Prezadas(os), gostaríamos de agradecer aos autores da “Alternativa de desestruturação do capacitismo: carta aos editores”, enviada a vocês com o intuito de avançar com a reflexão proposta em nosso artigo “Sobre o viver em uma cidade capacitista”. A doravante referida como “Carta” corrobora a percepção da centralidade da militância no combate ao capacitismo e traz reflexões muito relevantes, algumas das quais precisam ser respondidas.
Nós da saúde coletiva temos refutado, há bastante tempo, a acepção da díade “mãe-criança”, precisamente por ser estigmatizante e com repercussões práticas desastrosas, uma delas indicada na Carta, ao pontuar a pertinência de incluir as “cuidadoras principais” em eixos de atenção à saúde e de assistência social, o que encontra, inclusive, base na literatura científica11 Sullivan WF, Diepstra H, Heng J, Ally S, Bradley E, Casson I, Witherbee S. Primary care of adults with intellectual and developmental disabilities. Canadian consensus guidelines. Can Fam Physician 2018; 64(4):254-279.. A acepção aprisiona a “mulher-mãe de criança com deficiência” na matriz reprodutora, quando não à toa a consigna é o direito universal.
E é este o segundo ponto passível de nota: a pertinência de desconstruir acepções que são particularizantes no sentido de justiça social fraseana. Fraser22 Fraser N. Reconhecimento sem ética? Lua Nova 2007; 70:101-138. pontua a relevância do reconhecimento, porém não de uma certa identidade, e sim da subordinação social decorrente das barreiras à participação como iguais, negando-lhes as condições intersubjetivas necessárias. A exclusão social das pessoas com deficiência (PcD) encontra-se evidenciada na educação, no mundo do trabalho, no acesso ao aparato do Estado, na insegurança alimentar, na violência33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estudo sobre Pessoas com Deficiência e Desigualdades Sociais no Brasil 2022. Rio de Janeiro: IBGE; 2022.
4 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da Violência 2019. Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo: Ipea, Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2019.-55 Banco Mundial. Impactos da Covid-19 no Brasil: Evidências sobre pessoas com deficiência durante a pandemia [Internet]. 2021 [acessado 2022 out 21]. Disponível em: https://www.worldbank.org/pt/country/brazil/brief/impactos-da-covid19-no-brasil-evidencias-sobre-pessoas-com-deficiencia-durante-a-pandemia#:~:text=A%20deteriora%C3%A7%C3%A3o%20foi%20mais%20pronunciada,defici%C3%AAncia%20tiveram%20um%20desempenho%20pior.
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, ou em quaisquer outros indicadores que se queira investigar, sendo que a precarização nas condições de vida é influenciada também pelo tipo de deficiência, tornando importante iniciativas para o reconhecimento e a reparação das condições desiguais de acesso dentre esse grupo heterogêneo resumido na sigla PcD.
A Carta foi precisa em situar o cuidado como um ato político necessário. Contudo, ainda que o poder do associativismo feminino reúna potencialidades de transformação, politizar o cuidado significa desvelar os sistemas de opressão que subjetivam e oprimem66 hooks b. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 2018.. Confinar a mulher a um ato político que não cabe exclusivamente a ela é reafirmar a lógica patriarcal que estrutura e hierarquiza as relações sociais, determina a divisão sexual do trabalho e reforça a reprodução social das desigualdades77 Biroli F. O público e o privado. In: Miguel LF, Biroli F. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo; 2014. p. 31-46.,88 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo: Editora Schwarcz-Companhia das Letras; 2020.. Ainda que seja fundamental a mobilização e participação da sociedade civil no combate à corponormatividade, urge reconhecer que muitas vezes o protagonismo das mulheres nessa luta se dá em detrimento da saúde, bem-estar e pleno exercício das possibilidades de ser mulher e mãe.
Argumentamos que a localização da responsabilidade de desestruturação do capacitismo nas mulheres romantiza o esforço que fazem em face do abandono do Estado e demais estruturas sociais que seguem privatizando o cuidado às PcD, como se a elas não coubessem os direitos humanos universais. E ressaltamos que cabe a toda a população a responsabilidade de combater a corponormatividade, para não naturalizarmos um processo que sobrecarrega e adoece a mulher que está do lado da pessoa com deficiência: que além de concentrar as funções de cuidado, também são impelidas a assumir o papel de se associar.
Ao desconstruirmos as acepções que são particularizantes, valorizamos necessariamente as instituições públicas como responsáveis por esses direitos que são universais a todas as pessoas. Cabe-nos, entretanto, alertar sobre os limites do desenho de políticas de saúde pública sem que esse extrato populacional se encontre adscrito no território e sem tampouco mapear os mediadores necessários para a eliminação das barreiras listadas na Lei Brasileira de Inclusão99 Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul., conforme temos na atualidade. Por fim, sugerimos que o combate à corponormatividade se beneficiaria dos pressupostos críticos emancipatórios de Martins et al.1010 Martins BS, Fontes F, Hespanha P, Berg A. A emancipação dos estudos da deficiência. Rev Crit Cien Soc 2012; 98:45-64., que exaltam a importância da participação paritária em todos os espaços sociais.
Referências
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1Sullivan WF, Diepstra H, Heng J, Ally S, Bradley E, Casson I, Witherbee S. Primary care of adults with intellectual and developmental disabilities. Canadian consensus guidelines. Can Fam Physician 2018; 64(4):254-279.
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2Fraser N. Reconhecimento sem ética? Lua Nova 2007; 70:101-138.
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3Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estudo sobre Pessoas com Deficiência e Desigualdades Sociais no Brasil 2022. Rio de Janeiro: IBGE; 2022.
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4Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da Violência 2019. Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo: Ipea, Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2019.
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5Banco Mundial. Impactos da Covid-19 no Brasil: Evidências sobre pessoas com deficiência durante a pandemia [Internet]. 2021 [acessado 2022 out 21]. Disponível em: https://www.worldbank.org/pt/country/brazil/brief/impactos-da-covid19-no-brasil-evidencias-sobre-pessoas-com-deficiencia-durante-a-pandemia#:~:text=A%20deteriora%C3%A7%C3%A3o%20foi%20mais%20pronunciada,defici%C3%AAncia%20tiveram%20um%20desempenho%20pior
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6hooks b. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 2018.
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7Biroli F. O público e o privado. In: Miguel LF, Biroli F. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo; 2014. p. 31-46.
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8Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo: Editora Schwarcz-Companhia das Letras; 2020.
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9Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul.
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10Martins BS, Fontes F, Hespanha P, Berg A. A emancipação dos estudos da deficiência. Rev Crit Cien Soc 2012; 98:45-64.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Jan 2023 -
Data do Fascículo
Jan 2023