Resumos
Partindo de uma investigação que procurou compreender as repercussões da leitura e da discussão de obras literárias entre estudantes e profissionais da área da Saúde, as reflexões teórico-metodológicas deste artigo nasceram das dificuldades enfrentadas na hora de “organizar”, “analisar”, “compreender” e “interpretar” o vultoso volume de material qualitativo produzido. Desse modo, em um esforço de organizar e, ao mesmo tempo, evitar compreensões ingênuas, sistematizamos um método imersivo fundamentado na fenomenologia hermenêutica, em que as narrativas produzidas foram transcriadas em uma nova produção textual, como resultado da tentativa de explicitar as compreensões das narrativas obtidas. Surpreendidos pelos bons resultados dessa Compreensão Interpretativa, concluímos que esse método pode ser adequado não somente para o aprofundamento em textos narrativos, mas para organizar discursos, apreender percepções, significados e compreensões, possibilitando interpretações plausíveis e interligadas, sobretudo quando há uma demanda vultosa de dados qualitativos.
Palavras-chave
Narrativas; Educação em saúde; Metodologia; Fenomenologia
Based on an investigation that sought to understand the repercussions of the reading and discussion of literary works by health students and professionals, the theoretical and methodological reflections in this article arose from the difficulties faced in “organizing”, “analyzing”, “understanding” and “interpreting” the huge volume of qualitative material produced. In an effort to organize and, at the same time, avoid naive understandings of this material, we systematized an immersive method based on hermeneutic phenomenology, in which the narratives produced were transcreated, resulting from an attempt to shed light on the understanding of the obtained narrative. Surprised by the results of this interpretive understanding, we conclude that this method can be adapted not only to delve deeper into narrative texts, but also to organize discourses and capture perceptions, meanings and understandings, enabling plausible and interconnected interpretations, especially when there is a large volume of qualitative data.
Keywords
Narratives; Education for health; Methodology; Phenomenology
Partiendo de una investigación que buscó entender las repercusiones de la lectura y discusión de obras literarias entre estudiantes y profesionales del área de la salud, las reflexiones teórico-metodológicas de este artículo nacieron de las dificultades enfrentadas en el momento de “organizar”, “analizar”, “comprender” e “interpretar” el gran volumen de material cualitativo producido. De tal forma, en un esfuerzo de organizar y, al mismo tiempo, evitar comprensiones ingenuas, sistematizamos un método de inmersión, fundamentado en la fenomenología hermenéutica, en la cual las narrativas producidas se transcrearon en una nueva producción textual, como resultado de la tentativa de explicar las comprensiones de las narrativas obtenidas. Sorprendidos por los buenos resultados de esa Comprensión Interpretativa, concluimos que ese método puede ser adecuado no solo para la profundización en textos narrativos, sino para organizar discursos, captar percepciones, significados y comprensiones, posibilitando interpretaciones plausibles e interconectadas, principalmente cuando hay una gran demanda de datos cualitativos.
Palabras clave
Narrativas; Educación en salud; Metodología; Fenomenología
Introdução
Nas últimas décadas, as Ciências Sociais e Humanas têm se voltado largamente para os estudos narrativos, o que influenciou sobremaneira sua interface com as investigações das Ciências da Saúde. Como ressalta Castellanos11 Castellanos MEP. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Cienc Saude Colet. 2014; 19(4):1065-1076., o fato de as racionalidades médicas terem deslocado o foco do doente para a doença desencadeou posicionamentos acadêmicos críticos ao modelo biomédico predominante, estimulando o interesse crescente pelas narrativas pessoais do adoecimento como uma reação à perspectiva que subjuga o sujeito e desconsidera, na maioria das vezes, outros aspectos de intervenções terapêuticas. Assim, ao mesmo tempo em que reconhece a importância das narrativas como objeto de conhecimento nas pesquisas qualitativas em saúde, o autor tece uma ampla discussão teórico-metodológica a fim de evitar compreensões ingênuas desses relatos, enfatizando não somente o rigor nas posturas metodológicas de construção e interpretação como as implicações éticas com os pesquisados, pois “restringir a narrativa a um texto a ser analisado pode perder de vista o propósito que motivou as pessoas a engajar-se (no projeto)” (p. 1.069).
Nesse mesmo sentido, Rita Charon22 Charon R. Narrative Medicine: a model for empathy, reflection, profession and trust. JAMA. 2001; 286(15):1897-1902. Doi: http://dx.doi.org/10.1001/jama.286.15.1897.
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destaca não apenas a abordagem narrativa como um meio de aproximação entre médico e paciente, abrindo novos campos no âmbito da clínica, mas também no território da pesquisa em saúde, apresentando-se como instrumento muito oportuno para uma perspectiva interdisciplinar mais ampla de conhecimento.
No campo da Saúde Coletiva, Bosi33 Bosi MLM. Pesquisa qualitativa em saúde coletiva: panorama e desafios. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):575-586. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232012000300002.
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, ao traçar um panorama e apontar os desafios da pesquisa qualitativa em saúde, afirma que “o caráter complexo dos objetos de que se ocupam as pesquisas qualitativas desafia as vertentes atuais e convida a novas orientações e à formulação de novas técnicas de investigação” (p. 579), e considera que tais desafios impõem a construção de outras agendas nesse campo, a fim de alcançarmos um modelo de Ciência que responda à diversidade e à complexidade que o caracterizam.
Desse modo, diante da importância de pesquisas que considerem a singularidade e que, efetivamente, enfrentem o desafio de fazer Ciência pelo empírico, este trabalho resulta de uma experiência com narrativas no âmbito da humanização em saúde, por meio de uma pesquisa desenvolvida na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp-EPM), com base em uma atividade educacional denominada Laboratório de Humanidades (LabHum). Dessa maneira, as reflexões metodológicas deste artigo nasceram das incertezas e das dificuldades enfrentadas na hora de “organizar”, “analisar”, “compreender” e “interpretar” os dados qualitativos colhidos e produzidos.
O LabHum propõe uma discussão em grupo de clássicos da literatura mundial, em que um coordenador faz a mediação dos encontros para facilitar o compartilhamento das ideias e dos sentimentos suscitados pela leitura. Partindo assim da manifestação de emoções e afetos, os participantes acabam se envolvendo em sua tridimensionalidade na discussão dos livros, ou seja, como seres dotados de sentimento, de inteligência e de vontade. Podemos dizer que o LabHum explora e aprofunda a experiência estética, afetiva e reflexiva que acontece ao nos depararmos com obras literárias, tendo como consequência a facilitação do encontro de singularidades44 Bittar Y, Gallian DMC, Sousa MSA. A experiência estética da literatura como meio de humanização em saúde: o laboratório de humanidades da EPM/UNIFESP. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):71-86.,55 Lima CC, Guzman SM, De Benedetto MAC, Gallian DMC. Humanidades e humanização em saúde: a literatura como elemento humanizador para graduandos da área da saúde. Interface (Botucatu). 2014; 18(48):139-150..
O LabHum nasceu em 2003 quando a disciplina História da Medicina, ministrada pelo Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeFHi), abandonou seu formato tradicional e passou a discutir textos precursores do saber médico com os graduandos. Estimulados pelas interpelações suscitadas, alguns alunos propuseram continuar no horário de almoço, sendo os textos substituídos gradativamente por dramaturgia e romances.
Em 2009, o LabHum se institucionalizou como uma atividade de extensão universitária e disciplinas eletivas na graduação e pós-graduação, reunindo também docentes e pessoas da comunidade para discutir obras de autores como Cervantes, Clarice Lispector, Dante Alighieri, Dostoiévski, Guimarães Rosa, Homero, Machado de Assis, Shakespeare, Tolstói, entre muitos outros clássicos da literatura. Inaugurou-se ainda uma nova linha de pesquisa para investigar, sob uma perspectiva prática, os efeitos humanizadores da literatura no âmbito da saúde44 Bittar Y, Gallian DMC, Sousa MSA. A experiência estética da literatura como meio de humanização em saúde: o laboratório de humanidades da EPM/UNIFESP. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):71-86.
5 Lima CC, Guzman SM, De Benedetto MAC, Gallian DMC. Humanidades e humanização em saúde: a literatura como elemento humanizador para graduandos da área da saúde. Interface (Botucatu). 2014; 18(48):139-150.
6 Silva M, Sakamoto J, Gallian DMC. A cultura estética e a educação do gosto como caminho de formação e humanização na área da saúde. Trab Educ Saude. 2014; 12(1):15-28.
7 Carvalho LL. Clássicos da literatura no ensino e na humanização em saúde: a dinâmica do laboratório de humanidades nas leituras de Aldous Huxley e Níkos Kazantzákis [dissertação]. São Paulo: Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo; 2017.
8 Logatti MSM, Carvalho LL, Cândido VC, Gallian DMC. Humanização em saúde e reforma psiquiátrica: discussão da obra O Alienista entre pessoas com quadro psiquiátrico grave. Physis. 2019; 29(4):1-22.-99 Logatti MSM, Carvalho LL, Vieira NV, Barros MTM, Gallian DMC. Leitura e discussão de clássicos da literatura aplicados a pessoas com quadro psiquiátrico grave: uma análise winnicottiana. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190550. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.190550.
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Sucede que no 2º semestre de 2011, quando o LabHum dedicou 31 encontros à discussão dos romances “Admirável Mundo Novo” (AMN) (Aldous Huxley) e “Vida e proezas de Aléxis Zorbás” (Zorbás) (Níkos Kazantzákis), iniciamos nossa investigação, aqui trazida parcialmente, cujo objetivo foi compreender como a leitura e a discussão dos livros propostos repercutiriam no processo de formação pessoal e/ou profissional dos participantes, a fim de aprofundar a reflexão sobre o impacto da literatura por meio da metodologia e da dinâmica do LabHum.
Para tanto, os dados que fundamentaram a pesquisa, aprovada pelo Comitê de Ética da Unifesp-EPM sob o n. 1.492/11, foram obtidos por meio das seguintes metodologias qualitativas: observação participante1010 Geertz C. Estar lá: a antropologia e o cenário da escrita. In: Geertz C. Obras e vidas: o antropólogo como autor. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2009. p. 11-39., análise dos relatos de experiência e narrativas produzidas com a metodologia da História Oral de Vida (HOV)1111 Meihy JCSB. Manual de história oral. São Paulo: Loyola; 2005.,1212 Goodson IF, Sikes P. Studying teachers’ life histories and professional practice. In: Sikes P, Editor. Life history research in educational settings - learning from lives. Buckingham: Open University Press; 2001. p. 57-74..
Assim sendo, foi diante das dificuldades enfrentadas para sistematizar o grande volume de material qualitativo que chegamos a um método próprio de compreensão interpretativa para análise de narrativas, cuja apresentação é objeto deste artigo. Com ele esperamos contribuir para o avanço e a qualificação das pesquisas nos campos das Ciências da Saúde e da Saúde Coletiva, lugares em que os sujeitos seguem pendentes do reconhecimento e da consideração de suas singularidades.
Os relatos de experiência e as narrativas transcriadas
Ao finalizar as discussões dos romances, os 61 participantes, compostos por graduandos dos cursos de Medicina e Enfermagem, pós-graduandos e profissionais de diversas áreas da Saúde, além de pessoas da comunidade, foram convidados a redigir suas impressões, sendo que 23 entregaram seus textos para obtenção de créditos, e 11 entregaram voluntariamente, totalizando 34 relatos de experiência, que nos permitiram compreender as repercussões do LabHum sob uma perspectiva imediata.
Já com o intuito de aprofundar, em longo prazo, o significado da experiência vivida, foram produzidas narrativas com base em entrevistas de HOV, metodologia qualitativa que permite maior intensificação das narrativas por levar em conta a subjetividade e o conjunto de experiências de vida de uma determinada “comunidade de destino”99 Logatti MSM, Carvalho LL, Vieira NV, Barros MTM, Gallian DMC. Leitura e discussão de clássicos da literatura aplicados a pessoas com quadro psiquiátrico grave: uma análise winnicottiana. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190550. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.190550.
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,1010 Geertz C. Estar lá: a antropologia e o cenário da escrita. In: Geertz C. Obras e vidas: o antropólogo como autor. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2009. p. 11-39..
Para tanto, como critério de inclusão, os estudantes e profissionais da saúde que frequentavam o LabHum pela primeira vez foram convidados a participar da pesquisa, totalizando 25. Nove aceitaram participar, sete mulheres e dois homens, sendo quatro graduandos de Enfermagem; duas mestrandas (fonoaudióloga e fisioterapeuta); e três pessoas da comunidade: duas psicólogas e uma fonoaudióloga. Quanto à faixa etária, foi bastante representativa, com integrantes na casa dos 20 aos 60 anos. As entrevistas começaram a ser realizadas após 12 meses do término das discussões.
Seguindo então o rigoroso conjunto de procedimentos da HOV, após a realização das entrevistas foram cumpridas as seguintes etapas metodológicas, conforme Meihy1111 Meihy JCSB. Manual de história oral. São Paulo: Loyola; 2005. e Meihy & Holanda1313 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2007.:
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Transcrição: as gravações foram ouvidas e transcritas integralmente pelo pesquisador principal.
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Textualização: das transcrições foram retiradas perguntas, referências à entrevista, repetições e, ao mesmo tempo, procurou-se organizar os fatos narrados.
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Transcriação: colocados inteiramente na 1ª pessoa, os textos tomaram a forma de alguém contando a própria história. Como ocorre comumente perda de sentido e significado na transposição de uma linguagem para outra, na HOV utiliza-se o recurso da transcriação. Transcriar é utilizar-se de estratégias linguísticas com o intuito de minimizar essa perda, em um esforço de preservar o sentido original das falas. Nessa perspectiva, gestos, suspiros, olhares, expressões faciais, interjeições, enfim, os maneirismos da oralidade foram, quando significativos, adequadamente traduzidos para a linguagem escrita. Nessa etapa, utilizamos sobremaneira as anotações do caderno de campo.
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Conferência e aprovação final do texto: para garantir o reconhecimento dos sentidos das falas, as transcriações foram conferidas e aprovadas pelos colaboradores, que assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE).
Imersão e cristalização de temas: dificuldades iniciais
Antes de tudo, ressaltamos que os 43 documentos gerados foram considerados narrativas da pesquisa, isto é, 34 relatos de experiência e nove transcriações. Todas essas narrativas foram interpretadas pela metodologia qualitativa denominada Imersão/Cristalização1414 Borkan J. Immersion/crystallization. In: Miller WL, Crabtree BF, organizadores. Doing qualitative research. 2a ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 1999. p. 179-194., técnica inspirada na fenomenologia hermenêutica.
A Imersão/Cristalização e a utilização de metodologias qualitativas, como demonstram alguns autores, revelam as vantagens dessa opção metodológica. Haradhan Mohajan1515 Mohajan H. Qualitative research methodology in social sciences and related subjects. J Econ Dev Environ People. 2018; 7(1):23-48. descreve como esse incremento é identificado em áreas das Ciências Sociais e afins. Entre os diversos campos das abordagens qualitativas encontram-se áreas como a fenomenologia, etnografia, narrativas pessoais e estudo de casos. O autor destaca que uma das vantagens nessa metodologia é a melhoria na compreensão da complexidade do fenômeno estudado. Nesse contexto, as metodologias qualitativas destacam-se por duas características positivas: 1. Conformability: estabelecimento de evidência diretamente verificável, pois há a relação direta entre o pesquisador e o fenômeno estudado; 2. Transferability: indicação de que os saberes adquiridos podem ser transferidos para situações, contextos e circunstâncias similares.
Porém, após ler e reler diversas vezes os textos com grifos, anotações e observações, não nos pareceu simples “mergulhar”, “imergir”, “extrair” e “cristalizar” temas. O fato é que as tentativas de imersão nos conteúdos sobre o LabHum se mostraram árduas, complexas e, por que não dizer, ineficazes, uma vez que os textos somavam cerca de 170 páginas de longas reflexões sobre os romances e a dinâmica vivenciada. Na verdade, a sensação inicial foi de desordem e desorientação.
Mas como trabalhar concretamente com grandes quantidades de dados qualitativos? Como organizá-los adequadamente, extraindo significados, análises, interpretações plausíveis e interligadas? Eram perguntas que se impunham, mas que certamente acometem a maioria dos pesquisadores diante das dificuldades enfrentadas na hora de aprofundar e interpretar narrativas geradas em suas pesquisas de campo.
Aviva Avidan1616 Avidan A. The role and contribution of narrative interviews in educational research. Am J Educ Res. 2017; 5(4):419-427. demonstra a importância do estudo de narrativas. Em seu artigo, identifica a junção entre a técnica de estudo de caso e a análise de narrativas das pessoas entrevistadas. Nesses procedimentos, destaca-se o estudo do contexto histórico, educacional e cultural no qual os entrevistados agem. Com isso, compreende-se melhor a relação entre o papel social e a atividade profissional. Outro ganho relevante é que tanto o entrevistador quanto o entrevistado adquirem melhor compreensão de suas elaborações, possibilitando a reelaboração do sentido de suas experiências, de seus papéis sociais e da autorreflexão.
Nesse sentido, uma das nossas maiores preocupações era não esquecer quem estava por detrás das falas, mesmo porque, especificamente em relação às narrativas de HOV, o objetivo era ouvir o que cada um tinha a dizer sob a perspectiva de suas trajetórias e experiências. Por isso, o primeiro impulso foi redigir algumas linhas sobre os colaboradores da pesquisa com a intenção de utilizá-las não somente na apresentação das transcriações, mas também na sua compreensão. Contudo, esses textos iniciais resultaram em uma espécie de resumo malsucedido das histórias de vida, sem nada acrescentar ao que já havia sido narrado pelos próprios colaboradores.
Foi somente na hora de melhorar e reescrever esses textos, entretanto, que um jeito próprio de compreender e dar sentido às impressões narradas foi sendo delineado.
“Re-narrando” narrativas: recontando experiências
À vista disso, em vez de simplesmente sintetizar os principais acontecimentos da vida dos colaboradores, passamos a redigir as apresentações relembrando, reavivando, contando, narrando, enfim, fatos marcantes de suas participações nos encontros do LabHum, além de peculiaridades da relação colaborador-pesquisador estabelecida no percurso da metodologia da HOV.
Para exemplificar essa nova produção textual, da qual decorreu uma lógica metodológica que se mostrou fundamental na organização e na compreensão dos dados qualitativos produzidos, destacamos um trecho da apresentação redigida por meio da entrevista e do relacionamento estabelecido com Maria, cujo nome fictício foi escolhido pela própria participante.
Das entrevistas realizadas, o encontro com Maria foi um dos mais marcantes. É que embora tenha sido uma conversa amigável sobre a vida em geral e sua experiência no LabHum, senti que havia certo descompasso em sua fala. Pois, no desenrolar da entrevista, enquanto comentava serena e fleumaticamente sobre o filho, o marido, sua recente aposentadoria, o falecimento da mãe, e o prazer de simplesmente poder tomar um cafezinho em paz contemplando a natureza, seus olhos pulsavam prestes a explodir de emoção, enquanto sua voz permanecia inabalável. Como um quadro pintado, esse descompasso, essa sensação de que Maria parecia um vulcão na iminência de entrar em erupção, permaneceu comigo como algo intangível e misterioso.
(Maria)
Desse modo, surgiram textos curtos que procuravam captar a essência do trabalho colaborativo em HOV, uma vez que foram utilizadas não somente anotações do caderno de campo, mas dados de memória, insights, lembranças de gestos e olhares, assim como impressões, sensações, sentimentos e afetos que nem sempre foram ditos, nem registrados em áudio, mas que marcaram a construção das transcriações, assim como influenciaram, certamente, os posteriores mergulhos interpretativos.
Porém, sendo o objetivo da pesquisa compreender o significado e as repercussões da dinâmica proposta, o próximo passo, natural e inevitável, foi olhar para as narrativas focando os trechos específicos sobre o LabHum. Contudo, diante do volume significativo de temáticas emocionais e reflexivas, sobreveio a mesma sensação inicial de confusão e desânimo, mas dessa vez superada quando resolvemos aplicar o mesmo método em relação a essas falas específicas, ou seja, sob a perspectiva do pesquisador, recontar as reflexões, as histórias e as experiências narradas sobre o LabHum, em um esforço de acomodar a profusão de conteúdos.
Consequentemente, dessa iniciativa surgiram textos que de certa forma organizavam os documentos originais, especialmente em relação aos relatos de experiência, pois eles costumam ser escrituras espontâneas, cujos raciocínios nem sempre se encontram precisos e concluídos. Por outro lado, não se tratou de produzir sínteses, resumos, uma vez que o pesquisador ao recontar cada experiência narrada, com suas palavras, foi se entrelaçando às reflexões e palavras do colaborador – sempre destacadas entre aspas e em itálico –, em uma organização de ideias que não se isentou em atribuir sentidos, pois havia o esforço deliberado de ir compreendendo os discursos sobre a experiência vivida.
É oportuno observar que foi uma atividade metódica. Assim, uma vez lida e relida cada narrativa, com trechos significativos destacados, procuramos inicialmente nomear os aspectos que chamavam a atenção, registrando nas bordas da folha anotações como “percepção da dinâmica”, “humanização/desumanização”, “mudança de atitude”, e assim por diante.
Vencida essa etapa, iniciou-se propriamente o recontar de cada narrativa, que exemplificamos com um texto produzido por meio do relato de experiência de Raquel, mestranda da instituição.
Ao ressaltar a importância da leitura compartilhada e da diversidade no LabHum, Raquel iniciou seu relato mencionando sua participação como uma “experiência muito interessante” e “enriquecedora”, pois, além de lhe “revelar uma nova forma de se relacionar com o outro”, pôde “aprender a refletir e construir opiniões a partir da literatura”.
Quanto às obras discutidas, destacou o “contraponto” estabelecido entre os romances. O AMN, “que coloca a liberdade em questão”, se revelou uma “literatura pesada”, com “personagens e situações bem desconfortáveis”, situação completamente diferente da retratada no “Zorbás”, cujo “destaque é a liberdade do personagem”. Ao comentar que a distopia de Huxley “retrata a desumanização da sociedade”, apontou que “infelizmente é possível verificar semelhanças com os tempos atuais”. Enfatizando o quanto “a troca de experiências e ideias é enriquecedora e valiosa” – o que ela declaradamente vivenciou no LabHum –, deixou transparecer que a humanização precisa transcender a boa convivência, passando pelo respeito e pela aceitação das diferenças e individualidades.
Sobre o romance de Kazantzákis, salientou o “permitir-se ser” do protagonista, que sabe “viver e sentir a beleza de cada dia”, pois não é “alguém artificial”. Porém, talvez impressionada pelo “radicalismo e extremismo” do Zorbás, ponderou seu “desejo de liberdade” a fim de não ser “irresponsável com a vida”, esforçando-se, no entanto, para não esquecer “a lição aprendida”, de que a verdadeira liberdade está em “aproveitar cada momento vivido de forma plena e por inteiro”.
(Raquel)
E assim, seguindo sistematicamente, cada um dos 43 textos produzidos foi grampeado à respectiva narrativa original. Além disso, sobre cada um foi realizado um fichamento de temas, também anexado ao conjunto, exemplificado a seguir:
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AMN:
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“Literatura “pesada”; “personagens desconfortáveis”; “a liberdade em questão”; “condicionamento”.
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Humanização pela “troca de experiências” e “aceitação das diferenças e individualidades”.
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Zorbás:
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Destaque: “liberdade do personagem”.
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Lição: ser livre não significa ser “irresponsável”; “aproveitar cada momento”.
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Humanização: não ser “artificial”, “permitir-se ser”, “viver e sentir a beleza de cada dia”.
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LabHum:
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“Uma nova forma de se relacionar com o outro”.
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Desenvolver “inteligência crítica, construtiva e humanizadora”.
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“Aprender a refletir e construir opiniões a partir da literatura”.
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Compreensão interpretativa das narrativas
Considerando, portanto, que em um esforço de imersão nos dados qualitativos da pesquisa recontamos as experiências narradas sob uma postura fenomenológica, que rompeu com a separação entre sujeito e objeto puro da ciência, faz-se necessário traçar algumas considerações sobre como a fenomenologia fundamenta e se articula com esse modo de trabalhar com narrativas.
Assim, Edmund Husserl (1859-1938), ao estabelecer a Escola da Fenomenologia, propôs uma “volta às coisas mesmas”, ou seja, uma volta “ao mundo da experiência vivida” ou ao “mundo da vida”. Segundo Struchiner1717 Struchiner CD. Fenomenologia: de volta ao mundo-da-vida. Rev Abordagem Gestalt. 2007; 13(2):241-246., foi rompendo com o positivismo e com a supervalorização do mundo objetivo e científico, mas sem invalidar ou menosprezar o conhecimento produzido e os avanços tecnológicos, que Husserl afirmou que a neutralidade do mundo da Ciência deixava de fora questões humanas fundamentais como valores, ética, cultura e sentido da existência.
Na contramão do cientificismo, portanto, a fenomenologia surgiu como um caminho para reaprender a ver o mundo, resgatando a noção de que o mundo da vida vem em primeiro lugar, embora na Modernidade a experiência humana esteja na maioria das vezes oculta pela contaminação de resultados científicos. Destarte, para “voltar às coisas mesmas” tem-se de desenvolver uma atitude e um olhar fenomenológicos despojados da convicção de que tudo é passível de ser explicado pela Ciência1717 Struchiner CD. Fenomenologia: de volta ao mundo-da-vida. Rev Abordagem Gestalt. 2007; 13(2):241-246..
Nessa perspectiva, Tourinho1818 Tourinho CDC. A consciência e o mundo: o projeto da fenomenologia transcendental de Edmund Husserl. Rev Abordagem Gestalt. 2009; 15(2):93-98. destaca que entre as muitas dimensões do método fenomenológico, a chamada “redução fenomenológica” ou epoché tornou-se conceito-chave da fenomenologia. Desenvolvido por Husserl, propõe que operemos uma mudança radical de comportamento a fim de suspender, sem negar, a “atitude natural” do homem que – sensível ao mundo que o cerca – o faz crer na “facticidade do mundo” sem que haja, ao menos, um exame crítico. Nessa atitude natural estão mergulhados tanto o cientista como o homem comum, sendo a époché o esforço de colocar entre parênteses as teses cogitadas,
[...] numa suspensão de juízo em relação à posição de existência das coisas mundanas, viabilizando, assim, a chamada redução fenomenológica e, com ela, a recuperação das coisas em sua pura significação1818 Tourinho CDC. A consciência e o mundo: o projeto da fenomenologia transcendental de Edmund Husserl. Rev Abordagem Gestalt. 2009; 15(2):93-98.. (p. 94)
Martin Heidegger (1889-1976), por sua vez, define a fenomenologia como “deixar o que se mostra ser visto a partir de si mesmo, no momento em que ele se mostra a partir de si mesmo”1919 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis: Vozes; 2012. (p. 94). Afirma também que o significado do ser precisa ser descoberto ou revelado e a investigação fenomenológica do ser é a hermenêutica, isto é, “uma análise da existencialidade da existência”1919 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis: Vozes; 2012. (p. 95). Para Heidegger, “hermenêutica em seu significado primário é a compreensão interpretativa”1919 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis: Vozes; 2012. (p. 95).
Hermenêutica origina-se da palavra grega hermeneutike, significando “interpretar”, “interpretação” ou “intérprete”. “A hermenêutica é o anúncio e o fazer conhecer do ser de um ser em seu ser em relação a [...] (mim)”1919 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis: Vozes; 2012. (p. 84), afirmou Heidegger, esclarecendo que “a hermenêutica trata da verdade daquilo que é dito”1919 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis: Vozes; 2012. (p. 84), tornando aquilo que estava encoberto, escondido, disponível, exposto, lá fora. O filósofo alemão também destaca que o significado ou a verdade como descobrimento ocorre na própria experiência vivida, ou é parte de sua constituição, mas não é um juízo posterior de um sujeito sobre um objeto já experimentado.
Tanto para Heidegger quanto para Hans-Georg Gadamer (1900 - 2002), a compreensão acontece dentro do círculo hermenêutico, ou seja, a compreensão da parte depende da compreensão do todo, e a compreensão do todo depende da compreensão da parte. Entretanto, para começar a compreender e entrar no círculo é preciso pressupor uma compreensão prévia que seja correta – ou da parte ou do todo –, a fim de não entrar em um círculo vicioso, já que esse movimento circular não pode ser evitado na compreensão interpretativa, indicando o papel fundamental das estruturas prévias em todos os casos da compreensão1919 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis: Vozes; 2012..
Dessa forma, já que o objetivo da hermenêutica é a compreensão correta do fenômeno, Heidegger ressalta que é tarefa do intérprete conferir constantemente se suas concepções prévias, aceitas inicialmente como provisórias, derivam realmente da “coisa em si que está sendo compreendida”, devendo evitar “aceitar conceitos ao acaso ou conceitos que são populares se eles não tiverem sido testados nas coisas em si”1919 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis: Vozes; 2012. (p. 112).
Nesse sentido, Nunes Júnior2020 Nunes Júnior AT. A pré-compreensão e a compreensão na experiência hermenêutica. Jus Navigandi [Internet]. 2003 [citado 22 Nov 2017]; 62(8). Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3711.
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lembra que Heidegger afirmou que “a interpretação de algo como algo se funda, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é a apreensão de um dado preliminar isenta de pressuposições”. E já que o intérprete é a interação de seus fatores biológicos, psíquicos e socioculturais, cabe a quem interpreta reconhecer seus preconceitos e, ao mesmo tempo, deixar o texto falar por si, sem impor sua pré-compreensão, mas confrontá-la criticamente com as possibilidades percebidas.
Sintetizando então sua discussão acerca das contribuições que Heidegger e Gadamer trouxeram para a hermenêutica contemporânea, Nunes Júnior2020 Nunes Júnior AT. A pré-compreensão e a compreensão na experiência hermenêutica. Jus Navigandi [Internet]. 2003 [citado 22 Nov 2017]; 62(8). Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3711.
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destaca que “a interpretação é a forma explícita da compreensão” e que “o ato de interpretar implica a produção de um novo texto, mediante adição de sentido dada pelo intérprete dentro de uma concepção dialógica”, em um conjunto de reflexões que corroboram o método de organização, compreensão e interpretação de narrativas exposto neste artigo.
Também nessa perspectiva, Castellanos11 Castellanos MEP. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Cienc Saude Colet. 2014; 19(4):1065-1076. propõe o desafio de romper com a “primeira estância narrativa” – transcrição da fala do entrevistado –, em direção a uma “reconstrução narrativa” – realizada pelo pesquisador. Assumindo assim que “a narrativa do pesquisador” pode ser objeto de análise tanto quanto a narrativa do sujeito da pesquisa, o autor sustenta sua argumentação segundo as seguintes premissas: que as narrativas dos pesquisados, como produtos de um contexto de pesquisa, carecem de neutralidade do mesmo modo que as narrativas dos pesquisadores; que as identificações de unidades narrativas e categorias de análise são fruto de escolhas teóricas que orientam a pesquisa; e, finalmente, que “a perspectiva do pesquisador pode e deve ser objeto de análise nos estudos narrativos”11 Castellanos MEP. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Cienc Saude Colet. 2014; 19(4):1065-1076. (p. 1.072), pois representa “uma síntese” que expressa “a interpretação do pesquisador sobre o material analisado”11 Castellanos MEP. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Cienc Saude Colet. 2014; 19(4):1065-1076. (p. 1.072).
À vista disso, afirmamos que com a imersão/cristalização1313 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2007. realizamos uma compreensão interpretativa dos dados qualitativos da pesquisa. Para tanto, uma vez realizada a leitura e a releitura sistemática das narrativas, passamos a produzir textos que possibilitaram um maior aprofundamento e uma organização mais eficiente dos conteúdos narrativos.
A fim de elucidar como resultou tal organização, apresentamos a seguir uma amostra que intercruza as falas de duas colaboradoras da pesquisa, cujas palavras repercutem o LabHum sob a dimensão de como elas se perceberam dinamicamente afetadas.
Afirmando que achou o AMN “chocante”, Luísa certamente teria abandonado a leitura se não fosse o compartilhamento de ideias. “Eu achava um absurdo os personagens!”, declarou indignada porque “o ideal” era “participar de orgias” e “não se prender a ninguém”. Entretanto, embora “chocada”, aos poucos foi compreendendo que na verdade se tratava de uma crítica, uma “história” para que as pessoas pudessem “refletir sobre o modo como estamos agindo”.
Já Maria, observando que o LabHum “é uma dinâmica que traz a vida de cada pessoa refletida num livro”, disse ter ficado “um pouco preocupada” no Zorbás. Ao afirmar que começou a “pensar coisas que nunca tinha parado pra pensar”, notamos que nela se desencadeou um processo que lhe fez refletir sobre si mesma, pois a mesma dinâmica de compartilhar afetos e reflexões, que no AMN lhe despertara admiração, no livro de Kazantzákis provocou-lhe crises, pois viu muitas das questões levantadas pelo grupo refletidas em sua vida.
“Gente, será que eles do LabHum pensam mesmo essas coisas?”. “A gente vai ter que matar igual o cara, vai ter que roubar?”. Mas depois, para seu alívio, ouviu a seguinte fala no grupo: “nós podemos ser como o Zorbás sem matar!”, em uma intervenção que se tornou para ela o insight revelador, o lampejo de um novo aprendizado, a compreensão de que pela literatura poderia viver muitas vidas e aprender com cada uma delas, em um exercício de se permitir ser múltipla em uma só, mas sem deixar de ser ela mesma.
Do mesmo modo, Luísa não somente se surpreendeu com a leitura compartilhada como se sentiu transformada por ela. Ao se permitir a possibilidade de entrar em contato e refletir sobre crenças e opiniões a princípio totalmente diferentes das suas, pôde reconhecer quanto “era quadrada”, “de opinião muito própria”, pois, embora achasse que “respeitava a opinião dos outros”, na verdade “não queria ouvir”, admitindo francamente que “antes do LabHum”, “pouco respeitava” a opinião alheia. O LabHum, afirmou Luísa, “ajuda a tirar do orgulho, a perceber que a gente nem sempre tem razão”, em uma construção transformadora de percepções que resultou em uma abertura para o outro. “Você vai construindo reflexões suas a partir de reflexões de outras pessoas”, reconheceu.
(Luísa e Maria)
Colaboração autoral
Depois de quatro meses de imersão nos dados qualitativos, esses novos textos, juntamente com as narrativas originais, constituíram material essencial de consulta para relacionar e correlacionar ideias predominantes que intercruzavam o conjunto de documentos da pesquisa.
No entanto, o ato deliberado de recontar as narrativas, rompendo a separação entre sujeito e objeto da pesquisa, transcendeu sobremaneira à expectativa de criar um suporte textual coadjuvante na cristalização de temas ou categorias, visto que essas novas produções textuais, uma vez recortadas em trechos e organizadas segundo conteúdos predominantes, possibilitaram estabelecer um diálogo entre os diversos colaboradores da pesquisa.
Mais do que isso, pois no estabelecimento desse diálogo, de meros participantes de uma atividade acadêmica, os colaboradores, que generosamente se dispuseram a compartilhar suas percepções, angústias, crises e conquistas, foram elevados à categoria de autores, pois suas reflexões e opiniões se tornaram de tal maneira organizadas que se fizeram plausíveis de ser colocadas em interação com a literatura pertinente na discussão do trabalho.
Considerações finais
Mais do que uma técnica de imersão, os textos produzidos pelo pesquisador-intérprete tornaram-se um ato de compreensão na medida em que explicitaram esse entendimento na forma de interpretação textual dos conteúdos reflexivos e emocionais revelados pelos colaboradores da pesquisa.
Além disso, propiciaram uma organização pertinente dos discursos e dos temas suscitados, que uma vez assimilados e inter-relacionados possibilitaram maior compreensão do todo da experiência vivida, perfazendo-se o que na fenomenologia hermenêutica denomina-se círculo hermenêutico da compreensão.
Todavia, reafirmamos que não se tratou de resumir narrativas. Embora a princípio a ação possa parecer semelhante, já que a intenção de organizar e trazer à tona conteúdos essenciais não deixa de ser um exercício de síntese, não nos esforçamos em produzir textos neutros e sintéticos. Assumimos, pelo contrário, a posição de pesquisador-intérprete, cuja ação deliberada procurou compreender primeiro para depois explicitar essa compreensão na forma de uma redação essencialmente interpretativa.
É preciso considerar, por esse ângulo, que embora no contexto da escrita “elucidar” e “dar sentido a” sejam acepções que talvez expliquem melhor o ato de interpretar textos, não é necessariamente isso o que deve ocorrer nesta proposta de compreensão interpretativa, pois o pesquisador-intérprete, ao recontar a experiência, não necessariamente precisa elucidar e dar sentido a cada reflexão ou fato narrado. Porém, em uma atitude fenomenológica e, por que não dizer, permitindo-se seguir por um caminho intuitivo, deve deixar que “as coisas mesmas” falem por si, ou seja, interpreta-se o que pede para ser interpretado.
Concluímos, assim, que o “re-narrar” narrativas – ou o recontar experiências –, quando tomado por uma intenção deliberada de compreensão interpretativa, pode ser uma metodologia adequada não somente para imersão em diferentes tipos de textos narrativos a fim de cristalizar categorias, mas, sobretudo, para organizar discursos, apreender percepções, significados e compreensões, possibilitando interpretações plausíveis e interligadas, principalmente quando existe uma demanda vultosa de dados qualitativos.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Maio 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
03 Jun 2020 -
Aceito
05 Jan 2021