Esta edição tem como tema central as repercussões sociais e humanitárias das emergências sanitárias em países da América Latina, relacionadas à vida biológica, social e cultural das populações da região. Os eventos emergentes são aqui concebidos em três dimensões complementares: ontológica, temporal e ética.
Na dimensão ontológica, avaliam-se os eventos disparadores de repercussões biológicas e ambientais e seus efeitos políticos, sociais e individuais. Em simultâneo, analisam-se estruturas e processos sociais que precedem a origem e o desenvolvimento dos eventos que, por sua vez, transformam ou agravam problemas já existentes. Considera-se que as emergências sanitárias afetam a realidade como um fenômeno social total, no sentido construído por Mauss (2008)11 Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif; 2008.. Ou seja, elas atingem a vida do indivíduo (em sua complexidade biológica, emocional e relacional) e da sociedade, incluindo seus aspectos organizacionais.
Na dimensão temporal, os eventos apresentam repercussões imediatas, de média ou de longa duração. Os textos aqui apresentados ressaltam a importância de ações e estratégias de contenção e minimização de agravos e de proteção a populações e territórios atingidos, levando em conta as perspectivas de duração, que podem atingir o presente, mas também gerações futuras e modificar a própria organização social.
Na dimensão ética, são analisados os benefícios de intervenções, vinculando-os aos direitos individuais e coletivos, ressaltando ações, políticas e concepções de estratégias que recobrem preparação, resposta e minimização de agravos, em iniciativas do Estado com participação social.
Os conceitos e propostas das ciências humanas e sociais contribuem tanto para analisar as repercussões sociais e humanitárias das emergências sanitárias como para sua superação. É importante ressaltar que esse tipo de aporte fica subsumido, como se tivesse um papel coadjuvante ou fosse considerado senso comum, tendo em vista o viés epidemiológico e biomédico dominante nas narrativas sobre as emergências em saúde pública. Porém, nunca as ciências sociais e humanas foram tão necessárias para compreensão da realidade como numa pandemia como a de COVID-19.
Defende-se um trabalho integrado, pois é fundamental compreender as emergências sanitárias em suas raízes históricas e de forma contextualizada do ponto de vista regional, social e no que afeta as pessoas, a comunidade e suas percepções sobre elas. O universalismo biomédico e individualista já foi demasiadamente criticado e é em resposta a ele que se construiu o campo teórico e político da saúde coletiva. Neste, as ciências humanas e sociais não se apresentam apenas como uma dimensão multifatorial do processo saúde e doença, mas como uma área de conhecimento fundante e integrante da reflexão e da ação. Ela está na base da medicina social latino-americana e da reforma sanitária brasileira que se tornaram lentes através das quais se compreendem e se atua frente aos problemas de saúde das populações da região. É também com essas bases que se construiu o SUS, pautado no direito, na equidade, na integralidade e na participação social (Nunes et al., 2021)22 Nunes ED, Minayo MCS. The trajetory and identity of sociology of public health in Brazil. In: Bada X, Rivera-Sanchez L, editors. The Oxford HandBook of the Sociology of Latin America. New york: Oxford University Press; 2021. v. 1, p. 589-606., em uma multidisciplinaridade que contempla a clínica, a epidemiologia e a questão social.
Reúnem-se, nesta edição, algumas contribuições das ciências humanas e sociais de pesquisadores da América Latina. Destaca-se a relevância das evidências apresentadas e das estratégias de enfrentamento e proteção, mostrando que é preciso ter propostas claras e compreensivas em todas as fases das emergências sanitárias: da preparação às respostas e aos processos de recuperação da saúde.
Por sua vez, é preciso que se cultive uma ciência humana e social ativa e atuante, capaz de compreender o sofrimento das pessoas e dar respostas efetivas, numa abordagem integrada com a epidemiologia, a clínica e com as áreas dedicadas às doenças infecciosas.
Agradecimentos
Publicação com o apoio da Wellcome Trust - Grant Number 218750/Z/19/Z.
Referências
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1Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naif; 2008.
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2Nunes ED, Minayo MCS. The trajetory and identity of sociology of public health in Brazil. In: Bada X, Rivera-Sanchez L, editors. The Oxford HandBook of the Sociology of Latin America. New york: Oxford University Press; 2021. v. 1, p. 589-606.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Out 2022 -
Data do Fascículo
Nov 2022