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Sobre cuidados em saúde em um hospital geral

Sobre cuidados de salud en un hospital general

Resumos

Este artigo analisa práticas de cuidado em saúde vivenciadas em um hospital geral do Sistema Único de Saúde (SUS), com a intenção de problematizar e refletir sobre o cuidado e as práticas em saúde que se fazem presentes entre pessoas, no cotidiano do serviço, nas relações e nos fluxos que são estabelecidos. Utilizamos a Etnografia para descrever uma cena que reflete as relações entre os saberes, os cuidados e descuidados que se fazem em um hospital. Propomos pensar o cuidado como múltiplo e observamos o hospital por meio de sua constituição como uma “máquina de curar”. Refletimos o encontro entre profissional e usuário, entre o cuidador e quem recebe o cuidado, para propor que em todo e qualquer encontro de saúde certo cuidado é realizado.

Palavras-chave
Práticas de saúde; Cuidados em saúde; Hospital geral; Etnografia


Este artículo analiza prácticas de cuidado de salud vividas en un hospital general del Sistema Único de Salud, con la intención de problematizar y reflexionar sobre el cuidado y las prácticas de salud presentes entre las personas, en el cotidiano del servicio, en las relaciones y en los flujos establecidos. Utilizamos la etnografía para describir una escena que refleja las relaciones entre los saberes, los cuidados y descuidados realizados en un hospital. Proponemos pensar el cuidado como múltiple y observamos el hospital a partir de su constitución como “máquina de curar”. Reflejamos el encuentro entre profesional y usuario, entre el cuidador y quien recibe el cuidado, para proponer que en todos los encuentros de salud hay cierto cuidado que se realiza.

Palabras clave
Prácticas de salud; Cuidados de salud; Hospital general; Etnografía


This article analyzes health care practices experienced in a general hospital of the Brazilian National Health System, with the intention of problematizing and reflecting on the care and health practices that are present among people, in the daily service, in the relationships and flows that are established. We use ethnography to describe a scene that reflects the relationship between knowledge, care and un-care practices that are performed in a hospital. We propose to think of care as multiple and we observe the hospital from its constitution as a “healing machine”. We reflect the encounter between professional and user, between the caregiver and the one who receives the care, to propose that in any and all health meetings, certain care is performed.

Key-words
Health practices; Health care; General hospital; Ethnography


Introdução

Neste artigo nos debruçamos sobre as práticas de cuidado em saúde vivenciadas em um hospital geral do Sistema Único de Saúde (SUS), com o objetivo de problematizar e analisar os cuidados e as práticas construídas por pessoas, no cotidiano do serviço, nas relações e nos fluxos que são estabelecidos, nas palavras ditas ou silenciadas.

Com base em uma cena que descreve inquietações vividas na prática de saúde, trazemos para o centro da discussão o cuidado praticado, buscando reconhecer os possíveis saberes em torno dele e como tais cuidados produzem corpos.

Assumimos nesta análise o referencial proposto por AnneMarie Mol11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002., que trabalha com a ideia de praticalidades ou o cuidado posto em ato, “enact”11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002. (p. 32), enfatizando como ele é construído na prática, com a multiplicidade de olhares e saberes que incidem sobre os corpos e a corporeidade, constituindo formas de intervenção mais ou menos morais que denunciam a tensão existente nessa relação. O cuidado que faz o corpo e que lhe dá distintas materialidades.

Seguindo Mol11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002., buscamos refletir menos a fragmentação do cuidado, que presume, em algum lugar, encontrar o seu oposto: um cuidado pleno, não fragmentado, portanto completo; e mais, os cuidados que se apresentam de forma múltipla, reconhecendo que, assim como o corpo e suas doenças, eles também são múltiplos.

Portanto, o estatuto teórico seguido neste artigo não é o do cuidado definido a priori como em uma prática de saúde a ser seguida e reproduzida, mas os cuidados possíveis de serem dados por um ser humano a outro ser humano em determinados contextos e situações, mais ou menos precários, que marcam suas vidas e definem o que fazem e como fazem.

Trata-se de um estudo etnográfico sobre o cuidado em saúde, escrito com base em memórias e situações vivenciadas em um hospital geral, trazendo para a centralidade da análise uma cena disparadora. A cena é assumida como “uma apresentação do real, uma verbalização da vitalidade”22 Geertz C. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Ed UFRJ; 2009. (p. 186), em que o universo do cuidado, com outros profissionais, usuários, familiares, gestores e tantos outros, compõe as múltiplas vozes que se apresentam.

Mol11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002. afirma que os estudos etnográficos acerca das fisicalidades são recentes e que, por muitos anos, as pesquisas sobre o corpo físico foram objeto da Biomedicina, enquanto os cientistas sociais se mantinham distantes do body-talk11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002. (p. 7). Contudo, existe algo sobre o corpo que está para além do conhecimento médico.

A realidade de viver com uma doença não cabe apenas em uma fisicalidade e, também, não é um assunto limitado às questões psicossociais. Portanto, o que está sendo defendido aqui é que o corpo não está restrito à Biomedicina e o humano não diz respeito apenas ao psicossocial. O objetivo não é etnografar “sentimentos, significados ou perspectivas”11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002. (p. 15), que são interpretações pessoais possíveis a cada sujeito de forma singular e distinta, mas trabalhar com o cuidado feito na prática.

Ao descrever uma cena de cuidado em saúde, não são os fatos em si que importam, mas sim uma possível análise dos valores trazidos pela cena, bem como refletir sobre as praticalidades e o processo de materialização no qual categorias são formuladas e acionadas, estabelecendo definições acerca de quem “presta” o cuidado, o cuidado que “presta” e “não presta”, o que é entendido como cuidado e quem merece recebê-lo ou não.

Desse modo, a Etnografia é assumida aqui como um modo de produção de conhecimento, um princípio de pesquisa, e também como um gênero de escrita que se articula à política e à poética. Como resume Clifford33 Clifford J. Introdução: verdades parciais. In: Clifford J, Marcus G, organizadores. A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio de Janeiro: EdUERJ, Papel Selvagens Edições; 2016. p. 31-61., a etnografia em sua dimensão de “atividade textual híbrida”33 Clifford J. Introdução: verdades parciais. In: Clifford J, Marcus G, organizadores. A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio de Janeiro: EdUERJ, Papel Selvagens Edições; 2016. p. 31-61. (p. 61) atravessa os gêneros e as disciplinas, sendo sempre escrita e ato. Essa escrita possibilitou a descrição e a reflexão sobre cuidados que foram vividos e vistos, uma análise dos processos que operam relações entre cuidado e organização de saúde, como operam as regras, quem as sustenta, o que produzem de vida e de morte e quais os efeitos sobre a produção de cuidado.

A narrativa construída é resultado de uma combinação de distintas situações vividas durante os anos de trabalho no hospital e de temas debatidos na Saúde Pública, portanto uma narrativa permeada pelo olhar, pela memória e pelo que faz questão para nós. São construções em que fizemos uso de recursos tomados emprestados da Psicanálise, como “condensações”, “deslocamentos” e “interpretações”44 Freud S. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora; 2006. Vol. IV [1900]..

É importante ressaltar que profissionais de saúde, pacientes e familiares foram preservados neste artigo. Além dos recursos já mencionados, pelos quais os fatos ficam retrabalhados pela memória, sendo, portanto, construídos e reconstruídos, há ainda o resguardo de toda e qualquer identidade que, ainda assim, pudesse escapar a tais recursos.

Apresentando a cena

Chega ao hospital, trazida por seus filhos, uma senhora usando um vestido largo, cobrindo braços e pernas, carrega uma ferida no pé. Após avaliação pela equipe de plantão da emergência, ela é internada na Clínica Médica, submetida a exames que apontam o diagnóstico de diabetes em estado avançado e, até aquele momento, sem tratamento.

Diagnóstico feito, os clínicos solicitam avaliação de cirurgiões para definirem a intervenção de tratamento a ser realizada. Diante da ferida no pé, as decisões sobre as intervenções a serem feitas produzem outra corporalidade: “amputação dos dedos” envolvidos na ferida, além de medicações para “controlar a diabetes”.

A senhora escutou os médicos que a avaliavam e marcavam com caneta a parte do pé que deveria ser retirada, amputada de seu corpo. Foi então que, com muita calma, a senhora falou: “eu vim ao mundo com os dez dedos do pé e voltarei com os dez dedos do pé”. Os médicos não se importaram com aquela frase em tom de profecia e seguiram em suas decisões e demarcações sobre o corpo alheio. Contudo, a senhora estava decidida em relação ao seu próprio corpo. Não aceitou o jejum preparatório para a cirurgia, tampouco as medicações necessárias. Seguia dizendo que não tirariam seus dedos do pé.

Essa cena é uma das muitas que compõem o cotidiano de um hospital geral do SUS. A recusa de um paciente às intervenções médicas não é uma cena incomum ou estranha aos profissionais de saúde, podendo provocar questionamentos e mobilizar profissionais que atuam na assistência. Por um lado, há a ideia de que é necessário garantir o cuidado considerado adequado pela equipe, nesse caso amputar os dedos. Por outro, há o que cada sujeito quer para seu próprio corpo e entende como cuidado, no caso dessa mulher: não querer perder seus dedos.

A questão é tensa: a amputação é adequada para ela? No cotidiano do serviço circulam homens, mulheres, corpos, pés, diabéticos ou não, recusas que costumamos denominar “abandonos de tratamento”, resistências. Diversas situações atravessam o cotidiano e seguem as prescrições, mas o que as pessoas desejam para seus próprios corpos? O que esperam dos profissionais e dos serviços? O que consideram ser bom para elas? O que é considerado cuidado? Há espaço para essas questões?

Na literatura que discute a produção do saber sobre saúde existem reflexões importantes que problematizam a intervenção sobre os corpos e o que há de normatividade nesses processos. Canguilhem55 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995., ao refletir sobre a postura médica acerca da determinação do normal, da saúde ou da doença, afirma que “o que lhes interessa é diagnosticar e curar”55 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995. (p. 94). O objeto do médico é o corpo doente ou o pedaço doente do corpo e seu objetivo é fazê-lo voltar ao seu estado “normal”. O hospital é o local privilegiado para restabelecer esse normal e para que o doente volte a ser um indivíduo normativo.

Foucault66 Foucault M. O Nascimento do hospital. In: Machado R, organizador. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. p. 171-89., ao discutir a medicina científica moderna, mostra como ela se constrói em um processo contínuo de delimitações de novos espaços de atuação, chamando para si e definindo o que é questão de saúde, normalizando e medicalizando esferas da vida. O hospital medicalizado configura-se como uma “máquina de curar”66 Foucault M. O Nascimento do hospital. In: Machado R, organizador. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. p. 171-89. (p. 173), não havendo mais espaço para a religião ou para “saberes leigos”. Houve a troca do saber religioso e de outros saberes para além da Medicina, que coabitavam as instituições hospitalares pelo saber científico, que ainda assim opera por uma moral respaldada em um “saber legítimo”, que define os modos de fazer saúde naquele espaço e na relação médico-paciente.

Retomando Canguilhem55 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995., o hospital ocupa o espaço em que se produz e reproduz de forma mecânica e automática um fazer saúde, no qual se almeja “voltar à norma uma função ou um organismo que dela se tinham afastado”55 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995. (p. 94).

Uma primeira mirada na cena descrita nos possibilita reconhecer as tensões que se apresentam entre os saberes leigos e científicos, retirando de possibilidade o diálogo em torno de outras opções de cuidado que não o biomédico. A medicalização da vida se impõe como uma única saída para as práticas de saúde. Nesse ponto, podemos refletir sobre as práticas de cuidado também terem sido medicalizadas e estarem a serviço da colonização do saber médico, como analisa Mattos77 Mattos RA. Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas com base na defesa de alguns valores. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2010. p. 313-52..

Produzindo cuidados

Na sala de Psicologia chega um pedido de parecer, enviado pela Clínica Médica, sobre uma senhora em um leito desse setor. A psicóloga vai conhecer o caso. Abre o prontuário, lê o motivo que levou a paciente ao hospital, conversa com alguns técnicos de enfermagem que estão no posto médico. Esclarece-se do motivo do pedido e tem início o atendimento da psicologia a essa pessoa que rejeita o protocolo de amputação sugerido pelos médicos. A senhora apresenta-se de forma lúcida e orientada, relata sua história e fala da decisão tomada: “não viverei sem meus dez dedos”.

A psicóloga dirige-se à equipe médica, que se apresenta de forma alterada, indignada pela recusa dos cuidados indicados, considerados necessários nesse caso. Os médicos estão mobilizados, dizem as mesmas frases: “a parte do pé tem que ser amputada”, “é uma parte bem pequena”, “tem que ser feita”, “ela não tem escolha”, levantando a questão se tais cuidados seriam indicados ou impostos.

Para entrar em cirurgia, a paciente tem que assinar um termo de consentimento da amputação, por menor que seja. Caso ela estivesse impossibilitada de assinar, um responsável familiar assinaria em seu lugar. Contudo, a paciente está acordada, lúcida e decidida a não assinar a retirada de seus dedos.

Os médicos a mantêm mais alguns dias no hospital, com a esperança de convencê-la. Apostam suas fichas no Setor de Psicologia e nos familiares que ajudarão a “abrir os olhos” da paciente para a “necessidade de amputar aqueles dispensáveis dedos do pé”.

Os dias passam, a senhora segue no hospital, não mudou de ideia em relação à sua recusa em perder parte do seu corpo. Aceitou as medicações para controlar sua diabetes, mas segue recusando a amputação. O tratamento medicamentoso pode e deve ser realizado pela paciente em casa, não é necessária uma internação para isso. Não há motivos que justifiquem sua permanência no hospital.

A despeito das intenções de seguir à risca o protocolo, os médicos liberam a saída da paciente. Dão alta hospitalar com inúmeras ressalvas e documentos que mostram o diagnóstico realizado, a necessidade de intervenção cirúrgica para amputação dos dedos, enfatizando a recusa da paciente ao tratamento necessário. Documentos que respaldam suas ações para evitar futuros questionamentos. Documentos que reafirmam o saber médico e desacreditam os saberes que orientam a produção de vida e a construção de mundo dessa senhora. A paciente sai do hospital com seus filhos e seus papéis.

Essa paciente foi ao hospital para cuidar de seu pé ferido, colocou seu corpo a ser analisado em exames clínicos e laboratoriais, como nos indica Mol11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002., na interação com os médicos ela fez e foi feita em um diagnóstico de diabetes, aceitou as medicações por via oral e injetáveis responsáveis por regular os níveis de açúcar em seu sangue, recusou a intervenção cirúrgica de amputação dos dedos do pé e mais tarde do pé inteiro. Dizia que não conseguiria viver sem parte do seu corpo, reconhecia isso como um limite do seu próprio corpo para estar na vida.

Nos serviços de saúde, cada profissional tem sua visão do que está acontecendo com determinado tratamento ou paciente, assim como o usuário tem suas verdades sobre o que se passa com sua saúde. A leitura proposta por Mol11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002. traz questões interessantes, pois nos permite reconhecer que cada olhar produzirá um corpo, tornando-se um corpo múltiplo ou o que Foucault88 Foucault M. O Nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1994. sinaliza como conhecimento produzido pelo olhar que incide.

Um paciente pode relacionar sua doença à sua religiosidade. Um médico pode creditar seu tratamento a seu conhecimento e acesso científico-tecnológico. Uma psicóloga pode fazer uma interpretação psicanalítica da relação dessa paciente com sua doença, com seu médico e seu tratamento. Uma enfermeira pode acreditar que seguindo todos os protocolos-padrão operacionais o cuidado estará garantido. Um gestor pode se preocupar com o indicador de morte por pé diabético que pode aumentar com a recusa à amputação dessa senhora. Não há uma dessas histórias que seja mais verdadeira do que a outra. Todas essas possibilidades e esses regimes de verdades percorrem os corredores do hospital, sobem e descem por escadas ou elevadores, entram e saem de setores. Todas essas narrativas coabitam e fazem o corpo doente.

Mas, nessa cena, os saberes da equipe médica assumem o lugar de legitimidade, sobrepondo-se aos saberes da senhora sobre seu corpo. Os saberes dos médicos, da psicóloga, da equipe de enfermagem, dos plantonistas, dos técnicos, que colhem e analisam o sangue que corre nas veias da mulher, todos esses saberes constituem e perfazem o discurso da Biomedicina e o saber científico. Um saber saúde que, no setting do hospital, se impõe a outras formas de saber e de estar no mundo. Um saber que opera para ordenar, normalizar e educar, definindo o que é bom para o outro.

São diferentes saberes, com seus desdobramentos próprios que se dão sobre os corpos, que constituem a racionalidade biomédica. Nesse sentido, a partir de Mol11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002. podemos pensar em saberes múltiplos que coabitam e fazem os corpos múltiplos. Ou, como sugere Camargo Jr99 Camargo KR Jr. A biomedicina. Physis. 2005; 15 Supl:177-201.:

A articulação dos saberes entre si e destes com a prática é fluida, o que faz com que a prática médica possa ser vista, neste particular, como um interminável exercício de criação de ideologias científicas99 Camargo KR Jr. A biomedicina. Physis. 2005; 15 Supl:177-201..

(p. 184)

Tais modos de articulação dos saberes em saúde parecem construir certo caminho e certas formas de fazer saúde que vão sendo reproduzidos como um padrão, criando normativas. Gera-se um círculo reproduzido em diferentes serviços de saúde, como, por exemplo, os atendimentos com poucas palavras, nos quais se parte do princípio de que aquele que precisa e procura por cuidado pouco sabe sobre o que lhe acomete, cabendo esse saber à equipe de saúde. Essa, além do saber, detém o poder de dar ou não esse cuidado, e até mesmo a suposta cura. O saber do paciente sobre o que ele sente é colocado em termos secundários, inscrito em narrativas e regimes de verdade que não são facultados a entrar no hospital.

É importante reconhecer que a saúde não constitui a única forma de produzir cuidados ou de fazer pessoas se sentirem melhor. Seres humanos têm múltiplas expectativas e podem ter outras formas de viver que não operam na lógica da saúde. Há cuidados fora do dispositivo assistencial da saúde. Entretanto, no hospital, um dispositivo que opera na lógica assistencial, é difícil reconhecer os cuidados para além do que a saúde pode oferecer e possibilitar em relação à forma já estabelecida de fazer saúde.

Na cena, é possível notar rapidamente a recusa da paciente em aceitar a intervenção de amputação do dedo, mas há outra recusa em jogo, mais difícil de ser notada ou de causar estranheza: a recusa da equipe médica diante do posicionamento dessa paciente, fato que faz os médicos solicitarem atendimento da Psicologia para reverter a posição dela, ou seja, os médicos recorrem a outro saber científico, que também legitima um saber e fazer sobre o corpo do outro.

Todavia, segue não havendo o reconhecimento da fala e dos saberes dessa mulher sobre si e sobre sua forma de estar na vida. Para os profissionais de saúde, a senhora carrega uma patologia, está fora dos limites ditos normais, portanto transforma-se ela toda em patológica. A senhora opta por seguir patológica e nessa escolha rompe com a Biomedicina, que prescreve o que é normal e a melhor forma para essa paciente seguir na vida. Os médicos parecem não reconhecer que o ser considerado patológico pode querer se manter como patológico, uma agência do patológico que coloca em xeque essa edificação dos saberes médicos.

Os profissionais de saúde com seus cuidados biomédicos reafirmam o discurso da racionalidade médica, operando tutela e controle sobre o corpo. A senhora com sua postura reafirma a falência do discurso biomédico.

A mulher que aparece para os médicos é a diabética, com ferida aberta no pé, necessitando de medicação e amputação. No hospital, essa mulher se torna apenas um dedo a ser retirado, parte de um corpo, que pode ser tomado em sua dimensão de objeto, a ser examinado, acessado, aberto, mexido, amputado, curado.

A mulher em volta do dedo, suas vestimentas, cor de pele, modo de ser, o que acredita para seu corpo e vida, seus princípios, enfim seu saber, são apagados e retirados de cena. O saber que ela carrega, que se constituiu como regime de verdade para ela pelo fato de ela não renunciar àquilo que acredita diante dos médicos, é o que queremos trazer para a reflexão, por deixar vivo que inúmeros saberes coabitam o corpo, por mais que tentemos apagá-los.

Faz-se importante uma reflexão acerca do cuidado em saúde, pois não há dúvida de que ele é atravessado pela lógica e pelo saber biomédico. Mas o que há de abertura no debate sobre o cuidado em saúde quando se apresentam outras ofertas de modelos para a organização da atenção?

Debatendo cuidado em saúde

O debate na Saúde Coletiva tem ressaltado há décadas a necessidade de acrescentar o cuidado às práticas em saúde. Ayres1010 Ayres JRCM. Humanização da assistência hospitalar e o cuidado como categoria reconstrutiva. Cienc Saude Colet. 2004; 9(1):15-29., ao debater a questão, traz para análise a invisibilidade do outro, a necessidade de interação com o outro e, principalmente, a necessidade de legitimação dessa interação, que implica reconhecer, primeiramente, a presença do outro e o respeito ao outro nas práticas de saúde.

O autor oferta dois sentidos para cuidado: um cuidado, substantivo comum, que se refere às atividades e procedimentos no sentido comum; e um substantivo próprio, o Cuidado, conceito ontológico trazido de Heidegger e definido como “uma atenção à saúde imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por conseguinte, também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde”1010 Ayres JRCM. Humanização da assistência hospitalar e o cuidado como categoria reconstrutiva. Cienc Saude Colet. 2004; 9(1):15-29. (p. 22).

Ainda com Ayres1111 Ayres JRCM. Da necessidade de uma prática reflexiva sobre o cuidado: a hermenêutica como acesso ao sentido das práticas de saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2007. p. 127-44., o conceito de cuidado tem

como norte a construção do compromisso das tecnociências da saúde, em seus meios e fins, com a realização de valores contrafaticamente relacionados à felicidade humana e democraticamente validados como bem comum1111 Ayres JRCM. Da necessidade de uma prática reflexiva sobre o cuidado: a hermenêutica como acesso ao sentido das práticas de saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2007. p. 127-44..

(p.128)

O autor afirma que o humano inventa a si próprio e seu mundo, se constrói e reconstrói, e entende esse movimento como cuidado. Com base nisso, é possível assumir as práticas de saúde também como cuidados, visto que são inéditas, inventadas a cada encontro entre profissional de saúde e paciente, construídas e reconstruídas, mesmo existindo uma técnica definida com protocolos e normativas.

Também Barros1212 Barros MEB. Seria possível uma prática do cuidado não-reflexiva? O cuidado como atividade. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2007. p. 113-26. afirma que a prática do cuidado não deve estar restrita aos procedimentos utilizados pelos profissionais, mas sim a “um caminho de encontros e problematizações que se efetivam nos processos de trabalho”1212 Barros MEB. Seria possível uma prática do cuidado não-reflexiva? O cuidado como atividade. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2007. p. 113-26. (p. 120), em uma atuação coletiva, com suas trocas acerca das práticas de saúde, transformando o trabalho em um “processo contínuo de constituição de sujeitos e de mundos”1212 Barros MEB. Seria possível uma prática do cuidado não-reflexiva? O cuidado como atividade. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2007. p. 113-26. (p. 120).

Mattos77 Mattos RA. Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas com base na defesa de alguns valores. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2010. p. 313-52. discorre sobre a necessidade de reconhecimento dos “modos concretos de andar a vida”77 Mattos RA. Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas com base na defesa de alguns valores. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2010. p. 313-52. (p. 338) nas práticas de cuidado, convidando a olhar para além do que é definido pela racionalidade médica e prescrito nas normativas, para observar o que acontece de “concreto” no dia a dia dos serviços de saúde, impregnado de vida, com suas contradições, naturalizações e resistências. Nesse sentido, também se pretende um encontro entre profissionais de saúde que detêm algum conhecimento sobre as doenças e pessoas, que possuem algum conhecimento sobre seus corpos, suas doenças e suas vidas.

Já Cecilio1313 Cecilio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-99. apresenta uma discussão, interessado na gestão do cuidado em saúde, destacando seis dimensões a serem consideradas: individual, familiar, profissional, organizacional, sistêmica e societária. Para o autor o cuidado resulta no cruzamento dessas dimensões, com diferentes atores envolvidos. Desse modo, o cuidado é entendido como encontros políticos entre sujeitos com seus recursos diferentes, que carregam interesses, necessidades e sentidos em nome próprio, que com suas ações estão em um processo de produção da vida social.

Também para Merhy1414 Merhy EE. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde. In: Ministério da Saúde. SUS Brasil: cadernos de textos. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. p. 108-37. as práticas de saúde se fazem em um encontro: “Qualquer abordagem assistencial de um trabalhador de saúde junto a um usuário-paciente produz-se através de um trabalho vivo em ato, em um processo de relações, isto é, há um encontro entre duas ‘pessoas’”1414 Merhy EE. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde. In: Ministério da Saúde. SUS Brasil: cadernos de textos. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. p. 108-37. (p. 112).

Ou seja, esses autores invariavelmente relacionam os cuidados ao encontro. Portanto, o foco não está somente na relação entre o cuidador e o que recebe esse cuidado, mas também em um processo interno de cada sujeito, profissional ou usuário de saúde. Um encontro para além da técnica, dos passos e procedimentos. O encontro que caracteriza o cuidado pode se dar ou não entre o cuidador e o ser cuidado.

Sobre essa perspectiva, como denominar aquilo que acontece entre profissional e usuário de saúde quando não há o tal encontro? Na cena trazida para discussão, o que dizer desse encontro como cuidado? O que mobilizamos para debate é a reflexão sobre o que acionamos e valoramos ao definir o cuidado como encontro.

Foucault88 Foucault M. O Nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1994. destaca a existência de uma impossibilidade do encontro médico-doente que parece não ser reconhecida, ficando o encontro reduzido, simplificado ou até romanceado. Destaca a relação de desigualdade que sustenta essa relação, marcada por uma hierarquia que submete a ambos.

Desse modo, os fazeres saúde estão inseridos na lógica da racionalidade médica, ao mesmo tempo em que a constroem e mantêm. Em uma espécie de “roda viva”, não há algo fora desse saber-fazer, embora haja sempre a possibilidade de, na repetição, modificar algo, e em um ato construir novas possibilidades.

Ao seguir essa lógica, refletimos que se, por um lado, a Biomedicina define “a” prática de saúde a ser seguida e reproduzida, por outro, sua crítica não tem escapado de criar definições sobre o caminho a ser seguido para construir o bom cuidado. Ambas definem práticas de cuidado e as fazem ancoradas em seus operadores morais. Ambas apresentam faces consideradas diversas de um mesmo saber e se apresentam como definidoras de fazer saúde.

O questionamento trazido aqui é se toda prática de saúde não se daria em um encontro, diferente a cada vez. Parece que apenas o cuidado considerado “bom” e “legítimo” é caracterizado como encontro. Corremos o risco de cair em mais dicotomias da saúde: a prática de saúde e o cuidado, o cuidado bom e o cuidado ruim ou cuidado e descuidado.

Mais uma vez fazemos uso do argumento de Foucault1515 Foucault M. Crise da medicina ou crise da antimedicina? Verve. 2010; 18(2):167-94. para pensar nos cuidados e seus encontros, para refletir sobre o deslocamento a ser feito na questão. Não se trata de definir uma boa ou má prática de saúde, mas de reconhecer que há uma medicalização que deixa efeitos radicais na vida, que também pode se apresentar em construções críticas à Biomedicina, que aposte na criação de outros caminhos para as práticas em saúde e o diálogo com o sujeito doente. Que diálogos seriam possíveis se estabelecer com essa mulher da cena?

Desfechos

A mulher que aparece na cena traz uma questão para além do curar e do cuidar no hospital. Ela poderia ter aceitado ou negado a amputação. O importante a sublinhar é a possibilidade de escolha de um fazer com seu próprio corpo e a possibilidade de aceitação ou não dessa escolha por parte da equipe de saúde. Um saber que se refere ao conhecimento e à autonomia sobre seu corpo e sua vida, que inclui sua subjetividade: desejo, fé, intuições, crenças e valores. Um saber sobre si que encontra pouco espaço na ciência moderna.

Na cena, o saber médico foi afirmado, porém o mal-estar já estava instaurado entre a equipe, pois o desfecho ficou marcado por se dar de forma diferente da indicada pelos médicos. A negação à amputação por parte da paciente produz um corte que abre uma ferida no discurso e, portanto, no saber da equipe médica. A mulher com o dedo morto mantido no corpo mostra que está viva.

Consideramos importante, além da reflexão sobre a produção do cuidado na saúde, trazer para discussão também o que é feito diariamente nos serviços de saúde, que é cuidado, com ou sem o “encontro” desejável pelas cartilhas especializadas no assunto. O que acontece entre profissionais e pacientes é cuidado, o cuidado possível, na relação possível entre aquelas pessoas que ocupam o espaço do hospital.

Os cuidados em saúde se dão na relação e na interação entre profissional e paciente; mais do que isso, nas relações que os sujeitos estabelecem com seus próprios mundos, com sua inserção nele, com os saberes considerados “legítimos” ou não e com o novo mundo que se abre diante do contato com o outro.

Nessa cena, além das duas recusas, podemos observar duas indignações, uma por parte dos médicos e outra da paciente com o que é colocado por eles. A paciente não aceita a ideia da amputação e os médicos não aceitam sua recusa. A senhora se vê como sujeito apenas com seus dez dedos e só assim ela é capaz de habitar o mundo que produziu para si. Os médicos só se sentem sujeitos quando o paciente aceita suas indicações de tratamento, intervenções e cura. Aqui fica claro como a interação médico-paciente e, portanto, os cuidados em saúde se dão em um terreno tenso.

Os cuidados são prestados sobre aquele corpo deitado na maca, um a um, cada profissional deposita seu fazer saúde sobre aquele corpo. Corpo e cuidado são múltiplos, interessa-nos a coordenação dessa multiplicidade, o reconhecimento de como os cuidados se mantêm juntos, coabitam e fazem o corpo.

Assim como o saber médico pode colonizar vidas, Mattos77 Mattos RA. Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas com base na defesa de alguns valores. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2010. p. 313-52. nos adverte para “as possibilidades de repetições e recorrências de estratégias e táticas também produtoras da colonização”77 Mattos RA. Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas com base na defesa de alguns valores. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2010. p. 313-52. (p. 332). Portanto, outros discursos podem colonizar vidas e definir o fazer saúde “certo”. O autor propõe, como saída à medicalização colonizadora, “a reflexão crítica de nossas práticas”77 Mattos RA. Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas com base na defesa de alguns valores. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2010. p. 313-52. (p. 332), a tentativa de identificar em nossas falas e fazeres a “potência colonizadora sobre o outro. Isso implica renunciar à ideia de que conhecemos a melhor forma de conduta para as pessoas”77 Mattos RA. Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas com base na defesa de alguns valores. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2010. p. 313-52. (p. 333). Reconhecer a ausência de respostas pode abrir espaço para a reflexão e a discussão sobre cuidados que acontecem no cotidiano dos serviços de saúde.

O interesse não é trabalhar na fragmentação dos saberes e das práticas. Seguimos com Mol11 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press; 2002., cujo foco é a multiplicidade e não a fragmentação. O objetivo é, por meio do reconhecimento de que o cuidado é múltiplo, poder refletir sobre formas de essa multiplicidade acontecer e se interligar, conectar-se, ou seja, pensar com base nas formas como os cuidados acontecem “no concreto”, no cotidiano dos serviços de saúde. O cuidado é múltiplo. Talvez uma possibilidade para pensar o cuidado seja reconhecer a sua multiplicidade, sem tentar sobrepor uma forma de cuidado sobre a outra. Canguilhem55 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995. reconhece a dificuldade de realizar o cuidado na vida.

Cuidar-se... como é difícil, quando se vivia sem saber a que horas se comia, sem saber se a escada era íngreme ou não, sem saber o horário do último bonde porque, se a hora tivesse passado, voltava-se a pé para casa, mesmo que fosse longe55 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995..

(p. 158)

Cuidar-se e cuidar segue sendo difícil. Não sabemos e não saberemos a hora em que se come, se a escada é íngreme ou a hora do último bonde. Ou, mesmo que saibamos tais informações, a vida seguirá sendo vivida sem um saber, sem conhecermos os acontecimentos que nos atravessarão. Isso é vivido em um hospital: a vida por um fio atravessada pelo último bonde. E não há prescrição possível, nem mesmo “a” prescrição médica que dê conta.

Passado um tempo, a senhora que nega amputação de seus dedos retorna ao hospital negando amputação de parte de sua perna. Passado um tempo maior, ela retorna ao hospital negando amputação da perna inteira. Ela retorna ao hospital de tempos em tempos e nega amputação de parte do seu corpo. Assim acontece até ela chegar ao hospital desorientada ou inconsciente e os médicos, sem precisar de sua autorização, realizam a cirurgia de amputação da perna.

Ao acordar, no CTI, a senhora se vê sem sua perna, não consegue falar mais nada e não resiste. Morre em poucos dias. Afinal, como ela disse inúmeras vezes, não sabe viver sem parte do seu corpo, sem parte de si. Os médicos não entendem a evolução da paciente ao óbito. Afinal, os sinais vitais da paciente estavam ótimos e a cirurgia tinha sido um sucesso.

Será possível uma forma de preservar a escolha e a autonomia da paciente, reconhecendo as diferenças nas formas de ver e pensar sobre a amputação ou não de seus dedos? Quais diálogos são possíveis entre quem cuida e quem é cuidado?

A senhora recebeu alta hospitalar seguiu para casa com seus papéis, seus filhos, sua vida, seus dedos podres e a orientação de que pode voltar a qualquer momento ao hospital. A equipe de saúde deixou claro que discorda da conduta adotada pela senhora, mas respeita e seguirá cuidando dela e do pé da maneira possível: higienizações e curativos na ferida nos dedos do pé, o que na Saúde Mental se convencionou chamar de “redução de danos”. O cuidado possível entre os médicos com seus saberes e modos de ser no mundo e a senhora com seus saberes e modo de ser no mundo.

A vida seguiu vivendo mais alguns anos para aquela senhora com seus dedos. Ela ia ao hospital quando sentia necessidade e voltava para casa. Até o momento em que a morte se fez presente. Talvez porque “a escada era íngreme” ou porque “vivia sem saber a que horas se comia”55 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995. (p. 158).

Ou podemos pensar que nada disso aconteceu. Ao sair da primeira internação no hospital com seus filhos e seus papéis, após a negação da amputação do dedo do pé, a senhora foi atropelada pelo último bonde, antes mesmo de chegar em casa. Morreu em poucos dias.

Com ou sem dedos do pé, a morte acontecerá. E até lá, cuidados se farão.

Discutir os cuidados em serviços de Saúde Pública diz respeito ao reconhecimento da população que faz uso desses serviços como seres humanos, com direitos, que merece ser tratada com respeito e não apenas ser tratada. Receber cuidados e atenção em saúde reflete o reconhecimento de um ser que vive, que constrói seus saberes e faz suas escolhas de vida.

A proposta deste artigo não é encontrar uma resposta para as questões apresentadas, tampouco defender um estatuto teórico do cuidado, mas sim abrir um espaço para pensá-las, trocar com outros estudos e encontros ao longo desse percurso. Trata-se de um convite para pensar nessas questões e nas formas como elas podem estar interligadas. Um convite à reflexão sobre os cuidados que são “prestados” nos serviços de saúde esperados de acordo com as normas, e os que são possíveis de se fazer no dia a dia diante de tantas dificuldades.

Agradecimentos

À Capes pelo auxílio para a pesquisa por meio da bolsa de Mestrado e ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da ENSP pelo apoio financeiro para esta publicação.

  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.
  • Landi LCM, Baptista TWF, Nogueira CO. Sobre cuidados em saúde em um hospital geral. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210055 https://doi.org/10.1590/interface.210055

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Editado por

Editora
Rosamaria Giatti Carneiro
Editora associada
Dulce Aurélia de Souza Ferraz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2021
  • Aceito
    08 Nov 2021
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