Resumo
Com o objetivo de analisar as relações interprofissionais produzidas a partir da alta responsável, na perspectiva e no agir da enfermagem durante o a pandemia de COVID-19, realizou-se um estudo qualitativo, tipo estudo de caso. A técnica de pesquisa foi a observação participante de uma enfermaria de hospital de grande porte do SUS na cidade de São Paulo. A produção de narrativas e a análise micropolítica das relações fez emergir dois planos de visibilidade: para além da alta responsável - a antropofagia dos arranjos tecnológicos do cuidado e a ambivalência da enfermagem na produção das relações interprofissionais; e alta médico-centrada e alta negociada - o entrecruzamento com outros profissionais, com as famílias e com a vida “como ela é”. A pandemia de COVID interrompeu as visitas multiprofissionais e foi um analisador das relações interprofissionais. A partir de uma inteligência astuciosa, a enfermagem negocia a alta com os médicos, que detêm este poder, e aciona a equipe, a partir de uma autonomia elástica. A alta responsável por si só não foi capaz de produzir um plano comum de ação interprofissional, de modificar os papéis instituídos no hospital, situação que recrudesceu durante a pandemia mas abriu condições para o aumento da profissionalização da equipe.
Palavras-chave:
Relações interprofissionais; Alta do paciente; Enfermagem; COVID-19
Abstract
A qualitative-case study was carried out aimed at analyzing the interprofessional relationships generated by the planned discharge from the nursing actions’ perspective during the COVID-19 pandemic. The study method was the participating observation by one nurse who works in a large SUS hospital in the city of São Paulo. The production of narratives and the micropolitics analysis resulted in two diverse visibility plans: beyond the planned discharge the anthropophagy of the technological arrangements for care and the ambivalence of the nursing staff in the production of interprofessional relationships; and the medical discharge and negotiated discharge: the intersecting with other professionals, with the families and with “real” life. The pandemic interrupted the multiprofessional visits and it was an analyzer of the interprofessional relationships. Wittingly, the nursing staff negotiates the discharges with physicians, who retain this power, and sets the team in motion using an elastic autonomy. The planned discharge alone was not able to guarantee a common interprofessional action plan, was not able to modify the constituted roles in the hospital, a situation that increased during the pandemic, but allowed the right setting aimed to increase the team’s professionalism.
Key words:
Interprofessional relationships; Patient discharge; Nursing; COVID-19
Introdução
A reestruturação de sistemas de saúde exige transformações efetivas nas práticas de cuidado e no funcionamento das organizações hospitalares, que devem estar articuladas com os demais serviços que compõem a rede de atenção à saúde (RAS)11 Chioro A, Furtado LAC, Beltrami DGM, Souza MP. Atenção hospitalar no SUS. In: Santos TBS, Pinto ICM, organizadores. Gestão Hospitalar no SUS. Salvador: EDUFBA; 2021. p. 27-84.. Processos pautados exclusivamente na racionalização da vida do hospital demonstram ser insuficientes para a construção de um novo hospital do e para o Sistema Único de Saúde (SUS). Torna-se, assim, necessária a produção de práticas que adotem como centro o cuidado, e que pensem a gestão da clínica na perspectiva do trabalho interprofissional, da integralidade e da continuidade do cuidado.
Nos últimos anos, arranjos tecnológicos de gestão do cuidado (AT) têm sido adotados em hospitais públicos e privados, induzidos pela Política Nacional de Atenção Hospitalar22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.390, de 30 de dezembro de 2013. Estabelece a Política Nacional de Atenção Hospitalar no âmbito do Sistema Único de Saúde, estabelecendo-se as diretrizes para a organização do componente hospitalar da Rede de Atenção à Saúde. Diário Oficial da União 2013; 30 dez.. São definidos como tecnologias que visam a melhoraria das práticas de cuidado e das instâncias de gestão. Aplicados preferencialmente de forma combinada, constituem-se em modalidades de intervenção, de caráter multiprofissional, destinadas à aplicação do conhecimento científico para fins práticos na gestão e na produção do cuidado, com o objetivo de produzir mudanças substantivas ao hospital33 Beltrami DGM, Chioro A. Agenda de desafios e soluções para um hospital contemporâneo: conhecendo o novo normal. In: Beltrammi DGM, Camargo VM, organizadores. Práticas e saberes no hospital contemporâneo: o novo normaL. São Paulo: HUCITEC; 2017. p. 47-55.. Muitas das suas ações têm como base a Política Nacional de Humanização44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Clínica ampliada e compartilhada. Brasília: MS; 2009., com centralidade nas necessidades de saúde das pessoas em seus distintos e múltiplos modos de existência.
Os AT visam melhorar fluxos, otimizar a ocupação de leitos, agilizar altas e humanizar e qualificar a assistência produzida no hospital. Entre esses objetivos, podem ser destacados: diretrizes clínicas e protocolos técnicos; gerenciamento de leitos e Núcleo Interno de Regulação (NIR); clínica ampliada e a visita guiada por metas (kanban); gestão de altas hospitalares; leitos de longa permanência e atenção domiciliar; gestão clínica colegiada e boards, entre outros33 Beltrami DGM, Chioro A. Agenda de desafios e soluções para um hospital contemporâneo: conhecendo o novo normal. In: Beltrammi DGM, Camargo VM, organizadores. Práticas e saberes no hospital contemporâneo: o novo normaL. São Paulo: HUCITEC; 2017. p. 47-55.. Buscam, de forma inovadora, conformar o trabalho da equipe multiprofissional, ampliar a responsabilidade dos sujeitos implicados no cuidado e produzir respostas operacionais.
Sua institucionalização é uma aposta no aprimoramento da coordenação do cuidado, com vistas a produzir melhor decisão clínica e incentivar a sinergia entre os múltiplos saberes, adotando-se assim as melhores práticas para o cuidado seguro e efetivo baseado em evidências científicas33 Beltrami DGM, Chioro A. Agenda de desafios e soluções para um hospital contemporâneo: conhecendo o novo normal. In: Beltrammi DGM, Camargo VM, organizadores. Práticas e saberes no hospital contemporâneo: o novo normaL. São Paulo: HUCITEC; 2017. p. 47-55.. Uma dúvida sempre presente para a continuidade dos arranjos tecnológicos é a real possibilidade de manutenção destes mediante situações de mudanças, seja direção dos estabelecimentos, seja da própria gestão do Sistema Único de Saúde, ou mesmo das mudanças de coordenação de equipes assistenciais. A pandemia de COVID-19 trouxe uma oportunidade analítica ímpar para o entendimento do grau de institucionalização dos arranjos, em particular das ações interprofissionais em momentos de crise sanitária.
Em estudo realizado em hospital público de urgência e emergência, observou-se que os AT, em especial a classificação de risco de Manchester55 Cecílio LCO, Reis AAC, Andreazza R, Spedo SM, Cruz NLM, Barros LS, Carapinheiro G. Enfermeiros na operacionalização do Kanban: novos sentidos para a prática profissional em contexto hospitalar? Cien Saude Colet 2020; 25(1):283-292.,66 Carapinheiro G, Chioro A, Andreazza R, Spedo S, Souza ALM, Araujo EC, Correia T, Cecilio LCO. Nurses and the Manchester: rearranging the work process and emergency care? Rev Bras Enferm 2021; 74(1):e20200450. e o kanban77 Cecílio LCO, Correia T, Andreazza R, Chioro A, Carapinheiro G, Cruz NLM, Barros LS. Os médicos e a gestão do cuidado em serviços hospitalares de emergência: poder profissional ameaçado? Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00242918., têm alta adesão dos profissionais de saúde. Entretanto, assumem distintas configurações, com uma enorme plasticidade dada pelas características dos lugares e das equipes. São reconhecidos pelos profissionais como potentes formas de organizar o cuidado e indicam novos formatos de relações interprofissionais, no entanto, parece que não modificam as relações de poder e de autonomia profissional77 Cecílio LCO, Correia T, Andreazza R, Chioro A, Carapinheiro G, Cruz NLM, Barros LS. Os médicos e a gestão do cuidado em serviços hospitalares de emergência: poder profissional ameaçado? Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00242918..
Neste artigo, busca-se aprofundar como os AT incidem nas relações interprofissionais, a partir da perspectiva e do agir da enfermagem durante a pandemia de COVID-19. Este corpo profissional habita o hospital, são os profissionais que andam, conversam, organizam, sentem, executam, administram (espaços, pessoas, medicamentos e procedimentos) e dão e recebem ordens. O posto de enfermagem é, em todos os hospitais, a central de informações e de controle da vida da enfermaria, funciona como uma membrana, pois protege, regula e interage. A enfermagem atua no cotidiano - o diário, o interno, o constante, mas também no que é da ordem do irregular - o eventual, o externo, os passantes (médicos e outros profissionais, familiares e pacientes). Dito de melhor maneira, a pandemia de COVID-19 representou um analisador espontâneo (um quase-experimento) das relações interprofissionais e de sua institucionalização e sua potência para incidir sobre as relações de poder tão marcadas no hospital.
Em estudo recente88 Andreazza R, Chioro A. Inovações tecnológicas em gestão do cuidado hospitalar: impactos da Política Nacional de Atenção Hospitalar na micropolítica e na produção do cuidado em um hospital de referência do SUS no município de São Paulo [relatório técnico-científico]. São Paulo; 2002. DOI:10.13140/RG.2.2.19414.37449
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, demonstrou-se que a alta responsável (AR) é um arranjo mais complexo do que sua definição, pois a extravasa como processo de transferência do cuidado realizado a partir das “orientações dos pacientes e familiares quanto à continuidade do tratamento, reforçando a autonomia do sujeito, articulando a continuidade do cuidado com os demais pontos de atenção da RAS, em particular a Atenção Básica (ABS); e implantação de mecanismos de desospitalização, visando alternativas às práticas hospitalares, como as de cuidados domiciliares pactuados na RAS”44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Clínica ampliada e compartilhada. Brasília: MS; 2009. . Ou seja, ao buscar uma integração e uma articulação com o mundo externo ao hospital, acaba por produzir conexões com outros arranjos e serviços, com os diferentes profissionais internos ao hospital e com os usuários e suas famílias.
A pandemia de COVID-19 foi um elemento que atravessou o estudo referido88 Andreazza R, Chioro A. Inovações tecnológicas em gestão do cuidado hospitalar: impactos da Política Nacional de Atenção Hospitalar na micropolítica e na produção do cuidado em um hospital de referência do SUS no município de São Paulo [relatório técnico-científico]. São Paulo; 2002. DOI:10.13140/RG.2.2.19414.37449
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. A mais grave crise sanitária dos últimos 100 anos virou do avesso, provocou profundas mudanças e testou a resiliência dos serviços e sistemas. O hospital foi capaz de uma plasticidade inimaginável, no sentido de alterar fluxos, criar espaços de cuidado, transformar enfermarias, treinar e aprender a como enfrentar uma doença desconhecida. Superlotou as emergências, obrigou a reorganização assistencial do hospital e exauriu as equipes com adoecimentos e afastamentos; mas a COVID também foi utilizada pelos que se opõem aos AT que têm aspectos de humanização como argumento para desinvestir ou até mesmo abandonar seu uso. As reuniões de equipe foram suspensas; as visitas dos familiares foram proibidas; a ausência da rede num primeiro momento da pandemia, em particular da ABS e das ações de vigilância, reforçou a cultura de centralidade do hospital, incluindo os serviços de urgência e emergência, para o cuidado à saúde. Como já dito, há indícios fortes de que a ação da enfermagem, o seu agir, como mediadora das ações interprofissionais foi testada durante a pandemia.
Visando contribuir para a efetiva implantação de práticas de gestão e assistenciais baseadas em evidências científicas, o objetivo deste artigo é o de analisar as relações interprofissionais produzidas a partir do arranjo tecnológico da alta responsável (AR), com foco no agir e na perspectiva da enfermagem durante o período da pandemia de COVID-19 em um hospital geral. Busca-se, assim, compreender se a AR é de fato um dispositivo99 Deleuze G. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense; 2013. de governo capaz de incidir nas relações de poder presentes entre os profissionais.
Percurso metodológico
Trata-se de um estudo de caráter qualitativo, tipo estudo de caso1010 Poupart J, Deslauries JP, Groulx AL, Myer R, Pires A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Editora Vozes; 2008., que empregou distintas técnicas de produção de dados, sumarizadas no Quadro 1. Este artigo faz parte de uma investigação mais ampla financiada pela FAPESP (PPSUS-2019)88 Andreazza R, Chioro A. Inovações tecnológicas em gestão do cuidado hospitalar: impactos da Política Nacional de Atenção Hospitalar na micropolítica e na produção do cuidado em um hospital de referência do SUS no município de São Paulo [relatório técnico-científico]. São Paulo; 2002. DOI:10.13140/RG.2.2.19414.37449
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, com o objetivo geral de “analisar arranjos tecnológicos de gestão do cuidado previstos na PNHOSP em um hospital de referência do SUS no município de São Paulo”.
A perspectiva qualitativa assumida entende que a produção de conhecimento ocorre também a partir do estudo da micropolítica1111 Cecílio LCO. Balanço de itinerário: o segundo deslocamento. In: Cecilio LCO. A micropolítica do hospital: um itinerário ético-político de intervenções e estudos [tese de livre docência]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2007., que possibilita revelar as distintas e imbricadas relações que são produzidas de forma criativa ou conservadora no cotidiano dos serviços de saúde. Dada a premissa epistemológica, buscou-se visibilizar as ações e as práticas, entendidas como experiências, no sentido proposto por Lapojaude (2017)1212 Lapoujade D. William James, a construção da experiência. São Paulo: n-1 Edições; 2017., ou seja, que “aquilo que realmente existe não são as coisas feitas, mas as coisas se fazendo” (p. 11). A principal técnica de produção de dados foi a observação participante, realizada por nove meses na enfermaria escolhida de um estabelecimento hospitalar de grande porte.
O hospital investigado é referência para média e alta complexidade e integra a rede do SUS no município de São Paulo. A AR foi escolhido em uma oficina que listou trinta ATs implantados no hospital antes da pandemia de COVID-19. A escolha deste AT e de uma enfermaria como lócus da investigação foi decidida no colegiado de gestão da investigação, dispositivo criado para conduzir o estudo, composto pela direção do hospital e pelos coordenadores da pesquisa. A enfermaria não era dedicada exclusivamente a pacientes com COVID, ainda que ali houvesse também casos da doença.
Os atores ligados ao hospital participaram de todas as fases da pesquisa, incluindo nos seminários ampliados de pesquisa: encontros quinzenais para processamento das atividades de campo e análise do material empírico produzido. Empregou-se, ainda, a técnica de restituição1313 Altoé S, organizadora. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. dos achados durante o processo de observação para a equipe multiprofissional da enfermaria de nefrologia.
Para a socioanálise, a restituição “supõe que se deva, e se possa, falar de algumas coisas que em geral são deixadas à sombra. Essas coisas seriam as comumente silenciadas, faladas apenas em corredores, cafés [...]” (Altoé, p. 53)1313 Altoé S, organizadora. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004.. Ela visa, portanto, não apenas a validação dos resultados, mas a reflexão conjunta com os atores para a construção de uma analítica interpretativa dos achados. Dito de outra maneira, não são os pesquisadores, como especialistas, de fora, que interpretam os resultados a partir de uma hermenêutica da empiria. Para Lourau, a utilização da técnica da restituição “supõe um mínimo de cogestão, coparticipação, entre objeto e pesquisador” (p 55)1313 Altoé S, organizadora. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004..
Para fins deste artigo serão utilizadas além das observações na enfermaria do hospital, as entrevistas com os enfermeiros e o seminário compartilhado de restituição da enfermagem, do qual participaram os enfermeiros coordenadores e assistenciais, técnicos e auxiliares de enfermagem que atuam na enfermaria estudada. Este seminário compartilhado surgiu como uma estratégia metodológica não prevista a priori, pois o “silêncio” das enfermeiras nos seminários compartilhado/restituição com a equipe parecia dizer algo, ou seja, um analisador, tal qual definido por Lourau1313 Altoé S, organizadora. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004., como “aqueles acontecimentos que podem [...] que fazem aparecer, de um só golpe, a instituição ‘invisível’ [...]” (p. 35) do trabalho da enfermagem, da relação deste corpo profissional com os demais profissionais e com o arranjo da AR.
Para a construção da analítica dos achados foram produzidas quatro grandes narrativas1414 Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D'Água Editores; 1992. p. 27-57.,1515 Campos RTO, Furtado JP. Narrativas: utilizac¸a~o na pesquisa qualitativa em sau´de. Rev Saude Publica 2008; 42(6):1090-1096.. Elas foram escritas por três pesquisadores e mesclaram os dados produzidos pelas diferentes estratégias metodológicas empregadas, após a leitura extensa do material transcrito (entrevistas e seminários compartilhados de restituição), dos diários de campo e do processamento dos achados nos seminários ampliados, representando o corpus empírico da investigação. Posteriormente, as narrativas foram discutidas e analisadas em quatro seminários ampliados. A aposta na construção de uma política de narratividade1616 Dias RM, Passos E, Silva MMC. Uma política da narratividade: experimentação e cuidado nos relatos dos redutores de danos de Salvador, Brasil. Interface (Botucatu) 2016; 20(58):549-558. demonstrou-se potente para a produção da analítica. A partir desse processo, foram destacados dois planos de visibilidade relacionados ao trabalho interprofissional, que serão descritos no próximo item, divididos pela intencionalidade analítica, mas que se conectam e são imanentes entre si.
Como referenciais teóricos para análise, tomou-se, além dos conceitos da socioanálise1313 Altoé S, organizadora. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004., elementos da sociologia das profissões1717 Machado MH. Sociologia das profisso~es: uma contribuic¸a~o ao debate teo´rico. In: Machado MH. Profisso~es de sau´de: uma abordagem sociolo´gica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1995. p. 13-33., utilizando-se a autonomia como marcador do poder profissional, e as definições de tipos de equipe e de trabalho em equipe1818 Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev Saude Publica 2001; 35(1):103-109.
19 Ceccim RB. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu) 2018; 22(Supl. 2):1739-1749.
20 Furtado JP, Laperrière H, Silva RR. Participação e interdisciplinaridade: uma abordagem inovadora de meta-avaliação. Saude Debate 2014; 38(102):468-481.-2121 Furtado JP. Equipes de referência: arranjo institucional para potencializar a colaboração entre disciplinas e profissões. Interface (Botucatu) 2007; 11(22):239-255. que estão descritas no Quadro 2.
As entrevistas dos seminários foram transcritos, com a assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido. A investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo e do hospital estudado.
Resultados e discussão
Constituída majoritariamente por mulheres, a enfermagem no Brasil comporta hoje distintas funções, papéis e formações, ocupando os cargos de coordenação, administração e assistência; as técnicas de enfermagem realizam os cuidados diários com os pacientes e as auxiliares atuam conectadas com os pacientes. Ocupam todos os espaços, interagindo com médicos e outros profissionais, e com pacientes e seus familiares, dos quais são muitas vezes olhos e vozes, representando uma escuta potente.
Para além da alta responsável: a antropofagia dos arranjos tecnológicos do cuidado e a ambivalência da enfermagem na produção das relações interprofissionais
A alta responsável na perspectiva da enfermagem surgiu sempre associada a outros arranjos, particularmente com as visitas multiprofissionais, o kanban, a alta programada e os planos terapêuticos singulares. Chamadas a comentar esses arranjos, compõem uma antropofagia2222 Rolnik S. Antropofagia zumbi. São Paulo: n-1 Edições; 2021. dos mesmos e trazem para a cena singulares apropriações no cotidiano da enfermaria. Sobre as visitas multiprofissionais e o kanban, dizem:
Aqui nós temos a visita multi. [...]. A gente faz a visita multi, né? Mas, por causa da pandemia, meio que parou um pouquinho, porque não tem como passar com aquele monte de gente em todos os leitos. E o que eu faço é pegar o meu kanban, que é onde tem todas as informações mais importantes do paciente, passo de leito em leito, vendo esses dados [...].
O kanban, que tem como eixo a interprofissionalidade, transformou-se (ou deformou-se) num instrumento de controle efetuado solitariamente pela enfermagem. A interrupção das visitas multiprofissionais resultante dos impactos da COVID-19 revelou que a enfermagem não o percebia como um arranjo potente, pois, como dizem: era bom mas não era tudo isso [...] Particularmente, ajudava, mas não muito, não era cem por cento. Ao tentar explicar esta percepção, trazem à cena um exemplo de uma visita multiprofissional que era mais resolutiva, e contam:
Quando eu trabalhava numa outra clínica, tinha equipe [...], tinha um receptor lá, o doutor XX; [....] nós tínhamos a visita multi, que ali eu achava que funcionava, diferente da nossa. “Enfermeira YY [...], o quê que eu quero que a enfermagem faça pra esse paciente? Vamos tirar ele do leito, vamos sentar, eu quero curativo lá, ou curativo eu não quero, o paciente tem secreção, eu não quero que feche a ferida, o curativo. Fisioterapeuta, da sua parte, eu quero isso e isso...”, [....] “não quero que falem termo técnico, a conversa aqui vai ser pra todo mundo entender o que tá se falando”, [...] “e nutricionista, eu preciso disso, disso e disso de você”, então era prático, era uma visita prática, que a gente se reunia uma vez por semana, e dava gosto de ir, entendeu, então todo mundo conversava, e havia o interesse do médico de a gente melhorar aquele paciente pra devolver melhor pra sociedade.
Esta cena é um analisador da instituição médica em ação presente no hospital, pois é o médico que dá direção ao dizer a cada profissional o que é preciso ser feito. Reflete nessa visão uma equipe submissa ao poder-saber médico2323 Machado R. Introdução por uma genealogia do poder. In: Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Edições Graal; 2010.,2424 Carapinheiro G. Saberes e poderes no hospital, para uma sociologia dos serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento; 1993., sem perspectiva de autonomia de cada profissão e a possibilidade de construção de um plano comum2626 Henz AO, Garcia ML, Costa SM, Maximino VS. Trabalho entreprofissional: acerca do comum e acerca do específico. In: Capozzolo AA, Casetto SJ, Henz AO, organizadores. Cli´nica comum: itinera´rios de uma formac¸a~o em sau´de. Sa~o Paulo: Hucitec; 2013. p. 163-86. de ação; revela uma equipe com sobreposição de saberes, que age a partir de seus núcleos profissionais, atribuídos em distintos processos de profissionalização1717 Machado MH. Sociologia das profisso~es: uma contribuic¸a~o ao debate teo´rico. In: Machado MH. Profisso~es de sau´de: uma abordagem sociolo´gica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1995. p. 13-33., mas demandados a partir da autoridade médica.
O projeto terapêutico singular, outro arranjo implantado no hospital, parece não ser reconhecido pela enfermagem que atua na área assistencial. Foi lembrado quando uma enfermeira disse que deveria ter um plano de cuidado. Mas ele já existe e foi institucionalizado pela gestão, que atribui a cada um dos profissionais, inclusive o médico, a responsabilidade de inserir na plataforma digital seu plano de cuidado.
Por fim, um outro elemento da AR é exemplificado por uma das enfermeiras:
Então, aqui [no hospital], a gente tem um protocolo que é a alta programada. Tem uma autorização dessa alta no sistema, né, que fica no painel assistencial, [...] mas não é isso que acontece, porque a equipe médica passa visita aqui pela manhã, e do nada o paciente sai de alta, entendeu?! Então a enfermagem se prepara, conversa com a família, explica que vai ser feita uma programação de alta, mas a equipe médica dificilmente segue esse protocolo.
Se implementados, os arranjos enunciados pela enfermagem de fato poderiam compor uma maior possibilidade de uma alta responsável. Todos têm caráter multiprofissional, mas constatou-se que não estavam sendo operacionalizados a partir de um trabalho interprofissional. Tais relações almejadas estão na dimensão do conteúdo dos AT, pois pouco se expressam no cotidiano da enfermaria, em particular no momento da pandemia, quando sua implementação, a despeito do contexto de maior complexidade, seria ainda mais relevante e justificável.
Os profissionais da equipe estão presentes, a enfermagem reconhece e conecta os AT, mas não age no sentido de uma atuação mais interprofissional. A pandemia de COVID-19, que interrompe as ações mais compartilhadas até então realizadas pela equipe, torna-se um analisador de que há um reconhecimento das ações centradas nos núcleos profissionais. A objetividade do trabalho parece estar ligada às rotinas hospitalares com seus tempos demarcados, fortemente instituídos nos hospitais. As demandas clínicas e os distintos procedimentos e ações que os usuários estão submetidos durante uma internação comandam o agir da enfermagem que, ao valorar as visitas e/ou os espaços multiprofissionais, indica que para a agilidade necessária do seu trabalho é melhor que cada profissional demande seu núcleo específico de atuação; e que, ao final, o comando do trabalho interprofissional continua sendo dos médicos, ainda que eles também não assumam necessariamente este papel.
Há um reconhecimento de que os processos informatizados, como os planos de cuidado de cada profissional e a implantação dos AT, possibilitaram um aumento na autonomia profissional da equipe.
Por outro lado, mesmo com o reconhecimento pela enfermagem dos diversos profissionais e dos dispositivos de gestão do cuidado implantados no hospital, elas ressaltam a relutância dos médicos em aderir aos AT. As enfermeiras afirmam que isso se dá por uma ausência da cultura do cuidado no agir do médico; fato reconhecido pelos próprios médicos, pois o cuidado na perspectiva médica permanece mais centrado no diagnóstico e no tratamento clínico, pouco inundado pelo mundo da vida. De uma maneira ambivalente, a enfermagem deposita na autoridade médica, no seu poder-saber2323 Machado R. Introdução por uma genealogia do poder. In: Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Edições Graal; 2010.,2424 Carapinheiro G. Saberes e poderes no hospital, para uma sociologia dos serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento; 1993., a possiblidade de um trabalho interprofissional, ao mesmo tempo em que prescinde do trabalho interprofissional.
Alta médico-centrada e alta negociada: o entrecruzamento com os outros profissionais, com as famílias e com a vida “como ela é”
Quando o médico fala pro paciente que ele tá de alta, ele [o paciente] liga pra família, a família pega e sai do serviço, chega aqui, [no balcão da enfermagem] cadê a alta?! Isso pela manhã, a alta vai sair cinco ou seis horas da tarde?! Então a gente fica sendo pressionado: “Cadê a alta?” O usuário cobra da gente, não cobra o médico.
Nas observações e restituições realizadas no estudo ficou evidente que a decisão da alta é um ato dos médicos: [...] Os doutores eles conversam entre eles, né? Eles decidem, eles fazem a alta, [de manhã] e comunicam a gente aqui no balcão, produzindo estranhamentos em relação à dimensão organizacional do cuidado2525 Cecílio LCO, Lacaz FAC. O trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2012.. A “norma” interna da enfermaria sobre horário da alta é reveladora das relações entre os médicos, a enfermagem e os usuários, ou seja, mais um analisador1313 Altoé S, organizadora. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. do AT estudado e do trabalho interprofissional. É possível dizer que a organização do processo de trabalho relativo à alta tem centralidade no médico e que dele continua sendo a decisão sobre concedê-la; seus horários e suas rotinas de trabalho incidem e determinam as rotinas dos outros profissionais, que devem se subordinar ao seu processo de trabalho, bem como as das famílias e dos usuários. De alguma forma esse fato parece também justificar a interrupção das ações interprofissionais durante a pandemia. Indica uma alta que é a do médico, é clínica, no sentido da doença que causou a internação. Mas a enfermagem percebe e lida com outras situações clínicas e sociais que influenciam a própria alta.
[...] a alta, dependendo do caso do paciente, tem várias pontas, né, se uma delas se solta não tem jeito, [...] então a gente tem o apoio da psicologia, serviço social, nutrição, entendeu, e tá todo mundo alinhado, mas às vezes a parte médica é a parte que solta essa ponta, e dificulta o nosso trabalho na hora da alta. Por exemplo: “tá de alta”, “como assim tá de alta? O cara acamado, totalmente dependente...”. Aí fica difícil, e tem alguns casos que a família não leva, não leva, [...] Porque... como vai levar? [...] Não se preparou, não tem um quarto adequado, não tem uma cama adequada, [...] então quando a equipe médica falha nessa parte, [...] quando não se segue o protocolo de alta assistida.
Ainda que seja um território do médico, a alta é negociada pelo agir da enfermagem, que conversa com os médicos, pois tende a incorporar em sua ação a dimensão de uma clínica mais ampliada, e aciona os membros da equipe:
[...] a gente conversa com o médico, fala que o paciente não tem condições de ir embora porque, cadê a programação do respirador? Do aspirador? Cadê a programação do O 2 ? Se ele vai com O 2 ou não: se não vai com O 2 , beleza, a gente encerra ali, mas se vai com O 2 , como é que faz, se a família não tem o O 2 disponível? Quem vai cuidar dessa ferida? Quem vai acompanhar esse paciente em casa? Às vezes com antibiótico ou terapia VO por sonda, quem vai orientar esse familiar em casa pra fazer essa medicação? Quem vai acompanhar a evolução dessas feridas? Então a gente mostra pra eles que não é bem assim, né?
A alta em si é muito mais complexa do que a alta médica, pois vai necessariamente envolver outras dimensões do cuidado2626 Henz AO, Garcia ML, Costa SM, Maximino VS. Trabalho entreprofissional: acerca do comum e acerca do específico. In: Capozzolo AA, Casetto SJ, Henz AO, organizadores. Cli´nica comum: itinera´rios de uma formac¸a~o em sau´de. Sa~o Paulo: Hucitec; 2013. p. 163-86. - familiar, profissional ou aquelas relacionadas à continuidade do cuidado. Nesse momento, o médico e os outros profissionais acabam interagindo mediados pela ação da enfermagem. É indubitável o agir da enfermagem na ampliação da percepção de outras necessidades do paciente e na formação de um canal de comunicação entre a equipe e os familiares, mesmo que não se constitua como um plano comum de ação2626 Henz AO, Garcia ML, Costa SM, Maximino VS. Trabalho entreprofissional: acerca do comum e acerca do específico. In: Capozzolo AA, Casetto SJ, Henz AO, organizadores. Cli´nica comum: itinera´rios de uma formac¸a~o em sau´de. Sa~o Paulo: Hucitec; 2013. p. 163-86..
Os enfermeiros justificam, novamente, essas situações por uma ausência da cultura do cuidado no agir médico, como comenta um enfermeiro:
É o que eu falo, assim, é a cultura do cuidado, tá muito impregnada, quando eu digo é cuidado mesmo, não tô falando do cuidado clínico, o cuidado que tá impregnado em enfermagem, fisioterapeuta, nutrição, serviço social, não tá na cultura médica, ainda, por enquanto. Então, quando isso impregnar na cultura médica, [...] lógico que não são todos os médicos, [...] às vezes até cobra da gente, mas no geral, [...] 90% dos médicos não se importam com isso, é como se fosse “a responsabilidade não é minha, legal, o que vai acontecer lá na frente não é problema meu”.
Reforçam, dessa forma, que os médicos conseguem uma ação interprofissional quando eles querem, pois eles detêm o poder, todavia reconhecem que esse profissional não tem a cultura do cuidado, que estaria presente nos outros profissionais, mas que por menor autonomia ou menor grau de profissionalismo, não conseguem mudar o vetor da autoridade médica.
Um outro profissional destacado pela enfermagem são as assistentes sociais, acionadas tanto pela enfermagem quanto pelos médicos por deterem a chave de conexão com a rede, conectando o mundo externo ao hospital, numa ação própria daquele núcleo profissional. São as assistentes sociais, por exemplo, que fazem tanto a regulação para a realização da hemodiálise como para a atenção básica ou para as equipes multiprofissionais de atenção domiciliar.
Diferentemente da ambivalência evidenciada no item anterior, no caso da AR, a enfermagem passa a negociar a alta, a comandar a equipe multiprofissional2727 Agreli HF, Peduzzi M, Silva MC. Atenção centrada no paciente na prática interprofissional colaborativa. Interface (Botucatu) 2016; 20(59):905-916. a partir das demandas específicas para os diferentes profissionais, cada qual em seu núcleo profissional. Continua, de certa forma, no controle do cuidado por uma ausência dessa perspectiva no agir médico, e isso lhe confere especificidade profissional, exercendo aqui uma autonomia elástica tal qual denominado por Carapinheiro2424 Carapinheiro G. Saberes e poderes no hospital, para uma sociologia dos serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento; 1993..
Além das condições clínicas em si, surgem no agir da enfermagem as condições objetivas de vida, que atravessam as situações clínicas e constituem outro elemento da alta negociada.
Tem extrema pobreza também, né, tem uma paciente com uma sacola cheia de roupa, gente, que o filho trouxe, ela tem um filho né, as roupas todas sujas, a gente nem tem como por nela essa roupa dela, aí você já imagina que é uma paciente de extrema pobreza, entendeu? Sabe? Você já imagina a situação, então assim, também, sei lá, acho que tudo isso dificulta né. Porque você sabe que na hora que tiver alta vai ter problemas [...].
Tais situações foram captadas tanto na observação da enfermaria como nos relatos das entrevistas e nos seminários de restituição dos achados. Elas desvelam a complexidade da alta responsável, para além da continuidade do cuidado em uma dimensão clínica, exigindo a constituição de redes de atenção mais complexas, que possam produzir cuidado para além da mera oferta de serviços médicos. O hospital estudado revela que para além do lugar confortável estabelecido para os núcleos profissionais na perspectiva profissional, existem territórios existenciais, e as desigualdades sociais invadem a enfermaria.
A visibilidade da vulnerabilidade social é presente logo na internação, e a dimensão familiar do cuidado2525 Cecílio LCO, Lacaz FAC. O trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2012. atravessa a alta médica como dimensão negligenciada. O olhar atento da enfermagem, que está no dia a dia na enfermaria, no leito, com o paciente e com sua família, chega a antever as possibilidades e as dificuldades da alta pelos pertences encontrados nas gavetas das mesas de cabeceira do leito:
A gente [...] só de você abrir a gavetinha do paciente, você tem uma imagem do paciente, da família do paciente, da atenção da família, sabe, você tem ideia que se ele tiver alta ele vai embora rápido, porque a família, sabe, é presente.
Outro aspecto relatado são os pacientes que vivem de forma uniparental, sozinhos, sem rede de apoio, condição agravada e cada vez mais frequente pelo envelhecimento populacional.
A gente tem paciente de 50 anos, faixa de 50, 60, que não é uma faixa tão idosa assim, mas são pacientes sozinhos, que moram sozinhos, aí a gente precisa do apoio da assistente social pra arrumar uma casa de acolhimento pra eles ficarem, como já aconteceu com alguns pacientes nossos.
E as altas que não acontecem quando o paciente está muito grave, quando o paciente ganha tráqueo, úlcera, fica acamado, sonda, e considerando que a família vem no primeiro e no segundo dia, no terceiro some, então você já pega um paciente que vai ter dificuldade de alta.
São histórias marcantes que revelam a “a vida como ela é” e invadem a enfermaria. Uma alta responsável tem necessariamente que incorporar as condições objetivas (materiais e imateriais) de existência, exigindo maior articulação com os territórios existenciais, com ações interdisciplinares e intersetoriais.
O corpo de enfermagem habita a enfermaria, conhece não só os fluxos, regulamentos, mas os médicos e os demais profissionais da equipe, que poderão agir para um melhor cuidado e para uma alta responsável. São profissionais que estão em diferentes momentos com os pacientes e seus familiares, reconhecendo outras necessidades de saúde das pessoas ali internadas. Ao entrecruzar os saberes se movem negociando a alta com os médicos e conectando os outros profissionais2727 Agreli HF, Peduzzi M, Silva MC. Atenção centrada no paciente na prática interprofissional colaborativa. Interface (Botucatu) 2016; 20(59):905-916.,2828 Matos E, Pires DEP, Sousa GW. Relações de trabalho em equipes interdisciplinares: contribuições para novas formas de organização do trabalho em saúde. Rev Bras Enferm 2010; 63(5):863-869., mas agem também no sentido da conservação das relações de poder e de controle instituídas no hospital.
Agem a partir de uma inteligência astuciosa2929 Dejours C, Abdoucheli E. Itinerário teórico em psicopatologia do trabalho. In: Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C, Betiol MIS, organizadores. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 1994. p. 119-145., pois os enfermeiros, ao não se submeterem ao ato médico em si, também não os confrontam diretamente, nem mesmo nos seminários de restituição que contavam com a participação deles, onde silenciaram. Os profissionais de enfermagem buscam brechas e negociam, têm uma forte percepção analítica do agenciamento hospitalar como território “médico”, com seu poder-saber2323 Machado R. Introdução por uma genealogia do poder. In: Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Edições Graal; 2010.,2424 Carapinheiro G. Saberes e poderes no hospital, para uma sociologia dos serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento; 1993.. Reforçam, ainda, o papel central do hospital no cuidado, expressando pouco, ou quase nada, o papel da rede na continuidade do cuidado.
O silêncio dessas profissionais observado nos seminários multiprofissionais de restituição da pesquisa compõem uma estratégia de proteção, uma inteligência astuciosa que permite buscar algumas linhas de fuga99 Deleuze G. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense; 2013. no complexo campo instituído de forças presentes na enfermaria e no próprio hospital. Mesmo revelando graus de autonomia elástica, ampliando inclusive a ação clínica, elas parecem não modificar substancialmente seus processos de profissionalismo, pois não modificam as relações hierárquicas e de poder instituídas no hospital.
A restituição com a enfermagem, complementar às observações participantes realizadas no estudo, compôs uma narrativa do cotidiano da enfermaria da nefrologia. Ao falarem, deram voz às relações que produzem com os outros profissionais da equipe, confirmando o poder-saber2323 Machado R. Introdução por uma genealogia do poder. In: Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Edições Graal; 2010.,2424 Carapinheiro G. Saberes e poderes no hospital, para uma sociologia dos serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento; 1993. dos médicos que durante a pandemia de COVID-19 se intensificou a ponto de causar a suspenção da própria visita e da reunião multiprofissional.
Falar de uma cultura de cuidado na qual o médico não é incluído, que não é cobrado pela gestão da mesma forma que os demais profissionais, revela a conhecida divisão social e técnica do trabalho3030 Donnangelo MCF, Ferreira L. Saude Soci. São Paulo: Duas Cidades; 1976., para além dos aspectos salariais. É também um analisador do regime de governamentabilidade3131 Foucault M. A governamentalidade. In: Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Edições Graal; 2010. do próprio hospital.
Indica que os AT por si, como um ato da gestão, podem perder potência para instituir novos formatos de trabalho: centrado nas necessidades dos usuários, que vão além de uma clínica de recuperação da doença, a partir de uma atuação interprofissional e interdisciplinar, o que permitiria a produção de singulares e múltiplos planos comuns de cuidado.
Considerações finais
Na análise micropolítica das relações entre os profissionais e das profissões, a partir da AR, na perspectiva da enfermagem, a medicina tecnológica, ancorada na biomedicina, e na autonomia médica é preponderante. Os outros saberes compõem, a partir de processos de conversação, uma alta negociada, mediada pelo agir da enfermagem. Cenário que recrudesceu durante a pandemia, que reforçou os papéis instituídos, inclusive do próprio corpo da enfermagem
A intencionalidade do trabalho interprofissional, claramente esboçado no projeto institucional do hospital, e a existência de equipe multiprofissional na enfermaria não foram suficientes para produzir um campo comum para o cuidado interdisciplinar. Os profissionais são acionados isoladamente; a enfermagem entrecruza os saberes e se move negociando a alta e acionado os profissionais numa relação ambivalente. Os médicos detêm e não abrem mão de seu poder; a enfermagem mantém uma submissão camuflada aos médicos e uma relação de parceria com os outros profissionais.
As visitas multiprofissionais foram interrompidas com a pandemia. Esse fato foi um analisador das ações interprofissionais, pois a enfermagem deixou evidente que não atribuía um valor positivo a esse arranjo. O agir da enfermagem no processo de alta lhe confere uma dada autonomia elástica. Contudo, a empiria do estudo não permite dizer que houve aumento da autonomia profissional, pelo contrário. Sem negar a maior profissionalização que os AT conferem aos diferentes profissionais, há evidências de que não houve mudanças nas relações de poder, que poderiam se expressar por uma maior autonomia da equipe multiprofissional, na produção de um trabalho interprofissional. A cultura hegemônica, centrada no saber-poder dos médicos, instituída no hospital se mantém e parece ter sido reforçada durante epidemia de COVID-19.
Por fim, é possível dizer que não se evidenciaram modificações substanciais nos papéis profissionais, bem como nos espaços materiais ou imateriais que poderiam propiciar maiores possibilidade de relações interprofissionais e/ou mesmo maior conexão com os usuários e suas singulares histórias e seus modos de existência. Por outro lado, os AT presentes no projeto institucional abriram condições materiais para o aumento da profissionalização da equipe e criaram espaços para que processos instituintes sejam produzidos na perspectiva da enfermagem. A AR por si só não se configurou como um dispositivo com potência para transformar as relações interprofissionais, que ainda se mantêm de forma multiprofissional e multidisciplinar.
Referências
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Financiamento
O artigo é parte dos resultados de uma investigação financiada pelo edital PPSUS-Fapep/CNPq - 2018 com o objetivo de “analisar arranjos tecnológicos de gestão do cuidado previstos na PNHOSP em um hospital de referência do SUS no município de São Paulo”.
Editores-chefes:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Out 2023 -
Data do Fascículo
Out 2023
Histórico
-
Recebido
28 Jul 2022 -
Aceito
01 Jun 2023 -
Publicado
13 Jul 2023