CRIAÇÃO
Sensibilizando nossos olhares* * Texto produzido a partir de KOMATSU, 2003.
Ricardo Shoiti Komatsu
Professor e diretor de Graduação da Faculdade de Medicina de Marília. <komatsu@famema.com.br>
As diferentes representações formuladas, interpretadas,
advindas do imaginário, de imagens percebidas por
olhares diversos que buscam um sentido, são
construídas segundo ópticas particulares de vida e do
mundo de indivíduos, grupos, comunidade, ou classes.
Os feixes de luz que atravessam o prisma do imaginário e
representação refratam, então, a alteridade e o multiculturalismo.
Uma lente não é igual a outra. As lentes variam
entre si: côncavas, convexas, planas, assim como
variam também as pessoas que as utilizam. Em
muitas situações podemos querer ver sem
enxergar (tudo), ou enxergar sem ver... depende
da distância, da luminosidade, do foco, da abertura
da lente, da velocidade da exposição, do
enquadramento, e da sensibilidade de cada olhar.
O desvelar e o entrecruzar de olhares
impõem-se como desafio para a
compreensão do homem e do humano...
As lentes do olhar filtram, de acordo
com os paradigmas culturais, as
luzes, cores, matizes, tons... e nós,
quase sempre, instigados pela
curiosidade, buscamos sentidos
e significados: uma interpretação, que
se harmoniza, ou não, com outra interpretação...
Olhar artístico...
De quem compreende na arte não
somente uma pura e fiel
representação da realidade, mas do
olhar que cria e recria: estiliza e
reconstrói, e com novas formas e
luzes, projeta uma imagem irreal a
ser alcançada pelo nosso olhar.
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Toda gente é interessante se a gente souber ver toda a gente.
Que obra-prima para um pintor possível em cada cara que existe!
Que expressões em todas, em tudo!
Que maravilhosos perfis todos os perfis!Vista de frente, que cara qualquer cara!
Os gestos humanos de cada qual, que humanos os gestos!
Fernando Pessoa (2002, p.232)
Depus a máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nada
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança.
O passado que fica,
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor. Assim sou a máscara.
E volto à normalidade como a términus de linha.
Álvaro de Campos (Pessoa, 2002, p.467)
Dos mais de cem auto-retratos...
neste, Rembrandt parece
descrever-se envelhecendo... em
declínio... desacreditado, oito ou
nove anos antes de sua morte.
(Ricoeur, 1996)
Tornar-se idoso é como uma travessia de um rio de margens imprecisas. Um processo que toma parte considerável da vida. Não se fica idoso de um dia para outro. Ser idoso não se resume a algo convencionado, como completar os sessenta anos num país em desenvolvimento, ou 65 anos num país desenvolvido, pois a idade cronológica não traz uma correspondência obrigatória com as fases do envelhecimento biológico ou social. No imaginário e na representação individual do idoso, ele observa, constata e reflete sobre o seu próprio envelhecer, o seu "ser idoso", e manifesta este sentimento em um simples gesto, atitude ou palavra, ou de formas complexas, com manifestações mais elaboradas envolvendo, por exemplo, mente-corpo, saúde-doença...
Olhar o idoso
Na representação do pupilo Gerrit Dou, a
mãe de Rembrandt teria seus
cinqüenta e poucos anos...
Nos idos 1600 já seria considerada idosa?
Depende do exercício do olhar, do
imaginário e da representação, num exame
da vida e da pintura.
Olhar de perto. Com detalhes...
O olhar médico...
dirige-se ao que há de visível na doença,
mas a partir do doente, que oculta este
visível, mostrando-o; conseqüentemente,
para conhecer, ele deve reconhecer. E
este olhar, progredindo, recua, visto que
só atinge a verdade da doença, deixando-
a vencê-lo, esquivando-se e permitindo ao
próprio mal realizar, em seus fenômenos,
sua natureza. (Foucault, 1998, p.6)
Olhar a doença, ou o "mal", e cegar-se à pessoa de cada paciente. Este distanciamento do humano em cada enfermo seria um vício de refração do olhar médico?
Olhar do paciente...
Olhar de súplica de quem busca auxílio para superar a dor, a
angústia, o sofrimento. Olhar de quem busca alívio e
compreensão, carinho e cuidado, esperança e cura. Olhar
impaciente. De quem não suporta mais aguardar. Para quem
a espera inquieta, remonta fatos atuais e pregressos:
fracassos, perdas, crises, doenças.
Olhar do cuidador...
Olhar sereno de quem cuida, reconhece e respeita as
potencialidades e limites do cuidado com o outro. Olhar
desesperado de quem não alcança esta dimensão "limite" do
cuidado. Relação assimétrica de doar-se a quem necessita
de cuidados, de superar o sentimento de compaixão,
transformando-o numa ação concreta, em benefício de
alguém. Vícios deste olhar limitam a potencial
atuação do cuidador.
Olhar do estudante...
De quem busca ativamente, instigado pela
curiosidade epistêmica, novos saberes,
desempenhos, atitudes, competências.
Olhar do educador
Olhar de mudança, transformação. Olhar de quem
re-conhece o educando. Humaniza suas relações,
promove, facilita, orienta a aprendizagem de cada
partícipe do processo educativo.
Os olhares são um movimento de ir e vir. Uma via de dupla mão. Quando cruzam, e encontram-se, interagem. Vagam na imaginação, voltam à realidade, representam. E, mudando a visão, dão movimento ao interior (imaginário) e exterior (representação). Mundos interno e externo que conversam e, ao travar este diálogo, impulsionam mente e corpo, integrados numa nova práxis...
Não há olhar definitivo. Os olhares são sempre provisórios: apreendem a realidade num momento, filtram-na com as lentes de agora e, quando alteram uma trajetória de conduta importante na vida, promovem uma aprendizagem significativa...
Quando sensibilizam-se para novas leituras e re-significações re-estabelece-se a dinâmica da vida...
De todo lo que he visto y vivido han
salido las imágenes que
atraviesan mi pintura. De tantos
dolores de una época turbulenta
prefiero pensar en las luces que
surgen de los gestos generosos, de
los actos solidarios de tantos que
buscan y se baten por la verdad.
Creo que los artistas que serán
recordados son aquellos que dejen
como testimonio de nuestro
tiempo no sólo el grito de la
parturienta sino el brillo de la
mirada del niño.
José Venturelli, 1978
Recebido para publicação em 07/07/03.
Aprovado para publicação em 14/07/03.
- FOLCAULT, M. O nascimento da clínica 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
- KOMATSU, R. S. Aprendizagem baseada em problemas na Faculdade de Medicina de Marília: sensibilizando o olhar para o idoso. 2003. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília.
- PESSOA, F. Poesia: Álvaro de Campos. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
- RICOEUR, P. Sobre um auto-retrato de Rembrandt. In: RICOEUR, P. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996. p.13-5.
- VENTURELLI, J. Museo virtual José Venturelli Disponível em: <http://www.joseventurelli.cl>. Acesso em 05 abr. 2003.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Fev 2009 -
Data do Fascículo
Ago 2003