Open-access Composição Lúcia

CRIAÇÃO

Composição Lúcia*

Mariangela Scaglione QuarenteiI,1; Adriana RibeiroII

ITerapeuta Ocupacional, Núcleo de Apoio Pedagógico, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. <mariquarentei@uol.com.br>

IIAssistente editorial, revista Interface, Fundação Uni. <aribeiro@fmb.unesp.br>

Dezembro, e o que perdido

foi neste ano, volta, iluminado

pelo claro pensar,

e reanima-se

o jogo eterno (e vão?), o jogo

da vida renascendo de si mesma.

Drummond

Maria Lúcia era gaúcha de Pinheiro Machado/RS,

formada em Artes, doutora pela Escola de

Comunicações e Artes da USP, docente do

departamento de Educação do Instituto de

Biociências de Botucatu – UNESP, editora da

Interface e artífice deste espaço de Criação.

1950 – 2005

Apanhei palavras que dizem de Lúcia, de seu olhar ... sentidos e sentimentos, de suas idéias e atitudes.

Arte: criar com autonomia uma poética pessoal.

Lirismo: poesia plástica (ah! Os desenhos das crianças e, tudo mais!)

Busca criativa: grande experiência e constante aventura.

Belo: como preservação ética da arte. Uma educação dos sentidos ... do estar da arte no mundo. .... ver beleza.

... a beleza é educativa, utópica impondo-se contra a violência, a pragmática dos negócios e

a certeza eficiente da técnica. (Coutinho, s/d, p.8-11)

Lúcia foi minha aluna na escola Aster, de curta existência, criada por um grupo de críticos e artistas de vanguarda, entre eles Walter Zanini, Regina Silveira, Júlio Plaza. Logo depois, com a inquietação intelectual que a caracterizava - a qual dialogava harmoniosamente com seu temperamento tranqüilo - propôs uma pesquisa de iniciação científica. Durante a pesquisa fez algumas disciplinas na pós-graduação. Entre os professores convidados naquele ano encontrou uma admiradora: Regina Chinaiderman, que me convenceu a iniciar orientação para mestrado só para aceitar Lúcia. Eu resistia a fazer parte da pós-graduação porque era professora em tempo parcial lutando por uma vaga em tempo integral. Lúcia foi, portanto, minha primeira orientanda. Tínhamos uma relação muito franca e sua franqueza na avaliação dos processos de orientação me ajudou a ser orientadora, a experimentar modelos de orientação com os estudantes e avaliar estes modelos.

Brincava, dizendo que ela havia sido uma excelente cobaia.

Sua tese de doutorado deveria ser publicada. É muito atual, pois demonstra o poder da "ordem oculta da Arte" para a reconstrução social, para o desenvolvimento dos processos cognitivos aplicáveis na aprendizagem de outras disciplinas, temas de muita atualidade graças ao trabalho das ONGs e às pesquisas sobre cognição.

Fui testemunha do sucesso acadêmico dos trabalhos apresentados por Lúcia em nível internacional. Sua seriedade e transparência acerca dos procedimentos de pesquisa eram inquestionáveis. Com ela convivi até o ano de sua doença, aproveitando de boas conversas sobre interdisciplinaridade, que alimentava seu trabalho na Revista Interface, e sobre Epistemologia da Arte. Acerca deste assunto, proferiu uma magnífica palestra para meus alunos de Doutorado da ECA/USP (2001) e, posteriormente, para os alunos de um curso experimental de Aperfeiçoamento em Arte/Educação no Nace-Nupae /USP.

Planejei com suas colegas Christina Rizzi e Lair Ana ir vê-la em Botucatu, mas infelizmente não deu tempo. Falávamo-nos por telefone e ela sempre parecia confiante na vida. Sua confiança me iludiu e eu posterguei a visita, o que lamento muitíssimo.

As saudades desta ex-aluna e amiga, a quem muito admirava, são enormes.

Ana Mae Barbosa,

Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo.

BRINCAR E APRENDER1*

a arte-educadora

A LUTA

Um dia o Peter Pan estava na sua casa

comendo frutas gostosas

E o pirata chegou

e começou a lutar na escada da casa

do Peter Pan.

Aí o pirata caiu da escada.

Voltou a lutar, mas perdeu a luta e foi

embora.

E o Peter Pan voltou a comer

sossegado

As suas frutas gostosas.

Renato

ÉTICA, ARTE E CONHECIMENTO2*

a pesquisadora

" EU NÃO GOSTO DE CÓPIA"

reflexões sobre a prática alfabetizadora

Ao longo deste trabalho o sonho de romper o silêncio da criança. Construir histórias para dizer: eu estou aqui, eu sei pensar, eu quero aprender. ... romper com a submissão pela superação da prática copista que nega o sonho, a criação e a reflexão. ... e construir conhecimento.

(Toralles-Pereira, 1993)

"...Eu não fiz a lição porque eu não sabia. Eu achava que

alguém devia ensinar". (p.60)

POR QUE DESENHAR E ESCREVER?

Cada desenho, cada escrita, cada narrativa é, assim, uma experiência única, que não está pronta, acabada. ... uma ordenação original de imagens, experiências, opiniões, idéias, relações.

"Eu fico com medo quando

minha mãe não está. Eu

fecho a janela e fecho tudo

a casa. ..." (p.68)

A PESQUISA

A criança que fracassa na escola é incapaz de construir conhecimento?

Como a criança percebe a escola, suas dificuldades, ...?

LEMBRAR E NARRAR

Se na conversação "o desejo e ou a necessidade levam aos pedidos, as perguntas conduzem às respostas, e a confusão, à explicação" (Vigotsky), na conversa evocativa (narrativa), os motivos são menos visíveis. ... uma experiência mais profunda, ... e, repassada de nostalgia, "semelhante a uma obra de arte" (Bosi).

"... Eu tava na classe 'A''. Aí eu mudei .. eu tava antes da 'B'.

Eu gosto mais desta escola e da professora 'C'." (p.119)

O GRUPO

Quatro crianças marcadas por:

"desempenho escolar ruim. Aluno lento. Não escreve. Desinteressado totalmente. Não gosta de escrever. Não escreve nada. Brinca muito. Não consegue assimilar o que é dado."

A ESCOLA

... o dia dessas crianças na escola parecia converter-se numa seqüência de rotinas, sem qualquer significado aparente. Ficavam na classe" folheando o livro a cada dia", como observou Marcos.

A PRÁTICA PEDAGÓGICA

...Valorizar a voz das crianças – a voz que expressa desejos, comunica idéias, ... – dentro de uma prática lúdica, criativa e reflexiva. Mas essa prática precisava ser construída. ... junto com a espontaneidade, a liberdade e a autonomia de cada criança no interior do grupo.

"A minha mãe trabalha de venda de coxinha,

guaraná ....e salgadinho... numa lojinha... de

vender... salgadinho." (p.87)

"Um dia teve festa junina na escola. Eu achei boa a

festa. Foi bonita. Eu brinquei ... eu dancei." (p.122)

... A literatura infantil foi importante para trazer o jogo ao nosso convívio. A sala era pequena e não permitia grande mobilidade. Com estórias imaginávamos situações ...

" Um dia eu ganhei uma

bicicleta. O dia que eu

ganhei a bicicleta eu

fiquei contente. O meu

pai que me deu. Ele

chamou e falou: -

Andréia, venha cá! O

seu presente está aqui!

Foi no aniversário. Eu

fazia nove anos. Aí eu

fiquei feliz e saí

andando." (p.115)

(p.75)

A PRÁTICA PEDAGÓGICA

Da expressão do gesto – o prazer do movimento – o desenho passou a registrar fatos, expressar sentimentos, interpretar fantasias, organizar lembranças, ... Na arte, buscava-se a síntese do movimento com a conceituação do mundo. Se a possibilidade de ler imagens criadas no desenho afirmava uma relação dialética da criança com a criação, gerando novas interpretações e novas imagens, a possibilidade de ler a escrita produzida criava novas motivações para escrever.

Este é o homem cobra. Eu queria ter um. Eu gosto de

brincar com o homem cobra. Eu brinco de luta. (p.35)

"Eu estou contente porque vou passar de ano ...

e mais todos eles vão ficar contentes." (p.63)

... interferência na escola

Desde o final de 1991, quando percebi a possível reprovação de Marcos, não mais havia voltado à escola ... mas a necessidade de refletir mais ... e a ansiedade de ter notícias levaram-me a procurá-lo.

... sua trajetória ganhara força subversiva. Caberia dizer que Marcos desencadeara conflito à prática da escola, por "teimosia"e "deslocamento" - "manter-se ao revés e contra tudo, à força de uma deriva e de uma espera" e " transportar-se para onde não se é esperado" (Barthes).

Encontrei Marcos em 1993, na 3ª. série. Com olhos brilhando, irradiando vida, contou que está ótimo na escola.

"Eu gosto de fazer ditado agora. Eu já sei

escrever. Antes eu não gostava..." (p.82)

ÚLTIMAS ANOTAÇÕES

sobre cumplicidade, histórias e ...

Conquistamos um espaço de amizade e cumplicidade que se edificou no compromisso mútuo como trabalho. Se pelo sonho podemos preparar antecipadamente a vida, a preparamos com maior ou menor ousadia, com maior ou menor originalidade, porque somos capazes de imaginar.

"Eu não sei se vou passar de ano, mas eu estou

bom na escola." (p.108)

"Em certo momento não apenas vivíamos,

mas começamos a saber que vivíamos, daí

que nos tivesse sido possível saber que

sabíamos e, portanto, saber que

poderíamos saber mais."

Paulo Freire

CRIAÇÃO E PENSAMENTO3*

a docente universitária

ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE E COMUNICAÇÃO4*

a arte da editora científica

Referências

Andrade, C. D. Amar se aprende amando. 22.ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.

BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 1978.

BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Edusp, 1987.

CAGE, J. De segunda a um ano: novas conferências e escritos. São Paulo: Hucitec, 1985.

COUTINHO, W. Fayga Ostrower: a música da aquarela. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes, s/d.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

TORALLES-PEREIRA, M. L. Eu não gosto de cópia: reflexões sobre a prática alfabetizadora. 1993. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.

VIGOSTKY, S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

Outras publicações mais recentes:

TORALLES-PEREIRA, M. L. et al. Comunicação em saúde: algumas reflexões a partir da percepção de pacientes acamados em uma enfermaria. Ciênc. Saúde Coletiva, v.9, n.4, p.1013-22, 2004.

CYRINO, E. G.; TORALLES-PEREIRA, M. L. Trabalhando com estratégias de ensino-aprendizado por descoberta na área da saúde: a problematização e a aprendizagem baseada em problemas. Cad. Saúde Pública, v.20, n.3, p.780-8, 2004.

SECCO, L. G; PEREIRA, M. L. T. Formadores em odontologia: profissionalização docente e desafios político-estruturais. Ciênc. Saúde Coletiva, v. 9, n. 1, p.113-20, 2004.

PAULETO, A. R. C; PEREIRA, M. L. T; CYRINO, E. G. Saúde bucal: uma revisão crítica sobre programações educativas para escolares. Ciênc. Saúde Coletiva, v. 9, n. 1, p.121-30, 2004.

SECCO, L. G; PEREIRA, M. L. T. Concepções de qualidade de ensino dos coordenadores de graduação: uma análise dos cursos de odontologia do Estado de São Paulo. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v. 8, n.15, p.313-30, 2004.

SECCO, L. G; PEREIRA, M. L. T. A profissionalização docente e os desafios políticos-estruturais dos formadores em Odontologia. Rev. ABENO, v. 4, n.1, p.22-8, 2004.

CYRINO, E. G. ; PEREIRA, M. L. T. . Reflexões sobre uma proposta de ação programática: o projeto de Saúde e Educação de Botucatu. Cad. Saúde Pública, v.15, n.2, p.39-44, 1999.

PEREIRA, M. L. T; FORESTI, M. C. P. P. Formação profissional: reflexões sobre interdisciplinaridade. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.2, n.3, p.149-54, 1998.

Livros

PEREIRA, M. L. T. ; BORGES, G. L. A. A piaba sabia. 2. ed. São Paulo: Secretaria de Estado do Meio Ambiente, 2002.

PEREIRA, M. L. T. ; BORGES, G. L. A. A piaba sabia. 1. ed. São Paulo: Secretaria de Estado do Meio Ambiente, 1998.

Capítulos de livros publicados

FORESTI, M. C. P. P. ; PEREIRA, M. L. T. A formação pedagógica construída na área da saúde: excertos de uma prática interdisciplinar na pós-graduação. In: MASETTO, M.T. (Org.) Docência na Universidade. 7.ed. Campinas: Papirus, 2005. p.69-76.

FORESTI, M. C. P. P. ; PEREIRA, M. L. T. Qualidade da docência universitária e formação docente em programas de Pós-Graduação em Saúde: a experiência da UNESP, campus de Botucatu. In: BATISTA, N. A; BATISTA, S. H. (Org.) Docência em Saúde: temas e experiências. 1.ed. São Paulo: Senac, 2004.

PEREIRA, M. L. T. ; CYRINO, E. G. . O programa de saúde escolar de Botucatu como espaço de formação. In: CYRINO, A. P. P.; Magaldi, C. (Org.) Saúde e Comunidade: 30 anos de experiência em extensão universitária em saúde coletiva. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp. 2002. v.1, p.177-210.

FORESTI, M. C. P. P. ; PEREIRA, M. L. T. A tecnologia como subsídio à formação contínua do professor universitário. In: FERNANDES, C.M.B.; GRILLO, M. (Org.) Educação superior: travessias e atravessamento. Canoas:ULBRA, 2001, p.267-86.

PEREIRA, M. L. T. ; CASSEMIRO, R. R. ; CYRINO, E. G. Formação de professores: reflexões a partir de estágio extracurricular oferecido pela universidade. In: FERNANDES, C.M.B.; GRILLO, M. Grillo. (Org.) Educação superior: travessias e atravessamento. Canoas:ULBRA, 2001, p. 287-302.

  • *
    Fragmentos do trabalho de uma vida, breve homenagem-gratidão.
  • 1
    Rua Professor Renato da Silva Cardoso, 84
    Botucatu, SP
    18.603-430
  • 1*
    textos e imagens de material produzido e utilizado na escola Creare, de propriedade da educadora Lúcia Toralles.
  • 2*
    fragmentos da tese de Doutorado da pesquisadora Lúcia Toralles.
  • 3*
    escritos, anotações, fragmentos de trabalhos apresentados em Congressos, relatórios de atividade e material didático produzido e utilizado pela docente Lúcia Toralles, em parceria com Miriam Foresti.
  • 4*
    projeto gráfico em parceria com Ricardo Teixeira
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
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