Redes translocais entre alternativas locais
Os quatro artigos que compõem o presente dossiê temático remetem, de modo crítico e implicado, às lutas paradigmáticas que atravessam o campo psiquiátrico há mais de dois séculos. Uma das originalidades deles, contudo, é que enfocam as dialéticas contemporâneas globalizadas e locais do governo da Saúde Mental.
A percepção moderna da loucura, nascida no âmbito da Revolução Francesa, porta elementos que até hoje carreiam ao louco o seu encargo social e estatuto antropológico. Em uma nova sociedade, que se ordenava pelo culto à razão, pela relação contratual e pela livre circulação de mercadorias, os loucos eram percebidos como irresponsáveis e incapazes de trabalhar, devendo ser administrados por normas que não os sujeitassem a tarefas e deveres da cidadania plena, inaugurando assim a gestão pela tutela, exercida pelo psiquiatra. Pinel simboliza o surgimento de uma Medicina social, ou seja, capaz de codificar uma problemática social, expressa na necessidade de controle do desvio, representado pelo louco. O corpus teórico da ciência alienista justifica o seu isolamento sob justificativa de apresentar uma proposta de cura.
A essa ruptura originária correspondem, a partir de meados do século XX, duas inflexões históricas marcantes, com consequências decisivas sobre os debates contemporâneos em Saúde Mental: as conquistas em termos de direitos humanos e sociais pós-Segunda Guerra, de um lado, e a progressiva globalização neoliberal ainda em curso, do outro.
No Ocidente traumatizado pelas crises econômicas e sociais dos anos 1930 (tragicamente ecoadas em vários eventos da atualidade...) e pelo horror nazifascista, o campo da Saúde Mental assiste a transformações expressivas, embora em ritmos e com características próprios a cada país, no aparato jurídico-institucional e no modelo de atenção. As chamadas reformas psiquiátricas se inscrevem, portanto, em momentos históricos marcados por crescimento econômico, reconstrução social, movimentos civis de luta contra as exclusões e preeminência de ideologias libertárias. No contexto sociomédico, destacam-se a descoberta dos medicamentos psicotrópicos, a popularização da Psicanálise e o nascimento da “Saúde Pública”.
A continuidade desses movimentos solidários – e das configurações sociossanitárias que eles imprimiram no campo da Saúde Mental – é gradualmente colocada em cheque pelas mudanças sociopolíticas e econômicas desencadeadas pelo fenômeno da globalização, pela hegemonia do capital financeiro, pelas mudanças nos modos de produção, pela precarização do trabalho e pelo aumento exorbitante da exclusão social. O estado-providência entra em crise, tanto onde é uma realidade instituída quanto nos países periféricos onde estaria em construção.
É importante insistir que a globalização, além das suas dimensões jurídicas e econômicas, configura também uma experiência antropológica. Abèlés1 aponta para a compressão espaço-tempo, o compartilhamento de experiências por pessoas situadas a longas distâncias e as mudanças nas formas de consumo, com a volatilidade do desejo e a ênfase no superficial e no descartável. Concomitantemente à onipotência simbólica dos fluxos e da mobilidade, os despossuídos e os que ameaçam a ordem são, paradoxalmente, sempre mais reduzidos ao confinamento espacial2.
Como pensar o reflexo desse quadro histórico no campo da Saúde Mental? Como o “estatuto antropológico” do louco se atualizaria ao longo da história e que aspectos ele assumiria em tempos de globalização? Que grau de inflexão ele sofreria, a partir de experiências locais, do governo (pensado nos seus aspectos macro e micropolítico) da Saúde Mental em países concretos? O que, de um momento de gênese da instituição psiquiátrica com suas representações e seus fazeres, asilares e (neo)kraepelinianos, permanece (ou ressurge a partir de movimentos de contrarreforma) e o que sofre refração a partir da incidência dos movimentos de reforma psiquiátrica, em cada contexto local? Que práticas concretas e que nós críticos aferem espessura às realizações atribuídas a cada um desses processos de reforma? E que novas lógicas, em uma economia globalizada, interceptam os avanços obtidos ou reorientam as prioridades ou horizontes ético-políticos? Ou, ao contrário, quanto das conquistas obtidas – de direitos, de respeito à alteridade, de novos lugares sociais, de poder de vocalização e de garantia de espaços de participação de pessoas com sofrimento mental – atribuem maior qualidade ao processo civilizatório das sociedades? E, ainda, quanto dos valores antimanicomiais seguem como recursos a serem defendidos por significarem a possibilidade concreta de contribuir com o fortalecimento da democracia?
Neste dossiê, o recurso a descrições dos modos de operar das políticas, ou do governo da Saúde Mental, em Portugal e no Brasil, oferece subsídios para não se falar de modo abstrato, mas para situar os seus agentes e os seus feitos nas suas relações sociais, locais e globais. Se, de um lado, podemos identificar influências ou processos comuns, por outro lado, é necessário destacar suas originalidades, ou campos de experimentação social próprios, que, por sua vez, podem gerar esforços de tradução e efeitos de intercâmbio. Aqui reside o que Boaventura Santos3 aponta quando diz que o papel da teoria crítica é, portanto, tornar as alternativas e as formas de existência: “[...] conhecidas para além dos locais e criar, por intermédio da teoria de tradução, inteligibilidades e cumplicidades recíprocas entre distintas alternativas em diferentes locais” (p. 36).
Algumas pistas nessa direção são traçadas nos artigos a seguir. Em uma abordagem crítica ao modelo de Saúde Mental global, Tiago Pires Marques situa influências concretas que ele exerce sobre o processo de reforma psiquiátrica portuguesa, que se exacerbam em um momento de crise econômica, com drásticas reduções das despesas do Estado, associada a taxas de desemprego estratosféricas. Um dos pontos críticos volta-se justamente para o mimetismo de sociedades semiperiféricas que buscam adotar reformas hegemônicas de países centrais que acabam por chocar-se com racionalidades e práticas consideradas pré-modernas. Ora, essa crítica serve como bússola para problematizar novas configurações presentes nos governos da Saúde Mental, incidindo, modificando e, não raramente, entrando em conflito com trajetórias orientadas pelos princípios da reforma psiquiátrica democrática em diversos países, como o Brasil. A historicidade da análise, mais uma vez, identifica interesses, relações de força e jogos de poder que atravessam os processos socioculturais e suas dinâmicas.
As categorias definidas por Pires Marques se mostram analisadores-chave para a leitura das realidades pós-modernas globalizadas. Sua crítica epistemológica aos múltiplos conceitos de saúde mental, apresentados especialmente a partir de estudos epidemiológicos, conformados por modelos teórico-metodológicos norte-americanos, revela a universalização de formas de sofrimento do Norte, naturalizadas como científicas e sem a devida contextualização da sua manifestação. Taxas de prevalência que, em um primeiro momento, podem parecer relevantes para ampliar o acesso de massas desassistidas de pessoas com sofrimento mental (o treatment gap) reproduzem, na prática, a iniquidade de hierarquizar grupos em função de interesses econômicos, privilegiando segmentos tanto potencialmente produtivos no mercado econômico quanto mais lucrativos no mercado de vendas de psicofármacos.
Nesse sentido, indica Pires Marques, a não discriminação de duas diferentes realidades de sofrimento e de suas necessidades – o de pessoas com transtornos mentais severos e o daquelas com transtornos mentais comuns – termina por ofuscar e excluir grupos já socialmente marginalizados, como os psicóticos, pessoas em situação de rua, internos de hospitais de custódia, entre outros. Críticas dessa natureza, consubstanciadas por um trabalho empírico de fôlego que demonstra a participação da mídia na construção das necessidades de saúde mental, espelham ou antecipam tendências observadas em países em desenvolvimento, como o Brasil. Aqui, se é absolutamente legítimo voltar o olhar para segmentos com transtornos mentais comuns que não encontram com facilidade espaços de cuidado, focalizando a Atenção Básica como nível privilegiado para se investir nessa direção, por outro lado, há de se exercer uma vigilância ética na perspectiva de se evitarem desvios medicalizadores na interpretação dos problemas sociais subjacentes a esses sofrimentos e soluções psicofarmacologizantes para a miséria social e para o mal-estar na sociedade4.
Os dois artigos seguintes enfatizam o protagonismo dos que experimentam a vivência do sofrimento mental na pele. No caso do trabalho de Fátima Alves e Karine Wlasenko Nicolau, é destacada a importância de um governo da Saúde Mental – tomado no seu aspecto da formulação e implementação das políticas, mas também da micropolítica operada nas práticas clínicas – aberto à interferência de racionalidades leigas. Esse conceito é utilizado nas suas possibilidades de remeter a concepções e ações que se produzem em situações práticas de pessoas (usuários e familiares), permitindo avaliar experiências concretas de terapêuticas e ações propostas para recuperar ou promover a saúde mental, mas que também é capaz de traçar e reorientar caminhos. A efetividade dos sistemas de atenção, no seu aspecto organizacional, pode ser baixa se ancorada em orientações padronizadas, que não levem em conta as concepções e percepções dos agentes. Escutá-las, por sua vez, não apenas gera uma possibilidade de aprendizagem significativa, mas cria espaços de autonomia, diálogo e participação. As racionalidades leigas aproximam-se de práticas que reconhecem a lógica pragmática que se origina das vivências, que valorizam o estar com o outro, em detrimento dos especialismos, e que apostam no que poderíamos chamar de uma coparticipação na definição de soluções para os problemas.
Como o de Pires Marques, esse artigo orienta-se por uma crítica epistemológica da ciência, etapa imprescindível na produção de uma globalização contra-hegemônica. Remete ainda à tradição de estudos brasileiros, inspirados por Paulo Freire5, que adota o saber popular como saber relevante – e transformador, quando crítico:
Não há para mim, na diferença e na “distância” entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação, e não a ruptura, se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. (p. 15)
Traçando um longo período histórico que sustenta um estado de segregação da loucura, Simone Paulon lembra que permanecem práticas manicomiais nos serviços de Saúde Mental brasileiros: “formas de cuidado predominantemente hierarquizadas, prescrições tutelares, supermedicalização, processos de trabalho em saúde pautados no poder médico, hospitalocêntricos, ancorados em tratamentos morais [...]”. Situação intrigante em um país cuja política de Saúde Mental, desenvolvida em pelo menos 14 anos de governo progressista, foi vigorosamente elogiada por organismos internacionais. Menos surpreendente quando se pensa na dimensão continental do país, na sua heterogeneidade regional e descentralização política, além da sua enorme desigualdade social e enorme confluência entre pobreza e loucura, aspectos que poderiam complexificar essa análise. A aposta do artigo, no entanto, é outra. Busca outro argumento oportuno em um momento de recrudescimento do conservadorismo e do autoritarismo. Em um quase manifesto de exortação da loucura como condição ético-estética de pluralização do mundo, Paulon desenvolve um texto filosófico-poético, defendendo a importância da liberdade de expressão e circulação da loucura, retirando-a de uma condição de silêncio imposto. Aponta para a potência crítica e perturbadora que a loucura traz, o que parece anunciar sua natureza intrínseca nessa função para-raio para males produzidos pelo capitalismo, confrontando sua economia desejante de controle dos corpos e de subjetivização normalizadora. A libertação da loucura significaria ainda a restauração de um direito democrático das cidades de se constituírem como “universo dissonante e pluralista”, em um movimento politizador que reinventaria a polis.
Nessa direção, o texto de Paulo Amarante vem materializar um tipo de experimentação concreta à moda brasileira, na qual a luta antimanicomial pôde avançar por meio do campo artístico-cultural, alçando a loucura a um novo lugar social. Referindo-se a esse novo campo capaz de mobilizar políticas de Estado específicas no sentido de induzir práticas e saberes que “articulam direitos humanos, diversidade cultural, arte, cultura, trabalho”, Amarante destaca a sua autonomia em relação ao campo técnico-assistencial. A valorização da diversidade cultural que porta a loucura, canalizada por esse movimento, abre espaço para o desenvolvimento de experiências culturais, que produzem mudanças no imaginário coletivo acerca da loucura, positivando-o, e novas formas de subjetivação e de identidades dos seus protagonistas, que, nesse espaço, deixam de ser reconhecidos pelo diagnóstico psiquiátrico e psicopatológico. Talvez essa descrição – com toda a riqueza de exemplos que lista, sobretudo, a diversidade de grupos artísticos no Sudeste do país – seja o que, empiricamente, chegue mais perto de uma situação de ruptura com o período quando a loucura ganhou estatuto de doença mental, com toda a tradição teórica que analisa a loucura como desvio.
Sem dúvida, é um aporte que demonstra uma importante inovação tecnológica no campo da transformação cultural, atuando principalmente por meio de coletivos e vinculando-se à saúde especialmente pela sua promoção. Com esse texto, não se pode deixar de pensar no imenso patrimônio imaterial representado pela reforma psiquiátrica vinculada ao Sistema Único de Saúde. Um olhar atento seguirá os rumos do instituído por um outro governo da Saúde Mental, agora mudado e inscrito em um contexto que se aproxima do português, quando submetido a uma política de austeridade feroz, com particularidades brasileiras que tornam este país ainda mais vulnerável. Talvez aqui possamos usar da imprevisibilidade das transformações atuais a nosso favor, apostando em melhores e mais empoderadas ações, subjetividades e coletivos a intervirem no processo, contando, inclusive, com o que Santos3 (p. 36) chama de “redes translocais entre alternativas locais” para, quiçá, construir uma outra globalização.
Referências
- 1 Abélès M. Anthropologie de la globalisation. Paris: Payot; 2008.
- 2 Bauman Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar; 1999.
- 3 Santos BS. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6a ed. São Paulo: Cortez; 2007.
- 4 Nunes MO, Onocko-Campos RT. Prevenção, atenção e controle em saúde mental. In: Paim JS, Almeida-Filho N, organizadores. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014.
- 5 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2017
Histórico
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Recebido
27 Jan 2017 -
Aceito
24 Jul 2017