É um instant book cujas premissas, no entanto, se projetam para o futuro, todas perpassadas pela pergunta que se faz todo dia: como sairemos dessa pandemia? Será que a dura experiência, seguindo as pegadas da consciência na dialética hegeliana11 Hegel GWF. Os Pensadores. A Fenomenologia do Espírito - Estética a Idéia e o Ideal - Estética O Belo Artístico e o Ideal - Introdução à História da Filosofia. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural; 1980.,22 Hyppolite J. Génesis y Estructura de la Fenomenología del Espíritu de Hegel. 1ª ed. Barcelona: Edições Península; 1974., trará aprendizado social e transformação ou, ao contrário, ainda há distância a percorrer até o fundo do poço - vamos insistir na mesma lógica mercantilista - antes que se mostrem os primeiros sinais de superação das relações sociais que exacerbam os danos causados pela COVID-19 e das quais ela, a pandemia, provavelmente é fruto? As agências multilaterais, mundiais ou regionais, com indiscutível papel de destaque na abordagem da pandemia e objeto central do livro, incorporam em si essa contradição, por um lado, a necessidade imperiosa de colaboração e, por outro, os interesses econômicos e políticos em competição daqueles que as compõem. Essas polarizações poderiam ser olhadas sob vários prismas, o primeiro seria o da relação entre o capitalismo e os interesses gerais da sociedade. Elas se expressam também pela incongruência de se propor colaboração entre nações em disputa pela hegemonia do planeta. Ou ainda, pelas reiteradas tensões entre globalização e soberania dos Estados nacionais, seja porque são Estados fortes e uns mais fortes do que outros, desafiando a globalização; seja pelo oposto, a globalização se nutrindo das energias nacionais. Em termos habermasianos, estaria de um lado, a solidariedade, expressa como reconhecimento recíproco entre os pares, meio de integração do mundo da vida, dentro, fora ou entre as fronteiras nacionais e, de outro, dinheiro e poder, meios de controle sistêmicos da Economia e do Estado33 Habermas J. Teoria de la Accion Comunicativa. Madrid: Taurus; 1987..
Essas contradições podem ser identificadas em conjunto ou separadamente, nos capítulos destinados à análise das relações diplomáticas desenvolvidas na abordagem da COVID-19, embora os autores tenham adotado, como estratégia comum, uma perspectiva descritiva, inserindo alguns comentários críticos, o suficiente para marcar seus posicionamentos. Elas têm um duplo sentido, ou bem afetam as agências multilaterais cuja missão precípua é a solidariedade, como é o caso da Organização das Nações Unidas (ONU) e suas filiadas - Organização Mundial de Saúde (OMS), Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Organização dos Estados Americanos (PEA) -, que têm de se haver com os conflitos e divergências travadas em seu interior e que podem ter e tiveram por resultado processos traumáticos e rudes, como a saída dos Estados Unidos da OMS ou a intensificação da disputa por hegemonia, desse mesmo país, na OEA, por receio da crescente influência da China; ou bem, afetam os organismos cuja origem são os interesses econômicos e financeiros, como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e G20 que, no entanto, não podem ignorar a pandemia, sabedores que são da comunidade do planeta, o que afeta um, afeta todos. As divergências não poupam os blocos regionais, como a União Europeia, haja vista o Brexit, ou o bloco asiático, com as tensas relações entre China, Japão e Índia. A América do Sul estaria em posição mais atrasada, sequer experimenta a contradição, com sua tendência de isolamento, com desintegração da União das Nações Americanas e dificuldades crescentes para o Mercosul. A exceção, parece, seria o bloco dos países não alinhados, pois eles, pelo menos, não teriam de lidar com os blocos hegemônicos, mas tudo indica que perdem relevância, no mundo atual.
Dentro desses marcos, situa-se a análise da atuação diplomática frente à COVID-19. O capítulo que abre o livro já anuncia e antecipa o rumo da discussão pois se refere exatamente à influência dos aspectos geopolíticos sobre a pandemia, com a reorganização dos blocos hegemônicos, a entrada da China como novo ator, a permanência da Rússia com seu indiscutível papel geopolítico, a possível aliança dessas duas nações e, de outro campo, os Estados Unidos e seus aliados, além da coexistência de blocos regionais de grande importância, como a União Europeia. Em cada capítulo, a influência do mercado é destacada como obstáculo à união do mundo no combate à pandemia, na conquista da saúde e, quem sabe, na reconstrução de relações pautadas em termos mais humanos e universais. Ainda presente em praticamente todos os capítulos a constatação de que essas contradições são evidenciadas e exacerbadas pela COVID-19, no entanto, não são novas, ao contrário, estão na raiz de todo multilateralismo, como pode se exemplificar pela experiência dos objetivos de desenvolvimento sustentável do milênio, com suas idas e vindas, avanços e retrocessos.
Além das relações multilaterais, o livro analisa a abordagem da pandemia por algumas nações, especificamente, China e Estados Unidos, por suas posições hegemônicas e polares no mundo e, claro, por razões óbvias, o Brasil. A China é vista pelos autores como um importante aliado no enfrentamento à COVID-19, com destaque para o fato de que foi a primeira economia a ser paralisada pela pandemia, mas, apesar disso, fechou o ano 2020 em crescimento. Ademais, o forte controle epidemiológico do país garantiu a adoção ágil de medidas sanitárias, com imposição de rigoroso esquema de quarentena que, embora muito eficaz, foi duramente criticado no cenário global. A postura adotada pelo país asiático também demonstra como o desenvolvimento econômico e o investimento em saúde não precisam ser antagônicos. Durante a pandemia, foram justamente os investimentos na saúde que garantiram o superávit econômico; a resposta sanitária chinesa foi autossuficiente e não dependeu de assistência externa; além disso, e por isso, o país se consolidou como referência global na produção de insumos para combate ao coronavírus.
Enquanto o país asiático reforçou a relevância da OMS, os Estados Unidos anunciaram sua saída da organização, reiterando a perspectiva unilateral como projeto social, econômico e político. Se no pós-guerra, os Estados Unidos tiveram papel central na construção do multilateralismo global, com a atual predominância do espírito individualista, pouco afeito à cooperação, a roupagem do unilateralismo, como bem dizem os autores, passou a vestir melhor a nação estadunidense. O discurso que levou Donald Trump à Casa Branca tinha por mote o America First, deixando claro que, na sua gestão, os EUA trilhariam o seu próprio caminho, em contraste com a realidade da pandemia, a demandar, para o seu combate, o esforço de todos os governos e de todas as sociedades. A preocupação dos autores sobre o futuro do multilateralismo, frente a essa política, já encontra resposta, hoje, com a derrota eleitoral de Trump para os democratas com a consequente interrupção da tendência unilateral. O governo Joe Biden já toma iniciativas concretas de cooperação, seja no âmbito da pandemia, com a doação ou repasse de lotes de vacina a outros países, por exemplo, ou com o esforço de recuperar a liderança do país, na proteção ambiental. Obviamente, não sem contradição, a política de cooperação não avançará absolutamente nada para além de limites que possam colocar em risco o imperialismo americano.
No Brasil, a pandemia teve efeito complexo, desdobrando-se em múltiplas epidemias. De um lado, evidenciaram-se a fragilidade e a fragmentação do sistema público de saúde, de outro, a perpetuação e a exacerbação das desigualdades sociais, raciais e étnicas. A postura negacionista do governo, também adotada por outros países latino-americanos, por exemplo, o México, levou o país ao segundo lugar mundial com relação aos números de casos e mortes. Em termos sociais, a pandemia escancarou - e exacerbou - as iniquidades entre grupos populacionais e entre regiões. Diferentemente dos desdobramentos políticos americanos, no Brasil, prossegue a política bolsonarista, levando o país a conviver com a inconcebível marca de 570 mil mortes por COVID-19, naturalizadas pelo governo federal, em nome da sua ânsia de permanência no poder. Felizmente, há luz no fim do túnel, as manifestações populares retomam as ruas, antes monopolizadas pelos bolsonaristas; a CPI da COVID-19 é instalada; o Supremo Tribunal Federal tem adotado, enfim, o seu papel de coibir desmandos e ameaças ao regime democrático, advindos de um governo autoritário e com popularidade em queda.
Cumpre destacar as profícuas formulações teóricas sobre o processo de saúde/doença, apresentadas na primeira parte do livro, com retomadas e repercussões em toda a obra. Uma delas é a instigante tese da nossa vulnerabilidade às epidemias, dado como o modo de vida sociocultural se desenrola no planeta, o que não deixa de ser uma oportunidade para reiterar, por nova via, o caráter transformador da saúde. Ao mesmo tempo, a epidemia permite exibir a potência tecnológica do mundo atual, ironicamente também perpassada por vulnerabilidades, seja a distribuição desigual, seja o uso indevido das tecnologias. Outra formulação, a saúde única, é um convite para a retomada da solidariedade e a tese da unidade entre saúde e economia um forte argumento para superar a falsa dicotomia entre esses dois âmbitos, oportunismo tão em voga no nosso país. Para finalizar, convém lembrar que todas essas formulações de abordagem da COVID-19 se harmonizam com os pressupostos da Promoção de Saúde44 Van den Broucke S. Why health promotion matters to the COVID-19 pandemic, and vice versa [editorial]. Health Promot Internat 2020; 35(2):181-186., que pode, ademais, agregar à discussão outro aspecto decisivo: a participação social55 Melo EM, Silva JM, Akerman M, Belisário SA. Promoção de Saúde: Autonomia e Mudança. Belo Horizonte: Folium; 2016..
Referências
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1Hegel GWF. Os Pensadores. A Fenomenologia do Espírito - Estética a Idéia e o Ideal - Estética O Belo Artístico e o Ideal - Introdução à História da Filosofia. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural; 1980.
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2Hyppolite J. Génesis y Estructura de la Fenomenología del Espíritu de Hegel. 1ª ed. Barcelona: Edições Península; 1974.
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3Habermas J. Teoria de la Accion Comunicativa. Madrid: Taurus; 1987.
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4Van den Broucke S. Why health promotion matters to the COVID-19 pandemic, and vice versa [editorial]. Health Promot Internat 2020; 35(2):181-186.
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5Melo EM, Silva JM, Akerman M, Belisário SA. Promoção de Saúde: Autonomia e Mudança. Belo Horizonte: Folium; 2016.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Out 2022 -
Data do Fascículo
Nov 2022