O coletivo de autores, ao comunicarem esta bela produção de tese de doutorado na qual se problematizou o cuidado ao sujeito em tratamento para tuberculose multidroga-resistente (TB-MDR), experienciando-se as redes vivas com uma usuária-cidadã, brinda-nos com um estudo de caso outro, abrindo um ponto de vista diferente sobre o que seria um “caso”. Também não se trata tão somente de “estudá-lo”, já que as reflexões partem de dentro das cenas de cuidado. Além disso, o artigo nos permite refletir sobre a própria noção de cuidado em Saúde.
Primeiro, é bom que se diga, não se menciona “estudo de caso”11 Triviños ANS. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas; 1987.
2 Meirinhos M, Osório A. O estudo de caso como estratégia de investigação em educação. Eduser Rev Educ. 2010; 2(2):49-65.-33 Yin RK. Estudo de caso. 3a ed. Porto Alegre: Bookman; 2003. no texto, ainda que haja descrições sobre a usuária-cidadã em sua busca de cuidado e enfrentando imprevistos e obstáculos que vão se impondo às relações cuidadoras, além de reflexões para se buscar representações e interpretações a fim de esclarecer sobre o que levaria alguém a interromper, ou impediria a retomada do tratamento de tuberculose (TB).
Antes de ir além, admito que a escolha de pensar a pesquisa relatada no artigo como sendo ou não estudo de caso é de minha autoria; fui inspirado pelo próprio texto, que, por outro lado, não fala em caso ou caso clínico. Aliás, começaria afirmando que o modelo tradicional do “caso clínico” existe e não existe no artigo. Existe, sim, enquanto relato técnico de uma situação real de atendimentos clínicos que foi elaborado porque gerou dúvidas ou demandou mais discussão, além de ter proporcionado algumas novidades técnicas muito interessantes44 Romaní FR. Reporte de caso y serie de casos: una aproximación para el pregrado. CIMEL. 2010; 15(1):46-51. . Mas não temos no artigo somente o que se pode chamar caso clínico, pois o texto não se restringe ao binômio diagnóstico-tratamento, base deste modelo fundador da “Biomedicina”, também citada no texto.
O que se coloca de fato em análise, ao contrário, são os encontros com os problemas da usuária-cidadã Zoe e das equipes que dela cuidam. Ao escolherem um caso de TB-MDR protagonizado por Zoe para esta pesquisa, e a estratégia investigativa “usuária-guia”55 Pessanha AG, Souza BSO, Seixas CT, Coelho KSC, Slomp H Jr, Cruz KT. Desencontros entre o cuidado instituído e as necessidades de saúde de idosa com deficiência física: ressonâncias encontradas nos serviços de saúde. Saude Redes. 2022; 8(2):223-39. como orientadora de percurso para esta produção, os autores passam a experienciar as dores e delícias – parafraseando Caetano Veloso – de se navegar com a usuária sem amarras e, ao mesmo tempo, sujeitos a marolas e ondas. A vida de Zoe daria um livro, diriam várias pessoas, talvez até a própria, o que, para a equipe de pesquisa acabou por implicar em uma rica produção de fortes analisadores que incidiram, por sua vez, na tensão entre o individual e o singular.
Não, não é mais suficiente, ao tratar da vida de Zoe, pensar em “caso” como unidade do coletivo, nem mesmo em peculiaridades de uma situação individual frente ao somatório de n indivíduos, que seria a coletividade na qual ela vive, por mais peculiar que seja sua situação individual, por mais que se possa, caso se queira, repisar o senso comum “cada caso é um caso”. Vemos, sim, uma usuária-cidadã que, por vezes acompanhada de trabalhadores da Saúde, percorre as redes institucionalizadas que oferecem atenção à sua saúde carregando consigo suas marcas interseccionais66 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial; 2020. de mulher que vive ao seu modo a pobreza, seja em sua comunidade, seja na própria rua.
Diz o artigo que Zoe, entre outros casos de TB-MDR, foi escolhida por sua história de vida e confluência de singularidades que, a cada momento, produz uma existência única, uma Zoe diferente das outras mulheres de sua época/lugar, mas também de si mesma, em outras circunstâncias que não aquelas que agora vive no buscar o cuidado para sua TB, uma existência enfim que não se compara a nenhuma outra. Além disso, por entre as redes institucionalizadas que percorria, as redes vivas iam se abrindo e acentuando ainda mais este caminhar singular que é só dela.
As equipes também vão além do caso “individual”, nos relatos, quando, por exemplo, admitem suas “angústias, frustrações, dificuldades, fragilidades, limitações e... pressões” nas discussões sobre o cuidado da usuária-cidadã. Ou seja, as singularidades desta vida apontam o tempo todo para atravessamentos que, embora não exclusivos de Zoe, agora podem ser ditos porque aquela vida está em análise e, ao dizê-los, há língua então para se falar sobre estratégias cuidadoras outras no sentido de enriquecer as caixas de ferramentas das equipes.
Os trabalhadores da Saúde que cuidavam de Zoe iam se desterritorializando aqui ou ali e se reencontrando com o “aprendizado técnico-científico” para entender o que podia este aprendizado “protocolar” enquanto repertório de tecnologias leve-duras77 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko Campos R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 71-114. e por que às vezes funcionava e outras não, como não raro acontece em casos TB-MDR. Zoe surge como a vida; ela própria colocando em análise as próprias formações profissionais, oferecendo uma oportunidade desejada e desejante de se reposicionar como “arte de ‘como cuidar’ e ‘com quem cuidar’”. A “tecnologia relacional”77 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko Campos R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 71-114. aparece então como aliada para compor a caixa de ferramentas de quem cuida e que também precisa de cuidados.
O cuidado entrou em cena. Se isso acontece, não é extinguindo o modelo “caso” e muito menos negando a “clínica” que o envolve e é envolvida, mas sim intensificando a dimensão singular do cuidar de alguém como Zoe no momento atual de sua vida, ao se levar em conta suas várias trajetórias até este momento. Cuidado não somente como qualquer prática de saúde, mas também como uma prática comprometida com valores como a integralidade e a autonomia e que depende do encontro intercessor88 Slomp H Jr, Gomes MPC, Franco TB, Merhy EE. Do olhar da espiral caleidoscópica do cuidado. Saude Soc. 2023; 32(4):e220582pt.: o vínculo e a confiança mútua com Zoe só foram possíveis porque se produziram encontros que serviram de propulsão para a corrida de obstáculos que se tinha pela frente, no que diz respeito à retomada e manutenção do tratamento da TB de Zoe.
Isso nos leva ao Projeto Terapêutico Singular, citado somente na última frase do texto, possivelmente porque não havia sido tomado como um agregado técnico a priori, mas sim, a meu ver, como caixa de ferramentas99 Slomp H Jr, Franco TB, Merhy EE. Projeto terapêutico singular como dispositivo para o cuidado compartilhado. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2022. inevitável, dadas as escolhas que iam sendo feitas no cuidado e que só foram possíveis porque as equipes se abriram para as singularidades do “caso”. Em outras palavras, abriram-se para o caso em sua multiplicidade.
Um estudo de caso mais convencional que mira o indivíduo como unidade do coletivo tem sua aplicabilidade, sem dúvida, mas, a meu ver, não daria conta de abordar, sozinho, todos os aspectos do cuidar de um caso desafiador quando nos abrimos à sua multiplicidade, pois, em situações assim, vemo-nos ali, cuidadores e pesquisadores, atuando com a usuária-cidadã, contracenando na produção da sua vida ou nos afetando com as destituições que essa vida experiencia. Penso que a pesquisadora e a equipe podem ter ido nesta direção.
E eis que, ao ler o artigo, faço-me a pergunta, talvez para mim mesmo, mas que pode ser um dos desafios para nós que nos aventuramos no trabalho em Saúde: como nos sentirmos, a cada vez, minimamente mais à vontade para dar conta de nosso papel neste teatro de multiplicidades que é o cuidar em Saúde? Pensemos. O que penso que sei é que pesquisar sobre tudo isso é experimentar invenções.
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Junior HS. Um estudo de caso outro: o teatro de multiplicidades na Saúde. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230588 https://doi.org/10.1590/interface.230588
Referências
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1Triviños ANS. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas; 1987.
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2Meirinhos M, Osório A. O estudo de caso como estratégia de investigação em educação. Eduser Rev Educ. 2010; 2(2):49-65.
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3Yin RK. Estudo de caso. 3a ed. Porto Alegre: Bookman; 2003.
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4Romaní FR. Reporte de caso y serie de casos: una aproximación para el pregrado. CIMEL. 2010; 15(1):46-51.
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5Pessanha AG, Souza BSO, Seixas CT, Coelho KSC, Slomp H Jr, Cruz KT. Desencontros entre o cuidado instituído e as necessidades de saúde de idosa com deficiência física: ressonâncias encontradas nos serviços de saúde. Saude Redes. 2022; 8(2):223-39.
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6Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo Editorial; 2020.
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7Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko Campos R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 71-114.
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8Slomp H Jr, Gomes MPC, Franco TB, Merhy EE. Do olhar da espiral caleidoscópica do cuidado. Saude Soc. 2023; 32(4):e220582pt.
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9Slomp H Jr, Franco TB, Merhy EE. Projeto terapêutico singular como dispositivo para o cuidado compartilhado. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2022.
Editado por
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Jun 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
21 Nov 2023 -
Aceito
14 Mar 2024