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PROCESSOS DIALÓGICOS NA EJA: REFLETINDO A PARTIR DA PSICOLOGIA CULTURAL

Procesos dialógicos en la EJA: reflejando a partir de la Psicología Cultural

RESUMO

Quais interações surgem ao se adotar uma postura dialógica nas práticas educacionais com jovens e adultos? Esta é uma questão que tentamos discutir no presente artigo que traz a Psicologia Cultural como arcabouço capaz de oferecer recursos para reflexão sobre os significados inerentes às atividades humanas de construção do conhecimento. A análise aqui destacada relata a experiência desenvolvida através do Projeto de Extensão Universitária do Departamento de Psicologia da Universidade de Brasília intitulado “Livros Abertos - Aqui Todos Contam” durante a realização de dois encontros de Leitura Dialógica em uma escola pública especifica para educação de jovens e adultos em Brasília, Distrito Federal. A experiência nos mostra como a possibilidade de consideração e interpretação dos valores e crenças das pessoas envolvidas em uma determinada atividade pode compor com os processos dialógicos de ensino e aprendizagem de todos os envolvidos.

Palavras-chave:
Processos dialógicos; psicologia cultural; Educação de Jovens e Adultos

RESUMEN

¿Cuáles interacciones surgen al adoptarse una postura dialógica en las prácticas educacionales con jóvenes y adultos? Esta es una cuestión que intentamos discutir en el presente artículo que trae la Psicología Cultural como estructura capaz de ofrecer recursos para reflexión sobre los significados inherentes a las actividades humanas de construcción del conocimiento. El análisis aquí destacado muestra la experiencia desarrollada por intermedio del Proyecto de Extensión Universitaria del Departamento de Psicología de la Universidad de Brasília intitulado “Livros Abertos - Aqui Todos Contam” durante la realización de dos encuentros de Lectura Dialógica en una escuela pública específica para educación de jóvenes y adultos en Brasília, Distrito Federal. La experiencia nos apunta como la posibilidad de consideración e interpretación de los valores y creencias de las personas abarcadas en una determinada actividad puede componer con los procesos dialógicos de enseñanza y aprendizaje de todos los involucrados.

Palabras clave:
Procesos dialógicos; psicología cultural; educación de jovenes y adultos

ABSTRACT

What interactions arise when adopting a dialogical stance in educational practices with young people and adults? This is a question that we try to discuss in this article, which brings Cultural Psychology as a framework capable of offering resources for reflection about the meanings inherent in human activities of knowledge construction. The analysis highlighted here reports the experience developed through the University Extension Project of the Psychology Department of the University of Brasília entitled “Livros Abertos - Aqui Todos Contam” during the realization of two Dialogic Reading meetings in a public school for the education of young people and adults in Brasília. Experience shows us how the possibility of considering and interpreting the values ​​and beliefs of the people involved in a certain activity can be part of the dialogic teaching and learning processes of all those involved.

Keywords:
Dialogical processes; cultural psychology; youth and adult education

INTRODUÇÃO

A escola, na contemporaneidade, apresenta complexidades que tornam necessária a reflexão sobre a sua função e a qualidade de ensino que garante aos estudantes. Segundo Gentili (1995Gentili, P. (Ed.). (1995). Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. Petrópolis: Vozes.), a exclusão escolar não se dá apenas pelo não acesso à matrícula institucional, mas também por um processo de ensino de baixa qualidade, que prejudica a permanência do estudante no ambiente educacional. Dubet (2003Dubet, F. (2003). A escola e a exclusão. Cadernos de Pesquisa, (119), 29-45.), ao discutir a função social da escola, aponta para o fato de que a exclusão tende a ser parte da experiência escolar de todos os alunos, se considerarmos o projeto homogeneizado e massificado da educação, uma vez que a pluralidade inerente à condição de indivíduos em desenvolvimento é desconsiderada.

Nesse cenário, no plano ideal, a Educação de Jovens e Adultos - doravante EJA, como é comumente chamada no Brasil, é apresentada como um campo marcado por grandes desafios da Educação Básica, parte de um conjunto de esforços da sociedade para a superação de desigualdade social e educacional, a formação de trabalhadores e o exercício de cidadania (Freire, 2011Freire, P. (2011). Educação de Adultos: algumas reflexões. In: M. Gadotti; J. E. Romão (Eds.), Educação de Jovens e Adultos: teoria, prática e proposta (12ª ed., pp. 15-32). São Paulo: Cortez.). Tais desafios são enfrentados no cotidiano dos estudantes, pela reivindicação de seu direito à educação de qualidade e pelos profissionais de educação que estejam empenhados na construção de possibilidades de aprendizagens significativas e sensíveis, em sua prática educativa.

Furtado (2015Furtado, Q. V. (2015). Jovens na Educação de Jovens e Adultos: produção do fracasso e táticas de resistência no cotidiano escolar. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB.) aponta, a partir de uma análise de pesquisas realizadas sobre o tema, que as políticas de educação para jovens e adultos têm dedicado maior atenção à certificação como resposta à necessidade de formação da mão de obra para um mercado de trabalho, cada dia mais complexo e exigente, do que para o compromisso com a formação do cidadão consciente e crítico. Segundo Haddad e Di Pierro (2000Di Pierro, M. C. (2000). As políticas públicas de educação básica de jovens e adultos no Brasil do período 1985/1999 (Tese de Doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Recuperado dehttp://www.bdae.org.br/dspace/handle/123456789/2286
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), essa ênfase no caráter formativo profissional deriva da reforma do estado brasileiro, momento tido como uma espécie de guinada neoliberal das políticas públicas de maneira geral.

O contexto neoliberal tem efeitos ainda mais acentuados na EJA do que em outros níveis educacionais (cf. Costa & Machado, 2018Costa, C. B.; Machado, M. M. Políticas públicas e educação de jovens e adultos no Brasil. São Paulo: Cortez Editora. 2017.). Isso se deve em grande parte à ênfase que se deu, no Brasil, e a partir dos anos 1990, sob a influência direta do Banco Mundial, à expansão do ensino fundamental e manutenção dos estudantes no fluxo na idade esperada (DiPierro, 2000Haddad, S.; Di Pierro, M. C. (2000). Satisfação das necessidades básicas de aprendizagem de jovens e adultos no Brasil: contribuições para uma avaliação da educação para todos. ISeminário Nacional sobre Educação para Todos: Implementação de compromissos de Jontiem no Brasil. Recuperado dehttp://www.bdae.org.br/dspace/bitstream/123456789/2374/1/haddad_Pierro_EJA.pdf
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). Como efeito, a EJA foi deixada em segundo plano na distribuição do já escasso financiamento público, tendo sido considerada uma forma de educação subalterna (Moura, 2017Moura, A. P. A. (2017). Construção da identidade do docente da Educação de Jovens e Adultos: Contribuições da prática de ensino e da extensão universitária. In: A. P. A. Moura; E. Serra(Eds.), Educação de Jovens e Adultos em debate (pp. 154-173). Jundiaí, SP: Paco Editorial.), mas seu total abandono foi revestido por uma justificativa “técnica” por parte do Banco Mundial e dos governos que seguem sua cartilha. Torna-se prevalente a perspectiva de “fechar a torneira do alfabetismo adulto” com a concentração exclusiva dos recursos no ensino regular.

De acordo com Leite e Campos (2019Leite, G. G.; Campos, J. A. P. P. (2019). Perfil escolar de estudantes com deficiência na Educação de Jovens e Adultos, nível ensino médio. Revista Educação Especial, 32. http://dx.doi.org/10.5902/1984686X
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) o perfil predominante dos estudantes da EJA, na rede pública brasileira, não se constitui de pessoas não alfabetizadas, mas de trabalhadores, do sexo masculino, que já tiveram experiências escolares anteriores malsucedidas e que buscam na EJA uma oportunidade de valorização pessoal e ascensão profissional.

O cenário acima esboçado não é exclusivo do Brasil nem de países ditos emergentes. No Reino Unido, Ade-Ojo e Ducksworth (2017Ade-Ojo, G.; Duckworth, V. (2017). Of cultural dissonance: the UK’s adult literacy policies and the creation of democratic learning spaces. International Journal of Lifelong Education, 36:4, 388-405. https://doi.org/10.1080/02601370.2016.1250232
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) analisam as transformações na EJA (Adult Literacy) em termos de percepções, práticas e políticas. Os autores incidem o foco no ponto crucial da existência e do encorajamento dos espaços democráticos de aprendizagem propostos por Paulo Freire, ou seja, espaços de aprendizagem onde todos podem participar igualmente e em que são reconhecidas as estruturas de poder encrustadas em formas de conhecimento. Concluem que, a partir da década de 1970, houve um crescente esvaziamento do sentido desses espaços, como efeito da dissonância cultural entre o ethos dos espaços inspirados por Freire, pautados pelo conceito de Capital Social, e o ethos contemporâneo hegemônico, pautado no conceito de Capital Humano. Enquanto o conceito de Capital Social está associado ao ethos da proximidade, conexões comunitárias e redes de suporte, o Capital Humano está associado à produtividade quantificável, custos da educação, renda e mercado.

Ade-Ojo e Ducksworth (2017Ade-Ojo, G.; Duckworth, V. (2017). Of cultural dissonance: the UK’s adult literacy policies and the creation of democratic learning spaces. International Journal of Lifelong Education, 36:4, 388-405. https://doi.org/10.1080/02601370.2016.1250232
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) mostram como a crescente dominância do Capital Humano afetou a educação de adultos no Reino Unido, levando ao progressivo desaparecimento dos espaços democráticos de aprendizagem. Nota-se que há um movimento muito semelhante no Brasil, onde a implementação do ethos do Capital Humano é acompanhada da difamação de ideias associadas ao ethos do Capital Social (vide a constante vilificação da figura de Paulo Freire, intensificada na virada ultraliberal-autoritária pós-2016). A análise de Ade-Ojo e Ducksworth nos ajuda a compreender o porquê, nesta pesquisa, as rodas dialógicas e os temas nelas tratado produziram conflitos tão intensos ao constituir um espaço democrático, pautado na autonomia e na construção dialógica de sentidos, contrário ao movimento de destruição do ethos do Capital Social no EJA.

Partindo da noção de educação como prática histórica e culturalmente constituída e da compreensão de que indivíduo e sociedade se constroem de modo interdependente, a Psicologia Cultural oferece ferramentas para pensar os processos de ensino e aprendizagem para além do treino das habilidades de leitura e escrita, fornecendo também recursos teóricos para reflexão sobre os significados inerentes à atividade exclusivamente humana de construção do conhecimento. Desse modo, o presente artigo tem como objetivo refletir sobre um projeto de extensão da Universidade de Brasília, que criou possibilidades de interações entre mediadores de leitura, e professoras e estudantes de EJA de uma escola do Distrito Federal.

Pretendemos ainda discutir o papel das práticas de mediação de leitura e, mais especificamente, da leitura dialógica no desenvolvimento humano. Com esse intuito consideraremos o modo como operam as práticas sociais em conexão com valores e crenças e como esses se ressignificam, transformando o contexto ao se converterem, também, em valores pessoais (Branco & Valsiner, 2012Branco, A. U.; Valsiner, J. (2012). Cultural psychology of human values. Charlotte, NC: Information Age Publishing.).

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: DESAFIOS E QUESTÕES

A EJA é um direito assegurado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)1 1 Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996 - p. 13. oferecido gratuitamente às pessoas que não tiveram acesso à alfabetização nem lograram frequência escolar contínua nas idades associadas aos ciclos regulares formais de educação. Segundo a LDBEN (1996), o poder público deverá estimular o acesso e permanência do jovem e do adulto não letrado na escola, se necessário, por meio de programas específicos como a EJA. Em 2000, o parecer nº 1, do Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB 11/2000Resolução CNE/CEB nº 1, de 5 de julho de 2000. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação e Jovens e Adultos. Presidência da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação.), estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, definindo as funções, objetivos e bases legais do funcionamento da EJA.

Existem explícitas na concepção da EJA presente na legislação algumas suposições que cabe aqui problematizar. Uma delas é a ideia de um tempo certo para a alfabetização ou para qualquer processo de desenvolvimento humano; outra é a naturalização da ideia de que sujeitos com idades diferentes e/ou experiências diferenciadas de escolarização não podem aprender juntos. Essas visões são objetos de crítica no campo da psicologia e da educação. Nesse último campo, destaca-se o trabalho de Paulo Freire (1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.) que argumenta que não existe idade certa ou errada para aprender; a aprendizagem é um processo constante e inesgotável, no tempo irreversível. Como efeito, os estudantes da EJA não são aprendizes fora do tempo, mas dando continuidade a ciclos ininterruptos de aprendizagens iniciados desde o nascimento (alguns até antes). Novos saberes inevitavelmente transformam e dão novo sentido a saberes já existentes, de forma inseparável da realidade sócio-histórica e cultural. Assim acontece também, obviamente, com os educadores, que aprendem enquanto ensinam, pois nossa capacidade de aprendizado é igualmente constante e infinita (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.).

Uma segunda ideia que é necessário problematizar, a partir de vertentes contemporâneas da psicologia do desenvolvimento é a ideia de ‘período crítico de desenvolvimento’. Herdada da psicologia e biologia evolucionistas, esta é frutífera quando se aplica a fenômenos pontuais do desenvolvimento biológico (e.g., desenvolvimento embrionário), mas não é passível de generalização para a maior parte dos processos de desenvolvimento humano. A hipótese do período crítico refere-se à melhor combinação entre maturação do sistema nervoso e exposição a estímulos ambientais, que definiria o momento mais adequado do curso de vida para a ocorrência de processos de desenvolvimento específicos, fora do qual esses seriam dificultados ou mesmo impossíveis (Robson, 2014Robson, A. L. (2014). Critical/Sensitive Periods. In: N. J. Salkind (Ed.), Child Development(pp. 101-103). New York: Macmillan Reference USA.). Hoje, a aplicação deste conceito à aprendizagem é considerada controversa e acumulam-se evidências teóricas e empíricas que apoiam sua refutação. As evidências mais promissoras são oferecidas por abordagens psicológicas que argumentam que as aprendizagens não apenas respondem a processos de maturação biológica, elas podem ser oportunidade de transformação do próprio sistema nervoso pela interação com a cultura. Ademais, com a maior expectativa de vida da população e o tempo prolongado de trabalho, o tema da aprendizagem no curso de vida tem importância crescente e deve ser objeto de mais pesquisas (Lopes de Oliveira & Souza, 2019Lopes de Oliveira, M. C. S.; Souza, C. Z. (2019). Work, Collaboration and Adult Development on a Digital Platform for Permanent Education within the Brazilian Unified Health System (SUS): A cultural-semiotic approach. In: P. Bendassolli(Ed.), Culture, work and psychology: Invitations to dialogue (pp. 223-247). Charlotte (NC): Information Age.).

EJA e Psicologia Escolar

Embora a educação seja um contexto privilegiado de investigação pela psicologia, a EJA tem sido objeto de pouca atenção pelas pesquisas na área. Ao realizar a revisão de estudos recentes na interface de Psicologia Escolar e a educação de jovens e adultos percebemos que são poucos os estudos. Destacamos aqui alguns que entendemos estarem alinhados com a discussão que propomos uma vez que consideram aspectos sócio-históricos e dialógicos para a produção de conhecimento.

Gesser, Bolis, Cord, Oltramari e Pereira (2019Gesser, M.; Bolis, A.; Cord, D.; Oltramari, L. C.; Pereira, R. (2019). Educação de Jovens e Adultos e Psicologia: intervenções e saberes. Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais, 14(1), 388-398. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082016000200009
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) realizaram uma intervenção de Psicologia Escolar crítica em uma instituição de EJA, que visou criar um espaço dialógico para a reflexão dos professores acerca das significações da EJA. Aos poucos, como efeito da intervenção, os professores participantes passaram a prestar mais atenção à aprendizagem na vida adulta e conquistaram um olhar menos estereotipado sobre os estudantes. Também ficaram em evidência nos resultados do estudo: o reconhecimento do caráter político do trabalho em EJA, as inadequadas condições de trabalho dos professores da EJA e a busca coletiva por novas formas de atuação.

Alvarenga (2014Alvarenga, M. S. (2014). Linguagens e Experiência em Educação de Jovens e Adultos. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 22(59), 1-17.) descreve uma experiência com estudantes de EJA realizada em escola da periferia do Rio de Janeiro, que se constituiu em diálogos ao redor de textos e fotografias, que retratam a história da Educação de Jovens e Adultos no Brasil. A autora analisou a interrelação entre linguagem oral, textos e imagens e como estas mobilizaram experiências pessoais e a produção de sentidos pelos jovens, diante da desnaturalização da situação em que os jovens se encontram, convidando-os a conhecer a história da EJA. As situações dialógicas possibilitaram a reflexão e a mobilização de suas experiências, transformando a forma como se veem e como veem a própria EJA. A autora, no entanto, enfatizou mais a dinâmica e ou relação entre as diferentes modalidades de linguagem, quais sejam fotografias, textos, oralidade.

EJA e o Processo de Letramento

Sonia Kramer (2010Kramer, S. (Ed.). (2010). Retratos de Um Desafio: Crianças e Adultos da Educação. Rio de Janeiro. Editora Ática.) aponta que o conceito de alfabetização, refere-se a um processo de aprendizagem no qual se desenvolvem as habilidades de ler, escrever e interpretar, assim como as competências necessárias para se utilizar tais habilidades como parte de um código de comunicação com o meio sociocultural. Segundo Silva e Nascimento (2017Silva, E. I. C.; Nascimento M. R. M. (2017) A educação de jovens e adultos como transformação social - Belo Jardim. Recuperado de https://philpapers.org/archive/DASAED-4.pdf
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), o desenvolvimento da coordenação motora, aprendizagem do alfabeto, dos números e da formação de palavras são aquisições essenciais para a conquista da habilidade de leitura, compreensão de textos e uso da linguagem escrita. De acordo com eles, o processo de alfabetização amplia a possibilidade de socialização, uma vez que novas trocas simbólicas e culturais são propiciadas ao sujeito e ao contexto onde se insere.

Na atualidade, de modo crescente, a alfabetização tem sido compreendida como algo mais que o domínio da leitura e da escrita, uma discussão que tem sido enriquecida com o conceito de “letramento”. Sob essa perspectiva, letrar vai além de alfabetizar, remete à compreensão mais ampla da leitura e escrita . Sujeitos são considerados alfabetizados quando dão evidências de saberem ler e escrever, mas apenas são considerados letrados ao interpretarem o que leram e escreveram, tendo como pano de fundo o contexto, ou seja, quando são capazes de usar ambos os domínios de acordo com normas sociais, convertendo-os em ferramentas de interação escolar e social (Soares, M. B., 2000Soares, M. B. (2000). Letrar é mais que alfabetizar. Recuperado em 20 de outubro de 2018, de Recuperado em 20 de outubro de 2018, de https://letrasages.webnode.com.br/news/letrar-e-mais-que-alfabetizar-/
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).

Segundo L. Soares (2005Soares, L. (Ed.). (2005). Diálogos na educação de jovens e adultos. EJA, Estudos e Pesquisas. Belo Horizonte: Autêntica.), o público da EJA é constituído de jovens e adultos de camadas populares que, ao interromperem sua trajetória escolar, repetem histórias muitas vezes coletivas e familiares de subtração de direitos. Para a autora (Soares, L., 2005), ignorar o enraizamento socioeconômico e cultural desse fenômeno e desconhecer a identidade coletiva, social e popular de seu público comprometem a compreensão da própria identidade da Educação de Jovens e Adultos, com o risco de a modalidade ser encarada como mera oferta individual compensatória.

Considerando a escola como espaço de experiências complexas, plurais, de socialização e construção de conhecimentos, ela deve investir no desenvolvimento de pessoas capazes de analisar e compreender a realidade, posicionando-se criticamente na sociedade. No presente artigo, as atividades analisadas foram realizadas no âmbito do Projeto de Extensão Universitária denominado “Livros Abertos - Aqui Todos Contam”, parceria entre a Universidade de Brasília e a Secretaria de Educação do Governo do Distrito Federal, inciativa que realiza atividades de mediação de leitura sob a perspectiva dialógica em escolas do Distrito Federal (para uma descrição detalhada do Projeto, ver Moraes, Caldas, & Flores, 2020Moraes, A. P. S.; Flores, E. P. (2020). Compreensão e Interpretação de Narrativas no Contexto de Educação de Jovens e Adultos: Efeitos da Metodologia LuDiCa (Leitura Dialógica para a Compreensão). In: Ensinar e Aprender: Desafios para a Educação do Século XXI (1ª ed., pp. 169-187). Fortaleza: Imagine.).

MÉTODO

Dialogismo e Leitura Dialógica

A compreensão dialógica dos fenômenos humanos forma o referencial do presente estudo, o qual tem na dialogicidade a característica inerente ao desenvolvimento humano em seus aspectos psicológico, social, histórico e cultural. Dessa forma, o desenvolvimento pessoal e sociocultural são interdependentes e em constante interação, de maneira que tal mútua influência contribui para a evolução cultural da humanidade e vice-versa (Lopes de Oliveira, 2013Lopes de Oliveira, M. C. S. (2013). The Bakhtinian self and beyond: towards a dialogical phenomenology of the self. Culture & Psychology, 19(2), 259-272.).

Voltemos um pouco na linha do tempo para, junto com Marková e outros autores, refletirmos sobre as origens do pensamento dialógico e do conceito de dialogismo (Marková, 2006Marková, I. (2006). Dialogicidade e representações sociais: as dinâmicas da mente. Petrópolis, RJ: Vozes.). Essa autora cita algumas ideias fundamentais da filosofia neokantiana que embasaram a noção central de dialogismo no desenvolvimento humano, ou seja, a noção de que os seres humanos adquirem a consciência do Eu em conjunto com a tomada de consciência do Outro, através do engajamento em diferentes práticas de fala. Dentre os integrantes do movimento neokantiano que contribuíram para o delineamento do chamado “princípio dialógico”, encontramos nomes como: Herman Cohen, Franz Rosenzweig, Martin Buber, Eugen Rosenstock, Ferdinand Ebner e Gabriel Marcel. Embora eles não coincidam em relação à formulação do princípio dialógico, a contribuição deles para o pensamento social é ampla e inspira reflexões em diversos campos como religião, filosofia, linguística e política, e outros nos quais o princípio dialógico é uma base conceitual central (Marková, 2006Marková, I. (2006). Dialogicidade e representações sociais: as dinâmicas da mente. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Outro pensador de grande destaque na cena dialógica, embora este tenha orientação anti-kantiana (Bakhtin, 1993Bakhtin, M. (1993). Para uma filosofia do ato (C. A. Faraco & C. Tezza, Trad.). Austin: University of Texas Press. Traduzido do original não publicado ‘Toward a Philosophy of the Act’.; Lopes de Oliveira, 2013Lopes de Oliveira, M. C. S. (2013). The Bakhtinian self and beyond: towards a dialogical phenomenology of the self. Culture & Psychology, 19(2), 259-272.), portanto diversa dos anteriores, é o filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975). Bakhtin centrou seus estudos na área de análise literária e, para ele, a dialogicidade é a expressão da natureza relacional da mente humana, sendo essa a característica que nos possibilita construir infinitas interpretações da linguagem e do pensamento, próprio e alheio. A obra de Bakhtin destaca a alteridade como elemento essencial para a constituição do sujeito, ao assumir que é através do Outro, no histórico das relações sociais, que nos constituímos enquanto Ser existente. Iniciamos a vida aprendendo as palavras dos outros e, nesse processo, as diversas nuances do mundo dos outros tornam-se parte essencial de nossa consciência, assim como os aspectos culturais e sociais. Considerando com essa afirmação, a morte e a não existência estariam diretamente relacionadas ao estado de não ser ouvido, não ser reconhecido e não ser lembrado (Marková, 2006Marková, I. (2006). Dialogicidade e representações sociais: as dinâmicas da mente. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Inserindo mais elementos na discussão, Per Linell (2003Linell, P. (2003). Dialogical Tensions: On Rommetveitian Themes of Minds, Meanings, Monologues, and Languages. Mind, Culture, and Activity, 10(3), 219-229. DOI: 10.1207/s15327884mca1003_4
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) afirma que não há uma definição única para o termo “Dialogismo”, mas uma pluralidade delas, alinhadas com bases teórico-epistemológicas alternativas. Tendo em conta essa diversidade, Linell (2003)Linell, P. (2003). Dialogical Tensions: On Rommetveitian Themes of Minds, Meanings, Monologues, and Languages. Mind, Culture, and Activity, 10(3), 219-229. DOI: 10.1207/s15327884mca1003_4
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formula uma concepção própria de dialogismo que se apresenta como uma combinação epistemológica de hipóteses sobre a ação, a comunicação e a cognição humana, estruturada em torno dos seguintes eixos: interação entre as pessoas; interdependência entre discurso e contexto; aspectos sócio-históricos e culturais da comunicação e dialogicidade dupla, ou seja, as interações acontecem em dois planos através do uso da linguagem e da metalinguagem.

Finalmente, trazemos a contribuição de Amorim e Rossetti-Ferreira (2008Amorim, K. S.; Rossetti-Ferreira, M. C. (2008). Dialogismo e desenvolvimento humano. Revista Paidéia, 18(40), 235-250.) que, além de abordar a contribuição das ideias de Bakhtin para a Psicologia (o que não é o foco principal dos trabalhos anteriormente citados), as aproxima das contribuições da teoria do self dialógico. De acordo com Amorim e Rossetti-Ferreira (2008), as relações dialógicas podem ser descritas de diversas maneiras: (a) direta: trata-se da troca ativa e intersubjetiva, na comunicação imediata e direta, envolvendo dois ou mais parceiros que constroem juntos ações e interações; (b) indireta: refere-se aos processos dialógicos que acontecem mesmo quando a pessoa está sozinha, pois ela nunca age como um indivíduo isolado no mundo, mas em contínua dialogicidade, como parte de uma sociedade na qual outras pessoas estão, direta ou indiretamente, participando da coconstrução da ação individual; (c) através da imaginação: quando o parceiro ou interlocutor não está presente (por exemplo, na leitura ou redação de um texto), mas existe um diálogo com questões e respostas imaginadas dos outros; (d) e há o dialogismo dentro da própria noção de self dialógico (Hermans, 2001Hermans, H. J. M. (2001). The dialogical self: towards a theory of a personal and cultural positioning. Culture & Psychology, 7(3), 243-282.). Diante dos pontos apresentados, o dialogismo está intimamente conectado com a nossa habilidade de refletir, significar, criar e comunicar sobre as realidades sociais, diante de alteridades reais ou imaginadas. Assim, o dialogismo é um princípio importante de ser conhecido, relevante para o campo de estudo sobre processos de desenvolvimento humano e aprendizagens.

Outro aspecto que demonstra o valor heurístico da abordagem dialógica para a investigação de fenômenos psicológicos é sua perspectiva integrativa, ou seja, a tendência a realizar interpretações que considerem de maneira sistemática todas as dimensões envolvidas em um determinado fenômeno; assim como, também, a compreensão de que o contato das pessoas com o entorno social é sempre semioticamente mediado. Os conceitos de Self, Signo, Outro, Tempo e Experiência representam, assim, o conjunto de elementos a serem observados quando da produção de conhecimento sob esse paradigma teórico (Lopes de Oliveira & Guimarães, 2016Lopes de Oliveira, M. C. S.; Guimarães, D. S (2016). Apresentação - Dossiê: psicologia dialógica. Psicologia USP, 27(2), 165-167. https://doi.org/10.1590/0103-6564D20162702
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).

Nessa trama, os processos semióticos, ou melhor, os processos afetivo-semióticos são uma parte central, porque a cultura penetra na subjetividade utilizando-se de processos dialógicos. Sob essa ótica, a Psicologia Cultural é a ciência dos campos dinâmicos de significação, imersos na cultura que sempre se renovam e, ao fazê-lo, inovam o fluxo de possibilidades de sentir e pensar de cada sujeito (Valsiner, 2012Valsiner, J. (2012). Fundamentos de uma psicologia cultural: mundos da mente, mundos da vida (A. C. de S. Bastos, Trad.). Porto Alegre, Artmed.).

Neste trabalho, o desenvolvimento é compreendido em termos de mudanças contínuas na organização psíquica subjetiva, que são percebidas em sua atividade, sua forma de agir e de se posicionar diante dos outros e de si mesmo, considerando a irreversibilidade do tempo (Valsiner, 2012Valsiner, J. (2012). Fundamentos de uma psicologia cultural: mundos da mente, mundos da vida (A. C. de S. Bastos, Trad.). Porto Alegre, Artmed.). O efeito de se pensar o desenvolvimento humano sob esse enfoque indica que os seres humanos se constituem na interação com outros seres humanos e com o contexto, com base na contínua produção de significados. Todos são dotados da habilidade de construção e atribuição de significados e valores que, por sua vez, atuam na produção de símbolos capazes de mediar as relações sociais. Neste sentido, compreender o desenvolvimento humano sob o paradigma do dialogismo envolve considerar, também, o modo como se dão as contínuas atualizações e reatualizações das relações vivenciadas pelas pessoas, com destaque para a intersubjetividade como aspecto essencial na relação com a alteridade, conforme afirmam Amorim e Rossetti-Ferreira (2008Amorim, K. S.; Rossetti-Ferreira, M. C. (2008). Dialogismo e desenvolvimento humano. Revista Paidéia, 18(40), 235-250.).

Tendo em conta essa perspectiva, a experiência que analisaremos adiante fundamenta-se na Leitura Dialógica, especificamente no formato que vem sendo desenvolvido no contexto do Projeto de Extensão Livros Abertos da Universidade de Brasília. Essa forma de roda de leitura recebe o nome de LuDiCa (Leitura Dialógica para a Compreensão) (cf. Moraes, Caldas, & Flores, 2020Moraes, A. P. S.; Flores, E. P. (2020). Compreensão e Interpretação de Narrativas no Contexto de Educação de Jovens e Adultos: Efeitos da Metodologia LuDiCa (Leitura Dialógica para a Compreensão). In: Ensinar e Aprender: Desafios para a Educação do Século XXI (1ª ed., pp. 169-187). Fortaleza: Imagine.; Moraes & Flores, 2020Moraes, A. P. S.; Flores, E. P. (2020). Compreensão e Interpretação de Narrativas no Contexto de Educação de Jovens e Adultos: Efeitos da Metodologia LuDiCa (Leitura Dialógica para a Compreensão). In: Ensinar e Aprender: Desafios para a Educação do Século XXI (1ª ed., pp. 169-187). Fortaleza: Imagine.).

Essa técnica distingue-se da contação de histórias tradicional por motivar a participação ativa dos envolvidos na dinâmica de contação. Em lugar do silêncio do ouvinte para se chegar ao fim da história, o objetivo é encorajar a expressão de sua fala indo além do conteúdo da narrativa. Como efeito dessa intencionalidade do leitor, os participantes são instados a sair da posição habitual de ouvinte passivo a fim de participar ativamente da construção de sentidos na roda dialógica. O convite à participação é feito pelos/as mediadores de leitura, a partir de uma preparação prévia, que consiste em uma leitura atenta do texto (e das imagens, no caso dos álbuns ilustrados), com especial atenção às funções narrativas2 2 Na metodologia das Unidades Funcionais, proposta por Flores e colaboradores, tanto a análise do texto literário, quanto a das narrativas produzidas pelos sujeitos, se assentam na interpretação de duas dimensões: sequência de eventos e funções narrativas. A primeira propõe unidades de ações cronológicas por meio do exame da “trama” ou do “roteiro” da narrativa. A segunda é especialmente importante para a mediação de leitura e consiste naquelas dimensões que se expressam por meio daquilo que o texto “faz”, o que ele evoca potencialmente no leitor. São as funções narrativas que concedem espessura (Ryle, 1968) às ações da trama. A/O mediadora/or de leitura deve atentar especialmente para estas funções narrativas e ser responsivo ao seu surgimento durante o diálogo. (Flores, Rogoski, & Nolasco, 2020). (Flores, Rogoski, & Nolasco, 2020Flores, E. P.; Rogoski, B. N.; Nolasco, A. C. G. (2020). Comprensión Narrativa: análisis del concepto y una propuesta metodológica. Psic.: Teor. e Pesq. 36. 1-11. https://doi.org/10.1590/0102.3772e3635
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; Moraes & Flores, 2020Moraes, A. P. S.; Flores, E. P. (2020). Compreensão e Interpretação de Narrativas no Contexto de Educação de Jovens e Adultos: Efeitos da Metodologia LuDiCa (Leitura Dialógica para a Compreensão). In: Ensinar e Aprender: Desafios para a Educação do Século XXI (1ª ed., pp. 169-187). Fortaleza: Imagine.) e as suas próprias reações enquanto leitor(a) do texto (Flores, 2014Flores, E. P. (2014). Revista Livros Abertos. Recuperado em 21 de setembro de 2018, de Recuperado em 21 de setembro de 2018, de https://www.revistalivrosabertos.org/sobre
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).

Além do contexto de EJA e dos grupos integrados por participantes mais novos, outros contextos nos quais a leitura dialógica e interativa já havia demonstrado ser frutífera incluem: desenvolvimento da linguagem (incluindo expansão do vocabulário e da expressão oral (Fontes & Cardoso-Martins, 2004Fontes, M. J. O; Cardoso-Martins, C. (2004). Efeitos da leitura de histórias no desenvolvimento da linguagem de crianças de nível socioeconômico baixo. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17(1), 83-94.), compreensão de narrativas (Flores, Pires, & Souza, 2014Flores, E. P.; Pires, L. F.; Souza, C. B. A. de (2014). Leitura dialógica de um romance infanto-juvenil: efeitos sobre a compreensão textual. Paidéia, 24(58), 243-252.; Medeiros & Flores, 2017Medeiros, F. H.; Flores, E. P. (2017). Compreensão de contos após leitura dialógica com perguntas baseadas em dimensões temáticas da narrativa. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 32(spe), 1-11. https://doi.org/10.1590/0102-3772e32ne26
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; Rogoski, Flores, Coêlho, Gauche, & Souza, 2015Rogoski, B. N.; Flores, E. P.; Gauche, G.; Coêlho, R. F.; de Souza, C. B. A. (2015). Compreensão após leitura dialógica: efeitos de dicas, sondas e reforçamento diferencial baseados em funções narrativas. Perspectivas em análise do comportamento, 6(1), 48-59. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-35482015000100005
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), empatia (Riquelme & Montero, 2013Riquelme, E.; Montero, I. (2013). Improving Emotional Competence Through Mediated Reading: Short Term Effects of a Children’s Literature Program. Mind, Culture, and Activity, 20:3, 226-239.), engajamento e participação social (Guevara, Queiroz, & Flores, 2017Guevara, V. L. D. S.; Queiroz, L. R.; Flores, E. P. (2017). Leitura dialógica adaptada para uma criança com transtorno do espectro autista: um estudo preliminar. Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, 17(1), 87-99. http://dx.doi.org/10.5935/cadernosdisturbios.v17n1p87-99.
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), fluência no uso de linguagem matemática (Purpura, Napoli, Wehrspann, & Gold, 2017Purpura, D. J.; Napoli, A. R.; Wehrspann, E. A.; Gold, Z. S. (2017). Causal connections between mathematical language and mathematical knowledge: A dialogic reading intervention. Journal of Research on Educational Effectiveness, 10(1), 116-137. https://doi.org/10.1080/19345747.2016.1204639
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), uso de recursos expressivos (Lever & Senechal, 2011Lever, R. Sénéchal, M. (2011). Discussing stories: on how a dialogic reading intervention improves kindergartners’ oral narrative construction. J Exp Child Psychol. 108(1):1-24.), dentre outros.

Recentemente, o estudo de Moraes e Flores (2020Moraes, A. P. S.; Flores, E. P. (2020). Compreensão e Interpretação de Narrativas no Contexto de Educação de Jovens e Adultos: Efeitos da Metodologia LuDiCa (Leitura Dialógica para a Compreensão). In: Ensinar e Aprender: Desafios para a Educação do Século XXI (1ª ed., pp. 169-187). Fortaleza: Imagine.) com estudantes de EJA avaliou experimentalmente os efeitos da LuDiCa sobre o diálogo e as trocas de experiências, em quatro pequenos grupos de LuDiCa que leram a obra A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga, ao longo de uma sequência de encontros. Os resultados alcançados com a LuDiCa, em comparação com a leitura tradicional (leitura simples seguida de debate) evidenciou que a primeira está relacionada à maior autonomia na tomada da palavra (crescente independência do/a aprendiz em relação ao mediador/a), à maior compreensão (construída no grupo) de aspectos não literais da narrativa e à potencialização de movimentos de distanciamento (cf. Schlovsky, 1990Schlovsky, V. (1990). Theory of Prose (B. Sher, Trad.). Elmwood Park, Il.: Dalkey Archive. Obra original publicada em 1929./1929) em relação ao texto (em que o/a participante reflete sobre eventos da narrativa, relacionando-as com suas experiências (Moraes & Flores, 2020). As autoras, no entanto, não complementaram os dados quantitativos com uma análise qualitativa da construção e negociação de significados nem de como a dialogicidade permitiu e potencializou os movimentos de distanciamento.

Também houve pouco ou nenhum foco nos conflitos emergentes durante as rodas ainda que estes sejam muito frequentes e talvez funcionem como momentos cruciais em que crenças e valores se manifestam e significados são construídos na dialogicidade.

Tendo em vista que vivemos em uma sociedade escolarizada, em que se atribui um grande importância social à educação escolar, que tem status de direito garantido constitucionalmente a todos, o uso dessa metodologia visa à identificação dos sentidos que emergem do encontro intersubjetivo entre professor e aluno, animador cultural e plateia, ou mesmo, entre pesquisadora e participantes. A leitura dialógica representa uma oportunidade para a circulação de palavras, ideias, crenças e valores. Nessa medida, acreditamos que a técnica possibilita um caminho para a emergência e a compreensão de aspectos do desenvolvimento humano e da aprendizagem relevantes para se aprimorar a educação de jovens e adultos em direção a uma perspectiva relacional, sistêmica e interacionista. A próxima seção trata de valores e seu papel no desenvolvimento humano.

Cultura, Valores e Crenças como Ferramentas de Apoio no Processo Educativo

Somos seres sociais, para quem estar em relação - nos mais diversos contextos e ao longo de toda a existência - é uma necessidade. Assim sendo, nos constituímos como parte de grupos e criamos laços afetivos positivos e negativos. A cultura é um elementos intrínseco às relações, ajudando os sujeitos em interação a definirem os modos pertinentes de interpretação da realidade e significação das experiências (Valsiner, 2014Valsiner, J. (2014). Invitation to Cultural Psychology. New Delhi: Sage.).

Cultura não é uma entidade, propriedade ou “coisa” que alguém “tem” ou “incorpora” (por assimilação ou socialização), mas sim o processo ativo de mediação de signos nas vidas humanas, que ocorre tanto no contexto intra, quanto interpsicológico. A cultura é, portanto, localizada entre as pessoas e os mundos sociais atuando através de mecanismos bidirecionais de retroalimentação e orientação ao futuro (Valsiner 2014Valsiner, J. (2014). Invitation to Cultural Psychology. New Delhi: Sage.). É definida por este teórico (Valsiner, 2014Valsiner, J. (2014). Invitation to Cultural Psychology. New Delhi: Sage.) como um processo de mediação semiótica das relações sujeitos-ambiente sociocultural. De acordo com essa compreensão, a cultura é coconstruída pelas pessoas que se relacionam umas com as outras, em ações orientadas para alcançar alguns objetivos. Através de processos contínuos de negociação de significados, novos significados são coconstruídos e, assim, a comunicação ocupa lugar de destaque na análise dos processos semiótico-culturais.

Os sistemas de crenças e valores de estudantes, refletidos em interações cotidianas nas salas de aulas e com o contexto social mais amplo são um terreno fértil para a compreensão de fenômenos educacionais. Crenças e valores são dispositivos semiótico-culturais de natureza dinâmica e complexa, co-construídos nas interações sujeito-cultura. Entretanto eles não são determinados por relações passadas, ao contrário, eles medeiam as relações entre indivíduos e contextos permitindo a projeção do pensamento em direção ao futuro. As crenças encontram-se no nível mais superficial e os valores se localizam em raiz afetiva mais profunda do sistema motivacional. Uma vez incorporadas ao sistema de self dos membros de uma dada cultura, crenças afetivamente enraizadas podem se transformar em signos hipergeneralizados, dando origem a valores e preconceitos pessoais do sujeito (Valsiner 2014Valsiner, J. (2014). Invitation to Cultural Psychology. New Delhi: Sage.). Sendo assim, atentando-se para os processos de comunicação e metacomunicação em diferentes níveis, é possível perceber que as crenças e valores estão presentes como fatores essenciais nos relacionamentos entre os sujeitos, e vão se co-construindo o tempo todo entre os participantes das interações sociais (Roncancio-Moreno, 2013Roncancio-Moreno, M. (2013). Dinâmica das significações de si em crianças na perspectiva dialógico-cultural (Tese de Doutorado). Universidade de Brasília. Recuperado de https://repositorio.unb.br/handle/10482/18396).

O estudo empírico apresentado a seguir ilustra como o sistema de crenças e valores se faz presente no cotidiano escolar de jovens e adultos durante a realização de um encontro de leitura dialógica. Tendo em vista os elementos acima apresentados refletimos sobre possíveis contribuições da Psicologia Cultural à produção de processos educativos na EJA.

Duas Rodas de Leitura no Contexto de um Projeto de EJA : Análise e Discussão

As atividades de leitura dialógica do Projeto de Extensão “Livros Abertos - Aqui todos Contam” se constituem a partir das seguintes etapas: (i) Encaminhamento dos mediadores de leitura para as instituições escolares parceiras do projeto; (ii) Definição dos grupos participantes de cada escola, junto à direção e professores responsáveis sobre as turmas que estariam envolvidas nas atividades de rodas de leitura ; (iii) Realização das atividades de leitura dialógica, semanalmente, por uma dupla de mediadores (estudantes de graduação e pós graduação e membros da comunidade) em diferentes salas de aula, como parte das atividades curriculares de estudantes dos ciclos iniciais de alfabetização, na EJA. Os livros são escolhidos previamente pelos mediadores de leitura, considerando temas de interesse dos estudantes e conexões com os conteúdos trabalhados pelas professoras de disciplinas específicas.

Faremos aqui um breve relato de duas rodas de leitura. Elas envolveram a mesma história, apresentadas pelos mesmos mediadores, entretanto foram realizadas em momentos e turmas distintas. São discutidas com o objetivo de refletir sobre como os processos dialógicos se integram ao fazer educativo em sala de aula na modalidade EJA.

Cada atividade durou cerca de 40 minutos, e as informações específicas sobre cada uma são fornecidas abaixo. Nossa intenção ao realizar a análise é refletir sobre as diversas possibilidades dialógicas fomentadas pelo contexto da roda de leitura e as negociações de significados que se apresentam, através da expressão de crenças e valores dos participantes em face das tensões dialógicas associadas ao reconhecimento da alteridade, e da legitimidade do outro.

As atividades aqui relatadas se referem à leitura do conto O Reino de Palmares, extraído do livro intitulado Viagem pelo Brasil em 52 Histórias, de autoria de Silvana Salerno e com ilustrações de Cárcamo, Companhia das Letrinhas, 2006Salerno, S. (2006). Viagem pelo Brasil em 52 histórias. São Paulo: Companhia das Letrinhas..

Roda de Leitura, Turma 1: A roda de leitura contou com a participação de três estudantes da Primeira Etapa (que corresponde ao 1º até 5º ano do Ensino Regular) - dois homens e uma mulher com idades aproximadas entre 40 e 50 anos -, a professora da turma, e uma dupla de mediadores, sendo uma delas a primeira autora do presente artigo. Foi um quórum mais baixo que o usual pois era véspera de feriado. Em geral a atividade contava com oito a dez participantes, a composição total da turma.

O conto, como de costume, fomentou o surgimento de diversos assuntos vinculados a diferentes formas de expressão e tipos de preconceitos experienciados e testemunhados pelos participantes, até que em determinado momento um dos estudantes relatou, de maneira um tanto agressiva, concordar com as afirmações populares de que “todos os índios são preguiçosos e todos os negros são malandros”, ilustrando seu pensamento com uma referência à candidata à vice-presidência da República nas eleições de 2018: “aquela índia, vice daquele Boulos, outro vagabundo” (sic).

O grupo ficou surpreso com a intensidade e agressividade da manifestação do estudante, visivelmente carregada de ódio por pessoas negras e indígenas. Surpresa ainda maior pelo fato de o estudante ter a pele negra. Tentando sustentar o espaço dialógico e atenta a todas as vozes dos participantes, a professora questionou a razão daquela afirmação, e se era possível perceber os diversos modos de vida das pessoas em diferentes contextos. Afinal, como era possível ele fazer tamanha generalização? O estudante foi ficando gradualmente mais raivoso, pegou suas coisas e disse que iria embora, apontando para a professora e dizendo que faria como ela. Ninguém do grupo afirmou ter entendido o que ele quis dizer em relação a essa conversa com a professora. Concordamos, desejamos boa noite ao aluno, e continuamos com a atividade, que já se aproximava do final.

A discussão que se seguiu foi referente ao conto e à situação que foi vivenciada pelo grupo. A maioria dos estudantes ficaram, aparentemente, constrangidos com a postura do colega e tentaram encontrar justificativas para o ocorrido. A professora explicou que mais cedo ela havia relatado aos alunos momentos de uma discussão entre ela e outro professor onde ela teria dito que “não era obrigada a ouvir certos tipos de coisas” (sic) e se retirou. Possivelmente, foi a este fato que o estudante se referiu quando disse que faria como ela.

A professora relatou estar bastante preocupada com a possibilidade de que o estudante deixasse, mais uma vez, de frequentar a escola. Além disso, afirmou se sentir constrangida com as consequências da sua reação anteriormente relatada aos estudantes, e como essa serviu de modelo negativo para a atitude do aluno.

Roda de Leitura, Turma 2: Após duas semanas da leitura do mesmo Conto na turma 1, realizamos a atividade com a turma 2, atendendo a pedidos dos estudantes para que lêssemos a história de Zumbi, pois eles haviam ouvido comentários de que o texto era muito interessante.

A atividade envolveu a participação de oito estudantes, a professora da turma e a mesma dupla de mediadores. Assim como na turma 1, surgiram diversos temas de conversa, cujo eixo eram situações onde o preconceito se expressava de maneira explícita. No entanto, nesse caso, o clima entre as pessoas foi de acolhimento, cada um trazendo experiências pessoais que nunca haviam antes relatado: a professora falou abertamente sobre sua dificuldade de lidar com a simples cogitação de sua filha se assumir como homossexual, caso um dia isso aconteça; uma das estudantes falou do sofrimento que sentiu ao ser rejeitada pela família após engravidar na adolescência; e outras pessoas trouxeram para a discussão o quanto sofrem preconceito racial, ou já viveram situações dolorosas, excludentes, envolvendo discriminação das outras pessoas. Uma estudante chegou a contar que não se sente capaz de cuidar dos próprios filhos, e que levou muito tempo para reconhecer isso. A professora, por sua vez, destacou o quanto considera importante conhecer os estudantes e suas vidas para planejar a melhor forma de “transmissão” (sic) dos conteúdos curriculares.

Quando comparada à turma 1, os estudantes da turma 2 utilizaram o momento da Roda de Leitura para a construção de um espaço de confiança, onde vários participantes abordaram situações de preconceito, não aceitação e sofrimento, tendo como ponto de partida um texto que aborda o passado do povo brasileiro negro e indígena, passado pleno de lutas pela independência, igualdade e autoafirmação das várias etnias que o compõem, desde os registros históricos mais remotos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em ambas as circunstâncias em que o texto foi apresentado, podemos identificar episódios em que a interação entre os participantes possibilitou a co-construção de processos de significação e, possivelmente, de desenvolvimento. Nossa hipótese é a de que ao se criar intencionalmente, no contexto escolar, oportunidades para o reconhecimento da alteridade, surgem novas possibilidades de produção de significados, de aprendizagens e transformação de perspectivas subjetivas

As dinâmicas das Roda 1 e Roda 2 são claramente diversas, sendo possível perceber distintas formas de movimento dialógico entre os participantes. Na primeira Roda, um dos momentos significativos foi marcado pela atitude de um dos estudantes, ao explicitar seu posicionamento pessoal como parte de um campo de significados diverso do grupo. Naquela circunstância, ele se mostrou incapaz de argumentar ou negociar seu sistema de crenças, e optou por interromper o diálogo ao sair da sala de aula. Do ponto de vista da análise dos processos dialógicos envolvidos, alguns aspectos podem ser destacados nesse episódio, a seguir

O primeiro aspecto refere-se à negação de uma abertura ao diálogo, ou o que Bakhtin (1993Bakhtin, M. (1993). Para uma filosofia do ato (C. A. Faraco & C. Tezza, Trad.). Austin: University of Texas Press. Traduzido do original não publicado ‘Toward a Philosophy of the Act’.) denomina como monologização do discurso. O monologismo significa desconsiderar a posição ideológica radicalmente diferente do outro pela via do aniquilamento da situação comunicativa. Ao fazer isso, não apenas o estudante perde a chance, como priva as demais pessoas envolvidas na atividade da oportunidade do debate, ainda que a reflexão e a reverberação sobre o ocorrido tenham continuado, naquele momento, com os remanescentes que, impactados pelo evento, emendaram a discussão pelos corredores da escola.

O segundo aspecto aponta para o papel da imaginação e dos processos de identificação que subjazem aos posicionamentos discursivos de cada interlocutor em uma interação. Enunciados sempre trazem para a situação presente fragmentos de interações passadas e, também, causam impacto nas interações futuras (o que pode ser ilustrado pela repercussão da atividade em outras turmas da escola). Para Bakhtin (1993Bakhtin, M. (1993). Para uma filosofia do ato (C. A. Faraco & C. Tezza, Trad.). Austin: University of Texas Press. Traduzido do original não publicado ‘Toward a Philosophy of the Act’.), todo enunciado é uma resposta aos enunciados anteriores. Nesse aspecto é interessante analisar o modo peculiar como a narrativa da professora, endereçada aos estudantes, sobre um evento interpessoal perturbador com um colega professor, se incorporou ao episódio com o estudante no enunciado “vou fazer como você”. São inúmeras e interessantes as possibilidades interpretativas e reflexões para o campo educacional que decorrem desse curto enunciado proferido pelo estudante. Ele fala das relações de poder, do direito de cada estudante ao seu sistema de crenças e opinião e, ao mesmo tempo, como o exercício de tal direito implica que professores e mediadores aprendam a refletir sobre como e quando intervir. Por exemplo, como agir quando crenças, valores e preconceitos têm implicações interpessoais e, inclusive, legais, como ocorre nos casos de racismo, homofobia etc.

O estudante alude à postura da professora como um possível modelo educativo reproduzido por ele, sobre como se comportar em situações conflituosas. A situação destaca que a escola se configura não só como espaço de aprendizagem de conteúdos curriculares, mas também, como espaço de possíveis formas de relacionamento entre indivíduos e sociedade, a partir das interpretações da realidade que cada um constrói. Nesse sentido, as atividades em grupo são uma rica oportunidade para isso.

O terceiro aspecto que gostaríamos de abordar, diz respeito à íntima interdependência entre a natureza do sistema de valores pessoais, dos quais a pessoa nem sempre tem consciência e seus posicionamentos discursivos em situações comunicativas particulares. Branco e Lopes de Oliveira (2018Branco, A. U.; Lopes-de-Oliveira, M. C. (Eds.) (2018). Alterity, Values, and Socialization: Human Development Within Educational Contexts. Switzerland: Springer.) ressaltam a importância de processos de desenvolvimento que decorrem da possibilidade de reflexão e raciocínio moral sobre práticas de interação com o outro. Podemos observar a presença desse movimento de reflexão em ambas as Rodas de Leitura Dialógica com a expressão dos participantes de concepções de cunho ético sobre as consequências e reverberações de seus posicionamentos e visões de mundo sobre variados aspectos de sua vida pessoal em interação com o contexto em que transitam e estão inseridos.

Por fim, destacamos a abertura para a alteridade no contexto escolar como assunção de uma postura dialógica, o que se pode verificar nos posicionamentos de ambas as professoras. As duas se colocaram nas atividades em roda no mesmo nível que os demais participantes sem, contudo, desconsiderar a hierarquia inerente às posições de aprendiz e mestre.

Tratando-se de contribuir com reflexões sobre processos de desenvolvimento humano na vida adulta, é importante destacar o momento de abertura, instigado pela professora, para o compartilhamento de histórias íntimas, como ilustrado na Roda de Leitura 2. Algo até então inédito, segundo o relato da professora ao final do encontro, a atividade favoreceu a emergência de novos campos de significados relacionados à confiança e ao acolhimento no grupo, com o potencial de ampliar as possíveis direções para o desenvolvimento humano. Ademais, ao aprender sobre a vida dos outros, as pessoas entendem e acolhem melhor as diferenças e criam maneiras de se relacionar, conforme ilustrado pela professora ao afirmar a importância de conhecer os estudantes para o próprio planejamento das aulas a serem ministradas.

Marsico (2018Marsico, G. (2018). Development and education as crossing socio-cultural boundaries. In A. Rosa; J. Valsiner(Eds.), The Cambridge Handbook of Sociocultural Psychology (2 ed., Vol. 1, pp. 302-316). Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/9781316662229.017
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) nos traz a reflexão sobre quão porosas são as fronteiras entre a instituição escolar e o contexto de vida das pessoas, situando a educação no limite entre microculturas ou sistemas, como família-escola, por exemplo. Assim, é possível afirmar que a educação, como fenômeno cultural historicamente sedimentado, se caracteriza por ocorrer no limiar, ampliando horizontes e “movendo” para adiante nossas fronteiras e horizontes.

Segundo o relato das professoras que participaram das intervenções relatadas nesse texto, a EJA é uma modalidade de ensino que comporta maior flexibilidade que outras, em termos de carga horária, sequência de conteúdo, seriação etc, na qual se lida com as situações de aprendizagem que guardam certa plasticidade. Em face dessas características, ambas as professoras relataram buscar ferramentas que favoreçam uma aproximação entre o conteúdo obrigatório dos módulos e a vivência pessoal dos estudantes, de maneira a possibilitar maior motivação ao grupo que, via de regra, possui um histórico de descontinuidade na frequência escolar.

Indo ao encontro das limitações destacadas acima, Nunes e Moura (2019Nunes, M. A. A.; Moura, M. G. C. (2019). Pesquisa-formação: díade que permeia o exercício da docência em contexto socioeducativo. Revista Brasileira de Estudos em Pedagogia, 100(254), 211-229. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.100i254.4037
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) abordam a necessidade de preencher a lacuna existente entre os saberes docentes orientadores da prática dos professores e professoras que atuam na EJA de maneira a criar uma conexão mais direta entre a academia e a realidade das salas de aula sendo esta uma possiblidade de aprofundamento de novas pesquisas para produção de conhecimento e incremento das práticas profissionais de educadores.

Consideramos, ainda que a promoção de espaços dialógicos, sobretudo por meio de atividades em grupo, deve adquirir uma importância capital entre as metodologias de ensino adotadas na EJA, contribuindo para que se atinjam objetivos mais amplos em termos do desenvolvimento dos estudantes, além de sua simples preparação para inserção no mercado de trabalho.

Conforme buscamos evidenciar na análise acima apresentada, as diferenças entre as dinâmicas das duas turmas não impediram a emergência e negociação, em maior ou menor escala, de campos de significação e de valores que precisam ser objeto de atenção no contexto escolar, atentando-se para o fato de que o diálogo no primeiro grupo gerou resposta no segundo, reverberando na comunidade escolar.

Uma das possibilidades de enfrentamento dos desafios que se apresentam no contexto educacional da EJA seria, portanto, o investimento em ações de fomento da qualidade da interação entre professores e estudantes. Melhores relações poderiam ser construídas através de atividades como a leitura dialógica, em especial, se for possível abordar conteúdos do currículo escolar em conexão com a expressão de vivências pessoais e significados produzidos individual e socialmente.

Percebemos que a instituição escolar se apresenta como equipamento público com funções diametralmente contraditórias. Se por um lado algumas de suas atribuições atuais consistem na adaptação e ajustamento social dos estudantes, por outro, tais instituições são talhadas para encorajar a curiosidade, a criatividade, a autonomia, e a construção de novos conhecimentos e ideias (Branco & Lopes de Oliveira, 2018Branco, A. U.; Lopes-de-Oliveira, M. C. (Eds.) (2018). Alterity, Values, and Socialization: Human Development Within Educational Contexts. Switzerland: Springer.). Assim sendo, é possível concluir que, por meio da criação de espaços para expressão e reflexão em grupos caracterizados por práticas dialógicas - como rodas de leitura, e atividades planejadas para encorajar debates e discussões sobre questões socialmente relevantes e conteúdos afetivamente importante - os educadores sejam capazes de promover, de maneira mais abrangente e eficaz, o desenvolvimento de seus alunos.

Acreditamos na escola como importante instrumento de transformação social e desenvolvimento pessoal ao promover a difusão e (co)construção do conhecimento. As escolas têm o potencial de contribuir para a diminuição das desigualdades características do contexto em que vivemos e produzir modos de estar no mundo social mais críticos e criativos. Assim, faz-se necessário ampliar os estudos, especialmente na perspectiva teórica desenvolvida na Psicologia Escolar, sobre as modalidades educativas de pessoas jovens e adultos, nas situações emergentes nesse contexto educacional, de maneira a fomentar a produção de novos caminhos para educadores e estudantes.

REFERÊNCIAS

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  • 2
    Na metodologia das Unidades Funcionais, proposta por Flores e colaboradores, tanto a análise do texto literário, quanto a das narrativas produzidas pelos sujeitos, se assentam na interpretação de duas dimensões: sequência de eventos e funções narrativas. A primeira propõe unidades de ações cronológicas por meio do exame da “trama” ou do “roteiro” da narrativa. A segunda é especialmente importante para a mediação de leitura e consiste naquelas dimensões que se expressam por meio daquilo que o texto “faz”, o que ele evoca potencialmente no leitor. São as funções narrativas que concedem espessura (Ryle, 1968Ryle, G. (1968). The Thinking of Thoughts: What is Le Penseur Doing? In: Collected Papers (V. 2): Collected Essays, 1929-1968 (pp. 480-496). London: Hutchinson.) às ações da trama. A/O mediadora/or de leitura deve atentar especialmente para estas funções narrativas e ser responsivo ao seu surgimento durante o diálogo. (Flores, Rogoski, & Nolasco, 2020).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2019
  • Aceito
    19 Ago 2020
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