Resumos
Analisaram-se, à luz do construcionismo social, músicas de funk com ampla repercussão midiática e compartilhamento em serviços de streaming, cujos discursos remetem à violência sexual – Baile de Favela e Malandramente. A apreciação ocorreu por meio da análise dialógica, sendo, após, construído o mapa dialógico. Os resultados mostram a construção da vítima perfeita, que naturaliza a violência sexual por meio da culpabilização da vítima, a erotização da infância na construção de vítimas e agressores, cuja puerilidade é ironizada naturalizando a violência sexual e a exaltação do estupro coletivo, explorando possibilidades de relações sexuais permeadas pela violência de gênero. Os achados descortinaram um panorama preocupante. À parte do importante papel do funk como prática cultural emancipatória, os sentidos da violência sexual nos discursos expuseram a construção de relações conflituosas entre os gêneros como norma social.
Palavras-chave:
Estupro; Cultura do estupro; Violência de gênero
Se analizaron, bajo la luz del construccionismo social, canciones de funk con amplia repercusión en los medios y compartición en servicios de streaming, cuyos discursos remiten a la violencia sexual: Baile de Favela y Malandramente. La apreciación se realizó por medio del análisis dialógico después de construido el mapa dialógico. Los resultados muestran la construcción de la víctima perfecta, que naturaliza la violencia sexual por medio de la culpabilización de la víctima, la erotización de la infancia en la construcción de víctimas y agresores cuya puerilidad se ironiza, naturalizando la violencia sexual y la exaltación de la violación colectiva, explorando posibilidades de relaciones sexuales atravesadas por la violencia de género. Los hallazgos revelaron un panorama preocupante. Además del importante papel del funk como práctica cultural de emancipación, los sentidos de la violencia sexual en los discursos expusieron la construcción de relaciones conflictivas entre los géneros como norma social.
Palabras clave:
Violación; Cultura de la violación; Violencia de género
The present study analyzed, from the perspective of social constructionism, funk songs with a broad media repercussion and significant sharing in streaming services, with lyrics that refer to sexual violence: Baile de Favela and Malandramente. The study was carried out through dialogic analysis and followed by the development of a dialogic map. The results point to the construction of the perfect victim, which trivializes sexual violence by blaming the victim. It also erotizes childhood in the construction of victims and perpetrators, whose puerility is mocked by vulgarizing sexual violence and the exaltation of collective rape, exploring possibilities of sexual relations permeated by gender violence. The findings reveal an alarming scenario. Despite the important role that funk plays as an emancipatory cultural practice, the meanings of sexual violence in the lyrics of the songs exposed the development of conflicting relationships between genders as a social norm.
Keywords:
Rape; Rape culture; Gender violence
Introdução
Em 06 de maio de 2017, quatro jovens estupraram uma menina de 12 anos na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro11. Martín M. Polícia do Rio investiga caso de estupro Coletivo de menina de 12 anos postado no Facebook. El País. 6 Maio 2017.. Este crime ocorreu cerca de um ano após o estupro de uma adolescente de 16 anos no Morro da Barão, por 33 homens na Praça Seca, também no Rio de Janeiro22. Rossi M. O que já se sabe sobre o estupro coletivo no Rio de Janeiro. El País. 7 Jun 2016.. Além da crueldade dos crimes, esses eventos apresentam um traço comum: foram registrados em vídeo e disponibilizados em diferentes mídias sociais pelos próprios agressores. Um termo começa a ser cunhado na mídia jornalística brasileira para este fenômeno: Violência ostentação.
A expressão “violência ostentação” surge de uma paráfrase do termo “funk ostentação”. Este movimento musical caracteriza-se pelo culto ao consumo e exposição de bens de marca, sobretudo roupas e acessórios33. Pereira AB. Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologia da informação e da comunicação. Rev Estud Cult. 2014; 1(1):1-17.. A associação entre as expressões baseouse na interpretação de que, nos referidos vídeos, a violência era exposta como uma representação de poder. A “violência ostentação” não se restringe às agressões sexuais, mas encontrou, na cultura do estupro, um terreno fértil para sua progressão44. Melo Rocha RL. Jovens e experimentações da violência no Brasil: estética da destruição, sociabilidades limítrofes. Nómadas (Col). 2000; (13):56-62.,55. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem. 2017; 25(1):9-29..
Adotando a compreensão butleriana de gênero como pressuposto, partimos de um modelo performativo da identidade66. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of “SEX”. New York: Routledge New York & London; 1993.. Vale ressaltar que, embora estruture-se como efeito de performances histórica e culturalmente contingentes, a performatividade não é voluntarista77. Borba R. A linguagem importa? Sobre performance, performatividade e peregrinações conceituais. Cad Pagu. 2014; (43):441-74.. Ela é impelida e sustentada por processos de regulação ancorados em construções simbólicas66. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of “SEX”. New York: Routledge New York & London; 1993.. Neste contexto, a Cultura do estupro constitui o “conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerância e o estímulo à violação sexual”55. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem. 2017; 25(1):9-29. (p. 13).
Deste modo, se a performatividade se estrutura na linguagem55. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem. 2017; 25(1):9-29.,66. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of “SEX”. New York: Routledge New York & London; 1993., a adoção de medidas efetivas de enfrentamento à violência sexual demanda a compreensão das conexões entre o cotidiano e os discursos das diferentes tecnologias sociais66. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of “SEX”. New York: Routledge New York & London; 1993.. Essa conexão – e, em última análise, a própria realidade – chega-nos por intermédio de uma estrutura ficcional, ou, em outras palavras, por meio de artefactualidades88. Derrida J. The deconstruction of actuality. An interview with Jacques Derrida. Radic Philos. 1994; 68:28-41..
Atuando como artefacto, a música é produzida e "interpretada performativamente por uma gama de procedimentos hierárquicos e seletivos […], subservientes a vários poderes e interesses, dos quais os ‘sujeitos’ e agentes […] nunca estão suficientemente conscientes"88. Derrida J. The deconstruction of actuality. An interview with Jacques Derrida. Radic Philos. 1994; 68:28-41. (p.30).
Apesar de produzir discursos cuja ideologia passa despercebida – ou exatamente por isso –, a música opera com grande influência na construção das subjetividades99. Maia AF, Antunes DC. Música, indústria cultural e limitação da consciência. Rev Mal-Estar Subj. 2008; 8(4):1143-76.. Diante dessa premissa, emergem as perguntas: qual o papel das práticas musicais cotidianas na construção da cultura do estupro? Como a música atua na estruturação dos papéis sociais de gênero entre adolescentes?
No contexto brasileiro, o funk destaca-se pelo estabelecimento de sentimentos de pertença junto a populações marginalizadas33. Pereira AB. Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologia da informação e da comunicação. Rev Estud Cult. 2014; 1(1):1-17., atuando como estratégia de denúncia e de catarse diante das relações neocoloniais1010. Lopes AC. Funk-se quem quiser. No batidão negro da cidade carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, FAPERJ; 2011.,1111. Schmidt RT. O pensamento-compromisso de Homi Bhabha: notas para uma introdução. In: Bhabha H. O bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses. Rio de Janeiro: Rocco; 2011. p. 13-61.. Além de seu importante papel como prática cultural emancipatória1010. Lopes AC. Funk-se quem quiser. No batidão negro da cidade carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, FAPERJ; 2011., particularmente “da diáspora negra”1212. Teixeira JC Jr. A narrativa da montagem do funk carioca no cotidiano escolar. Educ Soc. 2015; 36(131):517-32. (p.518), parte de suas letras convergem para a “coisificação”1313. Moffatt A. Psicoterapia del oprimido. São Paulo: Cortez; 1991. feminina. Reste claro que qualquer movimento de criminalizar ou censurar uma prática cultural fere os princípios básicos da democracia. Contudo, questionar práticas misóginas em parte das letras de funk – e não o funk em si – é crucial no enfrentamento da cultura do estupro.
Neste contexto, este artigo se propõe a analisar, à luz do construcionismo social1414. Spink MJ, Lima H. Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos de interpretação. In: Spink MJ. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. São Paulo: Cortez; 1999. p. 50-78.,1515. Spink MJ. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano [Internet]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2010 [citado 28 Set 2017]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/w9q43
http://books.scielo.org/id/w9q43...
, músicas de funk com ampla repercussão midiática e compartilhamento em serviços de streaming, cujos discursos remetem à violência sexual – Baile de Favela e Malandramente.
Metodologia
Seleção das músicas
O processo de seleção buscou identificar músicas nacionais de grande repercussão midiática, tanto em momentos pontuais de grande aglomeração, como de forma longitudinal ao longo do primeiro semestre de 2016.
A música brasileira mais tocada na noite de 31 de dezembro no Spotify, pelos brasileiros usuários do serviço de streaming Spotify, foi a versão de “Baile de Favela” reproduzida nos morros cariocas – o chamado “proibidão”. Esta música, como acontece com outras do mesmo estilo, possui uma versão alternativa, onde o conteúdo sexual é menos explícito. A versão comercial, contudo, não fez o mesmo sucesso. Enquanto a versão pasteurizada obteve 16. 233 acessos, o “proibidão” foi visualizado 174.600.059 vezes no YouTube desde o lançamento, em 16 de setembro de 2015 até 04 de setembro de 2017.
Quanto ao impacto midiático ao longo do semestre de 2016, “Malandramente”, funk de Dennis DJ com os MCs Nandinho e Nego Bam, foi a música mais ouvida nos principais serviços de streaming no Brasil – Spotify e Apple Music –, sendo reproduzida mais de 230 mil vezes por dia no Spotify no país neste ano. A segunda faixa musical mais tocada no mesmo período apresentava, em média, 185 mil execuções diárias.
As letras das referidas músicas estão dispostas a seguir:
Ela veio quente, e hoje eu tô fervendo
Ela veio quente, hoje eu tô fervendo
Quer desafiar, não tô entendendo
Mexeu com o R7 vai voltar com a xota ardendo (vai)
Que o Helipa, é baile de favela
Que a Marconi, é baile de favela
E a São Rafael, é baile de favela
E os menor preparado pra foder com a xota dela (vai)
Eliza Maria, é baile de favela
Invasão, é baile de favela
E as casinha, é baile de favela
E os menor preparado pra foder com a xota dela (vai)
Que o Hebron, é baile de favela
A bailão, é baile de favela
E na rua 7 Baile de favela!
E os menor preparado pra foder com a xota dela (vai)
Malandramente
A menina inocente
Se envolveu com a gente
Só pra poder curtir
Fez cara de carente
Envolvida com a tropa
Começou a seduzir
Meteu o pé pra casa
Diz que a mãe tá ligando
Nós se vê por ai
Na hora de ganhar madeirada
A menina meteu o pé pra casa
E mandou um recadinho pra mim
Nós se vê por aí (4 vezes)
Análise
Para a análise das letras, utilizamos o método de análise dialógica proposto por Spink1414. Spink MJ, Lima H. Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos de interpretação. In: Spink MJ. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. São Paulo: Cortez; 1999. p. 50-78.,1515. Spink MJ. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano [Internet]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2010 [citado 28 Set 2017]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/w9q43
http://books.scielo.org/id/w9q43...
, que busca explorar a polissemia do discurso. Este processo de análise pautase pelo construcionismo social e toma a linguagem em uso como prática social. Isso implica trabalhar a
interface entre os aspectos performáticos da linguagem (quando, em que condições, com que intenção, de que modo) e as condições de produção (entendidas aqui tanto como contexto social e interacional, quanto no sentido foucaultiano de construções históricas)1515. Spink MJ. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano [Internet]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2010 [citado 28 Set 2017]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/w9q43
http://books.scielo.org/id/w9q43... . (p.26)
As letras foram lidas, as músicas ouvidas e os vídeos assistidos em média vinte vezes. A partir daí, foi construído o mapa dialógico, conforme preconizados por Spink1414. Spink MJ, Lima H. Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos de interpretação. In: Spink MJ. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. São Paulo: Cortez; 1999. p. 50-78.,1515. Spink MJ. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano [Internet]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2010 [citado 28 Set 2017]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/w9q43
http://books.scielo.org/id/w9q43...
. O Mapa é uma tabela onde as colunas são definidas tematicamente. A definição das temáticas organizadoras dos conteúdos da entrevista não é predeterminada, já constituindo parte do processo de interpretação. Nesse processo, trabalhamos as formações discursivas, relacionando-as ao contexto sócio-histórico para, enfim, interpretarmos a partir dos sentidos de discursos realizados, imaginados ou possíveis.
Resultados e discussão
Construção da vítima perfeita
Na estrofe inicial de Baile de Favela, vemos os versos: “Quer desafiar, não tô entendendo. Mexeu com o R7 vai voltar com a xota ardendo”. Neste contexto, cabe perguntar: Quem é a “Xota”?
A letra desta música explora relações sexuais permeadas de violência de gênero no contexto dos bailes. O verbo utilizado para representar a relação sexual – “foder” – remete a uma relação violenta.
Vale salientar que parte significativa dos discursos de erotização do outro implica ou mesmo depende de assimetrias de poder1616. Gregori MF. Relações de violência e erotismo. Cad Pagu. 2003; (20):87-120.. Falar das tensões entre erotismo e violência requer o entendimento de que muitos dos desejos que atuam no plano do abuso também podem agir no plano prazer – e vice-versa1717. Gregori MF. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras; 2016.. Contudo, embora se deva fugir de um viés de moralidade reducionista, também é preciso considerar os riscos inerentes à retórica da violência na produção semiótica do gênero1818. Lauretis T. The violence of rethoric. In: Di Leonardo M, Lancaster R. The gender/ sexuality reader: culture, history, political economy. New York: Routledge; 1997. p. 265-78.,1919. Lauretis T. A tecnologia do gênero. In: Hollanda HB. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco; 1994. p. 206-42..
A ênfase na genitalidade em si – particularmente da feminina – não constitui um ato de subordinação. Ao contrário, pode fomentar uma ressignificação “que visa a expansão dos prazeres possíveis e a implosão de modelos ou da modelagem convencional do comportamento sexual”1616. Gregori MF. Relações de violência e erotismo. Cad Pagu. 2003; (20):87-120. (p. 116).
Em “Baile de Favela”, todavia, mais do que a ênfase na genitalidade, o que se observa é redução da corporalidade da mulher a seu órgão genital e, em última análise, o apagamento de seu desejo ou prazer. Enquanto o sujeito ativo – quem “fode” – é tomado como um sujeito completo. O alvo, todavia, é uma parte fragmentada do corpo da mulher à qual esta foi reduzida.
Além disso, essa mulher não se encontra no asfalto que perpassa as ruas dos bairros de classe média. Aquela “xota” está no baile; está na favela – o espaço segregado da cidade pelas classes sociais mais favorecidas, onde qualquer forma de violência do Estado é legitimada2020. Neves LB, Neves JS. A Marginalidade enquanto identidade: a literatura de periferia e o empoderamento cultural de seus sujeitos. RELACult. 2016; 2(1):213-28..
Neste contexto, é mister destacar o papel do funk como um território tanto na perspectiva funcional como na simbólica. Sendo um espaço de sedimentação simbólico-cultural, o funk atua como suporte de identidades individuais e coletivas33. Pereira AB. Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologia da informação e da comunicação. Rev Estud Cult. 2014; 1(1):1-17.,1010. Lopes AC. Funk-se quem quiser. No batidão negro da cidade carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, FAPERJ; 2011.,1212. Teixeira JC Jr. A narrativa da montagem do funk carioca no cotidiano escolar. Educ Soc. 2015; 36(131):517-32.. Deste modo, a restrição aos chamados “bailes de asfalto” no período de vigência da Lei Álvaro Lins (assinada em 2008 e revogada em 2009) culminou não apenas no surgimento dos “bailes de favela”, como no crescimento progressivo do sentimento de pertença da juventude favelada com essa música, que nomeia seus lugares de origem e significa suas histórias1010. Lopes AC. Funk-se quem quiser. No batidão negro da cidade carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, FAPERJ; 2011.,1212. Teixeira JC Jr. A narrativa da montagem do funk carioca no cotidiano escolar. Educ Soc. 2015; 36(131):517-32..
A relação entre erotismo e violência nas letras de funk demanda, portanto, o entendimento de sua interseccionalidade com questões de raça, classe e gênero2121. Bauer GR. Incorporating intersectionality theory into population health research methodology: challenges and the potential to advance health equity. Soc Sci Med. 2014; 110:10-7.. É necessário capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação para compreender que aquela mulher não apenas é alvo da violência de gênero, como também é privada da tutela social que lhe garantiria o status de vítima2121. Bauer GR. Incorporating intersectionality theory into population health research methodology: challenges and the potential to advance health equity. Soc Sci Med. 2014; 110:10-7.,2222. Brilhante AVM, Nations MK, Catrib AMF. Taca cachaça que ela libera: violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):e00009317.. Neste contexto, vale discutir a forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios, em intersecção, criam desigualdades básicas que potencializam as mais variadas formas de violência2121. Bauer GR. Incorporating intersectionality theory into population health research methodology: challenges and the potential to advance health equity. Soc Sci Med. 2014; 110:10-7..
A análise das letras expõe ainda a culpabilização da mulher como parte do processo de construção artefactual da vítima perfeita2222. Brilhante AVM, Nations MK, Catrib AMF. Taca cachaça que ela libera: violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):e00009317.. Na estrofe inicial de Baile de Favela, vemos os versos: “Quer desafiar, não tô entendendo. Mexeu com o R7 vai voltar com a xota ardendo”. Se o restante da música naturaliza a violência sexual e a fragmentação do corpo feminino, os versos da primeira estrofe trazem à tona a legitimação do estupro por meio da culpabilização da vítima. Ao usar o verbo “desafiar”, o autor atribui à vítima a responsabilidade pelo ato sofrido, o que é corroborado pelo primeiro verso da primeira estrofe: “Ela veio quente”.
Segundo o dicionário Aurélio2323. Dicionário Aurélio de Português [Internet]. 2018 [citado 5 Fev 2018]. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/desafiar
https://dicionariodoaurelio.com/desafiar...
, desafiar significa: reptar; chamar a desafio; provocar (para que diga ou faça); fazer perder a paciência; fazer perder o fio; embotar. Ela “desafiou” o homem. O modelo de masculinidade hegemônica, entretanto, coloca sobre o homem a obrigação tanto de enfrentar os desafios como de demonstrar sua virilidade2424. Saffioti H, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995.. No outro espectro, cabe à mulher a passividade2222. Brilhante AVM, Nations MK, Catrib AMF. Taca cachaça que ela libera: violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):e00009317..
“Malandramente” segue uma linha discursiva similar ao transformar os homens do grupo em vítimas de alguém que teria agido de má-fé. A autorização para a violência é reforçada pela motivação do uso do adjetivo “safada”. Sua suposta safadeza não estava, contudo, no ato de sedução, mas na esquiva ao ato sexual, uma vez que “na hora de ganhar madeirada, a menina meteu o pé pra casa”. A negativa feminina é desqualificada na medida em que a letra a interpreta como uma transgressão às regras sociais tácitas, que regem que a mulher, uma vez iniciado o contato com um possível parceiro, deve submeter-se à relação sexual. Popularmente, essa crença é condensada no ditado popular “ajoelhou, tem que rezar”.
A “ritualização da feminilidade”2525. Goffman E. A ritualização da feminilidade. In: Goffman E. Os momentos e os seus homens. Lisboa: Relógio D’Água; 1999. p. 154-89. (p. 188), como descrita por Goffman, demanda a punição de todo comportamento feminino que fuja àquele idealizado e normatizado. Ocorre que esta ritualização normativa não depende de atitudes, mas de passividades. A subordinação social da mulher implica a supressão de sua autonomia sexual, tanto para vivenciá-la livremente como para recusar a investida masculina2222. Brilhante AVM, Nations MK, Catrib AMF. Taca cachaça que ela libera: violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):e00009317.. Deste modo, a mulher de “Baile de Favela” é punida por ignorar seu lugar de subordinação e desafiar o homem2626. Melo ACM, Garcia LP. Atendimentos de jovens vítimas de agressões em serviços públicos de urgência e emergência, 2011: diferenças entre sexos. Cienc Saude Colet. 2016; 22(4):1333-41.,2727. Garcia LP, Duarte EC, Freitas LRS, Silva GDM. Violência doméstica e familiar contra a mulher: estudo de casos e controles com vítimas atendidas em serviços de urgência e emergência. Cad Saude Publica. 2016; 32(4):1-11., e a menina de “Malandramente” é considerada “safada” após recusar o intercurso sexual.
Erotização da infância na construção de vítimas e agressores
Vale ressaltar o estímulo ao abuso sexual infantil implícito em “Malandramente”. A mulher em questão é, na verdade, uma menina, cuja puerilidade é tratada de forma irônica. Ao retratar que “malandramente, fez cara de carente”, a música coloca a juventude como artífice utilizado pela menina para “curtir” às custas da “tropa”. A letra é reforçada pelo vídeo de divulgação da música. As imagens retratam uma menina em um uniforme escolar que se transforma, ao longo do vídeo, em uma mulher sensual e sedutora. A música e sua representação audiovisual naturalizam a violência sexual contra vulneráveis, na medida em que transmite uma imagética de meninas como mulheres adultas com vivência plena de sua sexualidade.
Vale destacar, contudo, como esse tipo de artefacto não produz alarde entre os líderes da “cruzada antipedofilia”2828. Lowenkron L. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes nomes, diferentes problemas? Sex Salud Soc. 2010; (5):9-29. (p. 39). Isso se deve ao fato de seus discursos visarem proteger as representações idealizadas da infância mais do que as crianças em si2828. Lowenkron L. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes nomes, diferentes problemas? Sex Salud Soc. 2010; (5):9-29.,2929. Nascimento AF, Deslandes SF. A construção da agenda pública brasileira de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil. Physis. 2016; 26(4):1171-91.. O abuso sexual de crianças não é um fenômeno recente. Recente, contudo é a construção social da ideia do abuso sexual infantil a ponto de torná-lo um problema sociopolítico3030. Hacking I. Social construction of what? 5a ed. Cambridge, Masschusetts, and London: Harvard University Press; 2000.. A construção social da categoria infância3131. Carlota B. O desencantamento da criança: entre a renascença e o século das luzes. In: Freitas MC, Kuhlmann M Jr. Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez; 2002. p. 11-60. permitiu a emergência da ideia do abuso sexual infantil como um crime no âmbito social e jurídico. O que é fundamental nesta definição de abuso é que o consentimento sexual da criança não é considerado válido.
Os limites entre o aceitável e o inaceitável nestas circunstâncias, todavia, são bastante tênues e definidos de modo situacional e relacional2828. Lowenkron L. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes nomes, diferentes problemas? Sex Salud Soc. 2010; (5):9-29.. Ao retratar a menina com características sensuais, “Malandramente” a retira do espaço imagético da infância. Esse fenômeno é tensionado ainda por questões raciais. A exploração do corpo da menina da periferia – em sua maioria negras, como a retratada no vídeo de “Malandramente” – remete ao sistema de exploração escravagista que construiu à força a tão alardeada miscigenação brasileira3232. Fernandes DA. O gênero negro: apontamentos sobre gênero, feminismo e negritude. Rev Estud Fem. 2016; 24(3):691-713..
“Baile de favela” também coloca a infância no cerne da violência sexual, todavia, no outro extremo do espectro. A música incentiva a sexualização precoce de meninos, inserindo-os precocemente na vivência de uma masculinidade hegemônica, cujo estereótipo é fortemente atrelado à violência. O vídeo da música ilustra essa associação ao trazer jovens portando armamento de fogo em atitudes de franca exaltação da agressividade.
A música expõe ainda um dos paradoxos da ideia de consentimento sexual: sua especificidade relativa ao gênero feminino3333. Perez Y. California define qué es “consentimiento sexual”. Sex Salud Soc. 2017; 25:113-33.. Ignora-se, deste modo, que o modelo de masculinidade hegemônica demanda um desejo sexual masculino incontestável2222. Brilhante AVM, Nations MK, Catrib AMF. Taca cachaça que ela libera: violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):e00009317.. Na construção social desta masculinidade estereotipada, o “macho” busca o domínio sobre aqueles cujas performatividades são construídas como mais fracas e que, portanto, deveriam estar subordinadas à sua vontade3434. Peterson ZS, Leal JP, Rendon RR. Violar: ¿frontera del erotismo masculino? Estud Soc. 2013; 21(42):279-306. – ou seja, mulheres, crianças e homens cujas masculinidades escapem à matriz de intelegibilidade66. Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of “SEX”. New York: Routledge New York & London; 1993.. Neste contexto, “Baile de Favela” retira aqueles meninos de uma posição de subordinação e lhes atribui poder dentro de uma sociedade regida por princípios heteronormativos. Esse poder, contudo, se consolida a partir da desconstrução violenta da subjetividade de uma outra pessoa3434. Peterson ZS, Leal JP, Rendon RR. Violar: ¿frontera del erotismo masculino? Estud Soc. 2013; 21(42):279-306.. Deste modo, ao se constituírem como artefacto que demanda, dessas crianças e adolescentes, demonstração de força e virilidade, essas práticas musicais constroem o arcabouço cultural de um cenário onde a tragédia da morte de meninos pobres e negros é performada diuturnamente.
Ressalte-se, neste ponto, que o termo utilizado para caracterizar essas crianças ou adolescentes – “os menor” – carreia em si grande violência simbólica. Derivado da expressão jurídica “menor infrator”, o termo corrobora perigosos discursos sociais que criminalizam jovens da periferia. Evidencia-se, deste modo, que, apesar de a transversalidade da cultura do estupro tornar frequente a absolvição social do agressor55. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem. 2017; 25(1):9-29., a chancela da impunidade não é uniforme para todos os homens. Se nem toda mulher recebe a tutela como vítima, “os menor” são considerados preliminarmente culpados pela norma social. Neste embate entre a violência do poder – organizada e normatizada – e a contraviolência reativa, o termo “menor” passa a compor construção identitária desses jovens. Neste processo, crianças e adolescentes da favela assumem o orgulho pelo termo utilizado para sua desqualificação moral. Se as pessoas de classe mais abastada terrificaram “os menor”, é essa identidade que será assumida como resposta à violência do estado2020. Neves LB, Neves JS. A Marginalidade enquanto identidade: a literatura de periferia e o empoderamento cultural de seus sujeitos. RELACult. 2016; 2(1):213-28..
Essa construção, contudo, na perspectiva da cultura do estupro, é falaciosa e problemática. Falaciosa porque coaduna com normas sociais que estereotipam os agressores e ignoram que estupradores encontram-se em todos os lugares e classes da sociedade, entre as pessoas sem risco social aparente55. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem. 2017; 25(1):9-29.. Problemática porque oculta a real questão, que envolve a banalização da violência decorrente da incapacidade de refletir sobre ela3535. Arendt H. On violence. Orlando: A Harvest Book; 1970.. A sociedade não está dividida de forma dual entre procedimentos de violência e civilidade3636. Minayo MCS. Violência: um problema para a saúde dos brasileiros. In: Ministério da Saúde (BR). Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 9-41.. Ao contrário, as formas notórias da violência são a face pública de relações cotidianas tecidas a nível privado e microssocial3737. Marcondes Filho C. Violência Fundadora e violência reativa na cultura brasileira. São Paulo Perspec. 2001; 15(2):20-7.–4040. Méndez LB. Las microviolencias y sus efectos: claves para su detección. In: Jarabo CR, Prieto PB. La violencia contra las mujeres: prevención y detección. Madrid: Díaz de Santos; 2005, p. 83-102.. A violência não é, portanto, algo em si grandioso, mas ordinário, advindo da ausência de reflexão sobre atos e condutas legitimados no tecido social4141. Arendt H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 14a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 1999.. Os estupradores agem ancorados por discursos machistas que são transmitidos até eles – e por eles – das mais variadas formas55. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem. 2017; 25(1):9-29., incluindo músicas como as aqui retratadas. Desta forma, os discursos que normatizam os papéis sociais de gênero são os mesmos que legitimam a violência cotidiana contra a mulher2424. Saffioti H, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995.. Estigmatizar esta violência minimiza as interfaces do sujeito com seu mundo local moral4242. Kleinman A. The violence of everyday life: the multiple forms and dynamics of social violence. In: Das V, Kleinman A, Ramphele M, Reynolds P. Violence and subjectivity. Berkeley: University of California Press; 2000., ignorando que injúrias de gênero são produzidos como parte de uma tendência de oposição binária culturalmente sustentada2424. Saffioti H, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995.–4343. Zanello V, Costa e Silva RM. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Rev Bioet. 2012; 20(2):267-79.. Deste modo, além de construírem vítimas perfeitas, os artefactos analisados constroem a imagem dos “agressores perfeitos”.
Ostentação do estupro coletivo
Outro ponto de destaque nas análises foi a caracterização das flexões de número utilizadas na oração: “Os menor preparados pra foder com a xota dela”. A música faz, deste modo, menção evidente à relação sexual violenta de vários jovens com uma única “xota”, e exalta o ato delituoso como feito a ser vivenciado e celebrado nos bailes de favela.
De modo mais sutil, “Malandramente” retrata a menina “envolvida com a tropa”, autorizando de forma tácita que a violência seja perpetrada por todos supostamente lesados pela mulher “malandra”.
Apesar de não ser possível traçar uma relação causal direta – e nem é essa a intenção deste estudo – também não se pode ignorar o papel da música na consolidação das performances de gênero e dos discursos que moldam a realidade social4444. Thompson JB. Ideologia e cultura moderna - teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 7a ed. Petrópolis: Vozes; 2007.–5252. Johnson B, Cloonan M. Dark side of the tune: popular music and violence. Bodmin: Ashgate; 2008..
Deste modo, chama a atenção a coexistência temporal da música com o crescimento significativo no número de estupros coletivos notificados e divulgados pelos próprios agressores como forma de ostentação de poder. Em 2016, além do estupro coletivo ocorrido na Zona Oeste do Rio de Janeiro11. Martín M. Polícia do Rio investiga caso de estupro Coletivo de menina de 12 anos postado no Facebook. El País. 6 Maio 2017., filmado e compartilhado nas redes sociais, outros casos foram veiculados pela mídia: três em diferentes cidades do interior do Estado do Piauí5353. Moraes C. Três estupros coletivos no Piauí revelam mal disseminado no país. El País. 14 Jun 2016. e outro, também no Rio de Janeiro, registrado no mês de outubro5454. Martín M. Mais um estupro coletivo do qual o mundo não ficou sabendo. El País. 28 Out 2016.. Neste último, uma mulher de 34 anos foi estuprada por cinco menores de idade em uma comunidade de São Gonçalo. Segundos dados do SINAN, as notificações de estupros coletivos no Brasil saltaram de 1.570 em 2011 para 3.526, em 20165555. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Coordenação Geral de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Nota: Estupros em mulheres. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016.. São, em média, dez casos de estupro coletivo por dia.
Seria leviano e reducionista atribuir às letras em questão ou ao funk em si o ensejo destes episódios. São inúmeras as artefactualidades cujos discursos constroem a base de sustentação para a cultura do estupro. Entretanto, apesar de não haver relação causal direta, as letras aqui apresentadas fazem parte de um sistema complexo que, embora fictício, descortina a violência contra a mulher como habitus4545. Bourdier P. O poder simbólico. 8a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2005.. Para Bourdieu4545. Bourdier P. O poder simbólico. 8a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2005., o habitus do campo social constitui-se na cultura do indivíduo, e em seu meio social. Neste contexto, consolidam-se crenças e preferências que alimentam diferentes “mercados”, como: o econômico, o corporal, o cultural, o escolar, o social, o simbólico. É dentro do capital simbólico que as relações arbitrárias se tornam relações legitimadas. Os papéis sociais dos gêneros, estabelecidos culturalmente, têm uma relevância crucial para a compreensão dos mecanismos que normatizam a violência contra a mulher.
Vale ressaltar que este habitus está relacionado a uma ampla cultura que incorpora práticas de violência presentes nos diferentes estilos musicais, nas diversas manifestações artísticas, e são transversais aos discursos e práticas cotidianas99. Maia AF, Antunes DC. Música, indústria cultural e limitação da consciência. Rev Mal-Estar Subj. 2008; 8(4):1143-76.,4646. Cohen S. Men making a scene: rock music and the production of gender. In: Whithley S. Sexing the groove: popular music and gender. Routledge: New York; 1997. p.17-36.–5252. Johnson B, Cloonan M. Dark side of the tune: popular music and violence. Bodmin: Ashgate; 2008.. Deste modo, criminalizar uma prática cultural isolada – seja o funk ou qualquer outra – não atenua o problema; é mera cosmiatria. O enfrentamento é necessário a todos os discursos promotores de iniquidades sociais e violência, lembrando que este é um sistema culturalmente arraigado.
O conceito de cultura do estupro é construído a partir da percepção de que diversas práticas discursivas correntes não apenas toleram a violência sexual contra a mulher, como também a incentivam e legitimam55. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem. 2017; 25(1):9-29.. Este fenômeno está diretamente relacionado à construção dos gêneros em si, posto que esta se dá a partir de valores culturais hierárquicos socialmente produzidos2424. Saffioti H, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995.,4343. Zanello V, Costa e Silva RM. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Rev Bioet. 2012; 20(2):267-79.. Não é à toa que uma das características da violência contra a mulher é sua invisibilidade2626. Melo ACM, Garcia LP. Atendimentos de jovens vítimas de agressões em serviços públicos de urgência e emergência, 2011: diferenças entre sexos. Cienc Saude Colet. 2016; 22(4):1333-41.. Seja porque o agressor é um familiar ou um conhecido próximo2727. Garcia LP, Duarte EC, Freitas LRS, Silva GDM. Violência doméstica e familiar contra a mulher: estudo de casos e controles com vítimas atendidas em serviços de urgência e emergência. Cad Saude Publica. 2016; 32(4):1-11.,5656. World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence [Internet]. Geneva: WHO; 2013 [citado 21 Jun 2017]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/85239/1/9789241564625_eng.pd
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665...
, seja por receio da violência institucional no ato da denúncia5757. Viana AJB, Sousa ESS. O poder (in)visível da violência sexual: abordagens sociológicas de Pierre Bourdieu. Rev Cienc Soc. 2016; 45(2):155-83., seja por vergonha ou outras tantas questões culturais55. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem. 2017; 25(1):9-29., o fato é que grande parte das ocorrências não geram atendimentos e não são captadas pelos sistemas de informação, o que resulta em subnotificação dos eventos5555. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Coordenação Geral de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Nota: Estupros em mulheres. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016.. Vale ressaltar que, posto que estão normatizadas, é frequente o não reconhecimento deste tipo de violência como tal, tanto por vítimas como por perpetradores2424. Saffioti H, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995..
Discutir esse tema em um período histórico marcado pela ostentação da violência torna-se crucial, uma vez que os discursos midiáticos constituem um importante sistema simbólico. Os sistemas simbólicos, para Bourdieu4545. Bourdier P. O poder simbólico. 8a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2005., tornam possível o consenso sobre os sentidos do mundo social e contribuem para a reprodução da ordem social. Essa estrutura, ao mesmo tempo invisibilizada e sustentada pelos discursos presentes nas relações de comunicação e de conhecimento, estabelece relações de poder. A ostentação dessas relações, que associam poder, virilidade e violência, não são recentes4949. Brilhante AVM, Catrib AMF. A violência contra a mulher e o forró nosso de cada dia. Fortaleza: EdUECE; 2016.. Em época de redes sociais, contudo, elas têm seu simbolismo exponencialmente ampliado. A experimentação da violência pela violência, atrelada ao êxtase destrutivo de base autorreferencial, alimenta uma linguagem da violência com dimensões performáticas que fomentam a ostentação desta como símbolo de poder44. Melo Rocha RL. Jovens e experimentações da violência no Brasil: estética da destruição, sociabilidades limítrofes. Nómadas (Col). 2000; (13):56-62..
Considerações finais
O presente artigo objetivou analisar, à luz do construcionismo social, duas músicas de funk com ampla repercussão midiática e compartilhamento em serviços de streaming, cujos discursos remetem à violência sexual. Os achados da pesquisa descortinaram um panorama preocupante. Os sentidos da violência sexual nos discursos das músicas expuseram a construção de relações conflituosas entre os gêneros como norma social. Nesse processo, letras e performances das músicas em questão contribuem para a construção de um contexto cultural que normatiza a violência sexual contra a mulher.
Vale ressaltar que não pretendemos aqui criticar o instituto do funk. Reconhecemos seu importante papel como representante da cultura popular e como movimento político e social. Contudo, discutir a violência expressa e o potencial de dano em grande parte de suas letras e em suas performances contribui para o estabelecimento de relações de gênero mais justas e menos violentas.
Referências
-
1Martín M. Polícia do Rio investiga caso de estupro Coletivo de menina de 12 anos postado no Facebook. El País. 6 Maio 2017.
-
2Rossi M. O que já se sabe sobre o estupro coletivo no Rio de Janeiro. El País. 7 Jun 2016.
-
3Pereira AB. Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologia da informação e da comunicação. Rev Estud Cult. 2014; 1(1):1-17.
-
4Melo Rocha RL. Jovens e experimentações da violência no Brasil: estética da destruição, sociabilidades limítrofes. Nómadas (Col). 2000; (13):56-62.
-
5Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem. 2017; 25(1):9-29.
-
6Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of “SEX”. New York: Routledge New York & London; 1993.
-
7Borba R. A linguagem importa? Sobre performance, performatividade e peregrinações conceituais. Cad Pagu. 2014; (43):441-74.
-
8Derrida J. The deconstruction of actuality. An interview with Jacques Derrida. Radic Philos. 1994; 68:28-41.
-
9Maia AF, Antunes DC. Música, indústria cultural e limitação da consciência. Rev Mal-Estar Subj. 2008; 8(4):1143-76.
-
10Lopes AC. Funk-se quem quiser. No batidão negro da cidade carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, FAPERJ; 2011.
-
11Schmidt RT. O pensamento-compromisso de Homi Bhabha: notas para uma introdução. In: Bhabha H. O bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses. Rio de Janeiro: Rocco; 2011. p. 13-61.
-
12Teixeira JC Jr. A narrativa da montagem do funk carioca no cotidiano escolar. Educ Soc. 2015; 36(131):517-32.
-
13Moffatt A. Psicoterapia del oprimido. São Paulo: Cortez; 1991.
-
14Spink MJ, Lima H. Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos de interpretação. In: Spink MJ. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. São Paulo: Cortez; 1999. p. 50-78.
-
15Spink MJ. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano [Internet]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2010 [citado 28 Set 2017]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/w9q43
» http://books.scielo.org/id/w9q43 -
16Gregori MF. Relações de violência e erotismo. Cad Pagu. 2003; (20):87-120.
-
17Gregori MF. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras; 2016.
-
18Lauretis T. The violence of rethoric. In: Di Leonardo M, Lancaster R. The gender/ sexuality reader: culture, history, political economy. New York: Routledge; 1997. p. 265-78.
-
19Lauretis T. A tecnologia do gênero. In: Hollanda HB. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco; 1994. p. 206-42.
-
20Neves LB, Neves JS. A Marginalidade enquanto identidade: a literatura de periferia e o empoderamento cultural de seus sujeitos. RELACult. 2016; 2(1):213-28.
-
21Bauer GR. Incorporating intersectionality theory into population health research methodology: challenges and the potential to advance health equity. Soc Sci Med. 2014; 110:10-7.
-
22Brilhante AVM, Nations MK, Catrib AMF. Taca cachaça que ela libera: violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(3):e00009317.
-
23Dicionário Aurélio de Português [Internet]. 2018 [citado 5 Fev 2018]. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/desafiar
» https://dicionariodoaurelio.com/desafiar -
24Saffioti H, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995.
-
25Goffman E. A ritualização da feminilidade. In: Goffman E. Os momentos e os seus homens. Lisboa: Relógio D’Água; 1999. p. 154-89.
-
26Melo ACM, Garcia LP. Atendimentos de jovens vítimas de agressões em serviços públicos de urgência e emergência, 2011: diferenças entre sexos. Cienc Saude Colet. 2016; 22(4):1333-41.
-
27Garcia LP, Duarte EC, Freitas LRS, Silva GDM. Violência doméstica e familiar contra a mulher: estudo de casos e controles com vítimas atendidas em serviços de urgência e emergência. Cad Saude Publica. 2016; 32(4):1-11.
-
28Lowenkron L. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes nomes, diferentes problemas? Sex Salud Soc. 2010; (5):9-29.
-
29Nascimento AF, Deslandes SF. A construção da agenda pública brasileira de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil. Physis. 2016; 26(4):1171-91.
-
30Hacking I. Social construction of what? 5a ed. Cambridge, Masschusetts, and London: Harvard University Press; 2000.
-
31Carlota B. O desencantamento da criança: entre a renascença e o século das luzes. In: Freitas MC, Kuhlmann M Jr. Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez; 2002. p. 11-60.
-
32Fernandes DA. O gênero negro: apontamentos sobre gênero, feminismo e negritude. Rev Estud Fem. 2016; 24(3):691-713.
-
33Perez Y. California define qué es “consentimiento sexual”. Sex Salud Soc. 2017; 25:113-33.
-
34Peterson ZS, Leal JP, Rendon RR. Violar: ¿frontera del erotismo masculino? Estud Soc. 2013; 21(42):279-306.
-
35Arendt H. On violence. Orlando: A Harvest Book; 1970.
-
36Minayo MCS. Violência: um problema para a saúde dos brasileiros. In: Ministério da Saúde (BR). Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 9-41.
-
37Marcondes Filho C. Violência Fundadora e violência reativa na cultura brasileira. São Paulo Perspec. 2001; 15(2):20-7.
-
38Méndez LB. Desvelando los micromachismos en la vida conyugal. In: Corsi J. Violencia masculina en la pareja. Una aproximación al diagnóstico y a los modelos de intervención. Buenos Aires: Paidós; 1995. p. 191-208.
-
39Méndez LB. Micromachismos: la violencia invisible en la pareja. In: Primeras Jornadas de género en la sociedad actual. Valencia: Generalitat Valenciana;1996. p. 25-45.
-
40Méndez LB. Las microviolencias y sus efectos: claves para su detección. In: Jarabo CR, Prieto PB. La violencia contra las mujeres: prevención y detección. Madrid: Díaz de Santos; 2005, p. 83-102.
-
41Arendt H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 14a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 1999.
-
42Kleinman A. The violence of everyday life: the multiple forms and dynamics of social violence. In: Das V, Kleinman A, Ramphele M, Reynolds P. Violence and subjectivity. Berkeley: University of California Press; 2000.
-
43Zanello V, Costa e Silva RM. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Rev Bioet. 2012; 20(2):267-79.
-
44Thompson JB. Ideologia e cultura moderna - teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 7a ed. Petrópolis: Vozes; 2007.
-
45Bourdier P. O poder simbólico. 8a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2005.
-
46Cohen S. Men making a scene: rock music and the production of gender. In: Whithley S. Sexing the groove: popular music and gender. Routledge: New York; 1997. p.17-36.
-
47Faria CN. Puxando a sanfona e rasgando o nordeste: relações de gênero na música popular nordestina (1950-1990). Mneme Rev Humanidades. 2010; 3(5):1-35.
-
48Koskoff E. A feminist ethnomusicology: writings on music and gender. Chicago: University of Illinois Press; 2014.
-
49Brilhante AVM, Catrib AMF. A violência contra a mulher e o forró nosso de cada dia. Fortaleza: EdUECE; 2016.
-
50Järviluoma H, Moisala P, Vilkko A. Gender and qualitative methods. Londres: Sage; 2003.
-
51Santos LZ. Construindo territórios, rimando violências: das narrativas musicais num contexto urbano do sul do Brasil. Music Cult. 2017; 10:1-16.
-
52Johnson B, Cloonan M. Dark side of the tune: popular music and violence. Bodmin: Ashgate; 2008.
-
53Moraes C. Três estupros coletivos no Piauí revelam mal disseminado no país. El País. 14 Jun 2016.
-
54Martín M. Mais um estupro coletivo do qual o mundo não ficou sabendo. El País. 28 Out 2016.
-
55Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Coordenação Geral de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Nota: Estupros em mulheres. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016.
-
56World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence [Internet]. Geneva: WHO; 2013 [citado 21 Jun 2017]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/85239/1/9789241564625_eng.pd
» http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/85239/1/9789241564625_eng.pd -
57Viana AJB, Sousa ESS. O poder (in)visível da violência sexual: abordagens sociológicas de Pierre Bourdieu. Rev Cienc Soc. 2016; 45(2):155-83.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jan 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
16 Out 2017 -
Aceito
24 Jun 2018