Open-access O apoio matricial como cooperação entre artífices no campo da Saúde

Matrix support as cooperation between crafts in the field of Health

El apoyo matricial como cooperación entre artífices en el campo de la Salud

Resumos

O apoio matricial é definido como um arranjo organizacional do trabalho em saúde, de caráter assistencial e técnico-pedagógico, estabelecendo trocas entre matriciadores e equipes de referência. A busca pela qualidade do trabalho aproxima o apoio matricial das noções de cooperação dialógica e de artífice preconizadas por Richard Sennett. O artífice é caracterizado como o profissional engajado em fazer algo bem feito. O cotidiano de trabalho é, no entanto, permeado por fatores que dificultam a resolução de problemas, tais como: política de motivação, desenvolvimento de capacitações e medidas de qualidade. Para enfrentar essas dificuldades, o profissional artífice deve ser capacitado em suas habilidades a partir de treinamentos que superem a dicotomia entre fazer e pensar, entre a mão e a cabeça, articulando conhecimento, capacitação e cooperação.

Palavras-chave Saúde Coletiva; Apoio matricial; Interdisciplinaridade; Cooperação; Artífice


Matrix support is defined as an organizational care and technical-pedagogical framework for delivering health care that permits sharing between matrix workers and referral teams. Through the pursuit of quality care, matrix support approximates the notions of dialogical cooperation and craftsmanship advocated by Richard Sennett. Craftsmanship is characterized as a professional engaged in doing the job well. However, everyday practice is permeated by factors that hamper problem solving, such as motivation policy, capacity building and quality measures. To address these difficulties, the professional craftsman should be able to develop his/her skills through training that overcomes the dichotomy between thinking and doing, and hand and head, articulating knowledge, capacity building and cooperation.

Keywords Public health; Matrix support; Interdisciplinaryity; Cooperation; Craftsmanship


El apoyo matricial se define como un arreglo organizacional del trabajo en salud, de carácter asistencial y técnico pedagógico, estableciendo intercambios entre matriciadores y equipos de referencia. La búsqueda de la calidad del trabajo aproxima el apoyo matricial de las nociones de cooperación dialógica y de artífice preconizadas por Richard Sennet. El artífice se caracteriza como el profesional comprometido en hacer algo bien hecho. El cotidiano del trabajo está, sin embargo, atravesado por factores que dificultan la resolución de problemas, tales como: política de motivación, desarrollo de capacitaciones y medidas de calidad. Para enfrentar tales dificultades, el profesional artífice debe estar capacitado en sus habilidades a partir de capacitaciones que superen la dicotomía entre hacer y pensar, entre la mano y la cabeza, articulando conocimiento, capacitación y cooperación.

Palabras clave Salud colectiva; Apoyo matricial; Interdisciplinaridad; Cooperación; Artífice


Introdução

Com a intenção de criar um arranjo organizacional para o trabalho em saúde, foi elaborada a relação entre equipes de referência e apoio especializado matricial, valorizando o vínculo terapêutico. Nesse sentido, as equipes de referência seriam responsáveis pela atenção longitudinal aos usuários, enquanto o apoio especializado matricial poderia ser oferecido de maneira pontual, a partir de demanda da equipe de referência. Com isso, espera-se que o vínculo entre equipe de referência e usuários seja fortalecido, superando a lógica de referência e contrarreferência1. Como desdobramento, a noção de apoio matricial apresenta, ainda, a ênfase no caráter técnico-pedagógico de suas ações, contribuindo para que o usuário tenha potencializada a qualidade do atendimento prestado a partir da troca de saberes entre apoiadores e referências. Esse tipo de arranjo organizacional permite que um mesmo profissional faça parte de uma equipe de referência e, em determinadas situações, exerça a função de apoiador2.

Existem, no entanto, obstáculos para a realização desse arranjo organizacional: (1) estrutural, como a fragmentação dos processos de trabalho e da gestão, decorrentes da especialização; (2) excesso de demanda e carência de recursos que dizem respeito à insuficiência dos serviços de saúde oferecidos; (3) político e comunicação, devido à concentração de poder em diretores, médicos e especialistas; (4) subjetivo e cultural, dado que o ambiente de competição nas instituições de saúde produz dificuldades para lidar com as incertezas, as críticas e as tomadas de decisão compartilhadas; (5) ético, pois as informações compartilhadas e os prontuários unificados podem propiciar a quebra de sigilo; e (6) epistemológico, visto que os profissionais de saúde estão pautados em explicações dicotômicas – de caráter individual ou coletivo: as primeiras subdivididas pela racionalidade biomédica ou subjetivistas; e as segundas, pelas explicações de cunho social2.

O apoio matricial, descrito por Gastão Wagner Campos, está fundamentado na teoria do vínculo de Enrique Pichon-Rivière1, possui relações com a teoria da complexidade de Edgar Morin3,4 e, neste artigo, será correlacionado com as proposições de Richard Sennett5,6 sobre a cooperação e o artífice. A relação do indivíduo com o trabalho pode ser pensada a partir da noção de artífice, compreendida de maneira mais abrangente do que a de artesão, simbolizando o desejo de realização de um trabalho bem-feito, que não seja, necessariamente, instrumental, estando pautado na condição humana de engajamento6.

Partindo da concepção de que “fazer é pensar”, Richard Sennett6 diferencia os seus argumentos das elaborações de Hannah Arendt7 sobre o Animal laborans e o Homo faber. A distinção feita por Hannah Arendt considera que os seres humanos podem viver em duas dimensões distintas: em uma, o indivíduo está entregue ao fazer e à tarefa em si; e, na outra, possui um modo de vida mais elevado, podendo refletir e discutir sobre os modos de produção. O primeiro termo refere-se ao trabalhador condenado à rotina e preso às tarefas que o alienam e o isolam do mundo. Nesse caso, o que importa é a manutenção de determinado tipo de funcionamento, em que o trabalho encontra um fim em si mesmo. O segundo termo diz respeito ao trabalho efetuado por quem é o juiz de seu labor, aquele que é mentor e detentor de um amplo conhecimento acerca de determinada atividade.

Contrapondo-se a tais ideias, Richard Sennett6 afirma que essa distinção menospreza o indivíduo prático, pois acredita que o Animal laborans também é capaz de pensar durante o processo de produção instrumental, de maneira individual ou na interação com outros trabalhadores. As pessoas que trabalham juntas geralmente conversam e refletem sobre aquilo que estão fazendo. No cotidiano das instituições, a atenção à saúde e a organização da rede assistencial estão pautadas em diálogos permanentes sobre procedimentos, atendimentos individuais, intervenções feitas com os familiares, interações com o campo social, etc. Dessa maneira, o cuidado em saúde se caracteriza como uma rede de conversações8.

Essas conversações estão pautadas em conhecimentos explícitos, como as fundamentações teóricas ou as reflexões sobre as experiências cotidianas. Algumas situações, no entanto, necessitam de reconhecimento do problema e manejo imediato, que remetem a um conhecimento adquirido nas experiências pessoais, denominado por Polanyi9 como conhecimento tácito. Esse tipo de conhecimento pode possibilitar variadas soluções no cotidiano de trabalho, mas, se não for compartilhado e pensado de maneira reflexiva, corre o risco de acontecer de modo rotineiro e mecânico10.

Além do caráter de pensamento e reflexão, a comunicação possibilita a cooperação que, de acordo com Sennett5, configura-se em dois tipos: nós-contra-você e dialógica. No primeiro caso, trata-se de uma cooperação negativa que pressupõe solidariedade apenas entre iguais e agressividade em relação aos diferentes. No segundo caso, a interação é mais aberta, pois requer a capacidade de compreender e se mostrar receptivo ao outro (aos diferentes) para, então, agir em conjunto. A cooperação entre as equipes de referência e de apoio matricial pode ocorrer dessas duas maneiras, dependendo das formas de organização do trabalho e de como se estabelece a comunicação.

A realização de tarefas práticas influencia o trato com os outros, podendo adquirir valor social de cooperação, pois, ao se tentar fazer bem alguma coisa, surgem possibilidades e/ou dificuldades que interferem de maneira direta na gestão das relações humanas. Dessa forma, a cooperação é de extrema importância para a receptividade dos outros e se expressa pela maneira de escutar alguém ou, ainda, nas atividades práticas do trabalho e na comunidade. Certamente, existe um aspecto ético na capacidade de ouvir e trabalhar em sintonia com outros. Porém, pensar na cooperação apenas como um fator ético positivo limita a nossa compreensão, visto que a cooperação não é intrinsecamente benigna, podendo estar presente, por exemplo, na realização de um assalto5.

Atualmente, as habilidades do artífice estão organizadas em três fatores problemáticos: política de motivação, desenvolvimento de capacitações e medidas de qualidade. Esses fatores possuem como contraponto a ideia de que, para fazer algo bem feito, além de estar engajada, a pessoa deve ser capacitada em suas habilidades a partir de treinamentos que superem a dicotomia entre fazer e pensar, entre a mão e a cabeça, articulando conhecimento, comunicação e cooperação5,6. Levando essas ideias iniciais em consideração, este estudo está pautado no seguinte questionamento: qual a relação entre o apoio matricial e a cooperação entre artífices no campo da saúde?

Motivação, capacitação e qualidade

A política de motivação adotada pelas instituições com a intenção de incentivar as pessoas a realizarem um bom trabalho utiliza duas estratégias: o imperativo moral de trabalhar pelo bem da comunidade e a competição que pressupõe que o bom desempenho advém do estímulo de competir com as demais pessoas, criando recompensa individual, no lugar do bem-estar e da coesão comunitária. Essas duas estratégias, apresentadas de maneira alternativa, não servem às aspirações de qualidade do artífice, pois a coesão social pressupõe a compatibilidade entre cooperação e competição, em que a conexão entre interdependência e mutualidade propicia a atuação comunitária e, ao mesmo tempo, a preservação da individualidade6.

No ponto de vista de Sennett6, o desenvolvimento de capacitações deve ser uma prática de treinamento e não uma súbita inspiração de um suposto talento inato. A ênfase encontra-se, portanto, nas ações repetidas que possibilitam o desenvolvimento da autocrítica. Por meio do treinamento, a técnica deixa de ser uma atividade mecânica, pois são possibilitadas sensações e reflexões sobre aquilo que se faz. Ou seja, são criadas condições para que haja a passagem do conhecimento tácito para o conhecimento explícito9. Desse modo, as recompensas emocionais adquiridas por meio da habilidade do artífice permitem que as pessoas se conectem à realidade tangível e, sobretudo, orgulhem-se de seu próprio trabalho. Porém, as capacitações, muitas vezes, pressupõem a organização da prática como uma maneira ou um mecanismo para que um fim predeterminado seja alcançado. Assim, as capacitações acabam criando um sistema fechado, que se caracteriza como um obstáculo, pois não há a possibilidade de a pessoa em treinamento ir além6.

O terceiro fator problemático refere-se às medidas de qualidade adotadas pelas instituições. Assim, são criados parâmetros de como algo deve ser feito para que funcione bem. Mas o que estimula as pessoas a buscarem pela qualidade? Por que algumas pessoas se importam com isso enquanto outras não? Sennett6 observa que a busca pela qualidade encontra-se, primeiro, no próprio desejo do artífice em realizar um bom trabalho e, depois, nas capacidades necessárias para isso. O arranjo entre desejo e capacidade para fazer bem feito encontra um obstáculo típico da sociedade contemporânea: a insistência em criar medidas que indiquem quem possui mais ou menos habilidade. A aspiração pela qualidade, que caracteriza o artífice, passa a ser modelada pelas condições sociais.

Esses três obstáculos criam imperativos morais, competitividade, metas a serem alcançadas e medidas de qualidade que separam a mão da cabeça. Quando isso ocorre, a cabeça é prejudicada, comprometendo o entendimento e a expressão. Nesses casos, o padrão de trabalho adotado é, geralmente, fazer o que é possível, criando frustrações, pois a realização de um trabalho bem feito é relegada ao segundo plano, quando não é abandonada.

O artífice possui, de acordo com Richard Sennett6, um impulso básico e permanente para efetuar um trabalho bem feito. As condições sociais e/ou econômicas podem, no entanto, dificultar ou facilitar esse engajamento pela qualidade. Assim, diante dos avanços tecnológicos, típicos da sociedade contemporânea, o artífice enfrenta desafios relacionados aos padrões de excelência e seus objetivos conflitantes. Como consequência, quem almeja realizar de maneira bem feita corre o risco de ser ignorado, desvalorizado ou ficar sujeito a pressões competitivas, frustrações e obsessões. Esses possíveis riscos fazem com que, comumente, busque-se “refúgio na introspecção quando o envolvimento material revela-se vão; a antecipação mental é privilegiada em detrimento do contato concreto e os padrões de qualidade no trabalho separam a concepção da execução”6. A separação entre cabeça e mão passa a fornecer o modelo de funcionamento, encontrando respaldo na política de motivação, no desenvolvimento de capacitações e nas medidas de qualidade para a organização das habilidades do artífice.

Como exemplo, Sennett6 relata o caso do Serviço Nacional de Saúde (NHS) da Grã-Bretanha que estabeleceu novos padrões relacionados ao bom atendimento. Assim, implementou-se a perspectiva fordista na assistência à saúde, pautada na quantificação dos procedimentos e na fiscalização do tempo dos atendimentos realizados. Como consequência, houve insatisfação das equipes de saúde e os profissionais passaram a fazer críticas às medidas adotadas, pois implicavam na queda da qualidade dos serviços prestados. Além disso, houve também a negligência em relação às habilidades e capacidades dos profissionais, ignoradas em nome dos padrões institucionais estabelecidos.

Levando em consideração as observações de Sennett6 sobre o sistema de saúde da Grã-Bretanha, podemos afirmar que a quantificação e a fiscalização, para que seja estabelecido um padrão que regule o bom atendimento, entram em choque com o impulso básico de fazer bem feito, que caracteriza o artífice. A contraposição entre a padronização do bom atendimento e o impulso inerente do artífice se encontra no estabelecimento de um modelo de gestão que deve ser seguido e uma gestão pautada na cooperação dialógica, de encontros cotidianos entre profissionais de saúde que pensam e agem de maneiras distintas. Nesse sentido, podemos apontar diversas diferenças entre o artífice e o trabalhador moral, “aquele que fará a adesão automática a determinados conceitos, modo de se organizar o cuidado e modos de se fazer a gestão”11.

O artífice e o trabalhador moral se diferenciam em diversos aspectos: enquanto o trabalhador moral parte de preconcepções sobre o bom funcionamento de um sistema de saúde e, com isso, pretende alcançar determinados fins, o artífice se coloca no campo de atuação do cotidiano de serviços de saúde, ou melhor, na articulação entre os trabalhadores de diferentes serviços por meio de diálogos permeados pelas diferentes concepções. Assim, temos, por um lado, um padrão independente dos atores sociais envolvidos e, por outro, a gestão que acontece exatamente no encontro entre aqueles que compõem os serviços de saúde. O trabalhador moral está pautado, portanto, em políticas de capacitação, motivação e qualidade que colocam imperativos morais, criando a impossibilidade para se atingir os padrões estipulados e, ao mesmo tempo, barreiras para as habilidades do artífice. Enfim, a adesão do trabalhador moral aos modelos de justiça previamente concebidos estabelece uma linha divisória entre quem está de acordo com os conceitos e os modos de fazer tidos como necessários, configurando um modo de cooperação do tipo nós-contra-eles. O artífice, ao contrário, procura os modos cotidianos que articulam o fazer e o pensar em suas variadas formas de apresentação, favorecendo, por vezes, a convergência de ações e, em outras vezes, os embates, pois a cooperação dialógica não prescinde da competitividade entre diferentes modos de gestão, de cuidado e de concepção.

As mudanças de gestão no sistema de saúde da Grã-Bretanha, descritas por Sennett6, podem se apresentar no sistema de saúde brasileiro por meio do desvio funcionalista e na existência do trabalhador moral11. No Brasil, o apoio matricial se caracteriza como uma forma de estabelecer modos horizontais de gestão, de trocas de conhecimento e de atenção em saúde. O diálogo entre profissionais de diferentes equipes possibilita a superação da dicotomia entre a mão e a cabeça, estabelecendo formas de cooperação dialógica. Enquanto as ações específicas em saúde criam qualidades diversas para os que fazem e para os que pensam, o apoio matricial colabora para a construção de novas estratégias de cuidado em saúde, contribuindo também para a educação permanente dos profissionais12.

Dessa forma, podemos comparar o apoio matricial à oficina de artífices, pois as equipes matriciadoras compartilham seus saberes com as equipes de atenção continuada, visando à qualidade da assistência à saúde e das relações profissionais; causando rupturas com as hierarquias disciplinares; e colaborando para a formação de profissionais e de instituições mais democráticas.

Conhecimento, comunicação e cooperação

Para que o artífice desempenhe bem o seu trabalho, é necessário que tenha conhecimento. Porém, o conhecimento deve estar aliado à disponibilidade para executar as ações com habilidade, sendo esta fruto da íntima relação entre fazer e pensar, gerando conhecimento. Enfim, o trabalhador engajado e capacitado produz o conhecimento necessário para o trabalho bem feito6. O conhecimento produzido não está pautado, portanto, na fragmentação das ações, mas na integralidade13, ou seja, deve ser abarcado em sua complexidade14,15. Ao fragmentarem a atenção à saúde, os profissionais perdem o contexto global e as intervenções contribuem para a verticalização da assistência e das relações, comprometendo o trabalho interdisciplinar. O conhecimento pode ser um divisor nas relações, o que pode ser percebido, por exemplo, nas hiperespecializações e nos especialistas antissociais que, presos em seus saberes, fragmentam o todo em partes não interligadas, contribuindo para a divisão social do conhecimento, gerando leigos e especialistas, saberes da mão e da cabeça.

O apoio matricial se caracteriza como uma ação de educação permanente que produz diálogo entre o matriciador (especialista) e a equipe de referência, sendo que essas posições não são fixas – podendo, portanto, ser trocadas dependendo da situação. Para que as ações de educação permanente sejam efetivas e contribuam com a formação profissional, não devem estar dissociadas da realidade cotidiana, nem das práticas dos trabalhadores de saúde. O caráter técnico-pedagógico do apoio matricial possui a função de proporcionar o conhecimento adequado para as situações que exijam dos trabalhadores uma maior capacidade de análise, de intervenção e de autonomia no desenvolvimento das práticas transformadoras de saúde16. Caso contrário, as ações de educação permanente servirão apenas para cumprir protocolos.

O apoio matricial envolve intercâmbio profissional e construção de conhecimento. A conexão entre esses dois aspectos configura o processo de trabalho interdisciplinar e a produção de conhecimento ultrapassa o sistema de saúde. Assim, o diálogo entre os diversos profissionais aborda saberes específicos do campo da saúde e, ao mesmo tempo, incorpora a racionalidade dos mecanismos sociais que geram saúde e enfermidades. A produção de saúde deixa de ser ferramenta exclusiva de determinadas especialidades, pertencendo a todos os profissionais desse campo17. Para tanto, no apoio matricial, espera-se que os profissionais envolvidos sejam capazes de conservar os seus saberes, mas também de ultrapassar os limites de suas respectivas disciplinas, ampliando a compreensão e a capacidade de intervenção das equipes18.

O apoio matricial pode ser compreendido, então, como um modelo de conversa específica entre um especialista e uma equipe de referência, compondo uma rede de conversações8. Como as funções de especialista e de referência não são fixas, a comunicação acontece de maneira horizontal, superando a lógica tradicional de encaminhamentos e enfatizando a corresponsabilização entre as equipes. Os processos de educação em saúde não estão pautados somente no conhecimento, pois a comunicação acontece a partir da conexão entre explicação e compreensão. Explicar é considerar o objeto em si mesmo e aplicar meios objetivos de elucidação. A explicação, no entanto, é insuficiente para promover compreensão, que depende também de relações de empatia e de identificação. Por exemplo, compreender uma pessoa que chora não é fazer uma análise laboratorial da composição de sua lágrima, mas saber o significado de sua emoção ou dor14,19.

A empatia é necessária à cooperação dialógica e se contrapõe aos atuais modos de organização dos processos de trabalho, que tendem a favorecer os esquemas de silos e o tribalismo, comprometendo a comunicação entre os trabalhadores e enfraquecendo a solidariedade e a empatia. Na sociedade contemporânea, os grupos se organizam de maneira tribal, dificultando o entendimento e o relacionamento entre pessoas com opiniões, ideais e ideologias divergentes. O tribalismo pressupõe a solidariedade apenas em relação aos semelhantes e a agressividade aos diferentes. Desse modo, contribui para a formação de estereótipos, rotulações e preconceitos, visto que são construídas fantasias odiosas relacionadas às pessoas sobre as quais, muitas vezes, nada se sabe a respeito. Nesse caso, a cooperação existente no tribalismo é negativa e do tipo nós-contra-você. A cooperação dialógica, por sua vez, é mais aberta, com pessoas diferentes mostrando-se dispostas à ajuda recíproca. Trata-se de cooperação de tipo semelhante à habilidade do artífice, pautada na capacidade de entender e se mostrar receptivo ao outro, para, então, agirem em conjunto5,6.

Como qualquer habilidade, a cooperação precisa ser treinada. Nas tarefas realizadas em conjunto, pode ocorrer de diversos modos, tais como: ouvir com atenção, agir com sutileza e respeito, encontrar pontos de convergência, gerir a discordância e evitar a frustração em uma discussão fácil. Levando em consideração que “a essência da cooperação é a participação ativa, e não a presença passiva”5, a cooperação não se apresenta como um campo pacífico, pois a participação ativa pode desencadear divergências de ideias e nos modos de agir. No entanto, essas possíveis divergências não devem impedir o relacionamento, sendo que a cooperação possui o mesmo fundamento que o trabalho interdisciplinar.

A proposta do apoio matricial pode ser pensada, então, como um modo de estabelecer interação no cotidiano de trabalho entre equipes de saúde, que se organizam pela cooperação dialética. Aliás, entre a equipe matriciadora e a equipe de referência não há simetria de conhecimento, mas o embate de ideias não pode se esgotar no desmerecimento do discurso do outro. Como não há um ponto predeterminado para o qual as ideias devem rumar – pois a ênfase encontra-se na construção do conhecimento embasado na escuta do outro, ou seja, daquele que pode ser divergente – não há, também, respostas prontas, mas sim diálogo. Não há, tampouco, o privilégio do conhecimento do matriciador, pois o especialista, aqui, não é o profissional detentor das soluções.

De acordo com Sennett6, o especialista pode ser de dois tipos: antissocial e sociável. O especialista antissocial é aquele que gosta de se autoafirmar e de enfatizar a desigualdade/superioridade existente entre o seu conhecimento e a habilidade do não especialista, provocando ressentimentos e humilhação, podendo tornar-se isolado ou acuado pela incapacidade de compartilhar o seu conhecimento. Já o especialista sociável é capaz de perceber situações que estão para além das técnicas, abrangendo a sua finalidade e a coerência global, além de estar sempre disposto a compartilhar o conhecimento que possui: “a instituição bem constituída artesanalmente favorecerá o especialista sociável; o especialista isolado é um sinal de que a organização está enfrentando problemas”6.

Nos processos de matriciamento, mão e cabeça agem juntas, ou seja, a prática gera a reflexão e esta, por sua vez, reinventa e rearranja a prática, em um movimento de retroação. Desse modo, o profissional de saúde pode ser caracterizado como artífice, como aquele que explora as dimensões de habilidade, empenho e avaliação de maneira específica, e não a partir de parâmetros de medidas externos ao processo de construção de conhecimento no qual está envolvido. O diálogo entre as práticas concretas e as ideias possibilita a criação de hábitos prolongados e de hábitos permeados de reflexão. Esses hábitos prolongados criam, por sua vez, um ritmo entre a detecção e a solução de problemas5,6.

O aprendizado referente à gestão do conflito acontece por meio de atividades práticas e seus resultados demonstram a prevalência de um tipo de cooperação que sustenta os grupos em situações inesperadas e de infortúnio. A cooperação dialética não visa a um fim específico, mas acontece nas interações cotidianas, no encontro de pessoas engajadas em fazer bem feito. A coesão social é possibilitada pela escuta do outro e pela garantia de um espaço individual. Está pautada, enfim, em cooperação e competição. Além disso, por meio da cooperação, é possível promover a indivíduos e seus grupos a percepção e conscientização das consequências de seus atos, bem como ampliar a compreensão que eles têm acerca de si mesmos5.

Apoio matricial e cooperação entre artífices

O apoio matricial foi concebido como um dos eixos do método Paideia3, junto com o apoio institucional3 e a clínica ampliada e compartilhada3, interferindo, de maneira conjunta, em três dimensões: poder, conhecimento e afeto. O apoio institucional tem como objetivo a cogestão da função gerencial na articulação entre serviços e entre gestores e trabalhadores. A clínica ampliada e compartilhada visa à cogestão do Projeto Terapêutico Singular (PTS)20 entre profissionais e usuários. O apoio matricial possibilita a cogestão das relações profissionais e “sugere um modo de funcionamento para o trabalho em rede, valorizando uma concepção ampliada do processo saúde-doença, a interdisciplinaridade, o diálogo e a interação entre profissionais que trabalham em equipes ou em redes e sistemas de saúde”21.

Em relação ao apoio matricial, de maneira específica, há a crítica às formas burocráticas nas relações entre profissionais e entre estes e usuários, contribuindo para a reorganização das interconsultas, a superação do processo de referência e contrarreferência, a ênfase no trabalho interdisciplinar, a mudança do arranjo organizacional, a cogestão e a corresponsabilização. Nessa proposta de arranjo organizacional, a linha de produção de estilo taylorista adaptada à atenção em saúde passa a ser enfrentada, favorecendo o acompanhamento longitudinal dos usuários, a troca de conhecimento entre profissionais e a articulação de serviços21.

A condução do trabalho a partir de diálogos, ações conjuntas e personalização22 produz conhecimentos e responsabilidades compartilhados21. Para que isso aconteça, os trabalhadores da saúde estipulam contínuos processos de ensino-aprendizagem e de acompanhamento dos usuários. Esse arranjo se constitui no cotidiano de trabalho, ao longo do tempo e de maneira minuciosa. A cooperação entre trabalhadores da saúde se caracteriza, a partir das concepções de Richard Sennett5, como uma habilidade de artífice de busca pela qualidade.

Como essas ações técnico-pedagógicas e clínicas priorizam a interação entre equipes e entre profissionais e usuários, há o risco de gerar identificação e agrupamento de pessoas que podem se julgar mais competentes do que outras, criando isolamento social, falta de diálogo e/ou trabalhadores obcecados5,6. Assim, pode ocorrer exatamente o contrário do que se esperava conseguir na proposta do apoio matricial. A separação entre a cabeça e a mão é um ponto-chave a ser superado, mas não se encontra apenas nas relações interprofissionais: (1) a formação acadêmica não está isenta de jogos de poder e da divisão de profissões intelectualizadas e práticas; (2) no campo da saúde, há trabalhadores com formação acadêmica, com formação técnica e sem formação de nível superior, estabelecendo hierarquias, muitas vezes, rígidas; e (3) a remuneração desses diversos profissionais é, geralmente, desproporcional, reproduzindo a lógica das classes sociais.

Por outro lado, pela via do trabalho é possível afinar o trato com os outros. Nessa relação de artífices, é necessário dialogar e refletir acerca daquilo que se produz e, para tanto, é preciso saber lidar com as dificuldades, diferenças e ambivalências inerentes à relação com o outro. Desse modo, podemos pensar o apoio matricial como uma oficina de artífices, pois o desenvolvimento de matriciadores e matriciandos, ao atuarem de modo colaborativo em atividades conjuntas – interconsulta, discussão de casos, visitas domiciliares, etc – acontece, principalmente, pela partilha mútua de questionamentos, ideias, dúvidas, informações e apoio entre os profissionais de ambas as equipes18.

O apoio matricial é, portanto, um tipo exigente e difícil de cooperação, visto que tenta reunir pessoas diferentes, com interesses distintos ou divergentes, podendo gerar mal-estar, comparação odiosa e falta de entendimento. Dessa maneira, o desafio da cooperação está exatamente na gestão de conflitos, ou seja, em saber como reagir aos outros nos termos deles, pois “a cooperação não é fortalecida apenas aliviando-se as pressões; as quedas de braço fixam limites que não deverão ser ignorados no futuro”5.

Considerações finais

A diversidade de saberes disciplinares existentes em uma equipe multiprofissional de saúde, quando articulados sob a perspectiva interdisciplinar, tende a contribuir para a integralidade da assistência à saúde e o fortalecimento de vínculos entre equipes, profissionais e usuários. Porém, quando profissionais de diferentes disciplinas atuam de modo isolado ou sobrepondo-se aos demais saberes, isso pode gerar incomunicabilidade entre a equipe e, por conseguinte, impasses nas tomadas de decisões, antagonismo de ideias, falta de consenso nas ações e polarização das práticas da mão e da cabeça.

Sabe-se que o apoio matricial é um modelo colaborativo e interdisciplinar em saúde que propõe suporte técnico, pedagógico e assistencial oferecido por profissionais especializados às equipes de referência e, ainda, a realização de intervenções mútuas que facilitam a resolutividade dos problemas no campo da saúde. Dessa forma, entende-se que, nos processos de matriciamento, os profissionais envolvidos são capazes de refletir acerca de suas ações, reinventando-as e reorganizando suas práticas. Segundo Sennett5,6, esses profissionais devem atuar como verdadeiros artífices, isto é, engajados na qualidade do trabalho a ser realizado e priorizando os diálogos e as reflexões constantes que possibilitem identificar e solucionar os impasses cotidianos.

No entanto, as disparidades entre os profissionais podem dificultar a realização do trabalho interdisciplinar, a comunicação horizontalizada e a tomada de decisões compartilhadas, pois, às vezes, as disciplinas criam limites rígidos, impedindo a realização de um trabalho colaborativo, conforme preconizado pelo apoio matricial. Nesse sentido, o conceito de cooperação dialógica, proposto por Sennett5, contribui para uma melhor compreensão e avaliação dos fatores que potencializam ou entravam o trabalho entre os profissionais de distintos saberes.

A cooperação define-se enquanto um valor social que possibilita a concretude das ações. Para Sennett5, a cooperação torna-se um desafio quando a interação ocorre entre pessoas desconhecidas, visto que exige grande esforço de receptividade e capacidade de compreensão do outro. Nesses casos, o processo geralmente é difícil e permeado de ambiguidades, principalmente pelo caráter individualista da sociedade contemporânea, na qual cooperar não é relevante. Além disso, quanto mais disparidades houver entre as pessoas, maiores serão as dificuldades relacionadas à cooperação, visto que elas tendem a lidar uma com as outras como se fossem adversários.

Dessa forma, é apenas pela cooperação dialógica que os profissionais serão capazes de lidar com as dificuldades, diferenças e ambivalências inerentes às relações do trabalho em equipe. Para tanto, esse tipo de cooperação necessita ser treinada por meio de reflexões e práticas contínuas de trabalho nas quais todos os envolvidos consigam gerir os conflitos e otimizar a relação com os outros. A cooperação dialógica torna-se possível apenas entre profissionais artífices: engajados no fazer bem feito e, portanto, dispostos em ultrapassar os limites de suas disciplinas para dialogar, refletir e compartilhar as suas práticas no campo da saúde.

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Editado por

  • Editor
    Antonio Pithon Cyrino
    Editor associado
    Tiago Rocha Pinto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2021
  • Aceito
    01 Out 2021
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