Acessibilidade / Reportar erro

Saúde de lésbicas: experiências do cuidado das enfermeiras da atenção básica

Resumo

As lésbicas se deparam com inúmeras barreiras nos serviços de saúde e vivenciam experiências de preconceito, estigmatização e invisibilização de suas demandas de saúde. Neste artigo, buscou-se compreender os sentidos atribuídos por enfermeiras da atenção básica às práticas de cuidado em saúde com lésbicas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada com 15 enfermeiras que atuavam na atenção básica de Teresina, Piauí. A análise foi pautada no referencial teórico de habitus, campo e violência simbólica de Pierre Bourdieu. Observou-se que as práticas das enfermeiras no campo da atenção básica seguem protocolos heteronormativos. Portanto, é essencial que essas enfermeiras possam desenvolver outros habitus, a fim de garantir diferentes formas de identidades dentro dos serviços de saúde.

Palavras-chave:
Lésbicas; Minorias sexuais e de gênero; Atenção integral à saúde da mulher; Enfermagem

Abstract

Lesbians face many barriers in health services, and experience prejudice, stigmatization and the invisibility of their health demands. This article aimed at understanding the meanings attributed by primary care nurses to health care practices directed at lesbians. This is a qualitative research carried out with 15 nurses who worked in primary care in Teresina, Piauí. The analysis was based on Pierre Bourdieu’s theoretical framework of habitus, field and symbolic violence. It was observed that the practices of nurses in the field of primary care follow heteronormative protocols. Therefore, it is essential that these nurses develop other habitus, aiming to guarantee different types of identities within the health services.

Key words:
Lesbians; Sexual and gender minorities; Integral attention to women’s health; Nursing

Introdução

As populações LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) têm sofrido discriminações, constrangimentos e violências nos serviços de saúde em razão de sua orientação sexual e identidade de gênero. Ocorre que o processo saúde-adoecimento-cuidado é influenciado por diversos determinantes de saúde, que podem determinar e/ou afetar a saúde de alguns grupos11 Carrapato P, Correia P, Garcia B. Determinante da saúde no Brasil: a procura da equidade na saúde. Saude Soc 2017; 26(3):676-689., e a orientação sexual não normativa é reconhecida como um determinante social de saúde no Brasil22 Fernandes M, Soler LD, Leite MCBP. Saúde das mulheres lésbicas e atenção à saúde: nem integralidade, nem equidade diante das invisibilidades. BIS Bol Inst Saude 2018; 19(2):37-46..

Lésbicas, por exemplo, se deparam com inúmeras barreiras nos serviços de saúde e vivenciam experiências de preconceito, estigmatização e invisibilização de suas demandas de saúde33 Soinio JII, Paavilainen E, Kylmä JPO. Lesbian and bisexual women's experiences of health care: "Do not say, 'husband', say, 'spouse'". J Clin Nurs 2020; 29(1-2):94-106.. Essas barreiras geralmente estão relacionadas à perpetuação da lógica binária e heteronormativa, que pressupõe que todas as mulheres são heterossexuais, não valorizando/reconhecendo as diferentes vivências, práticas e formas de expressar a sexualidade44 Della Pelle C, Cerratti F, Di Giovanni P, Cipollone F, Cicolini G. Attitudes towards and knowledge about lesbian, gay, bisexual, and transgender patients among Italian nurses: an observational study. J Nurs Scholarsh 2018; 50(4):367-374..

Apesar dos avanços desde a publicação da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT, em 2011, ainda existem fragilidades na formação de profissionais de saúde, com foco específico na diversidade sexual e de gênero, bem como nas interseccionalidades (raça/etnia, classe, gênero, geração, entre outras) que permeiam o processo de saúde-adoecimento-cuidado das lésbicas55 Araújo LM, Penna LHG, Carinhanha JI, Costa CMA. O cuidado às mulheres lésbicas no campo da saúde sexual e reprodutiva. Rev enferm UERJ 2019; 27:e34262. e que comprometem tanto o acesso quanto o cuidado prestado.

Com isso, as práticas das equipes de enfermagem que compõem a atenção básica, a principal porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS), devem ser condizentes com o modelo assistencial centrado no cuidado integral e humanizado. Desse modo, a atenção básica pode ser vista como uma arena privilegiada para a materialização de práticas pautadas na integralidade e na equidade, principalmente no que diz respeito ao cuidado de grupos mais vulneráveis66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: MS; 2017.. Com base nessas considerações, a pesquisa buscou compreender os sentidos atribuídos por enfermeiras da atenção básica às práticas de cuidado em saúde com lésbicas em Teresina, Piauí.

Percurso metodológico

Trata-se de uma pesquisa descritivo-exploratório de natureza qualitativa e o método escolhido foi o de interpretação de sentidos, já que o estudo buscou compreender os sentidos atribuídos pelas enfermeiras da atenção básica no cuidado voltado à saúde de lésbicas, levando em consideração suas realidades, seus ambientes de trabalho e as relações ali estabelecidas77 Gomes R. Análise e intepretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. p. 72-95..

Os cenários do estudo foram sete Unidades Básicas de Saúde (UBS) que compõem a atenção básica de Teresina, capital do Piauí. Participaram da pesquisa 15 enfermeiras das UBS selecionadas por critério de acesso, que concordaram voluntariamente em participar do estudo. Foram excluídos profissionais que estavam afastados por motivo de férias, licença ou atestado de saúde no momento da produção dos dados.

A produção dos dados foi realizada no local de atuação das participantes em janeiro de 2021, de forma individualizada, por meio da técnica de entrevista narrativa88 Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002., utilizando um roteiro semiestruturado e um questionário para obtenção de dados sociodemográficos e informações sobre percursos formativos e profissionais das participantes. As narrativas das enfermeiras foram gravadas e posteriormente transcritas.

Em relação à interpretação das narrativas, foram percorridos os seguintes passos: (a) leitura compreensiva do material; (b) identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas nos materiais; (c) busca de sentidos mais amplos (socioculturais), subjacentes às falas e às ações dos sujeitos da pesquisa; e (d) elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos77 Gomes R. Análise e intepretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. p. 72-95.. Utilizou-se também na organização e análise dos dados o software NVivo, principalmente na classificação dos dados e na identificação das categorias temáticas (códigos).

O estudo seguiu as recomendações e diretrizes éticas e legais necessárias à boa prática de pesquisa, de acordo com as resoluções CNS 466/201299 Brasil. Resolução nº 466 do Conselho Nacional de Saúde, de 12 de dezembro de 2012. Diário oficial da União 2012; 13 dez. e 510/20161010 Brasil. Resolução nº 510 do Conselho Nacional de Saúde, de 7 de abril de 2016. Diário Oficial da União 2016; 8 abr., e foi aprovada sob o parecer nº 4.277.719 na Plataforma Brasil. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os nomes reais das enfermeiras foram alterados por nomes fictícios.

O processo analítico se deu a partir do referencial teórico de habitus, campo e violência simbólica de Pierre Bourdieu. Este autor aborda a noção de campo entendendo-o como um espaço que possui um conjunto de normas, regras e esquemas de classificação específicos, e é hierarquizado de acordo com a distribuição desigual dos diversos tipos de capital entre seus agentes1111 Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998.. Já o habitus é definido como os conhecimentos e disposições incorporados pelos agentes ao longo do processo de aprendizado, resultante do contato com as diversas estruturas sociais1212 Bourdieu P, Passeron JC. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1992.. Habitus e campo são dialeticamente relacionados e a dinâmica do campo social implica o exercício da violência simbólica por parte dos que têm melhores posições, tanto para a imposição quanto para a legitimação de seus interesses. E violência simbólica é aquela eufemizada, branda e invisível, forjada pelas relações sociais1111 Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998..

A escolha desse aporte teórico ocorreu porque acredita-se que as enfermeiras da atenção básica são responsáveis pela detenção do poder no campo de atuação e utilizam tal poder para se legitimar e empregar a soberania sobre diferentes agentes sociais, perpassando o exercício da violência simbólica e de vários habitus1313 Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999..

Resultados e discussões

No conjunto de dados analisados, afiguram-se cinco categorias de análise: Conhecendo as enfermeiras da atenção básica de Teresina, Piauí; Concepções das enfermeiras sobre orientação sexual; Atenção à saúde de lésbicas: da invisibilidade à falsa igualdade; Consulta ginecológica de enfermagem e a heteronormatividade das práticas; Conhecimentos sobre as políticas de saúde voltadas para as lésbicas; e Formação de enfermagem para atenção à saúde de lésbicas.

Conhecendo as enfermeiras da atenção básica de Teresina, Piauí

Quanto às 15 enfermeiras entrevistadas, observa-se que, em termos sociodemográficos, há predomínio de mulheres cisgêneras (100%), heterossexuais (100%) e católicas (73%), situadas na faixa etária de 41 a 50 anos (40%).

As participantes possuem uma vasta experiência no campo da atenção básica, já que a maioria tem mais de dez anos de atuação. Em relação à capacitação profissional, identificou-se que as enfermeiras apresentam um percurso formativo voltado para a saúde coletiva. A maioria das participantes tinha ao menos duas pós-graduações lato sensu, sendo a especialização em Saúde da Família predominante entre as participantes, com 87% da amostra, seguida de Saúde Pública, com 20%. Uma participante relatou possuir pós-graduação lato sensu em Saúde da Mulher, e outra mestrado em Enfermagem, na área de sexualidade.

Concepções das enfermeiras sobre orientação sexual

Duas concepções destacam-se nessa temática: a falta de conhecimento sobre as questões de gênero e sexualidade, e o habitus heteronormativo e binário, impregnado de moralidades e visões sexistas. O conhecimento dos conceitos de sexo, gênero e sexualidade no campo da saúde possibilita uma abertura de debates. Quando as enfermeiras foram questionadas a respeito do que entendem por orientação sexual, os sentidos foram construídos de forma simplória, e apontaram para uma escolha meramente marcada pelas preferências sexuais. Todavia, também foi possível perceber dúvidas e contradições, como evidenciadas nas narrativas em destaque: Nossa, agora você me pegou. É difícil, é sobre as parcerias sexuais (Brenda, 45 anos). Lá vem a confusão (risos) ai, ai... Orientação sexual é o sexo que você é atraído por ele, né isso? Com quem você tem relação sexual (Carmélia, 32 anos).

A orientação sexual diz respeito aos “sentimentos, atração, desejo, fantasias, apegos emocionais, vínculos interpessoais e relacionamentos fundamentais” de cada pessoa1414 Brasil. Ministério da Educação (MEC). Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais. Brasília: MEC; 2009. (p. 108). Ou seja, trata-se de um conceito amplo, que incute a própria existência humana. Contudo, as participantes se mostram pouco abertas para falar sobre a temática, assinalando, seja por risos ou ressalvas iniciais, que se tratava de uma temática “difícil” e “confusa”, restringindo a orientação sexual às parcerias e preferências sexuais.

Outro ponto importante foi a confusão entre orientação sexual e identidade de gênero. Quando algumas enfermeiras estavam narrando seus conhecimentos sobre orientação sexual, e apesar da existência de mulheres transexuais lésbicas, trouxeram relatos próprios das vivências de travestis e pessoas trans:

[...] eles não queriam ser chamados pelos nomes deles de registro, e eles queriam ser chamados pelo nome social, eles queriam ser tratados com... ele dizia “ela”, e não aceitava dizer “ele” [...]. É isso a orientação sexual, né? (Inácia, 41 anos).

A fala de Inácia mostrou que os conceitos de orientação sexual e identidade de gênero são pouco conhecidos pelas participantes, chegando a gerar confusão não só teórica, mas prática, acerca da realidade. Essa situação também foi apontada em outros estudos nacionais e internacionais1515 Ferreira BO, Bonan C. Vários tons de "não": relatos de profissionais da Atenção Básica na assistência de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT). Interface (Botucatu) 2021; 25:e200327.-1616 Kamen CS, Alpert A, Margolies L, Griggs JJ, Darbes L, Smith-Stoner M, Lytle M, Poteat T, Scout N, Norton SA. "Treat us with dignity": a qualitative study of the experiences and recommendations of lesbian, gay, bisexual, transgender, and queer (LGBTQ) patients with cancer. Support Care Cancer 2019; 27(7):2525-2532..

Quando as enfermeiras foram questionadas a respeito de suas experiências no cotidiano da unidade de saúde, o termo “mulheres que fazem sexo com mulheres” apareceu algumas vezes. Esse termo tem sido fonte de conflitos e divergências, especialmente pelo lugar político engendrado pelos movimentos sociais nas arenas de disputa1717 Barbosa RM, Facchini R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(Supl. 2):s291-s300.. Contudo, para Silva1818 Silva AN. Políticas Públicas de Saúde Voltadas as lésbicas: Analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021., o uso do termo “mulher que faz sexo com mulher” nos serviços de saúde pode favorecer o reconhecimento das demandas e especificidades das lésbicas, possibilitar o estabelecimento de vínculo e fortalecer a relação de cuidado. A partir do uso do termo, considera-se também uma estratégia de aproximação das lésbicas com os serviços de saúde. Carmélia (32 anos) pontuou, por exemplo, acho que tem mulheres que fazem sexo com mulheres, isso é orientação sexual que eu entendo.

No que se refere às tentativas de compreender as homossexualidades ou como são percebidas pelas enfermeiras, encontrou-se várias narrativas incluindo o fator genético, o abuso sexual, as experiências afetivo-sexuais anteriores negativas e até mesmo a influência da mídia:

[...] aqui tem, aqui tem até criança que você vê de longe, você já vê e sabe! (Vânia, 59 anos).

[...] o que me preocupa é essa influência no início do adolescer que leva o adolescente a ter uma identidade sexual que talvez não seja dele [...] (Paula, 70 anos).

[...] ela tinha essa dor de lidar com essa homossexualidade, é uma pessoa que tinha uma história de vida de abuso. Quando você vai ver as histórias da homossexualidade, quando não é hoje a influência da mídia, não sei de quê, não sei de quê mais lá, né? Mas tinha a influência, tinha a coisa da história familiar mesmo de abuso, né? (Paula, 70 anos).

[...] inclusive uma dessas meninas, ela já foi casada, já tinha… eu conhecia até o marido dela, o marido dela também vinha aqui, sabe, aí depois é que o marido dela andou namorando com outra pessoa, aí ela ficou com raiva e arranjou essa namorada [...] (Maria, 67 anos).

A partir das narrativas acima, Foucault1919 Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2017. argumenta como as sexualidades têm sido estruturadas em um quadro social “punitivo” nas sociedades ocidentais, e como as relações de poder estão entranhadas em sua construção. Rubin2020 Rubin G. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: Rubin G. Deviations. London: Duke University Press; 2011. p. 137-181. ressalta a necessidade de ruptura com um modelo de “hierarquização do sexo”, em que existe uma tendência dos dispositivos de controle social a dividirem a sexualidade em “boa” ou “má”. Dessa forma, a partir dos relatos, as pessoas que não se enquadram em padrões vigentes de feminilidade ou masculinidade são fortemente identificadas como desviantes da norma, conforme identificado também em outras pesquisas2121 Araujo LM, Penna LHG. A relação entre sexo, identidades sexual e de gênero no campo da saúde da mulher. Rev Enferm UERJ 2014; 22(1):134-138.-2222 Rios PPS, Dias AF, Brazão JPG. "As brincadeiras denunciavam que eu era uma criança viada": o gênero "fabricado" na infância. Rev Edu Questao 2019; 57(54):e-18651..

O estudo de Toledo et al.2323 Toledo LG, Teixeira Filho FS. Lesbianidades e as referências legitimadoras da sexualidade. Estud Pesqui Psicol 2010; 10(3):729-749. afirma que os estigmas mais frequentes para justificar a homossexualidade feminina são: a hipótese sobre a frustração amorosa com um homem infiel ou que feriu física ou sentimentalmente a companheira; abuso sexual tanto na infância como na vida adulta; e, por último, a proposição da mulher pouco atraente para o padrão de feminilidade imposto pela sociedade. Todas as suposições para a origem da existência das experiências lésbicas se pautam na figura do homem, e não no autêntico desejo afetivo-sexual de uma mulher por outra.

Compreender e desmistificar questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero torna-se essencial para que seja ofertado um cuidado livre de estigmas e preconceitos. Esses temas, somados aos marcadores de raça, etnia, classe, geração, regionalidade e outros, colaboram para dificultar o acesso à saúde dessas mulheres que vivem sob contexto de diversas vulnerabilidades, e que pode se traduzir na violência simbólica disposta no campo das instituições de saúde.

Atenção à saúde das mulheres lésbicas: da invisibilidade à falsa igualdade

Com base nas entrevistas, a presença do habitus heteronormativo na produção de cuidados às lésbicas na atenção básica se reproduz em ações roteirizadas, de forma generalizada e naturalizada pelas presunções de uma heterossexualidade próprias das relações nos serviços de saúde. Observou-se o apagamento da existência dessas mulheres quando as enfermeiras foram questionadas sobre suas experiências no atendimento em saúde:

Eu não tive experiências até o momento de pegar pacientes que tenham preferência sexual diferente da heterossexual, né? (Antônia, 35 anos).

Assim, eu devo ter atendido, mas eu não lembro assim de uma pessoa específica para te dizer, não (Carmélia, 32 anos).

Não! Nunca tive experiência dela relatar isso para mim (Clarice, 27 anos).

Eu não tenho experiência, né? Se alguma com orientação homossexual já me veio, não falou ou não foi levado em conta, né? (Regina, 43 anos).

Corroborando as narrativas, outros estudos apontam que a baixa procura ou o não reconhecimento das experiências lésbicas dentro dos serviços de saúde pode estar relacionado à não divulgação da orientação sexual, à presunção da heterossexualidade, à falta de conhecimento das enfermeiras sobre diversidade sexual e de gênero, bem como a ambientes discriminatórios33 Soinio JII, Paavilainen E, Kylmä JPO. Lesbian and bisexual women's experiences of health care: "Do not say, 'husband', say, 'spouse'". J Clin Nurs 2020; 29(1-2):94-106.,55 Araújo LM, Penna LHG, Carinhanha JI, Costa CMA. O cuidado às mulheres lésbicas no campo da saúde sexual e reprodutiva. Rev enferm UERJ 2019; 27:e34262..

As enfermeiras também responsabilizaram as próprias lésbicas pela omissão da orientação sexual e a baixa demanda na procura de cuidados, e segundo suas percepções, as lésbicas têm dificuldade de se autoaceitar como lésbicas, além do medo, do preconceito e da vergonha, conforme observado abaixo:

[...] às vezes a pessoa tem dificuldade para se autoaceitar, dificuldade de assumir perante a sociedade [...] (Brenda, 45 anos).

[...] eu sinto que elas ainda sentem vergonha, se sentem envergonhadas de falar abertamente, né? Que uma vive com a outra (Juliana, 57 anos).

[...] não tem pacientes que se identifiquem. Elas não falam com medo das pessoas saber... dos ACS [agentes comunitários de saúde] falarem no território (Regina, 43 anos).

A decisão de procurar os serviços de saúde, revelando sua orientação sexual, pode se relacionar a diversas questões individuais e coletivas de lésbicas e dos serviços de saúde, e precisam ser compreendidas nas dimensões relacionais, institucionais, simbólicas e sociais. Esse complexo de fatores, dinâmicos e imbricados, podem contribuir para a compreensão das desigualdades de saúde e seus mecanismos no cotidiano das ações1818 Silva AN. Políticas Públicas de Saúde Voltadas as lésbicas: Analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021..

Um dado importante observado nas falas das enfermeiras é o não reconhecimento de que o próprio preconceito e a discriminação de profissionais são barreiras que distanciam as lésbicas dos serviços de saúde, impedindo-as de criarem vínculos e de terem a garantia de atendimento às suas demandas.

O conceito de igualdade esteve presente nas narrativas das enfermeiras. Contudo, a perspectiva de “tratar todas iguais” pode promover o apagamento das especificidades de saúde das lésbicas, bem como o não entendimento e aplicabilidade do princípio da equidade:

[...] para mim, a mulher sendo lésbica ou ela sendo hetero, ela precisa ter os mesmos cuidados relacionados à saúde, entendeu? (Carmélia, 32 anos).

É como eu vou te falar, para mim, são pessoas que são vistas como qualquer outra pessoa [...] (Luiza, 47 anos).

É perceptível nas falas das enfermeiras uma grande preocupação de se mostrarem éticas e respeitosas nas práticas desenvolvidas, entretanto, tais discursos também podem ser vistos como uma forma compensatória de negar o preconceito e o estigma escondidos por trás de uma narrativa de igualdade1515 Ferreira BO, Bonan C. Vários tons de "não": relatos de profissionais da Atenção Básica na assistência de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT). Interface (Botucatu) 2021; 25:e200327.,2424 Ferreira BO, Pedrosa JIS, Nascimento EF. Diversidade de gênero e acesso ao Sistema Único de Saúde. Rev Bras Promoç Saude 2018; 31(1):1-10..

Na concepção teórica de Bourdieu1313 Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999., o discurso de “não diferença” se traduz em invisibilização e desatenção às singularidades e especificidades de saúde das lésbicas, contribuindo com o processo de exclusão dessas mulheres nos serviços de saúde, e promovendo a perpetuação da violência simbólica no campo da atenção básica.

Silva et al.2525 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5351-5360. mostram que o habitus heteronormativo, presente nas práticas de saúde, leva profissionais de saúde a realizarem a produção dos cuidados voltada para as lésbicas como se elas fossem heterossexuais. Isso tanto pode levar à ideia da naturalização da heterossexualidade que pensa a existência lésbica como desviante, quanto o não reconhecimento de vivências sexuais e de gênero plurais, como as das lésbicas.

Sposati2626 Sposati A. Exclusão social abaixo da linha do Equador. In: Verás MPB, organizador. Por uma sociologia da exclusão social: o debate com Serge Paugam. São Paulo: Editora Educ; 1999. afirma que “a noção de igualdade só se completa se compartilhada à noção de equidade’’ (p. 128). Não basta um padrão universal se este não comportar o direito à diferença. A equidade é compreendida como um fator essencial para a justiça social, considerando o contexto de desigualdades sociais no qual a atenção básica se encontra inserida2727 Albrecht CAM, Rosa RS, Bordin RO. Conceito de equidade na produção científica em saúde: uma revisão. Saude Soci 2016; 26(1):115-128.. Dessa forma, a promoção da equidade não está relacionada apenas ao acesso aos serviços, mas ao cuidado sensível às necessidades e vulnerabilidades de cada mulher, valorizando a influência das relações de gênero, idade, raça/cor, classe social, orientação sexual e outras intersecções que permeiam o processo saúde-adoecimento-cuidado.

Outro aspecto retratado em menor proporção foram os problemas de cunho psicológico nas demandas de saúde apresentadas pelas lésbicas. As enfermeiras apontaram dois motivos para o desenvolvimento de doenças mentais: a não aceitação da identidade lésbica e as situações de preconceitos e discriminação vivenciadas por essas mulheres, como pode ser evidenciado nos discursos a seguir:

[...] eu acho que ainda tem muito preconceito entre elas, e isso gera entre elas até um certo transtorno mental (Inácia, 41 anos).

[...] Eu acho que se tivesse, assim, uma ajuda psicológica elas viveriam melhor, entendeu? Porque o que eu observo é isso, elas têm até dificuldade de falar pra gente (Maria, 67 anos).

[...] na minha experiência, é mais uma questão emocional mesmo (Paula, 70 anos).

Nas narrativas, nota-se que as enfermeiras correlacionam às doenças mentais o preconceito que as próprias lésbicas têm de expressar e viver sua identidade lésbica. Apontam também que a dificuldade de viver num mundo preconceituoso pode influenciar no sofrimento psicológico, sugerindo a necessidade de cuidado especializado em saúde mental. Pesquisas evidenciaram que a saúde mental das lésbicas é comprometida por vários fatores ligados à lesbofobia internalizada, preconceitos familiar e social, regras sociais heteronormativas, estigmas, processos de exclusão e rejeição social, que as levam, por vezes, à depressão, à ansiedade, ao uso abusivo de substâncias e até mesmo ao suicídio. Não obstante, essas associações não podem incorrer num habitus psicopatologizante das vivências lésbicas em uma sociedade sexista, machista e lesbofóbica2323 Toledo LG, Teixeira Filho FS. Lesbianidades e as referências legitimadoras da sexualidade. Estud Pesqui Psicol 2010; 10(3):729-749.,2828 Santos JS, Silva RN, Ferreira MA. Health of the LGBTI+ Population in Primary Health Care and the Insertion of Nursing. Esc Anna Nery 2019; 23(4):e20190162.

29 St Pierre M. Lesbian disclosure and health care seeking in the United States: A replication study. J Lesbian Stud 2018; 22(1):102-115.
-3030 Guimarães AN, Marqui GDS, Brum MLB, Vendruscolo C, Werner JM, Zanatta EA. Narratives of young people on same-sex relationships about their path and implications for mental health. Esc Anna Nery 2019; 23(1):e20180240..

Estudos apontam que a enfermagem precisa desenvolver práticas acolhedoras, que demonstrem abertura, respeito e compreensão para com as lésbicas e suas demandas de saúde. Para que as práticas de enfermagem sejam mais inclusivas em relação às necessidades dessas mulheres, é necessário compreender e valorizar as questões em torno dos medos associados à revelação da orientação sexual, às violências e ao assédio3131 Mccann E, Sharek D. Challenges to and opportunities for improving mental health services for lesbian, gay, bisexual, and transgender people in Ireland: a narrative account. Int J Ment Health Nurse 2014; 23(6):525-533..

Levantou-se também neste estudo questões relacionadas ao risco e à vulnerabilidade das lésbicas às infecções sexualmente transmissíveis (IST). Profissionais de saúde relataram que a maioria das lésbicas acredita que não há necessidade do uso de preservativo nas relações sexuais, e o não uso pode ser justificado pela falsa percepção dessas mulheres de serem imunes às IST e também por acharem desnecessário já que não há risco de gravidez55 Araújo LM, Penna LHG, Carinhanha JI, Costa CMA. O cuidado às mulheres lésbicas no campo da saúde sexual e reprodutiva. Rev enferm UERJ 2019; 27:e34262.,3232 Fernandes NFS, Galvão JR, Assis MMA, Almeida PF, Santos AM. Acesso ao exame citológico do colo do útero em região de saúde: mulheres invisíveis e corpos vulneráveis. Cad Saude Publica 2019; 35(10):e00234618.. Corroborando os estudos citados, essa perspectiva também pode ser observada nas falas das enfermeiras entrevistadas, conforme trechos abaixo:

Ela estava com IST. E eu ofereci preservativo, e ela disse: “mas eu não uso, mas eu não tenho relação com homem” (Fernanda, 52 anos).

[...] ela não tem esse risco de engravidar, então nesse sentido termina até que tem um descuido com relação ao uso de preservativo, que não fazem uso de preservativo, não há nenhum relato de uso de preservativo [...] (Geovana, 49 anos).

A tendência de menor uso dos métodos de barreira na proteção de IST entre lésbicas é bastante preocupante e, somada ao fato de que as orientações de saúde sobre prevenção geralmente são voltadas para as práticas heterossexuais - devido à própria estrutura institucional dos serviços de saúde, que são demarcadas por esse habitus heteronormativo -, gera um processo de invisibilização das necessidades de saúde sexual dessas mulheres. Destaca-se, ainda, a carência de conhecimento das enfermeiras sobre as múltiplas possibilidades de práticas sexuais. Os relatos de Clarice e Antônia reforçam essa perspectiva:

Aí a gente até peca um pouco nessa questão, nessa falha, né? De também orientar que no sexo da mulher com mulher também pode ser transmitido [IST], entendeu? (Clarice, 27 anos).

[...] acho que nem a gente mesmo sabe para passar informações sobre as IST nesses casos [...] (Antônia, 35 anos).

Para a prevenção de ISTs em lésbicas, é sabido que os métodos existentes não foram criados ou pensados especificamente para as práticas sexuais delas, uma vez que a maioria dos meios de prevenção seriam adaptações de métodos já existentes, ou adaptações de itens que originalmente seriam utilizados com outras finalidades (plástico filme de PVC, luvas cirúrgicas, barreira de látex de uso odontológico e outros). A ausência de métodos específicos pode ser interpretada como uma falta de interesse e investimento em pesquisas sobre as práticas sexuais de lésbicas, reiterando o lugar do risco e da vulnerabilidade às IST entre lésbicas3333 Lima MAS, Saldanha AAW. (In)visibilidade lésbica na saúde: análise de fatores de vulnerabilidade no cuidado em saúde sexual de lésbicas. Psicol Cienc Prof 2020; 40:e202845.,3434 Rufino AC, Madeiro A, Trinidad A, Santos R, Freitas I. Práticas sexuais e cuidados em saúde de mulheres que fazem sexo com mulheres: 2013-2014. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(4):e2017499.

A invisibilização das mulheres lésbicas no campo da atenção básica é uma questão importante a ser discutida, já que sua perpetuação constitui uma violência simbólica1313 Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.. Nessa categoria, é possível perceber essa violência materializada na presunção da heterossexualidade, na ausência de espaço para a discussão da sexualidade e do prazer das lésbicas e na escassez de métodos para a prevenção de IST.

Consulta ginecológica de enfermagem e a heteronormatividade das práticas

Durante as consultas ginecológicas, as enfermeiras pouco relataram suas experiências com as lésbicas, entretanto, uma delas apontou que não há diferença no atendimento dessas mulheres, fazendo uma correlação com questões físicas do próprio corpo feminino:

A anatomia da mulher lésbica é igual à nossa, não tem diferença. Faço a prevenção do mesmo jeito (Vânia, 59 anos).

É importante o reconhecimento das enfermeiras sobre a necessidade de realização do Papanicolaou como estratégia de prevenção do câncer do colo do útero, já que esse é um dos cânceres mais prevalentes em países em desenvolvimento. Entretanto, pode-se perceber no relato de Vânia a falsa ideia de igualdade e a não abordagem das especificidades de cada mulher. Estudos apontam algumas experiências negativas vivenciadas pelas lésbicas durante esses procedimentos, tais como: desconforto e/ou dor durante a realização de exames ginecológicos, silenciamento de suas práticas sexuais2424 Ferreira BO, Pedrosa JIS, Nascimento EF. Diversidade de gênero e acesso ao Sistema Único de Saúde. Rev Bras Promoç Saude 2018; 31(1):1-10.,3232 Fernandes NFS, Galvão JR, Assis MMA, Almeida PF, Santos AM. Acesso ao exame citológico do colo do útero em região de saúde: mulheres invisíveis e corpos vulneráveis. Cad Saude Publica 2019; 35(10):e00234618., ausência de acolhimento que permita escuta qualificada de suas vivências3535 Mosack KE, Brouwer AM, Petroll AE. Sexual identity, identity disclosure, and health care experiences: is there evidence for differential homophobia in primary care practice? Womens Health Issues 2013; 23(6):e341-e346. e dificuldades na formação de vínculos2020 Rubin G. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: Rubin G. Deviations. London: Duke University Press; 2011. p. 137-181..

As consultas ginecológicas de enfermagem no campo da atenção básica obedecem a um verdadeiro ritual, que compreende quase sempre duas etapas: 1) preenchimento da ficha do Sistema de Informação do Câncer (Siscan), onde é realizada a anamnese; 2. realização do exame de prevenção do câncer do colo do útero propriamente dito. Quase todas as enfermeiras descreveram a consulta dessa forma, como se observa no relato de Inácia:

A gente preenche aquela ficha, tem uma ficha própria para a realização da citologia, ela já tem alguns itens clínicos, a data da última menstruação, se ela tem algum tipo de sangramento, menopausa. É uma ficha voltada muito para pesquisa mesmo do rastreamento do câncer. E aí a gente vai perguntando “Você tem histórico?” antes de levar a paciente para sala em que a gente faz a coleta (Inácia, 41 anos).

Segundo Silva et al.2525 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5351-5360., o habitus heteronormativo nas práticas de cuidado, proveniente também da formação tecnicista e biologicista, que produz uma consulta demarcada pela relação de saber e poder, em que as enfermeiras se mostram como detentoras de capital científico, impondo suas práticas assistenciais e desvalorizando as vivências dessas mulheres, mesmo diante das demandas e especificidades apresentadas pelas lésbicas, contribui para o apagamento de sua existência.

Na mesma direção, com relação à abordagem das práticas sexuais nas consultas ginecológicas de enfermagem, observou-se nas narrativas das enfermeiras que as práticas sexuais não são abordadas dialogicamente, e quando são, é observado o caráter heteronormativo das práticas, acentuando um apagamento das múltiplas possibilidades de viver e expressar a sexualidade. Como pode ser evidenciado nas falas a seguir:

[...] não vou mentir, eu não abordo, não, assim relacionado à sexualidade que você diz é pergunta em relação se a pessoa é heterossexual ou homossexual, isso eu não pergunto, o que eu posso perguntar é em relação ao uso de preservativo nas relações sexuais, se a questão da multiplicidade de parceiros, a orientação quanto às doenças sexualmente transmissíveis, isso sim (Carmélia, 32 anos).

Faço sim, eu pergunto quantos parceiros, até por conta do HIV e das DST. Eu faço isso aí, eu sempre fiz (Vânia, 59 anos).

Partindo do pressuposto que a consulta deve ser norteada pela declaração das práticas sexuais e não pela suposição dessas, já que a lésbica tem o livre arbítrio de revelar ou não sua orientação sexual, as enfermeiras devem considerar as diversas possibilidades de prevenção e condutas para cada uma das práticas sexuais informadas. Porém, a não abordagem da sexualidade durante o processo de formação/capacitação em saúde para um cuidado pautado no modelo heterossexual contribui para a persistência do habitus heteronormativo que se traduz em violência simbólica.

Conhecimentos sobre as políticas de saúde voltadas para as mulheres lésbicas

Ao buscarmos o conhecimento das enfermeiras acerca das políticas de saúde voltadas às lésbicas, o desconhecimento aparece na maioria das falas, como mostram os relatos:

Não! Se existe? Acredito que até exista. Não sei (Luiza, 47 anos).

[...] as políticas são meio esquecidas também, não tem ações voltadas também. Acho que tem que ter mais (Clarice, 27 anos).

O desconhecimento das políticas públicas tem relação com a ausência dessa discussão nos processos de formação1818 Silva AN. Políticas Públicas de Saúde Voltadas as lésbicas: Analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021.. Essa fragilidade se traduz na interface entre a violência simbólica1313 Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. e o acesso das lésbicas aos serviços de saúde. Ou quando esta discussão ocorre é a partir do viés da heterossexualidade, o que contribui para a persistência de um habitus que orienta as ações dentro de um campo em que as práticas de cuidados às lésbicas são realizadas1111 Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998.,1212 Bourdieu P, Passeron JC. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1992..

No Brasil, observam-se alguns avanços no campo das políticas de saúde com o reconhecimento de especificidades de saúde das lésbicas, isso pode ser notado por meio das publicações de alguns documentos públicos, como: Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher3636 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes. Brasília: MS; 2004.; Dossiê: Saúde das Mulheres Lésbicas - promoção da equidade e da integralidade3737 Facchini R, Barbosa RM. Dossiê saúde das mulheres lésbicas: promoção da equidade e da integralidade. Belo Horizonte: Rede Saúde; 2006.; Política Nacional de Saúde Integral de LGBT3838 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: MS; 2013.; e Relatório da Oficina de Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais3939 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília: MS; 2014..

Silva1818 Silva AN. Políticas Públicas de Saúde Voltadas as lésbicas: Analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021. afirma que o fato de naturalizar a cultura da heterossexualidade na materialização dos textos políticos no campo do cuidado à saúde às lésbicas vem contribuindo para o não reconhecimento de que as normativas de gênero são potencialmente opressoras, uma vez que o próprio sistema vem reproduzindo o reconhecimento desigual das demandas e especificidades da sexualidade heterossexual em relação à sexualidade homossexual.

Formação de enfermagem para atenção à saúde das mulheres lésbicas

Nesta categoria, buscou-se compreender como as enfermeiras avaliavam o seu preparo para lidar com as lésbicas e suas demandas de saúde. Inicialmente, são apresentados alguns sentimentos e sensações das enfermeiras entrevistadas durante o atendimento à mulher lésbica:

Eu fico assim um pouco... Eu não me sinto à vontade, entendeu? (Maria, 67 anos).

Eu ofereci preservativos masculinos e aí eu fiquei toda sem jeito. [...] Eu fiquei assim assustada, porque a gente não é preparada para isso na faculdade, né? (Juliana, 57 anos).

As enfermeiras se demostraram surpresas, assustadas, envergonhadas e despreparadas ao atender às lésbicas, e tais sentimentos podem ser compreendidos e analisados tanto pelas dificuldades da formação acadêmica quanto da formação em serviço. Estudos têm mostrado a precariedade das discussões de questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero na atenção básica, como se observa nas narrativas abaixo:

Na formação [acadêmica] não teve nenhuma disciplina voltada para isso (Clarice, 27 anos).

Na faculdade nunca foi falado, até porque é uma coisa bem mais [recente]. Eu me formei em 2002, eu acho que esse tema ele já vem mais de agora [...] (Inácia, 41 anos).

A gente nunca mais teve treinamento, eu não lembro de ter abordado esse tema não (Brenda, 45 anos).

Corroborando os relatos, alguns estudos apontaram que os profissionais de saúde se mostraram inquietos em relação à escassez e à ausência da temática na formação em saúde e às dificuldades de acesso às informações inerentes às particularidades de saúde das lésbicas4040 Lima TNB, Carvalho MEL, Souza JLM, Taurino IJM, Freitas CR, Terenci AP, Oliveira HMS, Santos JL, Ferreira DRA, Lucena MS. Atenção à saúde da população LGBT numa capital nordestina. REAS 2019; 34:e1410.,4141 Dichter ME, Ogden SN, Scheffey KL. Provider perspectives on the application of patient sexual orientation and gender identity in clinical care: a qualitative study. J Gen Intern Med 2018; 33(8):1359-1365.. Já a pesquisa de Dorsen et al.4242 Dorsen C, Van Devanter N. Open arms, conflicted hearts: nurse-practitioner's attitudes towards working with lesbian, gay and bisexual patients. J Clin Nurs 2016; 25(23-24):3716-3727. evidenciou que as enfermeiras se sentem mais confortáveis em cuidar de lésbicas quando, na formação acadêmica, lhes foram proporcionadas reflexões acerca da diversidade sexual e de gênero e seu impacto na saúde.

Ferreira et al.1515 Ferreira BO, Bonan C. Vários tons de "não": relatos de profissionais da Atenção Básica na assistência de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT). Interface (Botucatu) 2021; 25:e200327. trazem dados semelhantes aos relatos das enfermeiras Brenda e Fernanda sobre a falta de treinamentos, cursos e capacitações promovidos pela instituição de saúde em que trabalham. A não oferta está diretamente relacionada ao não reconhecimento das demandas de saúde das lésbicas nos territórios de saúde, já que essas geralmente não são incluídas nos diagnósticos da situação de saúde.

Esse fato contribui para exclusão e violência simbólica, visto que a falta de conhecimento quanto às demandas e necessidades das lésbicas no cuidado à saúde pode promover a criação de protocolos e intervenções a partir de um olhar heteronormativo e dificultar a construção de vínculos e cuidado, produzindo um atendimento fragmentado e meramente tecnicista2525 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5351-5360..

Conclusão

A perpetuação da violência simbólica no campo da atenção básica pode ter relação com a perpetuação do habitus heteronormativo nas práticas de cuidados às lésbicas, que contribui para a reprodução da exclusão, a discriminação e o apagamento dessa existência. Nesse sentido, existe a necessidade de visibilizar e elencar os indicadores sociais de orientação sexual nas práticas de cuidado, já que as unidades de saúde são locais onde as políticas voltadas às lésbicas são materializadas, e o reconhecimento desses indicadores contribui para o cuidado humanizado e acolhedor.

O reconhecimento e a valorização das necessidades dessas mulheres a partir de uma gestão de cuidado que favoreça a construção de vínculos a partir da valorização das trajetórias e práticas sexuais, com uma postura acolhedora e proativa das enfermeiras, contribui para o cuidado integral em saúde. A formação acadêmica e os processos formativos no serviço em saúde podem oferecer caminhos importantes para a construção de espaços mais inclusivos.

Enfim, é essencial que essas enfermeiras possam desenvolver outros habitus, a fim de garantir diferentes formas de identidades dentro dos serviços de saúde. É necessário que haja o debate sobre as diversidades sexuais e de gênero, bem como o reconhecimento dos problemas que permeiam a garantia de cuidados de enfermagem fundados na liberdade, na dignidade da pessoa humana e na justiça social.

Referências

  • 1
    Carrapato P, Correia P, Garcia B. Determinante da saúde no Brasil: a procura da equidade na saúde. Saude Soc 2017; 26(3):676-689.
  • 2
    Fernandes M, Soler LD, Leite MCBP. Saúde das mulheres lésbicas e atenção à saúde: nem integralidade, nem equidade diante das invisibilidades. BIS Bol Inst Saude 2018; 19(2):37-46.
  • 3
    Soinio JII, Paavilainen E, Kylmä JPO. Lesbian and bisexual women's experiences of health care: "Do not say, 'husband', say, 'spouse'". J Clin Nurs 2020; 29(1-2):94-106.
  • 4
    Della Pelle C, Cerratti F, Di Giovanni P, Cipollone F, Cicolini G. Attitudes towards and knowledge about lesbian, gay, bisexual, and transgender patients among Italian nurses: an observational study. J Nurs Scholarsh 2018; 50(4):367-374.
  • 5
    Araújo LM, Penna LHG, Carinhanha JI, Costa CMA. O cuidado às mulheres lésbicas no campo da saúde sexual e reprodutiva. Rev enferm UERJ 2019; 27:e34262.
  • 6
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: MS; 2017.
  • 7
    Gomes R. Análise e intepretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. p. 72-95.
  • 8
    Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002.
  • 9
    Brasil. Resolução nº 466 do Conselho Nacional de Saúde, de 12 de dezembro de 2012. Diário oficial da União 2012; 13 dez.
  • 10
    Brasil. Resolução nº 510 do Conselho Nacional de Saúde, de 7 de abril de 2016. Diário Oficial da União 2016; 8 abr.
  • 11
    Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Russel; 1998.
  • 12
    Bourdieu P, Passeron JC. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1992.
  • 13
    Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
  • 14
    Brasil. Ministério da Educação (MEC). Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais. Brasília: MEC; 2009.
  • 15
    Ferreira BO, Bonan C. Vários tons de "não": relatos de profissionais da Atenção Básica na assistência de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT). Interface (Botucatu) 2021; 25:e200327.
  • 16
    Kamen CS, Alpert A, Margolies L, Griggs JJ, Darbes L, Smith-Stoner M, Lytle M, Poteat T, Scout N, Norton SA. "Treat us with dignity": a qualitative study of the experiences and recommendations of lesbian, gay, bisexual, transgender, and queer (LGBTQ) patients with cancer. Support Care Cancer 2019; 27(7):2525-2532.
  • 17
    Barbosa RM, Facchini R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(Supl. 2):s291-s300.
  • 18
    Silva AN. Políticas Públicas de Saúde Voltadas as lésbicas: Analisando o contexto de produção dos textos e das práticas de cuidados [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança Fernandes Figueiras; 2021.
  • 19
    Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2017.
  • 20
    Rubin G. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: Rubin G. Deviations. London: Duke University Press; 2011. p. 137-181.
  • 21
    Araujo LM, Penna LHG. A relação entre sexo, identidades sexual e de gênero no campo da saúde da mulher. Rev Enferm UERJ 2014; 22(1):134-138.
  • 22
    Rios PPS, Dias AF, Brazão JPG. "As brincadeiras denunciavam que eu era uma criança viada": o gênero "fabricado" na infância. Rev Edu Questao 2019; 57(54):e-18651.
  • 23
    Toledo LG, Teixeira Filho FS. Lesbianidades e as referências legitimadoras da sexualidade. Estud Pesqui Psicol 2010; 10(3):729-749.
  • 24
    Ferreira BO, Pedrosa JIS, Nascimento EF. Diversidade de gênero e acesso ao Sistema Único de Saúde. Rev Bras Promoç Saude 2018; 31(1):1-10.
  • 25
    Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5351-5360.
  • 26
    Sposati A. Exclusão social abaixo da linha do Equador. In: Verás MPB, organizador. Por uma sociologia da exclusão social: o debate com Serge Paugam. São Paulo: Editora Educ; 1999.
  • 27
    Albrecht CAM, Rosa RS, Bordin RO. Conceito de equidade na produção científica em saúde: uma revisão. Saude Soci 2016; 26(1):115-128.
  • 28
    Santos JS, Silva RN, Ferreira MA. Health of the LGBTI+ Population in Primary Health Care and the Insertion of Nursing. Esc Anna Nery 2019; 23(4):e20190162.
  • 29
    St Pierre M. Lesbian disclosure and health care seeking in the United States: A replication study. J Lesbian Stud 2018; 22(1):102-115.
  • 30
    Guimarães AN, Marqui GDS, Brum MLB, Vendruscolo C, Werner JM, Zanatta EA. Narratives of young people on same-sex relationships about their path and implications for mental health. Esc Anna Nery 2019; 23(1):e20180240.
  • 31
    Mccann E, Sharek D. Challenges to and opportunities for improving mental health services for lesbian, gay, bisexual, and transgender people in Ireland: a narrative account. Int J Ment Health Nurse 2014; 23(6):525-533.
  • 32
    Fernandes NFS, Galvão JR, Assis MMA, Almeida PF, Santos AM. Acesso ao exame citológico do colo do útero em região de saúde: mulheres invisíveis e corpos vulneráveis. Cad Saude Publica 2019; 35(10):e00234618.
  • 33
    Lima MAS, Saldanha AAW. (In)visibilidade lésbica na saúde: análise de fatores de vulnerabilidade no cuidado em saúde sexual de lésbicas. Psicol Cienc Prof 2020; 40:e202845.
  • 34
    Rufino AC, Madeiro A, Trinidad A, Santos R, Freitas I. Práticas sexuais e cuidados em saúde de mulheres que fazem sexo com mulheres: 2013-2014. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(4):e2017499
  • 35
    Mosack KE, Brouwer AM, Petroll AE. Sexual identity, identity disclosure, and health care experiences: is there evidence for differential homophobia in primary care practice? Womens Health Issues 2013; 23(6):e341-e346.
  • 36
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes. Brasília: MS; 2004.
  • 37
    Facchini R, Barbosa RM. Dossiê saúde das mulheres lésbicas: promoção da equidade e da integralidade. Belo Horizonte: Rede Saúde; 2006.
  • 38
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: MS; 2013.
  • 39
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais: Relatório da Oficina Atenção à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais. Brasília: MS; 2014.
  • 40
    Lima TNB, Carvalho MEL, Souza JLM, Taurino IJM, Freitas CR, Terenci AP, Oliveira HMS, Santos JL, Ferreira DRA, Lucena MS. Atenção à saúde da população LGBT numa capital nordestina. REAS 2019; 34:e1410.
  • 41
    Dichter ME, Ogden SN, Scheffey KL. Provider perspectives on the application of patient sexual orientation and gender identity in clinical care: a qualitative study. J Gen Intern Med 2018; 33(8):1359-1365.
  • 42
    Dorsen C, Van Devanter N. Open arms, conflicted hearts: nurse-practitioner's attitudes towards working with lesbian, gay and bisexual patients. J Clin Nurs 2016; 25(23-24):3716-3727.

Editado por

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Out 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2022
  • Aceito
    27 Jun 2022
  • Publicado
    29 Jun 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br