a insatisfação esteve associada à menor escolaridade19.

Quanto ao comportamento de saúde bucal, identificou-se que pessoas que apresentaram como motivo da consulta problemas bucais tiveram chance 23% de se mostrarem insatisfeitas. A educação em saúde é uma das estratégias importantes na prevenção de doenças, nesse sentido, o prestador de assistência tem papel fundamental em orientar o usuário sobre como evitar problemas bucais. Pesquisa prévia identificou a associação entre não receber informações sobre como evitar problemas bucais e insatisfação com os serviços odontológicos6,17. Assim como satisfação com os serviços odontológicos e receber informações sobre como evitar problemas bucais18.

Quanto às condições subjetivas de saúde bucal, identificou-se que pessoas insatisfeitas com os dentes e boca (OR = 2,3) e que relataram impacto das desordens bucais no desempenho diário (OR = 1,48) apresentaram maiores chances de insatisfação com os serviços odontológicos. Já foi observado que questões subjetivas, quando percebidas negativamente, têm impacto na insatisfação com os serviços odontológicos entre adultos6 e entre idosos6,17,19. A maior insatisfação, entre os adultos que apresentaram percepção negativa de sua condição bucal, revela a importância da visão dos usuários sobre sua própria saúde no momento em que avaliam a qualidade dos serviços de saúde utilizados2,4. É interessante observar que a avaliação dos serviços foi afetada por variáveis de autopercepção, mas não por variáveis normativas de saúde bucal. Resultado semelhante já foi verificado na literatura6.

Convém comentar ainda, que no modelo múltiplo final, o tipo de serviços utilizado (SUS versus outros) não se revelou associado à insatisfação com os serviços odontológicos e pode evidenciar que os serviços públicos estão em consonância com os privados em termos da satisfação alcançada. Este achado já havia sido observado6. Entre idosos, outro estudo verificou maior satisfação com serviços odontológicos entre usuários do SUS18. Esses achados podem indicar efeitos positivos das estratégicas públicas de assistência em saúde bucal criadas nos últimos anos através do Brasil Sorridente.

Ressalta-se que o processo da avaliação de serviços odontológicos na perspectiva dos usuários e as variáveis pesquisadas é mutável, portanto, causas e efeitos certamente variam ao longo da prestação de serviço que é dada e as distintas políticas envolvidas. Portanto, sendo este um estudo seccional, que não permite estabelecer a relação temporal entre as associações observadas, a interpretação dos achados é limitada. Por outro lado, destaca-se o fato de se tratar de um estudo da população adulta brasileira, o que reflete o estado dessa população e também pode refletir o impacto das políticas de saúde bucal, preconizadas pela OMS que o Brasil vem desenvolvendo. Ademais, poderá nortear para previsões de necessidades futuras para os idosos brasileiros. Um destaque do presente estudo é a análise multinível, que utilizou dados contextuais para explicação de um desfecho de saúde bucal e sua interação com variáveis individuais.

Conclusão

A implementação ou adequação de políticas públicas com o intuito de melhorar a satisfação com os serviços odontológicos deve priorizar os municípios com maior desigualdade social e aqueles carentes de dentistas. Concomitantemente, é necessário que tais políticas que possam priorizar os socialmente desfavorecidos; bem como aqueles que autopercebem problemas bucais; aqueles que se encontram insatisfeitos com sua saúde bucal; e aqueles com impactos decorrentes dos problemas bucais. A oferta dos serviços de saúde bucal é ainda heterogênea no país, com maior concentração de profissionais nas regiões mais ricas (Sul e Sudeste). É necessário que a distribuição dos serviços de saúde bucal no país siga as demandas da população, contribuindo no alcance de maior equidade na oferta e uso dos serviços de saúde bucal e, consequentemente, atingindo aumento das proporções de indivíduos satisfeitos com tais serviços.

Agradecimentos

Danilo Lima Carreiro é bolsista de doutorado da Capes. Andréa Maria Eleutério de Barros Lima Martins é bolsista de Pós Doutorado Júnior do CNPQ. Desirée Sant Ana Haikal é bolsista de produtividade da Fapemig.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2016
  • Revisado
    26 Jan 2017
  • Aceito
    28 Jan 2017
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