Open-access Práticas de profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) no cuidado a idosos com demência

Professional Primary Healthcare practices in senile dementia care

Prácticas de profesionales de la Atención Primaria de la Salud en el cuidado de ancianos con demencia

Resumos

O artigo analisa as práticas de médicos e enfermeiros da Atenção Primária à Saúde (APS) no cuidado a idosos com demência. Foi conduzido um estudo transversal e analítico, na Atenção Primária de municípios do norte de Minas Gerais, Brasil. Aplicou-se o instrumento Atenção Sanitária às Demências: a visão da Atenção Básica, nas versões para médicos e enfermeiros. Dos 316 participantes, 138 eram médicos e 178, enfermeiros. Encontrou-se associação estatisticamente significativa entre tempo de experiência profissional no serviço e participação em atividade de capacitação em demência (médico p = 0,026; enfermeiros p = 0,049) e entre a formação dos profissionais e participação em atividade de capacitação em demência (médico p = 0,028; enfermeiro p = 0,003). Constatou-se uma prática incipiente de médicos e enfermeiros da APS no cuidado a idosos com demência, apontando para a necessidade do desenvolvimento de estratégias educativas de modo a qualificar a assistência.

Demência; Profissionais de saúde; Atenção Primária à Saúde


This article analyzes doctor and nurse practices in Primary Healthcare of elderly with dementia. A transversal and analytical study was conducted in the Primary Care of cities in the northern part of the Brazilian state of Minas Gerais. The doctor and nurse versions of the “Public Healthcare of dementia: from the Primary Care point of view” instrument was applied. Among the 316 participants, 138 were doctors, and 178 were nurses. A statistically significant connection was found between duration of professional experience in service and participation in dementia training (doctors, p=0.026; nurses, p=0.049), and education of professionals and participation in dementia training (doctors, p=0.028; nurses, p=0.003). An incipient practice was observed among doctors and nurses of Primary Healthcare in senile dementia care pointing to the need for developing educational strategies to qualify care.

Dementia; Health professionals; Primary Healthcare


El artículo analiza las prácticas de médicos y enfermeros de la Atención Primaria de la Salud en el cuidado de ancianos con demencia. Se realizó un estudio transversal y analítico en la Atención Primaria de municipios del Norte del Estado de Minas Gerais, Brasil. Se aplicó el Instrumento “Atención Sanitaria a las Demencias: la visión de la Atención Básica” en las versiones para médicos y enfermeros. De los 316 participantes, 138 eran médicos y 178 enfermeros. Se encontró una asociación estadísticamente significativa entre tiempo de experiencia profesional en el servicio y participación en actividad de capacitación en demencia (médico p=0,026; enfermeros p=0,049) y entre la formación de los profesionales y la participación en actividad de capacitación en demencia (médico p=0,028; enfermero p=0,003). Se constató una práctica incipiente de médicos y enfermeros de la Atención Primaria de la Salud en el cuidado de ancianos con demencia, señalando la necesidad del desarrollo de estrategias educativas para cualificar la asistencia.

Demencia; Profesionales de la Salud; Atención Primaria de la Salud


Introdução

O fenômeno de envelhecimento da população é mundial e estima-se que, até 2025, o Brasil será o sexto país em número de idosos1. A cada ano, 650 mil novos idosos são incorporados à população brasileira e, entre estes, existe uma importante parcela de portadores de alguma doença crônica não transmissível (DCNT), além daqueles que, mesmo sem doença, já apresentam alguma limitação funcional2.

Entre os idosos, a demência é uma das principais DCNT e pode causar incapacidade e dependência3. A demência cursa com deterioração dos domínios cognitivos, transtornos de comportamento e prejuízo funcional4 e é o tipo mais comum e mais grave de comprometimento da função cognitiva5. Nas Estimativas de Saúde Global de 2016, da Organização Mundial da Saúde (OMS), as mortes devido às demências mais que dobraram entre 2000 e 2016, o que elevou a demência à posição de quinta causa de mortes no mundo em 20166. Em países como a Inglaterra e País de Gales, a demência já se constitui na principal causa de morte7. Para a média dos países da América Latina, a taxa de prevalência de demência foi de 7,1%8. A prevalência desse agravo no Brasil varia de 5,1% a 17,5%9.

A APS constitui-se em um contexto privilegiado para o cuidado da pessoa idosa com demência. Nesse cenário, espera-se uma abordagem preventiva e uma intervenção precoce para detecção de distúrbios cognitivos, do comprometimento da funcionalidade e de suas complicações10. Para tanto, os profissionais de saúde devem estar qualificados para o atendimento ao paciente com demência e aos seus cuidadores. Estratégias para qualificar o cuidado ofertado aos idosos pelos profissionais de saúde podem incluir educação continuada, como a residência, cursos de especialização lato sensu e stricto sensu e a Educação Permanente11.

As evidências para desenvolver uma resposta de saúde eficaz nesse padrão de doença e envelhecimento das populações precisam ser produzidas pelos serviços de saúde12. O conhecimento sobre o cuidado à pessoa idosa com demência pode contribuir para subsidiar politícias públicas para a promoção da qualidade de vida dessa população. A investigação sobre as práticas do cuidado primário à demência ainda são incipientes no cenário nacional, especialmente no norte de Minas Gerais. O objetivo deste estudo foi analisar as práticas de médicos e enfermeiros da APS no cuidado a idosos com demência.

Metodologia

Trata-se de um estudo transversal e analítico realizado na APS dos municípios-polo de Residência de Medicina de Família e Comunidade e Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Universidade Estadual de Montes Claros. Assim, foram estabelecidos como cenários os municípios-polo de Montes Claros, Taiobeiras, Salinas, Pirapora, Janaúba, Porteirinha, Coração de Jesus e Bocaiúva.

A pesquisa foi realizada com médicos, médicos residentes, enfermeiros e enfermeiros residentes que atuavam na Estratégia Saúde da Família (ESF) desses municípios. No período de realização do estudo, entre os meses de março e outubro de 2018, a Atenção Primária dos municípios era composta por 274 equipes de ESF, totalizando aproximadamente 274 profissionais médicos e 274 profissionais enfermeiros do quadro de funcionários desses municípios, além de 122 residentes médicos e 15 residentes enfermeiros. Foram utilizados como critérios de inclusão ser profissional atuante na APS e, de exclusão, estar em afastamento das atividades laborais por qualquer motivo e/ou em período de férias.

Foi utilizado um questionário que contemplava as características sociodemográficas e econômicas – sexo (feminino ou masculino), cor da pele autodeclarada (branca, negra, parda ou amarela), estado civil (casado/união estável, solteiro ou separado/divorciado) e renda (menos que 5, 5 a 10 ou mais de 10 salários mínimos) –, de formação – tempo de graduação (menos de 5, 5 a 10 ou mais de 10 anos), escolaridade (graduação, especialização, residência ou mestrado/doutorado) e estar cursando residência em Saúde da Família (sim ou não) – ocupacionais – vínculo profissional (contratado, efetivo, residência ou outros), tempo na ESF (menos de 5, 5 ou mais anos) e tempo na equipe atual (2 ou mais de 2 anos) – e práticas dos profissionais em relação ao cuidado do idoso com demência. Para tanto, foi aplicado o instrumento Atenção Sanitária às Demências: a visão da Atenção Básica” nas versões para médicos e enfermeiros13, adaptados para o contexto brasileiro14.

O instrumento é composto por questões abertas e fechadas, 28 no formato para médicos e 16, para enfermeiros, relacionadas ao rastreamento, diagnóstico e acompanhamento de pacientes com demência14. Não se trata de um questionário baseado em respostas corretas e incorretas14, mas sim de um meio de se conhecer a prática dos profissionais no atendimento de pacientes com demência. Nesse estudo, avaliaram-se as variáveis agenda específica para atendimento em idosos (sim ou não); considerar necessário realizar capacitação em demência (sim ou não), percentual de idosos entre os pacientes (menos de 10%, 10 a 14%, 15 a 19% e 20% ou mais); número de consultas/mês a pacientes com demência (nenhuma, menos de 10, 10 ou mais); sinais e sintomas usados para suspeitar de uma possível demência (sintomas psicológicos e comportamentais, comprometimento cognitivo com e sem alterações da memória, comprometimento das atividades de vida diária); testes utilizados para avaliar a função cognitiva (Miniexame do Estado Mental (MEEM), Avaliação Cognitiva-Funcional Global, Teste de Fluência Verbal, Teste do Desenho do Relógio); testes para avaliar capacidade funcional (Testes de Pfeffer, Katz e Lawton); programa visitas para acompanhamento de pacientes com demência (sim, não), se são encontradas dificuldades para cuidar de pacientes com demência grave (sim ou não); e frequência de acompanhamento para o cuidador (nunca, raramente, às vezes ou frequentemente).

Os questionários foram aplicados pelos pesquisadores e alunos de Iniciação Científica por meio de visitas in loco em cada Unidade Básica de Saúde (UBS) ou em reuniões previamente agendadas e pactuadas com as gestões. Para os profissionais que não foram localizados nas visitas, o instrumento foi enviado por e-mail.

Na análise dos dados, utilizou-se o software IBM – SPSS, versão 20.0. Para análise estatística descritiva das variáveis sociodemográficas, econômicas, de formação e ocupacionais, utilizaram-se as frequências absolutas e relativas. Para a análise comparativa entre práticas de médicos e enfermeiros; e para verificar a associação entre o tempo de experiência profissional na ESF e práticas de médicos e enfermeiros e entre formação e as práticas no cuidado às demências, foi utilizado o teste Qui-Quadrado, com nível de significância de 0,05.

O estudo foi conduzido em consonância com as normas para pesquisas envolvendo seres humanos, estipuladas pela Resolução número 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros, sob o parecer n. 2.483.632.

Resultados

Participaram deste estudo 316 profissionais, sendo 138 médicos e 178 enfermeiros. A taxa de resposta foi de 46,13%. Em ambas as profissões, a maioria dos participantes era do sexo feminino, sendo 65,2% entre os médicos e 84,8% entre os enfermeiros. A média de idade foi de 32,4 anos (±7,5) para médicos e 33,4 anos (±5,9) para enfermeiros. Quanto ao tempo de formação, a média foi de 5,7 anos (±7,1) para médicos e 8,3 anos (±4,3) para enfermeiros, sendo que 65,7% dos médicos possuíam menos de cinco anos de formação, enquanto os enfermeiros (47,1%) possuíam entre cinco e dez anos de formados. O maior nível de escolaridade entre os médicos foi a graduação (44,2%); já entre os enfermeiros, foi a especialização (54,2%). Em relação ao tempo de experiência na ESF, os médicos apresentaram uma média de 4,3 anos (±4,5) e os enfermeiros, 6,5 anos (±7,9). Destaca-se também que em ambas as profissões o vínculo profissional foi o contrato, representando 88,3% entre médicos e 84,5% entre enfermeiros. Já o tempo na equipe atual de ESF foi em média 2,2 anos (±3,4) para médicos e 2,7 (±3,1) para enfermeiros (tabela 1).

Tabela 1
Caracterização sociodemográfica e profissional dos médicos e enfermeiros da APS (n = 316)

A avaliação das práticas de médicos e enfermeiros da APS no cuidado a idosos com demência foi demostrada na tabela 2. Observou-se que 73% do total de profissionais da APS não possuíam agenda específica para atendimento de idosos, com diferença significativa entre as categorias, sendo 81,2 % dos médicos e 66,7% dos enfermeiros (p = 0,004).

Tabela 2
Comparação das práticas de médicos e enfermeiros da APS no cuidado a idosos com demência

Entre os pesquisados, 98,1% consideraram necessário realizar capacitação específica em demência. A ausência de participação em atividades de capacitação específica sobre diagnóstico e o tratamento de demência foi relatada por 62,9%. Essas variáveis não apresentaram diferenças estatísticas entre as profissões.

Observou-se que 21% dos profissionais da APS relataram não realizar nenhuma consulta por mês a pacientes com demência e 74% realizavam menos de 10 consultas. O número de consultas por mês a pacientes com demência mostrou-se significativo entre as profissões, evidenciado por menos de 10 consultas médicas (85,5%) e menos de 10 consultas de enfermagem (65%) (p < 0,001).

Na avaliação dos sinais e sintomas utilizados para suspeitar de uma possível demência, observou-se que o comprometimento cognitivo com alterações da memória foi considerado por 79,9% dos profissionais e o comprometimento cognitivo sem alterações de memória , por 33,8% destes. Quanto à utilização de testes para avaliação cognitiva, 71% dos médicos utilizam o Miniexame do Estado Mental; em contrapartida, 61,8% dos enfermeiros relataram não utilizá-lo (p < 0,001); o teste de fluência verbal não era utilizado por 72,5% dos médicos e 84,% dos enfermeiros (p = 0,007); o Teste do Desenho do Relógio não era aplicado por 65,9% dos médicos e 78,1% dos enfermeiros (p = 0,016) e; por fim, 21% dos médicos relataram não utilizar habitualmente testes de avaliação cognitiva, comparado a 55,1% dos enfermeiros (p < 0,001).

Quanto aos testes para avaliar a capacidade funcional, 73,5% dos profissionais habitualmente não utiliza nenhum teste. A dificuldade para cuidar de pacientes com demência grave foi relatada por 81,3% dos profissionais. Em relação ao acompanhamento do cuidador, 59,1% afirmaram realizá-lo nunca ou raramente.

Na análise entre tempo de experiência profissional na ESF e práticas de médicos e enfermeiros da APS no cuidado às demências, foram observadas associação estatisticamente significativa para a participação em atividade de capacitação em demência (médico p = 0,026; enfermeiros p = 0,049) e dificuldades para cuidar de pacientes com demência grave (p = 0,006) entre os médicos. Observou-se que 66,7% dos médicos e 71,8% dos enfermeiros com menos de cinco anos de experiência profissional na ESF não participavam em atividades de capacitação em demência. Entre os médicos, 86,9% com menos de cinco anos de experiência profissional na ESF encontravam dificuldades para cuidar de pacientes com demência grave (tabela 3).

Tabela 3
Associação entre tempo de experiência profissional na ESF e práticas de médicos e enfermeiros da APS no cuidado a idosos com demência

Na análise de associação entre formação dos profissionais médicos da APS e práticas no cuidado às demências, observou-se que a participação em atividade de capacitação em demência (p = 0,028) e frequência de acompanhamento para o cuidador (médico p = 0,034) foram estatisticamente significativas. Entre os médicos da APS com graduação, 73,8% relataram não participar em atividade de capacitação em demência e 62,5%, nunca/raramente realizar acompanhamento para o cuidador (tabela 4).

Tabela 4
Associação entre formação de médicos da APS e práticas no cuidado às demências

Na análise de associação entre formação dos profissionais médicos e enfermeiros da APS e práticas no cuidado às demências, observou-se que a participação em atividade de capacitação em demência (médico p = 0,028; enfermeiro p = 0,003) e frequência de acompanhamento para o cuidador (médico p = 0,034; enfermeiro p = 0,051) foram estatisticamente significativas (tabelas 4 e 5). Entre os enfermeiros da APS com graduação, 82,2% relataram participar em atividade de capacitação em demência e 55,8%, nunca/raramente realizar acompanhamento para o cuidador (tabela 5).

Tabela 5
Associação entre formação de enfermeiros da APS e práticas no cuidado às demências

Discussão

Neste estudo, constatou-se uma prática incipiente de médicos e enfermeiros da APS no cuidado aos idosos com demência. O atendimento dos idosos pelos profissionais tem sido realizado de forma não sistematizada. Estudo anterior verificou que o acesso ao serviço de saúde é uma das necessidades não atendidas mais relatadas pelos idosos15, sendo maior entre aqueles que usam o Sistema Único de Saúde (SUS) quando comparados aos que utilizam planos de saúde privados16.

O idoso com demência requer uma agenda específica, com dia e horários predeterminados, para garantir tempo e espaço para a avaliação multidimensional, que exige do profissional a aplicação de instrumentos que podem demandar mais tempo, fator elencado como limitante do atendimento às demências13.

A dificuldade do acesso do idoso ao acompanhamento clínico existe mesmo com o aumento da cobertura da ESF no cenário nacional16. Essa situação pode comprometer a qualidade do manejo das demências. A limitação de acesso pode contribuir para a busca de atendimento em hospitais, comprometendo o atributo de primeiro contato da APS. Esse atributo apresenta os mais baixos escores em estudo de avaliação da qualidade dos serviços de APS17,18 e pode também prejudicar o atributo da longitudinalidade, com a diminuição do número de consultas de retorno para reavaliações dos idosos com demência e do seu cuidado, o que é imprescindível devido à característica progressiva e ao manejo complexo dessa síndrome19. Esse contexto pode contribuir para o aumento das internações dos idosos por condições sensíveis à APS17.

A maioria dos profissionais, de ambas as categorias, informou não ter realizado curso de capacitação em demência nos últimos anos, embora tenha considerado necessário realizar capacitação nesse tema, assim como encontrado por Tuero et al.13. A capacitação em demência é importante para a aquisição de competências no cuidado ao idoso e para a atualização e/ou a aquisição de novas informações. Estudos internacionais evidenciaram que participação em capacitação sobre demência possibilita aos profissionais maior conhecimento, atitudes positivas e êxito no cuidado frente aos pacientes com demência20,21.

O aperfeiçoamento profissional é importante na medida em que atende à necessidade advinda da realidade vivenciada no serviço, frente à crescente demanda de cuidados com demência. Todavia, os profissionais ainda apresentam dificuldade em reconhecer que os problemas vivenciados no dia a dia são os propulsores das atividades de educação e despertar essa capacidade reflexiva é um desafio22. Para tanto, há necessidade de que os gestores promovam e incentivem essa atividade em horário protegido no serviço. Estudos prévios afirmaram baixa adesão dos profissionais em atividades de educação continuada e permanente23,24. O Ministério da Saúde tem investido na educação dos profissionais de saúde de forma ampla, mas o impacto desses programas na prática cotidiana de produção do cuidado ainda tem sido baixo25.

O processo de educação profissional incorporado ao trabalho nas equipes de Saúde da Família permite problematizar a realidade, refletir sobre as práticas e planejar ações, na perspectiva de transformar e qualificar as práticas do cuidado22. Nesse sentido, as residências tanto em Medicina de Família e Comunidade quanto Multiprofissional em Saúde da Família constituem-se em um espaço de formação de profissionais com competência para atender às necessidades em saúde da população no âmbito do SUS26. O Currículo Baseado em Competências para Medicina de Família e Comunidade, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), lista como essencial a seus especialistas, entre outros fatores, reconhecer, acompanhar e coordenar o cuidado de pacientes com doenças neurodegenerativas, dando o suporte adequado ao paciente e à família, o que inclui as demências27.

Um dos motivos do atraso no diagnóstico das demências é a crença de que o comprometimento cognitivo em pessoas idosas é normal28, seja por parte dos familiares, que protelam a busca por serviços de saúde, seja por parte dos profissionais, que não realizam o rastreio, uma vez que não suspeitam do declínio cognitivo. Neste estudo, a maioria dos profissionais utilizou a avaliação dos sinais e sintomas, como sintomas psicológicos e comportamentais, comprometimento cognitivo com alterações de memória e comprometimento das atividades de vida diária para suspeitar de uma possível demência. Aproximadamente dois terços dos profissionais não consideram o comprometimento cognitivo sem alterações da memória e esse aspecto pode levar ao subdiagnóstico dos idosos com demência e demonstra o desconhecimento dos critérios diagnósticos28.

As taxas de diagnóstico formal de demência na APS aumentam quando são aplicados testes de triagem29. No presente estudo, os profissionais médicos relataram usar o MEEM para avaliar a função cognitiva, como visto na literatura12,26,27. Esse teste foi elencado como recurso isolado pela maior parte dos pesquisados para o rastreio das demências, o que pode ser uma causa de falha no processo, uma vez que o MEEM não deve ser utilizado isoladamente nas síndromes demenciais25,28, pois faz-se necessário associá-lo ao Teste do Desenho do Relógio ou ao de Fluência Verbal29, o que não foi encontrado na prática médica dos que responderam ao questionário.

Verificou-se ainda que parte expressiva dos profissionais não utilizava, habitualmente, nenhum teste de rastreio, porcentagem maior que a da literatura (7%)30, e nenhum teste de avaliação da capacidade funcional. Esse achado demonstra a incoerência da prática, na qual se suspeita de quadros demenciais mas a avaliação habitualmente não segue com a utilização de testes preconizados. Isso pode ocorrer, pois o manejo de DCNT privilegia doenças como hipertensão arterial e diabetes mellitus e os profissionais podem não considerar o cuidado específico das demências como uma de suas atribuições31-39. Deve-se estimular a implementação do cuidado ao idoso com demência pelas equipes de ESF na perspectiva de diminuir as internações por condições sensíveis à APS17, estratégia já valorizada na Inglaterra, por meio de incentivo financeiro35.

O manejo das demências graves foi elencado como uma dificuldade para a maioria dos profissionais. O comprometimento do manejo nessa fase pode levar a complicações como pneumonia, com aumento do número de hospitalizações repetidas e da mortalidade36. Nessa fase da demência, os pacientes são eleitos para cuidados paliativos e a falta de capacitação também nesse tema pode ser uma das causas dessa dificuldade em manejar tais pacientes37.

Um dos principais objetivos do manejo da demência é minimizar o estresse do familiar e cuidador, além de melhorar a qualidade de vida, manter a independência funcional do doente e diminuir os riscos à saúde3,38. Neste estudo, os profissionais de ambas as categorias habitualmente não disponibilizam acompanhamento ao cuidador formal ou informal de forma sistematizada, concordante com estudo brasileiro que apontou que a maioria dos serviços de APS realiza apenas o suporte informativo aos cuidadores de idosos. Além disso, verificou-se que ações como avaliação do estresse e investigação da rede ou de grupos de apoio do paciente são realizadas em menos da metade dos serviços23.

O cuidado incipiente de idosos com demência na APS pode ser devido à restrição no seu acesso ao serviço de saúde, à limitação da gama de serviços oferecidos, à subutilização de recursos e ao despreparo das equipes para as necessidades específicas que acometem os idosos com demência. Alguns fatores elencados em estudos internacionais podem estar relacionados à dificuldade do cuidado profissional ao idoso com demência, como a falta de confiança em habilidades de diagnóstico e manejo13,20,21,28,30,31,39, a falta de tempo para o atendimento adequado13,31,39 e a dificuldade no seguimento e no controle13, o que pode ser originado de uma lacuna na formação do profissional na graduação e na pós-graduação18,34.

Nota-se que o número de idosos, bem como as demandas de saúde dessa população, aumentam nos serviços de saúde; em contrapartida, evidencia-se a escassez de profissionais devidamente qualificados para atender tais necessidades. Há carência de profissionais especializados nas áreas de Geriatria e Gerontologia, bem como a temática ainda é pouco explorada na formação dos profissionais generalistas, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Essa carência de profissionais de saúde capacitados e habilitados para tratar idosos influencia decisivamente nas dificuldades de abordagens adequadas40,42.

Os resultados obtidos poderão propiciar a sensibilização e as reflexões sobre a realidade do processo de cuidado ao idoso com demência na APS e fundamentar mudanças nas práticas dos profissionais médicos e enfermeiros. A implementação de intervenções que aprimorem a prática profissional poderá ainda impactar na qualidade de vida dos idosos, familiares e cuidadores. A criação e desenvolvimento de estratégias de educação voltadas aos profissionais de saúde, como formação em Geriatria e Gerontologia e capacitações relacionadas ao cuidado às demências, são necessárias para modificações das práticas.

Este estudo teve como limitações o número de recusas dos profissionais em participar da pesquisa e os vieses de informação. Os resultados obtidos não possibilitam o estabelecimento de relações causais, devido a limitações do delineamento transversal. Outra limitação inerente é o processo de análise estatística bivariada, que não permite compor de que forma esses e outros fatores se complementam ou interagem na influência que exercem sobre as práticas dos profissionais da APS. Todavia, trata-se de um levantamento pioneiro realizado em municípios do norte de Minas Gerais.

Conclusão

Os profissionais, em sua maioria, não possuíam agenda específica para o atendimento de idosos na APS, principalmente entre os médicos. A atividade de capacitação em demência foi considerada necessária, porém, a maior parte dos profissionais não participou. A prática dos médicos e enfermeiros no atendimento aos idosos com déficit cognitivo é limitada no que diz respeito a sinais e sintomas que levam a suspeitar da doença e de testes empregados para rastreá-la, fatores que podem contribuir para um atraso no diagnóstico.

A participação em atividade de capacitação em demência foi associada ao maior tempo de experiência na ESF e ao grau de formação dos profissionais. Entre médicos, o menor tempo de experiência profissional na ESF foi também associado à dificuldade no cuidado do idoso com demência grave. A frequência de acompanhamento para o cuidador do idoso com demência foi associada, entre médicos e enfermeiros, ao grau de formação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2019
  • Aceito
    28 Jun 2020
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