Open-access Internacionalização do ensino superior e cooperação educacional: o caso do pec-g na voz dos estudantes

Internationalization of higher education and educational cooperation: the pec-g from the students’s point of view

Resumos

A cooperação educacional do Brasil com a África e outros países do Sul-Global, na área da educação superior, teve início mais efetivamente na década de 1960 do século XX, por meio do Programa Estudantes - Convênio de Graduação (PEC-G) do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Este artigo tem por objetivo discutir a política de cooperação internacional na educação superior materializada nos documentos do PEC-G e na fala de estudantes, tomando-a como uma política de internacionalização do ensino superior no Brasil. A metodologia envolveu análise de documentos oficiais do programa e 14 entrevistas com estudantes de 10 países. Os resultados indicam que há grandes desafios a serem superados, especialmente no que se refere ao racismo enfrentado por estudantes africanos, no entanto, na avaliação dos estudantes, a experiência de se graduar em universidades brasileiras por meio do PEC-G tem sido muito positiva.

Palavras-chave: PEC-G; internacionalização; cooperação internacional.


The Brazilian’s educational cooperation with Africa and other countries of the Global South to higher education, started more effectively in the 1960s through the Students Program - Graduation Agreement (PEC-G) of the Ministry Foreign Affairs (MFA). This article aims to discuss the policy of international cooperation in higher education throught the oficial documents and students’s enterviews. 14 interviews with students from 10 countries were taken. The results indicate that there are major challenges to be overcome, especially regarding to racism faced by African students, however, the students evaluate the experience of graduating from Brazilian universities has been very positive.

Key words: PEC-G; internationalization; international cooperation.


1 Introdução

A cooperação educacional do Brasil com a África, América Latina e outros países do Sul-Global na área da educação superior, teve início mais efetivamente na década de 1960 do século XX, por meio do Programa Estudantes - Convênio de Graduação (PEC-G) do Ministério das Relações Exteriores (MRE), criado em 1965, para atender estudantes de países em desenvolvimento com os quais o Brasil tem acordos bilaterais. Trata-se de parceria entre o MEC (Ministério da Educação) e o MRE por intermédio da Divisão de Assuntos Educacionais do MRE (DCE). Atualmente o programa é regido pelo decreto nº 7.948/2013, do qual 59 países são signatários. O PEC-G passou a constituir-se no mais longevo dispositivo de cooperação internacional na área da educação superior.

Entre os anos de 2003-2015 registramos no país a ampliação da política de Cooperação Internacional do Brasil com os países do Sul-Global num claro redirecionamento da política externa levada a cabo pelo MRE. Solidariedade, horizontalidade e reciprocidade são considerados traços fundamentais desse tipo de cooperação, em contraposição a uma perspectiva baseada no mercantilismo, em relações assimétricas e desiguais entre os países, características da cooperação exercida na perspectiva Norte-Sul.

A educação está entre os três maiores setores de cooperação do Brasil, juntamente com a agricultura e a saúde (MILANI; CONCEIÇÃO; M’BUNDE, 2016). Na visão do Ministério das Relações Exteriores desse período histórico (2003-2015), a cooperação universitária internacional é um

tema fortemente ligado ao desenvolvimento econômico e social, à cooperação internacional e à promoção da convivência cultural das sociedades, permitindo à PEB [Política Externa Brasileira] agir em “pelo menos três vertentes”: 1) econômica, “ao relacionar-se diretamente à qualificação da mão de obra de um país”, interferindo no desenvolvimento econômico do mesmo e em uma melhor inserção no mercado internacional; 2) política, promovendo a “aproximação entre os estados por meio dos seus nacionais”, a partir de princípios de “solidariedade e respeito”; 3) cultural, com o estreitamento de laços baseados em valores compartilhados de “tolerância” e “compreensão mútua”, produzidos na “convivência”, no “aprendizado do idioma” e na “troca de experiências” (BARROS; NOGUEIRA, 2015, p. 118).

Este artigo tem por objetivo discutir a política de cooperação internacional na educação superior materializada nos documentos do PEC-G e na fala de estudantes tomando-a como uma política de internacionalização do ensino superior no Brasil.

A internalização do ensino superior é um fenômeno que vem sendo discutido de forma mais sistemática no Brasil na última década, como se observa nas publicações de Krawczyr (2008), Lima, Azevedo e Catani (2008), Gonçalves (2009), Azevedo (2015), Souza (2016), Luce, Fagundes e Mediel (2016), Azevedo (2016) e Maués e Bastos (2017), por exemplo. Uma das referências para esses estudos são as pesquisas da canadense Jane Knight (2004; 2008; 2010; 2011; 2018), considerada pioneira na investigação do fenômeno da internacionalização da universidade. A autora destaca diferentes elementos envolvidos no processo de internalização, dentre eles: mobilidade acadêmica de estudantes e professores, a existência de redes, associações e projetos internacionais de pesquisa e formação, a transmissão da educação para outros países por meio de franquias/agências, a inclusão de uma dimensão internacional /intercultural/ e/ou global no currículo e no processo de ensino-aprendizagem.

Por outro lado, Knight (2011) contribui para uma visão crítica do fenômeno quando identifica e discute os cinco mitos que envolvem a internalização, destacando, dentre outros aspectos, que a mera presença de estudantes estrangeiros no campi assim como a assinatura de um grande volume de convênios, por si só, não garantem o processo de internacionalização. Desse modo, abre-se uma perspectiva de pesquisa que busque compreender as políticas em suas dimensões micro, analisando os sujeitos envolvidos para que se tenha de fato uma compreensão mais efetiva do chamado processo de internacionalização, uma vez que é no cotidiano das instituições que esse processo se concretiza.

O foco deste estudo é de natureza micro, atendo-se às narrativas de alunos que vivenciaram a experiencia de internacionalização num programa específico e não apenas na análise de traços da política pública. Consideramos, assim como Sena et al. (2014), que a maior parte dos trabalhos sobre internacionalização da educação superior preocupa-se em caracterizar os processos de internacionalização das instituições de ensino em inúmeros países ao redor do mundo, visando identificar padrões de internacionalização. Entretanto, pouco exploram as especificidades desses processos buscando compreender as experiências dos sujeitos envolvidos. O texto está organizado em quatro seções, além desta introdução. Na primeira, apresentamos a metodologia da pesquisa; na segunda, discutimos o PEC-G como uma política pública de internacionalização da universidade. Na terceira, dialogamos com entrevistas de estudantes de duas universidades federais vinculados ao programa. Por fim, tecemos algumas considerações indicando perspectivas para pesquisas futuras.

2 Metodologia

A produção de dados envolveu o trabalho de pesquisa qualitativa a partir de diferentes fontes, desde as oficiais, disponibilizadas pelo Ministério das Relações Exteriores, até as entrevistas com estudantes. Os dados oficiais incluem a análise do mais recente Decreto 7.948/2013 promulgado no Governo de Dilma Rousseff, um conjunto de dados quantitativos enviados pelo Ministério das Relações Exteriores e o edital de seleção para o ano de 2019.

O objetivo de pesquisas qualitativas não é a generalização dos resultados e sim o “aprofundamento, a abrangência e a diversidade no processo de compreensão, seja de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma política ou de uma representação” (MINAYO, 2007, p. 197). Desse modo, os sujeitos da pesquisa foram selecionados a partir do critério da acessibilidade considerando-se a relevância para o objetivo do estudo, qual seja: compreender o PEC-G como uma política pública de internacionalização da universidade a partir de documentos oficiais e dos sentidos atribuídos por estudantes de duas universidades à sua experiencia no Brasil.

Foram realizadas 14 entrevistas semi-estruturadas com alunos de 10 países vinculados a diferentes cursos de duas instituições federais em Minas Gerais, oriundos dos três continentes: África, América Latina e Ásia. O principal objetivo foi compreender os sentidos atribuídos à experiência de estudar numa instituição brasileira, as principais motivações na escolha do Brasil e os principais desafios enfrentados. As entrevistas foram conduzidas em língua portuguesa, após a assinatura de cada estudante do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, exigência do comitê de ética. As línguas oficiais de seus países incluem além da Língua Portuguesa, o Francês, o Espanhol e o Inglês. O acesso aos estudantes se deu por intermédio das assessorias internacionais das duas instituições e da pró-reitora de ensino de uma delas. Pedimos que nos enviassem o contato de todos os estudantes estrangeiros vinculados ao PEC-G. Após contato por e-mail, marcamos as entrevistas com aqueles que deram retorno (em torno de 80%).

Com duração em média de 60 minutos, as entrevistas foram realizadas nos campi das universidades, gravadas em áudio e transcritas na íntegra, eliminando-se apenas algumas marcas que pudessem comprometer os sentidos atribuídos pelos estudantes, uma vez que alguns entrevistados não eram totalmente fluentes na Língua Portuguesa naquele momento. A partir desses dados construímos um perfil sociocultural do grupo, o que nos permitiu uma visão panorâmica das singularidades e diferenças entre os sujeitos, contribuindo para uma atitude mais compreensiva das entrevistas.

Ao discutir a entrevista de pesquisa Bourdieu aponta elementos que devem ser considerados no sentido de minimizar a violência simbólica própria desse processo interacional. Por mais que se tente evitar, afirma o sociólogo, todo tipo de distorção atravessa as relações de pesquisa e, por isso, é preciso atenção a tais distorções e tentar dominá-las (sendo impossível anulá-las) por meio de uma “reflexividade reflexa”, “esforçando-se para fazer um uso reflexivo dos conhecimentos adquiridos da ciência social para controlar os efeitos da própria pesquisa” (BOURDIEU, 2003, p. 694).

Todos os estudantes estavam muito interessados em serem ouvidos, em expressarem sua voz, e aceitaram prontamente o convite que lhes foi feito, mediado pelas assessorias internacionais das duas instituições. As entrevistas foram realizadas no ambiente da universidade para facilitar o deslocamento dos mesmos. Buscando uma relação mais dialógica e de sentido (BAKHTIN, 1995), deixamo-los à vontade ao responderem as perguntas, evitando ao máximo interromper suas narrativas, que, por vezes, nos levavam a assuntos sequer pensados no roteiro original, como, por exemplo, informações sobre conflitos linguísticos e políticos em seus países e a própria questão do racismo no Brasil, amplamente tratada por alguns deles e por nós discutida brevemente neste texto.

A partir dos dados transcritos, buscamos estabelecer um perfil de cada estudante. A imersão no conjunto das entrevistas possibilitou-nos uma interpretação dos pontos mais relevantes ali expressados que indicavam o modo como os estudantes apropriam-se do ambiente acadêmico, as justificativas para a escolha do Brasil, do curso, os desafios enfrentados, a avaliação que fazem da política do PEC-G e suas expectativas com a conclusão da graduação.

3 O PEC-G como uma política de internacionalização do ensino superior

O MRE só apresenta dados consolidados do PEC-G a partir do ano de 2000. Isso significa que o governo brasileiro não acompanhou sistematicamente o programa durante os 45 anos de seu funcionamento no século XX. Uma análise da base de dados existente indica que Cabo-Verde é o país que mais enviou estudantes nestes 10 anos (3.169), em segundo lugar, Guiné-Bissau (1.416), em terceiro, o Paraguai (790). Desde o início do século XXI, um total de 10.670 estudantes beneficiaram-se desta política externa (BRASIL, 2019).

No entanto, mesmo sendo o PEC-G o programa que mais recebe estudantes estrangeiros nas universidades brasileiras, não tem atraído grande interesse dos pesquisadores analisando-o como uma política de internacionalização do ensino superior. Estudo realizado por Morosine e Nascimento (2017), com base em teses e dissertações no período de 2011 a 2014, indica não apenas a baixa produção da pesquisa sobre a internacionalização da universidade brasileira (um total de 11 dissertações e 12 teses), como a ausência de qualquer estudo focado no PEC-G como uma política de internacionalização, sendo a maioria estudos realizados em programas da área de administração. Apenas seis pesquisas (26%) advém da área da educação. Em levantamento no banco de teses e dissertações da CAPES, utilizando-se a expressão chave “Programa Estudante Convênio de Graduação” constatamos a baixa quantidade de pesquisas e nenhuma delas referia-se ao programa como uma política de Estado voltada à “internacionalização em casa”.

O conceito de internacionalização em casa vem sendo cada vez mais explorado nas pesquisas:

conforme indicam de Wit et al. (2015, p. 54), se refere às ações desenvolvidas no próprio país do estudante ou do docente e envolve o currículo, o processo de ensino e aprendizagem, além dos diplomas conjuntos e duplos. Hugonnier (2006), por sua vez, a chama de internacionalização interna, considerando que o viés internacional está cada vez mais presente nos programas acadêmicos, além de se desenvolver por meio da presença cada vez maior de professores e estudantes estrangeiros em instituições nacionais. Este autor salienta que a presença regular dessas pessoas pode influenciar as atitudes e os saberes que circulam nas instituições, conferindo, assim, um aspecto internacional (MAUÊS; BASTOS, 2017, p. 336).

Assim, consideramos que há no PEC-G elementos que configuram um processo efetivo de internacionalização em casa. O primeiro e mais importante é o volume de estudantes estrangeiros que adentram nossas instituições todos os anos. Oriundos de diferentes continentes e países, falando diferentes línguas, marcados por diferenças socioculturais e econômicas, a presença desses estudantes no meio acadêmico pode despertar um processo de troca cultural espontâneo ou fomentado pelas instituições, materializando, assim, um dos objetivos a serem alcançados com a internacionalização.

Outro elemento igualmente relevante é a internacionalização que se dá por meio da apropriação do conhecimento científico e a aquisição de um diploma em língua portuguesa do Brasil que poderá causar forte impacto na carreira profissional com o retorno do estudante a seu país de origem. Como esperado pelo MRE, a internacionalização da universidade por meio da educação superior possibilita a qualificação da mão de obra de um país contribuindo para seu desenvolvimento1, uma aproximação entre os Estados Nacionais partícipes desses acordos de cooperação e o estreitamento de laços baseados em valores compartilhados de tolerância, respeito e compreensão mútua.

O edital de 2019 para seleção de alunos do PEC-G apresenta as seguintes condições para a submissão de uma candidatura:

a) Nacional e residente dos países indicados no item 8 deste Edital, que não seja portador de visto permanente ou de qualquer outro tipo de visto temporário para o Brasil; b) Que tenha 18 anos completos até 31 de dezembro de 2018 e, preferencialmente, até 23 anos completos na mesma data; c) Que apresente Termo de Responsabilidade Financeira, por meio do qual seu responsável financeiro afirme dispor de um mínimo equivalente a US$ 400,00 (quatrocentos dólares norte-americanos) mensais para custear as despesas com subsistência no Brasil durante o curso de graduação; d) Que firme Termo de Compromisso em que se obrigue a cumprir as regras do PEC-G; e) Que tenha cursado o ensino médio (secundário ou equivalente), em sua totalidade, fora do Brasil; f) Que apresente o Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros - Celpe-Bras. 3.1.1. (BRASIL, 2019, p. 1-2)

Além dessas exigências, caso selecionado, o estudante não poderá participar ativamente da vida política nacional e deverá retornar a seu país de origem em até três meses após a conclusão do curso. Por isso, o diploma é entregue pela embaixada e não pela universidade.

Observa-se nos critérios acima, e no próprio Decreto, que não há contrapartida explícita a ser exigida dos países participantes do PEC-G para que enviem seus estudantes. As vagas a eles destinadas, disponibilizadas pelas universidades, são oferecidas gratuitamente, e, em muitos casos, as próprias universidades proveem assistência estudantil àqueles que têm menos condições de arcar com suas despesas, como observamos nas duas instituições participantes desta pesquisa.

Leal e Morais (2018) afirmam que para compreender o PEC-G a partir da ótica da Cooperação Sul-Sul (CSS) é importante compreender a lógica que constitui a política externa brasileira. Afirmam que

a despeito da ênfase dada pelo Brasil a uma CSS pautada na solidariedade, o país sempre defendeu tratamento diferenciado nos fóruns multilaterais. A ênfase do discurso na busca pela simetria com países do Sul, dessa forma, não pode ser aceita acriticamente. Como Visentini (2010) argumenta, o Brasil enxerga as potencialidades da África não somente do ponto de vista econômico, mas também político. Assim, seus objetivos no continente são de médio e longo prazo […]. Concluiu-se que, a despeito da nítida ascensão do PEC-G em um sentido cooperativo, o excesso de condicionalidades impostas e a exclusividade do governo brasileiro no estabelecimento da agenda tornam o programa, Política externa brasileira, cooperação Sul-Sul e Educação Superior demasiadamente restritivo e seletivo, o que o distancia da sua configuração como modalidade de CSS (p. 355-356).

Numa perspectiva diferente da apontada por Leal e Morais (2018), observamos que os elementos aqui elencados indicam claramente uma relação de cooperação Sul-Sul, se compreendemos a cooperação como um processo que envolve interesses mútuos, porém não neutro e, portanto, permeado por relações de poder. A cooperação SUL-SUL não implica solidariedade sem contrapartida nem se trata de uma relação totalmente simétrica. É a abertura de uma janela alternativa de negociações com maior capacidade de desenvolvimento econômico e estreitamento de laços diplomáticos. Assim, o fato de o Brasil abrir as universidades públicas sem que os estudantes estrangeiros tenham de pagar por isso, como se observa nos países do eixo-norte, é um forte indício de uma política de relação internacional no âmbito da educação superior em que o conhecimento é utilizado estrategicamente com vistas a um estreitamento nas relações de troca entre os países que possuem interesses afins. Além do mais, a única condição claramente imposta é que o país mantenha um acordo de cooperação internacional com o Brasil.

O interesse do Brasil em estabelecer relações com países do eixo Sul, redirecionando sua política externa, pode ser visto como parte de processo de cooperação internacional que busca a parceria com países que estão na mesma condição de desigualdade socioeconômica, buscando, assim, romper com a lógica colonial (FANON, 2008; ESCOBAR, 1995; MEMMI, 2016; QUIJANO, 2005) que tem marcado a relação entre os países ricos e aqueles da periferia do sistema capitalista.

Não observamos um excesso de condicionalidades impostas pelo PEC-G, diferentemente do afirmado Por Leal e Morais (2018). Ao contrário, os estudantes devem cumprir com elementos formais próprios de qualquer processo seletivo, processo esse realizado pelas embaixadas em seus países de origem e não pelo governo brasileiro. Os estudantes escolhem os cursos, embora não possam escolher as universidades, apenas as indicam. Podem concorrer a bolsas ou à assistência estudantil sem qualquer restrição, muitos deles recebem benefícios das suas instituições, além de estarem aptos a concorrer a uma bolsa de estudos do PROMISAES (Projeto Milton Santos de Acesso ao Ensino Superior). Devem ser aprovados no CELPE-Bras (prova de proficiência em língua portuguesa do Brasil) e assinarem um termo de compromisso em arcar com os custos de sua estadia no país.

4 O PEC-G na voz dos estudantes

Nesta seção apresentamos o que dizem os estudantes sobre a experiência de estudar no Brasil por meio desse programa. O quadro a seguir apresenta elementos do perfil do grupo considerando-se país, língua oficial, curso frequentado e instituição.

Observa-se que todos os estudantes frequentam cursos mais elitizados, mais valorizados pela sociedade, os que agregam um maior capital simbólico (BOURDIEU, 1989) e possibilidades de maior retorno financeiro, conforme justificativa de um deles: “mais retorno financeiro lá, muito muito dinheiro. Os mais pagos lá são Engenheiro de Minas, de Petróleo, os outros se viram por aí” (Samba, Camarões).

Embora em sua maioria os alunos venham de famílias com baixa e média escolarização (57%), constituindo-se na primeira geração que tem acesso ao ensino superior, é significativa a quantidade que têm pais que concluíram o ensino superior (43%), sendo dois deles filhos de pais que concluíram o mestrado. Registramos que apenas um dos estudantes tem pais que não frequentaram a escola, três têm pais que concluíram o ensino fundamental e quatro são filhos de pais que cursaram o ensino médio, indicando que a maioria não pertence às camadas mais excluídas da população.

Quadro 1
Perfil dos estudantes

Um traço comum aos estudantes de países africanos é o multilinguismo. Todos falam duas ou mais línguas, além das línguas coloniais francês, português, inglês, oficiais em seus países. Dentre as línguas citadas temos o Twi, em Gana, Fubé e Guiziga, em Camarões, Ngala, no Congo, Tétun, no Timor Leste, Crioulo em Guiné-Bissau e Cabo Verde.

A maior parte afirma ter conhecido o PEC-G a partir de amigos que já frequentaram ou estavam no Brasil, familiares que já passaram pelo programa, e não por fontes oficiais, como a Embaixada do Brasil nesses países: “o Brasil [...] eu passava férias com a minha família” (Lívia, Chile); “Eu fiquei sabendo do PEC-G por intermédio de uma amiga que já tá no Brasil” (Laura, Congo); “Minha irmã já estudou no PEC-G” (Joaquim, Cabo Verde).

Apenas um dos estudantes indicou ter conhecido o PEC-G por fontes oficiais:

Eu sou estudante do Centro Cultural Brasileiro lá em Guiné Bissau, que tem na embaixada lá, aí tem tipo assim, aula de português, comunicação e expressão, cultura brasileira. [...] então eu costumava a passar lá no quadro da informação pra ver o que que tem lá (Herman, Guiné Bissau).

As falas indicam que Portugal é, juntamente com o Brasil, as duas opções entre os Africanos de países lusófonos, entretanto, o fato de o PEC-G ser um programa sem custos foi decisivo na escolha do Brasil:

Na verdade, meus pais queriam que eu fosse estudar, a primeira opção foi Portugal, só que aí eu não quis muito ir pra lá e depois a faculdade não é federal aí você tem que pagar a faculdade e assim é mais gasto e tudo mais e era a opção que eu tinha. Aí eu resolvi escolher o Brasil mesmo” (Jéssica, Cabo Verde).

Conversamos e a gente viu que seria mais viável vir para o Brasil pois medicina aqui [a estudante só conseguiu vaga em bioquímica] em comparação com Portugal seria mais barato” (Márcia, São Tomé e Príncipe).

Os estudantes africanos, em sua maioria, afirmam receber benefícios do governo brasileiro desde bolsas de pesquisa, auxílio financeiro para a alimentação, moradia estudantil, em alguns casos, indicando que a ajuda financeira da família se dá apenas no início do curso, e à medida em que podem concorrer às bolsas disponibilizadas pelo governo brasileiro, passam a não depender mais dos pais.

Tive o apoio dessa bolsa [de pesquisa] me ajudando e também tem a bolsa PROMISAES que a gente tem direito. Eu consegui algumas vezes [...] então com essa pesquisa e com a bolsa, sim, eu consegui me sustentar (John, Gana).

Porque aqui eu pessoalmente, eu não passo dificuldades financeiras, porque eu já tenho alojamento, não pago aluguel, então um problema a menos, e aí, de vez em quando a gente presta [concorre] a bolsa, a bolsa a gente ganha PROMISAES e basicamente, não tenho outra preocupação. O que a gente precisa o governo já dá. Porque imagina que, de uns 10 ou 11 alunos do PEC-G aqui, e uns 8 aqui nesse campus, tem, quase totalmente, todos moram lá na universidade, todos conseguiram vaga, e também são bolsistas da PROMISAES (Herman, Guiné-Bissau).

Eu passei alguns apertos, a universidade ajudou, tipo assim, eu recebia os direitos como os outros estudantes [os brasileiros], eu tinha uma bolsa alimentação e agora tô na moradia da universidade (Laura, Congo).

Um dos documentos exigidos pelo PEC-G é a assinatura de um termo de compromisso com os custos da estadia no Brasil. Entretanto, como se evidencia nas falas acima, eles contam com diferentes fontes de financiamento e ajuda de custos do governo brasileiro, o que para os africanos é fundamental na garantia de permanência no curso.

A escolha do Brasil deu-se por vários motivos, dentre eles por já ter visitado o país, a expertise na área de estudo, o reconhecimento internacional das instituições, o custo de vida mais baixo em relação a Portugal (no caso dos Africanos), empatia com traços da cultura divulgados mundialmente como o futebol e a música, o clima, ter estudado sobre o Brasil e a América Latina na escola, dentre outros.

As falas evidenciam o peso do fator econômico na escolha pelo Brasil, uma vez que nossas universidades são públicas, não cobram quaisquer tipos de taxas, diferentemente das universidades europeias e americanas e ainda oferece auxílio financeiro por meio de bolsas àqueles que comprovam essa necessidade, conforme constatamos nas duas instituições. Esse elemento indica que o PEC-G é um programa de cooperação internacional que tem o potencial de contribuir para o desenvolvimento dos países parceiros do Sul-Global, muitos deles em situação econômica desfavorável em relação ao Brasil.

Soma-se ao fator econômico o peso que um diploma adquirido no Brasil pode ter na contribuição para o desenvolvimento do seu país de origem, em função da qualidade e reputação que algumas áreas tem em nível internacional, segundo a fala dos estudantes de Engenharia Agronômica, Civil e de Medicina. A área da agricultura é conhecida internacionalmente e é uma das três áreas de maior investimento na política de cooperação internacional:

Olha, é porque o Brasil tem, a nível internacional, Brasil se vê tipo, um nível principal, alto, está entre os principais países a nível mundial em agricultura e no caso o meu curso é agronomia então era a melhor opção que eu tinha (Nilson, Honduras).

O Brasil é um dos grandes pilares da agropecuária e eu já tava analisando a questão de ou ir pra Portugal ou vir pro Brasil aí eu confesso que nunca queria ir pra Portugal, sempre quis vir pro Brasil exatamente pela questão do meu curso (Joaquim, Cabo Verde).

Eu comecei a pesquisar [...] um país de engenharia civil, que fosse muito bom. Eu tinha um monte de países de engenharia civil, tinha o Brasil, a Rússia, os Estados Unidos, o Japão e tal. (...) o Brasil que eu consegui o visto primeiro (Laura, Congo).

Lá no Peru, os médicos, a maioria fala que no Brasil a medicina aqui é muito boa, então eles fazem graduação lá no Peru e depois a especialização quase a maioria vem aqui para o Brasil (Nádia, Peru).

Há também os que indicam a escolha com base em traços culturais do país divulgados mundialmente, como o futebol e a música, por ter estudado sobre o Brasil na escola, em função do clima, dentre outros:

A opção primeira era o Brasil, independente da universidade [...]. Eu gosto de Brasil, eu escolhi Brasil porque o Brasil é assim os jogadores mais famosos do mundo, os cantores também (Mário, Timor Leste).

A gente estuda América Latina e o país que a gente estudou mais foi o Brasil, então já antes de eu chegar, eu sabia do Brasil, da moeda, da capital, da cidade, de um pouco da cultura daqui (Laura, Congo).

As pessoas saem muito do meu país pra estudar fora, tinha a opção de Taiwan, tinha a opção de Portugal, tinha Tunísia também, Inglaterra [...] o curso que eu queria fazer era engenharia agronômica ou alguma coisa ou engenharia civil, mas só que existe uma coisa que é a temperatura, o clima daqui é praticamente o mesmo para o meu país (Marisa, São Tomé e Príncipe).

O elemento cultural aparece nas entrevistas não apenas em relação à opção pelo Brasil mas também gerando tensões na interação com os brasileiros dentro e fora da universidade, como por exemplo na questão do racismo, a ser discutida mais à frente.

Sobre as possibilidades de carreira profissional após a conclusão do curso, os estudantes apresentam diferentes perspectivas a depender da situação política e econômica de seu país e da situação familiar. Os da Guiné Bissau e de Camarões pretendem decidir levando em conta a situação política de seus países, como se evidencia nas falas abaixo:

Pra trabalhar eu sempre penso, prioridade é lá mesmo eu, tipo assim, se eu formar e der vontade de voltar, eu vou fazer alguma coisa pro meu país. Se eu também ficar fora, eu vou ter uma vantagem porque vou conseguir acumular experiência internacional e voltar lá pro meu país, criar alguma coisa que eu acho que não tem, porque por experiência internacional ajuda muito porque o desenvolvimento (Herman, Guiné Bissau).

Porque questão de oportunidade né, porque se tiver, eu voltarei, claro. Mas falta oportunidade né, porque meu país é um pouco difícil, porque com essa coisa de corrupção, não é fácil conseguir emprego assim [...] o que tá rolando lá no meu país, hoje em dia, a questão política, e aí a coisa ficou feia. Então a esperança que eu tinha né, formar logo e voltar, e aí, quase ficou como página [virada], acabou [...] é mais fácil pra mim ir pro Canadá e ficar lá um pouquinho (Samba, Camarões).

Os estudantes de São Tomé e Príncipe, diferentemente, recebem uma ajuda de custos do seu país, por isso mesmo, são os que indicam claramente o compromisso com a volta e a atuação no desenvolvimento do país, aplicando os conhecimentos adquiridos no Brasil.

O governo já pagou dinheiro, a nação já pagou dinheiro então tem que pensar estudar e depois desenvolver o país (Vívian, São Tomé e Príncipe).

Quando a gente chega lá é muito importante e aplicar lá o que eu sei do curso pra desenvolver, pra ajudar o governo porque o governo ajuda a gente e a gente tem que ajudar (Joaquim, São Tomé e Príncipe).

Há a expectativa de se aplicar experiências inovadoras que podem contribuir com o desenvolvimento da área no país, como no caso do estudante de Honduras, que enfatiza a importância de ter aprendido sobre “ambiente de empresa júnior só estando lá pra saber que é uma coisa totalmente diferente”.

A situação financeira da família pesa bastante na decisão em voltar, uma vez que os pais têm a expectativa de que os filhos possam contribuir com a melhoria das condições socioeconômicas, como é o caso de John, de Gana:

Talvez lá trabalhar pra ajudar a minha família porque tem questão também né, posso até querer estudar, mas tem questão de apoio a família também porque a minha família tá passando por dificuldade em questão de, meu pai não tá tendo emprego fixo e a renda geral em casa não tá ajudando muito (John, Gana).

Há também os que pretendem ampliar o domínio de outras línguas, no caso o inglês, e pensam em continuar os estudos num país anglófono, como indica Laura, do Congo:

Não, ali no meu país tem um problema de empregos, nem meu pai trabalha na área dele. A [irmã?] mais velha, ela formou já em medicina, ela é médica, mas ainda tá procurando trabalho, como eu falei no meu país o trabalho é muito difícil. [...]. Eu tô pensando em fazer um mestrado num país anglófono, primeiramente, se não der, pode ser um país que fala espanhol e só por que eu tô atrás das línguas, meu sonho sempre foi falar as 4 línguas que são francês, inglês, português e espanhol (Laura, Congo).

O conjunto das falas indica, portanto, que o retorno ao país de origem não será automático. Há muitos fatores implicados nesta decisão, dentre eles as condições político-econômicas do país e da família e a possibilidade de continuar os estudos fora.

Durante as entrevistas os estudantes expressaram-se, mais pontualmente, sobre como veem o PEC-G, qual impacto o programa pode ter causado em sua formação profissional e cultural.

Eu acho esse programa muito bacana porque é tipo assim, sei lá, o Brasil ajudando os países sem receber nada de troca, porque por exemplo a gente estuda ali, forma ali e depois pra voltar pro seu país e trabalhar, pra desenvolver o seu país. O que que o Brasil ganha? Nada. Ele só tá levando conhecimento, levando, tipo assim, pra contribuir com o desenvolvimento dos outros países, enquanto o Brasil, ele mesmo tem os seus problemas e isso que acho que, nossa, um programa muito bacana, já pensou, quando você tem um monte de problema também, tem um monte de brasileiro que precisa de oportunidade, mas eles darem essas oportunidades também pro pessoal de fora e eu sou muito grata né pela oportunidade que me foi dada (Laura, Congo).

Acho que em geral, é um programa, claro que foi assim, tem intenções muito interessantes, questão de cultural né, intercalar cultura né. Queria tanto fazer farmácia e consegui através desse programa. Claro, tem dificuldade que o pessoal enfrenta, mas acho que em geral assim foi alguma coisa, assim que mudou minha vida [...] acho que os meus pais nem vão me reconhecer mais pelo tanto que eu mudei (John, Gana)

As entrevistas foram incisivas na avaliação positiva do PEC-G como política de cooperação internacional que, segundo a estudante do Congo “é o Brasil ajudando sem receber nada em troca”. No entanto, é necessária uma pesquisa que aprofunde essa questão uma vez que, se o estudante não tem de apresentar contrapartida, certamente nas relações comerciais do Brasil com os países parceiros, alguma moeda de troca, além do conhecimento, é usada, uma vez que partimos do princípio de que essas relações de cooperação não são simétricas nem isentas de interesse. Em seus discursos o ex-Presidente Lula (SILVA, 2013) destaca esse sentido de cooperação que se observa entre os anos de 2003 e 2015, reafirmando a reaproximação do Brasil com o continente africano, buscando parcerias que possam contribuir para o desenvolvimento do Brasil e os países parceiros:

É notável o estreitamento das relações entre o Brasil e os países da África nos últimos anos […] Abrimos frentes de cooperação em setores estratégicos para o desenvolvimento econômico e social, sempre respeitando a soberania dos países parceiros. Com espírito fraterno, contribuímos para o desenvolvimento de técnicas agrícolas, por meio da Embrapa, da agricultura familiar e na gestão de programas contra a miséria. Apoiamos ações na área da saúde, dentre as quais destaco a implantação da fábrica de antivirais em Moçambique, fundamental no apoio aos portadores do HIV na África Austral. O Brasil também está presente nos investimentos em infraestrutura nos países africanos, apoiados pelo BNDES, e na indústria do petróleo e gás, por meio da Petrobras, dentre outras iniciativas (LULA, 20132).

Nesse sentido, a cooperação internacional do Brasil com países do Sul-Global materializa-se por meio das relações de troca comercial, conhecimento e tecnologia, elementos fundantes de um processo de desenvolvimento sustentável (SEN, 1999) que vise o combate à miséria e à desigualdade social nesses continentes.

Além dos elementos aqui elencados, a experiência de viver no Brasil, para muitos dos africanos, tem sido marcada por episódios de racismo, herança colonial que constitui a sociedade brasileira. Alguns já tinham conhecimento do racismo no Brasil antes de chegarem. Para os estudantes, o preconceito racial é uma experiência nova, uma vez que não vivenciaram situações de racismo em seus países. Os alunos oriundos de países latino-americanos, por sua vez, não tocaram no tema do preconceito.

Em Gana não tinha isso, a maioria são preto, então não tinha essa questão, alguém, coisa de cor né, nunca tive e tal, eu me surpreendi muito e a questão de um dos policiais era negro, então, gente, pra que né? Provavelmente pra fazer, por causa da roupa né, que era diferente, então ele achava que a gente era, sei lá, ladrão, não sei. E a gente não tava com coisas, arma, a gente tava com sacolas de compras, então foi assim, eu não quis, eu fiquei até em choque né, porque ninguém nunca apontou a arma pra mim em Gana. Depois eu nem usava mais essa roupa porque eu não quis colocar a minha vida em perigo, apesar de que gostaria de usar porque é minha cultura [...] então pra evitar assim eu não uso, assim, pelo menos uso em lugares fechados né (John, Gana).

O caso acima evidencia o quanto o preconceito racial passa a interferir na própria expressão cultural dos sujeitos, uma vez que o traço das vestes típicas, aliado à cor da pele, na avaliação do aluno, poder ser um fator determinante na atuação racista da polícia. Como um mecanismo de defesa, a expressão cultural passa a ser restrita aos espaços privados e íntimos, espaços em que se sentem mais seguros. Essa violência simbólica (BOURDIEU, 1989) expressada pela diferença colonial (QUIJANO, 2005) impacta negativamente no cotidiano dos sujeitos.

A questão racial, porque eu nunca vi essa coisa que chama preconceito racista né? eu nunca passei por isso. Eu só assistia televisão, ah, tal, preconceito, racista e tal, e quando eu cheguei aqui, no segundo dia, segundo dia em Brasília, eu tava indo pra aula com (inaudível) amigo meu, a gente tava indo junto e aí a gente tava indo pra faculdade. Aí tinha duas moças correndo, tipo, sentido oposto [...]. Basicamente é isso, a única dificuldade né de integração aqui no Brasil é essa questão racial, do preconceito, só. Infelizmente é isso aqui no Brasil, quando você é negro quer dizer que você é bandido, então você vai sofrer preconceito mesmo (Samba, Camarões).

Mas eu sofri um tipo, uma forma de discriminação dos alunos, da turma também, sei lá. Como eu falei são muito super seletivos sabe. Eu até que isso é tipo assim uma coisa que não gosto de falar, de sei lá, mas pelo fato primeiramente de você estrangeira, primeiramente enxergar assim, e segundo estrangeira que vem da África com essa imagem tão feia e errada que o pessoal tem da África. E quando cheguei, tipo assim, todo mundo pensa que você não estudou, você não sabe escrever, não sabe ler, sei lá, não tava usando (inaudível) e ai quando eu cheguei eu lembro que o pessoal me perguntou assim “qual foi a primeira vez que eu usei roupa aqui no Brasil” se eu sei usar o celular, se eu sei o que que é um computador (Laura, Congo).

As falas acima evidenciam como no cotidiano a experiência do PEC-G contém elementos que apontam para um sentido oposto ao que se espera de um programa de internacionalização em casa. O racismo coloca em xeque a possibilidade de uma maior integração dos estudantes à comunidade estabelecendo trocas culturais com a perspectiva do respeito à diversidade, um dos objetivos da política de cooperação do MRE. A diferença colonial (QUIJANO, 1992; 2005) diminui o outro e compromete o desenvolvimento de uma relação horizontal e íntegra entre os povos que vivem sob a mesma condição de desigualdade social e econômica. “A estrutura colonial de poder produziu as discriminações sociais que posteriormente foram codificadas como “raciais”, “étnicas”, “antropológicas” ou “nacionais”, segundo os momentos, os agentes e as populações implicadas” (QUIJANO, 1992, p. 438).

Para Franz Fanon (2008) “um negro comporta-se diferentemente com o branco e com outro negro. Não há dúvida de que esta cissiparidade é uma conseqüência direta da aventura colonial (2008, p. 33). Ao prefaciar o livro do autor, Lewis R. Gordon afirma a perspectiva com que Fanon trata do racismo e do colonialismo:

Na maioria das discussões sobre racismo e colonialismo, há uma crítica da alteridade, da possibilidade de tornar-se o Outro. Fanon, entretanto, argumenta que o racismo força um grupo de pessoas a sair da relação dialética entre o Eu e o Outro, uma relação que é a base da vida ética. A conseqüência é que quase tudo é permitido contra tais pessoas, e, como a violenta história do racismo e da escravidão revela, tal licença é freqüentemente aceita com um zelo sádico. A luta contra o racismo anti-negro não é, portanto, contra ser o Outro. É uma luta para entrar na dialética do Eu e do Outro (GORDON, 2008, p. 16).

Por outro lado, apesar da luta “para entrar na dialética do Eu e do Outro”, os estudantes relatam experiências positivas de integração na comunidade acadêmica, ao destacarem a receptividade, a solidariedade e o interesse de alguns colegas pela cultura africana.

Muitos outros amigos que ajudaram na universidade e tinha ali sempre os alunos que andavam com a gente, tipo assim, de manhã, de tarde e de noite a gente ficava só na faculdade, sempre tinha gente pra falar conosco, grupo vai pra aula, ou aquele que vai fica com a gente e assim que tivemos muitas oportunidades de praticar a língua, teve aquelas visitas na cidade com os alunos, então, apesar de ser uma coisa muito brusca, de repente, a gente tava parada, mas fomos muito bem acolhidos e é isso que ajudou também (Laura, Congo).

Então, tem brasileiros que não sabem, mas quando entram em contato com o africano, faz questão de perguntar pra saber, pra ter conhecimento da África, isso ajuda muito. Então, imagina se isso for um projeto, onde os brasileiros vão apaixonar mesmo e assistir coisas da África e tal, isso é bacana (Hermam, Guiné-Bissal).

O aspecto da solidariedade e do interesse pela cultura dos estudantes, conforme as falas acima, está presente na relação dos brasileiros com os estrangeiros e evidencia a complexidade envolvida no processo de internacionalização da universidade, constituída, dentre outras coisas, por elementos antagônicos como o preconceito racial e a solidariedade.

5 Considerações finais

Neste texto abordamos a questão da internacionalização em casa por meio de uma análise do PEC-G enquanto programa de cooperação internacional do Brasil na área do Ensino superior. O objetivo foi contribuir para aprofundarmos o conhecimento sobre a internacionalização da universidade tomando como referência não apenas documentos oficiais, mas também ouvindo os sujeitos envolvidos.

O pressuposto defendido é o de que qualquer programa de cooperação é permeado por interesses e relações de poder, mesmo no caso de um programa que foca os países do SUL-Global como é o do PEC-G. Neste texto destacamos a faceta da cooperação a partir dos sentidos atribuídos pelos estudantes quando falam da experiência cotidiana no Brasil, dos motivos de escolherem o país e o curso bem como do desafio de enfrentar o preconceito racial, fenômeno desconhecido da maioria até chegar aqui. O preconceito, tratado pelos estudantes de países Africanos, não foi mencionado pelos estudantes de países da América Latina, indicando que a questão racial, nesse caso, está diretamente relacionada ao negro. Conforme Fanon, citando Alan Burns:

O preconceito de cor nada mais é do que a raiva irracional de uma raça por outra, o desprezo dos povos fortes e ricos por aqueles que eles consideram inferiores, e depois o amargo ressentimento daqueles que foram oprimidos e freqüentemente injuriados. Como a cor é o sinal exterior mais visível da raça, ela tornou-se o critério através do qual os homens são julgados, sem se levar em conta as suas aquisições educativas e sociais (BURNS apud FANON, 2008, p.14).

Por outro lado, foi mencionado por alguns o aspecto da solidariedade dos brasileiros no ambiente universitário contribuindo para minimizar as dificuldades que porventura os estudantes tenham no dia a dia, especialmente quando dos primeiros meses de chegada ao país.

Os resultados jogam luz na complexidade desse processo uma vez que, ao mesmo tempo em que reconhecem o papel do PEC-G na transformação de suas vidas, por outro lado, muitos fatores interferem na decisão de voltarem ou não ao país de origem, desde a situação política até a questão econômica e familiar, o que pode limitar o alcance e objetivo do programa que é contribuir para que esses estudantes interfiram positivamente no desenvolvimento socioeconômico de seus países. Somente uma pesquisa aprofundada com os egressos do PEC-G poderia nos indicar com mais clareza o impacto do programa não apenas na sua vida profissional, mas no próprio país. Ainda assim, é possível afirmar que a perspectiva de cooperação entre o Brasil e os parceiros do PEC-G indica um conjunto de relações de trocas comerciais, de conhecimento e tecnologia que podem impactar o desenvolvimento dos países para além do retorno dos estudantes do PEC-G após a conclusão do curso.

Muitos são os desafios enfrentados pelas universidades brasileiras na implementação de uma política de internacionalização que realmente concretize uma integração mais efetiva entre estrangeiros e brasileiros. Consideramos que a experiência do PEC-G pode contribuir para uma maior interação linguística e cultural entre os estudantes, se as universidades de fato construírem uma política que envolva a criação de espaços efetivos de troca de saberes entre os estrangeiros africanos, latino-americanos e brasileiros, tratando o PEC-G como um programa real de internacionalização da universidade ao lado dos outros programas voltados para americanos e europeus. Outro desafio, igualmente importante, é a criação de estratégias para combater o racismo dentro e fora da universidade, mapeando estas experiências vividas pelos estudantes e amparando-os na tomada de medidas eficazes para minimizar este problema grave enfrentado por alguns estudantes no cotidiano da sua experiência no Brasil.

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    O site do PEC-G no MRE apresenta depoimentos e perfis de ex-estudantes que passaram por nossas instituições e que têm influído diretamente nos rumos da política de seus países considerando-se os cargos que assumiram ao longo de décadas.
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    Discurso proferido por ocasião do recebimento do título de Doutor Honoris Causa pela UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2020
  • Aceito
    10 Fev 2022
  • Revisado
    15 Fev 2022
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Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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