Open-access Silenciamento da sexualidade do adolescente no contexto rural

Silencing adolescent sexuality in rural settings

Silenciamiento de la sexualidad del adolescente en el contexto rural

Resumos

A educação para a sexualidade é um pilar fundamental da saúde sexual e reprodutiva. Contudo, há um distanciamento dessa discussão para adolescentes rurais. O objetivo deste artigo é analisar o discurso sobre a sexualidade do adolescente no contexto rural e as perspectivas para romper com a ordens do discurso. Adota como metodologia a pesquisa-ação desenvolvida em duas escolas rurais: uma no Brasil e outra na Colômbia. Para análise dos dados foi aplicada a Análise Crítica do Discurso. A sexualidade do adolescente no contexto da escola rural é atravessada por dispositivos que produzem o silenciamento. A construção da sexualidade é marcada pelos modelos biomédico, biológico e sexista que se exacerbam no contexto rural. É preciso reeducar o conceito de sexualidade como dimensão humanizadora e avançar na discussão sobre como a tecnologia e a mídia interferem nos modos de vida e na sexualidade dos adolescentes no contexto rural.

Palavras-chave Educação; Sexualidade; Adolescentes; Escola rural; Modelos educacionais


Education for sexuality is a central pillar of sexual and reproductive health. However, adolescents living in rural areas are distanced from this discussion. The aim of this article is to analyze the discourse on the sexuality of adolescents living in rural settings and the prospects for breaking with the orders of discourse. It adopts as methodology the action research study in two rural schools in Brazil and Colombia. The data were analyzed using critical discourse analysis. Adolescent sexuality in the context of rural schools is permeated by devices that create silence. The construction of sexuality is characterized by biomedical, biological and sexist models, which are exacerbated in rural settings. It is necessary to reteach the concept of sexuality as a humanizing dimension and make strides in the discussion of how technology and the media interfere in the ways of life and sexuality of adolescents living in rural areas.

Keywords Education; Sexuality; Adolescents; Rural school; Educational models


La educación para la sexualidad es un pilar fundamental de la salud sexual y reproductiva. No obstante, hay un distanciamiento de esa discusión para adolescentes rurales. El objetivo de este artículo es analizar el discurso sobre la sexualidad del adolescente en el contexto rural y las perspectivas para romper el orden del discurso. Adopta como metodología la investigación-acción desarrollada en dos escuelas rurales, una en Brasil y otra en Colombia. Para el análisis de los datos se adoptó el Análisis Crítico del Discurso. La sexualidad del adolescente en el contexto de la escuela rural está atravesada por dispositivos que producen el silenciamiento. La construcción de la sexualidad está señalada por los modelos biomédico, biológico y sexista que se exacerban en el contexto rural. Es preciso reeducar el concepto de sexualidad como dimensión humanizadora y avanzar en la discusión sobre cómo la tecnología y los medios interfieren en los modos de vida y en la sexualidad de los adolecentes en el contexto rural.

Palabras clave Educación; Sexualidad; Adolescentes; Escuela rural; Modelos educativos


Introdução

A escola como espaço privilegiado na educação para a sexualidade dos adolescentes conforma um lócus de grandes desafios1. Convive-se com uma visão heterossexista e negativa da educação sexual. Em consequência, os jovens sentem-se vulneráveis e expostos em um processo de formação deficiente e limitada em temas da sexualidade2.

No meio rural, esse contexto é agravado pelo conservadorismo na comunicação sobre questões de sexualidade. Em geral, esse cenário é marcado pela naturalização de padrões e práticas moralistas repassados de geração em geração, com discussões raras e pouco dadas3.

Há um escasso debate sobre a sexualidade no contexto da escola rural, o que se reflete em desafios e dificuldades de assegurar a singularidade do adolescente camponês. Em consequência, as ações educativas para a sexualidade são distantes do contexto e dos adolescentes. Ademais, a responsabilidade da educação para a sexualidade nas escolas rurais é limitada nas abordagens temáticas que favorecem o enfoque biologista da sexualidade.

Diante do exposto, propôs-se neste artigo analisar o discurso sobre a sexualidade do adolescente no contexto rural e as perspectivas para romper com as ordens do discurso.

Parte-se do pressuposto de que as práticas sociais que conformam o contexto escolar rural são historicamente carregadas de polêmicas, repressões e violências. Assim, instituem-se normas simbólicas que perpassam pela legitimação de discursos que convocam o silêncio contínuo sobre o tema.

Justifica-se a relevância de compreender os elementos discursivos da sexualidade, projetando perspectivas para romper com as estruturas das relações sociais instauradas e ordens do discurso em torno da sexualidade no contexto da escola rural.

Metodologia

Trata-se de pesquisa-ação apoiada no referencial teórico-metodológico da Pedagogia crítica de Paulo Freire, operacionalizada por meio de 13 círculos de cultura que se desdobraram nas fases de investigação vocabular, tematização, problematização e avaliação4 em duas escolas rurais: uma da Colômbia e uma do Brasil. A escolha das escolas foi intencional.

A escola do Brasil, localizada em Ipoema, distrito rural do município de Itabira, dista 85 km da capital do estado de Minas Gerais. A cultura do distrito mantém tradição religiosa e práticas, como rodas de viola. A jornada escolar regular é de quatro horas e oferece atividades de tempo integral de seis horas para aqueles estudantes de maior risco social. A singularidade da escola é marcada pelos traços raciais e identitários com maioria dos estudantes negros. Nessa escola não há uma forma padronizada e regulamentada pela instituição de como cobrir e vestir os corpos dos estudantes. Os estudantes vestem seu próprio estilo.

A escola da Colômbia, está localizada no município de Supatá, região central da Colômbia, a 76 km de distância da capital Bogotá. A região possui uma forte tradição religiosa católica. A jornada escolar integral única é de sete horas. A singularidade da escola está expressa na padronização dos corpos pelo uso do uniforme. As moças de saia longa, casaco, meias até os joelhos, cabelos longos, e não usam maquiagem. Os rapazes de calça, camisa e casaco.

Neste artigo, são apresentados os resultados relativos às fases de tematização e problematização que ocorreram no período de maio de 2017 a junho de 2018, conforme demonstrado no Quadro 1.

Quadro 1
Percurso metodológico

Foram realizadas observações em 22 grupos focais (12 na Colômbia e dez no Brasil) para captar narrativas sobre a sexualidade no contexto da escola rural.

O estudo envolveu setenta adolescentes entre 14 e 17 anos de idade. Para a definição do número de adolescentes participantes, foi realizada a divulgação ampla do projeto nas escolas com apresentação nas turmas em que havia adolescentes nas faixas definidas. Assim, a amostra do estudo foi intencional, de conveniência e de amplo recrutamento nos cenários do estudo.

O Quadro 2 demonstra o número de participantes em cada um dos encontros realizados.

Quadro 2
Participantes e tempo de cada círculo

Em alguns encontros os participantes foram divididos em dois ou três subgrupos para que se pudesse ter um melhor manejo das dinâmicas desenvolvidas. Cada círculo contou com uma média de 14 adolescentes (na Colômbia) e 11 adolescentes (no Brasil). Os adolescentes manifestaram preferência por temas que fossem desenvolvidos por meio de jogos, dinâmicas e conversas nas quais eles pudessem falar e perguntar à vontade.

As oscilações no número de participantes em cada círculo se justifica pela dinâmica escolar que envolveu diferentes atividades extracurriculares não comunicadas com antecedência. Um estudante se retirou da escola no final do projeto. Foi observado que a presença dos “melhores” amigos influenciava outros adolescentes na decisão de participar.

Os encontros ocorreram em locais que propiciaram um ambiente de confiança e privacidade. Os grupos focais foram gravados e transcritos na íntegra. Em respeito ao anonimato dos participantes para apresentação dos dados, atribuiu-se R para os adolescentes (homens), M para as adolescentes (mulheres), P para pesquisadora, seguidos de um número.

Para o processo analítico adotaram-se os conceitos e categorias da Análise Crítica do Discurso (ADC) na proposta de Norman Fairclough5. Para este estudo, toma-se como categoria central a análise da prática social procurando-se evidenciar, nos fragmentos discursivos, a estrutura operacional proposta por Thompson6.

A operacionalização da análise dos dados produzidos começou pela transcrição na íntegra das gravações dos círculos de cultura. O segundo momento concretizou-se com leitura das transcrições de forma reflexiva, fazendo grifos, sinalizando trechos, fazendo recortes de interlocuções grupais e assinalando frases-chave como forma de síntese desses trechos. A organização dos dados (recortes e grifos) foi auxiliada pelos programas Excel e MAXQDA.

No terceiro passo, foi feita uma releitura dos recortes e grifos, algumas vezes revisitando as gravações originais. Dessa forma, foram identificados os modos operacionais das ideologias e suas estratégias de construção simbólicas, além da identificação das categorias textuais que subsidiavam as categorias ideológicas. Neste estudo, foram predominantes a intertextualidade, a interdiscursividade, a presunção e a avaliação.

O projeto respeitou todos os aspectos éticos da pesquisa com seres humanos e aprovação do projeto por comitê de ética (Processo n. 2.054.302). A participação dos adolescentes foi precedida do devido esclarecimento sobre objetivos, finalidades e riscos do estudo, além dos procedimentos para minimizá-los. Todos assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (Tale). Além disso, foi assinado o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) pelos pais ou responsáveis legais dos adolescentes.

Resultados

Os resultados apontam que a sexualidade do adolescente no contexto da escola rural é atravessada por dispositivos, tais como desinformação, uso ingênuo da tecnologia; práticas discursivas binárias, tabus e preconceitos moralistas. Esses dispositivos se exacerbam no contexto rural e produzem o silenciamento sobre a sexualidade. Foram identificados discursos biologicista, biomédico e sexista que conformam práticas sociais nos contextos geograficamente pequenos e delimitados com ideologias que legitimam e naturalizam os significados da sexualidade do adolescente de forma punitiva e negativa.

A esporadicidade das ações informativas sobre a sexualidade no contexto rural é um achado deste estudo. Os adolescentes expressam a ocorrência de ações temporalmente situadas em ocasiões limitadas. Ademais, são ações que se voltam para o conteúdo de proteção e prevenção do risco referente ao fazer do corpo, como é demonstrado a seguir:

R1: Experiencia sexual como tal acá, no.

M2: El año pasado hicimos una reunión abajo que vinieron la policía y todo.

R4: Se puede decir que sí, pero ósea eso dicen que se proteja y ya nada más.

M1: Y el VIH.

R2: Òsea no no, vienen una vez al año como que no le insisten a uno a planificar, no insisten a enseñarle eso uno, como que llegan hacen lo que tienen que hacer y se van(c). [...].

(Primeiro Círculo de Cultura – Colômbia)

M: Ah senti normal, foi o ano passado, o no outro não sei (+) até uma psicóloga foi e falou sobre sexualidade, mas para mim foi normal.

P: E você lembra de algum tema específico, por exemplo, como foi abordado o tema?

M: Não.

(Primeiro Círculo de Cultura – Colômbia)

O corpo do adolescente camponês, esquecido como corpo político e multidimensional pela reiteração e pela sobreposição da dimensão biológica, constitui para os adolescentes a principal necessidade. Essa necessidade se expressa nas demandas manifestadas por eles de preencher lacunas de conhecimento sobre o fazer do corpo e a proteção dele, conforme demonstrado:

M: ... sólo nos dicen como que cuídense no tengan relaciones sexuales en tan poca edad, pero no nos, no nos (+), ósea no nos dicen más de lo normal como que no se profundiza.

(Primeiro Círculo de cultura – Colômbia)

M1: Ahh eu ia querer falar muito sobre mudança de corpo, sobre...

M4: Mudança do corpo!! Vai se mudar do corpo... ((risos))

M: ((risos, acharam engraçado)), respeita.

M1: Falar muito sobre sex também..

.R1: O que sexo?

M1: Sexo cara ...sobre como conscientemente fazer.

M2: Sexo consciente?

M: É.

R2: Informação de riscos.

M1: O que pode contrair.

M2: Remédio.

R:2 Remédios (+) é:::

M3: Você pode ficar grávida.

M1: Depois que cê faz lá sem preservativo por exemplo, você que deve tomar.

R3: As doenças...

M1: As pre...precauções.

(Primeiro Círculo de Cultura – Brasil)

Nos resultados, identificou-se a dissimulação como um modo da ideologia por meio da estratégia de eufemização, que, na análise textual, se apresenta como uma cadeia de presunções valorativas positivas da tecnologia. Ademais, a valorização positiva atribuída ao entorno virtual encontra-se no texto como avaliações particulares do desejável para estabelecer uma relação com os pares:

P: Vocês acham que esses desenhos têm a ver com a realidade de vocês, com sua cotidianidade?

M2: “Eu acho que principalmente essas que têm internet, ligado nesse meio.

M1: Tem vez que tipo assim (+) a gente fica tão distante.

M3: Em um dia, assim por exemplo, que a gente não conversa nada e quando chega em casa e fica conversando pelo WhatsApp fica horas conversando.

M1: É. “eu falo assim”, rede social encoraja muito as pessoas, “você não consegue às vezes conversar com a pessoa pessoalmente, não consegue falar muitas coisas para ela, mas por uma rede social te encoraja de todas maneiras”.

P: E por que a gente consegue ter essa coragem pelas redes?

R2: Tipo por que não tá vendo.

M3: Tipo não tá perto da pessoa.

M4: Não tá vendo o que está pensando.

R2: Pensando?

M2: “Como se tivesse no meu mais íntimo, consigo falar por exemplo para mim mesma”.T: ((Vozes sobrepostas))

M2: “Eu posso falar com a pessoa pela internet sim, aí se a pessoa a pessoas me dá um esculacho, me dê um fora, “qualquer coisa eu apago a conversa e ninguém fica sabendo, por exemplo, que ela mora distante”.

(Terceiro Círculo de Cultura – Brasil)

Os achados apontam que os contextos virtuais se legitimam como um espaço protetor de identidades em construção, pois provêm do senso de segurança e do instinto de preservação para os adolescentes. Porém, é preciso questionar o que está por trás dessas construções que sobrevalorizam a tecnologia e as ingênuas possibilidades que o ciberespaço oferece. Seria a manutenção da lógica do ocultamento dos corpos e da sexualidade, dos preconceitos, em detrimento de um verdadeiro reconhecimento de seus corpos camponeses e suas marcas históricas?

Além de um ocultamento do corpo, a internet e a mídia funcionam como veículos eficientes de informação, que seduzem com sua generalização e velocidade de circulação da informação daquilo que está fora do alcance dos adolescentes:

M2: Às vezes “(+) eu também acho” tipo a internet (+) sei lá uma amplitude total tanto de pesquisa, “você encontra basicamente qualquer coisa então você pensa que é meio que um instrutor seu tempo tudo”, então sempre você vai ter alguma coisa, a internet sempre vai vai ser minha opção.

M3: E todo é bem mais rápido talvez, parece que mesmo não sendo um tratamento particular no início que a gente estava falando, parece que tipo tá ajudando de alguma forma” porque a gente se sente como (+) sei lá.

(Terceiro Círculo de Cultura – Brasil)

Os adolescentes concentram sua perspectiva positiva na abrangência e na amplitude oferecida pela internet e pela mídia. Além disso, identificou-se uma compensação positiva ante um possível argumento negativo da generalização da informação na internet, associada às apreciações individuais (eu também acho, vai ser minha opção, a mim me parece).

A virtualidade e a mídia, e sua função expansiva de práticas e discursos, mostram-se como um ator, um ilustrador e instrutor do que é a sexualidade conforme evidenciado nos excertos:

M2: A gente descobre na televisão por exemplo (+) cê tá vendo uma novela lá, aí aí “começa a ver uma relação entre os dois” (+) cê fica oh:::aqui.

T: ((risos))

M1: Tipo assim, eu comece a descobrir a sexualidade através de novelas, eu comece a descobrir a sexualidade “através de novela que eu ouvia fazer um::::”.

M2: Você vê desde pequeno beijando lá.

(Segundo Círculo de Cultura – Brasil)

R: Yo había visto un documental, una historia basada en hechos reales, que entre el hombre y la mujer hay una diferencia que no es muy constante, pero si alcanza a ser un poco más evolutiva, que, de 100 de 100 hombres, 98 pueden llegar a ser fértiles y de mujeres 97 -96.

(Primeiro Círculo de Cultura - Colômbia)

M: Yo vi un documental, que cuando la mujer tiene el ciclo menstrual ósea tiene el periodo, hace relaciones con el hombre, el hombre puede enfermarse por la mujer tener el periodo.

(Primeiro Círculo de Cultura – Colômbia)

Além disso, a passivação do adolescente como sujeito criador e ativo nos processos educativos legitima a mídia e a tecnologia como um agente de mudanças e transformações sociais:

R1: Pues a mí me parece que en este momento la sociedad está haciendo muchas cosas por ejemplo en la televisión mi abuela se da cuenta y si tú ves las propagandas de WINNY ((marca de fraldas)), la de los pañales ya no solo aparece la mama soltera sino aparece también un papa con un hijo, como por ejemplo las propagandas de corona ya son los hijos ayudando a limpiar la loza, el papá alistando la mesa, ósea son pequeñas cosas que están haciendo un cambio.

(Terceiro Círculo de Cultura – Colômbia)

A convocação do discurso erótico e biológico em torno da educação para a sexualidade é legitimado pela estratégia de racionalização em que aspectos biológicos justificam, a priori, a incapacidade do adolescente em lidar com informações sobre a sexualidade:

M1: Es que uno no tiene como confianza con los profesores porque uno dice profe necesitamos un consejo de sexualidad entonces todo el mundo empieza “ah esta niña ya empezó “tan chiquita ya empezó a tener relaciones sexuales”.

P: ¿Y porque creen que piensan que los nosotros los adultos pensamos eso cuando nos hacen esas preguntas?

R2: Unos unos, como amargados.

M2: Porque nosotros “estamos en la edad en eso de hormonas alborotadas”.

(Primeiro Círculo de Cultura – Colômbia)

M3: Tipo, a sociedade não permite, “sua idade não permite, você não está na hora de pensar nisso.

M2: Você não está pronta para ter esse tipo de informações” tipo isso sei lá.

(Segundo Círculo de Cultura – Brasil)

M2: [...] Tipo “os pais ou algumas pessoas que evitam falar” porque acham que falando de sexo já estão mandando praticar, já pode fazer, já está na idade, já engravidou a pessoa que falou de sexo.

(Quarto Círculo de Cultura – Brasil)

A curiosidade da adolescente-mulher, a respeito da sexualidade, é atravessada por preconceitos e tabus. Esse discurso é proporcional à aquisição de saberes e conhecimento que “demoniza” a educação para a sexualidade. A análise textual revelou a intertextualidade por meio do discurso indireto (tipo os pais[...] acham que), em que as vozes dos pais aparecem como sujeitos possuidores de uma racionalidade superior aos adolescentes, ressaltando as diferenças de poder e o autoritarismo.

Outras formas instauradas para a expansão do silenciamento se relacionam aos fluxos comunicativos nesses tipos de contextos geograficamente pequenos e delimitados. Os processos de socialização da adolescência nas comunidades rurais apresentam uma produção de relações que envolvem interações próximas com sujeitos e espaços, como a escola, o serviço de saúde e a igreja, que fazem parte do modo de vida do camponês. Nesses espaços, os corpos dos adolescentes transitam e sua intimidade e sua sexualidade são mais expostas e vulneráveis ao julgamento e à punição:

P: Vocês têm um acesso aos métodos anticoncepcionais aqui em Ipoema, por exemplo, se eu preciso de uma camisinha eu posso ir tranquila comprar lá?

R1: No posto também tem.

M3: Eu acho perigoso comprar essas coisas.

M2: Porque realmente se eu vou para o posto para pegar, de aqui a três horas meu pai já vai ficar sabendo.

(Sexto Círculo de Cultura – Brasil)

Os significados sobre os diversos aspectos da sexualidade, especificamente nessas comunidades, conformam dimensões punitiva e negativa. Outro ponto que chama a atenção é como a fragmentação coexiste no nível dos grupos mais íntimos de adolescentes:

P: Aqui em Ipoema, o tema da sexualidade como é que é aqui na cidade?

R1: Em uma boa de chegar para conversar não tem isso, o povo fala mais alto quando fala ainda o povo aumenta.

R2: Aumenta muito.

P: Humm entendi.

M1: Comunidade fode isso aqui.

T: Fofoca nú!

M2: Por exemplo a gente tá na escola por exemplo, aí vai tomar palestra sobre isso e você vai faz uma pergunta, tipo considera escrota, esse trem assim, “aí, chega uma pessoa lá de dentro e já fala e espalha pela cidade assim já fala outra coisa que você tâ fazendo”.

R1 Igual, aqui é um espaço aberto para justamente conversar sobre isso, só que lá fora o povo fica pega a conversa pela metade nosso aqui, já faz sobre outra coisa, ninguém pega pá abordar o tema.

(Primeiro Círculo de Cultura – Brasil)

O tabu, visibilizado neste estudo, refere-se à palavra e à ação, inevitavelmente transformada em uma prática carregada de presunções negativas e moralistas sobre o adolescente, como um sujeito que pensa e atua sem capacidade de reflexão e de forma equivocada. Ainda, julga-se o adolescente como aquele que tem práticas sexuais que atentam contra a forma adequada de viver a sexualidade:

M1: As pessoas ter vergonha de falar agora com adolescentes.

P: E por que é tão vergonhoso?

M2: Eu acho que se a gente falar (+), está disposta a fazer.

M1: “Não e também, já tipo assim, ahh::: se você vai conversar sobre esse assunto vou tomar prioridade vou querer fazer mais.

M2: Mulher mais ainda porque já diz ahh fala bobeira então já faz... Mulher sem vergonha”.

(Primeiro Círculo de Cultura – Colômbia)

M4: Pues a mí (+) yo pregunto eso, pero no::(++).

P: ¿Qué te dicen?

R: ¿Le cambian el tema?M4: No les gustan hablar de esos temas.

P: Que te responden, dame un ejemplo que te acuerdes.

M4: Pues (++).

P: ¿Que fuiste a preguntar y que te dijeron?

M4: Pues (++).

M4: Pues, si yo pregunto esas cosas aí, pero no:::, no dicen nada.

R: Se quedan callados.

M4: No les gusta casi de hablar de esas cosas.

M: Pues yo opino que ellos creen “que, si ella ya sabe que por ejemplo que protección usar un ejemplo, ellos van a creer que ella ya va a ir a tener relaciones sexuales”, ósea ellos no lo tomen por el lado de que ella se cuide más adelante sino porque ya va a ir a tener...

(Primeiro Círculo de Cultura – Colômbia)

A professora me relata uma experiência, que teve há um ano com duas alunas que chegaram atrasadas na escola. Elas estavam em uma consulta médica de planejamento familiar. As estudantes falaram para ela que o médico teria supostamente dito que “com o Norplant” estariam protegidas contra doenças sexuais e gravidez. A professora questionou dizendo que ele não poderia ter falado isso, que não era possível, que provavelmente elas entenderam errado as informações, pois o único método que protegia contra uma doença sexual era o preservativo. Elas insistiram que o mesmo médico tinha falado, mas que ela não pensasse que se estavam consultando sobre anticoncepcionais era porque estavam transando com todo mundo. Elas só queriam planejar com anticoncepcionais. “A professora respondeu que se elas não estivessem fazendo sexo, então por que tinham tanta pressa e desejo de fazer planejamento familiar

(NC 9/02/2018).

Outros achados são os tabus em torno da virgindade no contexto rural. A palavra virgindade está submetida à experiência privada do coito e à penetração na relação sexual, exclusiva da mulher, que envolve uma relação de dominação heteronormativa entre homem-mulher.

M3: Hay hombres que simplemente se acercan a una mujer porque saben es virgen no sé qué tiene el privilegio de la.

P: ¿Por qué es tan interesante que una mujer sea virgen?

R2: Porque pues yo he escuchado que dicen que “ya no están usadas, que como recién salidas de fábrica”, dijeron por hay.

M4: La virginidad de una mujer, pero ellos les interesa el privilegio que uno sea virgen.

M3: Pues que la verdad “ellos le ven a uno la virginidad como un trofeo para ellos”.

M4: El niño que se coma una niña...bueno que se dice comer que se coma una niña virgen mejor dicho es un héroe.[...]

R: Superior, es como si la estrenara.R: Darle al peluche (d).

R3: Porque para las mujeres, quien le quito la virginidad es porque le tuvo confianza, porque todo...entonces va ser como su primer hombre si.[...]

M2: Como ese primer amor que a uno nunca se le olvida de verdad, como esa que a uno”...

(Primeiro Círculo de Cultura – Colômbia)

No fragmento podemos identificar uma interdiscursividade expressa na “coisificação” do corpo da mulher, referindo-se a sua utilidade e sua qualidade e à hierarquia sexual do homem sobre a mulher, bem como o discurso romântico e idealista sobre a sexualidade.

Considerando que os mitos e tabus reforçam o padrão sexual e a cultura de uma determinada população, e que podem contribuir para o silenciamento de um grupo, existe um apagamento de outros gêneros na sociedade.

Discussão

Os achados do estudo apontam que o discurso biológico se entremeia com os discursos biomédico e de risco reforçando a perspectiva curativa, corretiva e disciplinária sobre a sexualidade. Assim, mantêm-se naturalizados o significado e a concepção da educação para a sexualidade, com práticas discursivas que informam a nominalização do processo educativo como sendo de proteção e cuidado nas relações sexuais. Os resultados ilustram a ocorrência esporádica de ações educativas para a sexualidade culminando com informações restritas e limitadas sobre o uso de métodos contraceptivos e doenças sexualmente transmissíveis. Esses achados coadunam com outros estudos7,8.

A carência e a precariedade na abordagem e nas informações oferecidas aos adolescentes camponeses transformam-se em uma necessidade sentida pela população9,10.

As lacunas e os desafios que apresentam esses modelos biológico e biomédico, em termos de efetividade nas comunidades rurais, se relacionam com as experiências de pais de família e professores e a falta de subsídios, tanto de informações técnico-científicas11 como de estratégias pedagógicas democráticas, para abordar o corpo sexual na infância e na adolescência. Além disso, há o despreparo, a insegurança e os tabus como herança repressiva de nossa sociedade. Ainda, é importante destacar que a padronização dos corpos é um elemento presente no contexto rural de forma singular na escola da Colômbia.

O adolescente camponês, no processo de construção de identidade e de reconhecimento de seu corpo e sua sexualidade, utiliza a tecnologia como forma de acesso à informação, bem como as conversas informais10. A tecnologia como parte dos modos de vida do adolescente camponês na atualidade traz um senso de conforto e abertura a temas relacionados com o corpo e o sexo. Contudo, carrega lógicas da globalização e do capitalismo que precisam ser problematizadas.

A tecnologia (internet, redes sociais e TV), como dispositivo social, interfere no sistema cultural, na construção de relações sociais e nas aquisições de saberes sobre a sexualidade dos adolescentes camponeses. Além de operacionalizar modos e estratégias que convocam o silenciamento como norma simbólica do corpo e da educação na sexualidade. Ademais, a tecnologia é relacionada a umas aparentes autonomia, confidencialidade e confiança, que representam um ocultamento do corpo e da identidade.

Os achados demonstram que o desdobramento “ilimitado” de informações da internet sobre a sexualidade dilui e apaga as especificidades e as necessidades de educação para a sexualidade na realidade do contexto rural. Dessa forma, a tecnologia e a mídia funcionam como dispositivos de invasão cultural que, mediante um processo de homogeneização espacial e social, subordina o pólo rural12 e oferece um falso senso de igualdade, justamente pelo fato de esse espaço colocar o corpo com sua especificidade e o contexto histórico entre parênteses11.

A análise textual reflete uma interdiscursividade projetada pela mídia, convocando o discurso heteronormativo e o discurso comportamental e biológico da sexualidade. Além disso, evidenciam as crianças e os adolescentes como consumidores passivos receptores, e seus corpos como alvo e objeto de uma erotização da sexualidade por meio da mídia13.

O adolescente torna-se um espectador e receptor de experiências e informações, algumas distantes de sua realidade. Esse modo de posicionar o adolescente adormece a consciência crítica, limitando a sua possibilidade de interpretar os problemas e formar-se como um sujeito com engajamento sociopolítico14. E ainda contribui para sustentar a consciência intransitiva ou ingênua, reforçando, nas palavras de Freire, aquilo que “escapa-lhes a apreensão de problemas que se situam além de suas esfera biológica, vital e por isso não são capazes para o compromisso histórico”15 (p. 60).

Pode-se afirmar que a mídia e a internet alienam com as mesmas características da educação bancária discutida por Freire, na qual prevalece a sonoridade da palavra e não sua força transformadora. A tecnologia, como dispositivo expansivo da sonoridade da palavra sexualidade em um mundo globalizado, “enche” os adolescentes dos contextos rurais de discursos e conteúdos que são retalhos da realidade, desconectados da totalidade em que se engendram15. Essa visão ganha significação silenciando as singularidades de sua comunidade e a problematização da realidade.

Os achados sinalizam que existe uma articulação intrínseca entre gênero e educação que se dá além da família. Nesse contexto, a escola engloba um complexo de tensões, forças e processos que implicam os sistemas de valores e culturas representados pela mídia, internet, literatura, cinema, entre outros13. Nesse complexo, crianças e adolescentes aprendem, se constroem e se reconhecem dentro de um grupo e uma sociedade como homem ou mulher.

Há uma demarcação da ideologia sexista e binária (homem, mulher) e o silenciamento como prática hegemônica, dado que essas restrições se apresentam de maneira desigual entre os gêneros. É a mulher, a menina, a moça que não pode e não deve ser exposta a esse tipo de saber e conhecimento. Isso pode ser observado quando a maioria das ocorrências das falas, nos grupos focais, que manifestam as restrições e o ocultamento da sexualidade, é “das” adolescentes.

Há que se considerar que as opções de acesso a diferentes bens e serviços são restritos a um só local. Isso leva a tensões nas relações entre o adolescente e sua comunidade, pois a sexualidade do adolescente é monitorada mais intensamente e dilui as fronteiras entre o público e o privado. Especialmente nos contextos de forte tradição religiosa, como os cenários do estudo, essa perspectiva parece influir nos discursos sobre a sexualidade.

Os tabus em torno da sexualidade são dispositivos sociais e históricos que contribuem para efetivar e manter as práticas silenciadoras na sociedade. Entende-se que o tabu designa um veto relacionado a todos os mecanismos sociais de obediência e de comportamentos “perigosos ou imorais”, que estão fora da norma. O tabu gera uma marginalização ou um senso de aparente “proteção” do corpo16.

O direito de falar e o tabu sobre a sexualidade são ainda mais opressores e silenciadores para as mulheres, reprimidas pelos valores da família tradicional camponesa e pela moral católica10. Nos discursos, identifica-se o modo de racionalização, em que se justifica a restrição do acesso a informações sobre a sexualidade devido às atribuições do corpo do adolescente, como um objeto que aciona e verbaliza as informações sobre sexualidade sem ter a capacidade refletiva antes e depois da ação.

Nessa perspectiva, a palavra sexualidade é reduzida da práxis a uma ação apenas focada na funcionalidade de risco das relações sexuais e da gravidez. Paulo Freire nos ajuda a analisar tal assertiva quando “denuncia as diversas facetas da palavra que mantêm o sujeito mudo e sob o jugo da opressão e da cultura do silêncio. O contexto da palavra é a desconfiança na capacidade de “pensar certo, de querer e de saber”15 (p. 26).

O discurso reflete como o status social da adolescente é relacionado com a posse do corpo do outro, sem questionar a naturalização desse controle que culmina em relacionamentos abusivos e violentos17. Ademais, reforçam a ideia de que a manutenção da virgindade é uma referência clara à estreita associação da sexualidade das moças18 e o romance/amor, por contraponto ao prazer e à vitória dos rapazes.

Os resultados convergem com o estudo de Martins et al.19 sendo os tabus relacionados com menstruação, virgindade e gravidez, os mais predominantes. Ressalta-se que são temas que atingem e ferem diretamente o corpo da mulher. Esses tabus se configuram para conter aquilo privado e íntimo, por meio do medo e da vergonha sobre práticas e palavras que “transgridem” a ordem social e moral do corpo e suas práticas corpóreas na esfera social da sexualidade. Assim, o tabu funciona como uma estratégia de controle e regulação daquilo que “pode ser falado”, instaurando limites que desestimulam a curiosidade e passivam aqueles discursos que fogem da normatividade da sexualidade, mas que fazem parte da realidade.

Vale ressaltar que o espaço da escola é um ambiente potencial para tratar da sexualidade de forma democrática e compreensiva. Especialmente para adolescentes rurais, esse é o principal espaço que funciona como fonte de orientação20, diferindo-se das meras informações obtidas pelas tecnologias digitais. Assim, há que se valorizar a escola como um importante mecanismo para superar os silenciamentos produzidos sobre a sexualidade dos adolescentes no contexto rural.

Considerações finais

Os resultados do estudo integram elementos novos que subsidiam a compreensão do processo do silenciamento como prática social, que se afirma como uma multimodalidade operacional da ideologia do corpo e corresponde à complexidade do contexto rural e às construções simbólicas da sexualidade.

O silenciamento é baseado em uma vulnerabilidade corpórea e social que faz parte dos modos de vida dos adolescentes rurais, que são configurados por práticas e relações sociais ambíguas entre o rural e o urbano, entre o conservadorismo e a globalização, entre identidades híbridas e conservadoras. Esses modos de vida são, porém, marcados pela subordinação dentro do processo de produção das relações sociais, sexuais e afetivas que são estabelecidas dentro do modelo ideológico hegemônico da sociedade.

O corpo do adolescente rural é retratado na sua dimensão reprodutiva e biológica. Os discursos sobre sexualidade são produzidos, distribuídos e reforçados pela escola, pela tecnologia, pela família e pela comunidade por meio das perspectivas biomédica, com enfoque de risco, biológica e erótica. Esses discursos compõem as práticas sociais sobre a sexualidade no contexto da escola rural com influências sociais, econômicas, culturais e políticas.

Há possiblidades de ruptura do silenciamento, das ideologias dominantes, e de mudança de um ato esporádico, bancário e determinista para uma prática educativa crítica e democrática da sexualidade, orientada pelo referencial de Paulo Freire em que o lúdico foi representativo, sendo os adolescentes protagonistas do processo.

Para fraturar o posicionamento simbólico do silêncio, inserido no contexto da escola rural e apropriado pelos adolescentes, deve-se propiciar ações educativas baseadas teórica e metodologicamente no dialogo crítico reflexivo, na exploração e na compreensão da sua cultura e da realidade. Um diálogo que permita a expressão subjetiva da sexualidade, e considerar que há diversas experiências do corpo do adolescente no contexto rural e reconhecê-las no cotidiano, permitirá quebrar dinâmicas violentas sutis apresentadas na escola.

Agradecimentos

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo financiamento da Bolsa de Doutorado.

Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais pelo apoio financeiro.

  • (c)
    Todos os fragmentos foram mantidos na transcrição literal, inclusive de idioma para preservar o universo vocabular original.
  • (d)
    Darle al peluche: expressão usada que significa transar, fazer sexo (tradução nossa).
    Contribuição das autoras

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Editado por

  • Editora
    Rosamaria Giatti Carneiro
    Editora associada
    Josefina Leonor Brown

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2021
  • Aceito
    04 Fev 2022
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